Amigos do Fingidor

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Meio ambiente e linguagem



Zemaria Pinto

Começo fazendo uma crítica ao título do evento: Workshop ecológico. A utilização de palavras alienígenas é inevitável na formação de qualquer idioma, em qualquer tempo. Elas geralmente são adotadas quando não há uma palavra correspondente. A língua portuguesa é cheia de palavras “importadas”, cuja origem nem nos lembramos mais, a não ser quando compulsamos os manuais especializados. Mas não essa “workshop”, substituindo a belaoficina”, que, aliás, é uma palavra pura, castiça, vinda diretamente do latim. E que qualquer criança sabe o que significa. 
Como a literatura pode contribuir, de forma densa e profunda, na formação de uma consciência ecológica? A linguagem, acho que foi Heidegger quem disse, é a casa do Ser. Todo ser, ou coisa, existe de fato se nomeado. Dar nomes, essa função primordial, é uma função da linguagem. Isso está em todas as literaturas primitivas. Dar nomes é um atributo divino, por isso, a linguagem é a morada do Ser, da vida.
A poesia, por outro lado, é a primeira manifestação artística da linguagem. É o momento em que os nomes extrapolam o dicionário e funcionam de forma conotativa, isto é, passam a representar o que não são, tomam vida nova, se expandem, se multiplicam em significados. Ensinar poesia a crianças é ensiná-las a amar a linguagem, a casa da vida.
O haicai é um tipo de poema desenvolvido no Japão, desde o século XII, mas que encontrou verdadeiro reconhecimento literário no século XVII, quando viveu o maior de todos os haijins, Matsuo Bashô. Compõe-se de três versos e, à parte a técnica, dedica-se à observação da natureza. Ensinar haicais a crianças e adolescentes (sem excluir os adultos, é claro) pode ser uma forma de fazê-los vivenciar a consciência ecológica, na observação da natureza e no amadurecimento deles mesmos enquanto seres humanos.
O haicai não tem nada a ver com seitas, religiões, ou sistemas de pensamento. O haicai não é zen, não é budista, mas é, com certeza, uma forma de ver o mundo e de se posicionar nele. A sua técnica, muito simples, ensina-nos, também, a organizar nossa linguagem. O haicai trabalha com o transitório, com o sensorial, é observação transformada em poesia.
São três versos espreitando a natureza, sem interferir nela. Os mestres do haicai ortodoxo dividem-no por kigos, que são as estações do ano, e, dentro destas, classificam-no por Tempo, Fenômenos Atmosféricos, Geografia, Fauna, Flora e Datas Festivas ou Vivenciais. Você pode, então, me perguntar: onde está o homem, senhor poeta, defensor da humana ecologia? O homem? Está colhendo, está plantando. Ou está fazendo poesia. Porque, ao contrário do que falsamente se propala, o haicai não é alienado. Mas também não se presta a filosofices. É a forma ideal, eu acredito, de ensinar poesia, e, de quebra, ecologia.


Comunicação apresentada em um “Workshop ecológico”, no CAUA, em outubro de 1977.


O livro do teatro urbano das mulheres de Lazone



Políticas de saúde frente a pior das doenças: a fome



João Bosco Botelho

           Como todas as especialidades sociais, a Medicina deve ser compreendida no contexto da totalidade social do homem, evitando a restrição da ação individual imposta pela relação médico‑paciente. Essa atitude política impõe dificuldades crescentes porque alarga o espectro de representação e obriga a participação do médico, como agente oficial da medicina, nos destinos da sociedade.
           Há muito tempo existe o tácito reconhecimento de diferentes práticas médicas entre ricos e pobres. Platão (República, 406, d) observou as diferentes consultas: enquan­to o abastado dispunha de tempo e dinheiro para pagar regiamente o médico, o pobre sem temo e dinheiro, não recebia atenção semelhante.  
           A situação mudou pouco na atualidade. As análises das com­plicações ocorridas nos serviços de emergência mostram que certas pessoas recebem tratamento diferenciado. Na hora de decidir, o médico acaba levando em consideração outros fatores além dos supostamente técnicos. Mesmo nos ambulatórios, onde habitualmente não existe risco de vida, quando o paciente se mostra mais esclarecido o profissional de saúde presta mais atenção no curso da consulta.  
           Apesar de essas situações serem conhecidas, não existe no momento qualquer perspectiva para modificá‑las, especialmente nos países onde predomina a fome quantitativa ou quantitativa na maior parcela da população.
           É certo que a crueldade da fome alcança a maior parte do planeta. Embora a produção de alimentos tenha aumentado considera­velmente nos últimos trinta anos, cerca de 2 bilhões de pessoas, no mundo, estão diariamente privadas do alimento mínimo para viver com menos doença. Como as crianças não comem o mínimo necessário, o sofrimento da fome se arrasta durante os primeiros anos de vida, gerando a desnutrição e o conjunto de doenças incapacitantes ou que aumentam a mortalidade. Também é importante assinalar que as crianças nascidas de mães também subnutridas, jamais poderão desenvolver adequadamente as funções motoras e de aprendizado. É uma verdadeira fábrica de deficientes físicos e mentais.  
           No Brasil, o problema é de magnitude semelhante. Apesar de ostentar a sétima economia mundial, algumas parcelas da população, as mais pobres, têm a mesma expectativa de vida que os da Etiópia, Birmânia e El Salvador. É exatamente por essa razão que fica difícil falar de medi­cina no Brasil sem lembrar que, dois mil e duzentos anos depois, Platão registrou a existência de Medicinas desiguais.
           A maior parte das enfermarias dos hospitais públicos brasileiros (os quem têm maior poder aquisitivo, raramente ocupam esses leitos) está preenchida por pessoas e crianças portadoras de doenças causadas direta ou indiretamente pela subnutrição crônica.  
           Os estudantes de medicina, todos os dias, vêm os pequenos doentes que conseguem sair vivos da diarreia da ameba para retornarem, poucos meses depois, com a pneumonia fatal. É realidade absolutamente inaceitável, resultante de um processo econômico e social injusto e desumano, na medida em que marginaliza, nos limites da miséria absoluta, parte significativa da população.

           O combate à fome, evitando as doenças infecciosas responsáveis pela elevada mortalidade infantil, não passa somente pelos auxílios financeiros na forma de "bolsas", devem incluir necessariamente ao direito à educação de boa qualidade em horário integral, para ajuste da alimentação e atenção primaria à saúde. 

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Fantasy Art - Galeria


Boris Vallejo.


segunda-feira, 27 de outubro de 2014

A busca da verdade


Darcy Ribeiro, por J. Bosco.
Anísio Teixeira me ensinou a duvidar e a pensar. Ele dizia de si mesmo que não tinha compromisso com suas ideias, o que me escandalizava, tão cheio eu estava de certezas. Custei a compreender que a lealdade que devemos é à busca da verdade, sem nos apegarmos a nenhuma delas.

(Darcy Ribeiro, em Confissões)


domingo, 26 de outubro de 2014

Manaus, amor e memória CLXXXIII


Prospecto da Fortaleza do Rio Negro, que daria origem à vila de São José da Barra do Rio Negro, depois Manaus.


sábado, 25 de outubro de 2014

Fantasy Art - Galeria


Garden of Eve.
Todd F. Jerde.


quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Ecologia humana?



Zemaria Pinto

um paradoxo comum nas discussões a respeito do equilíbrio ecológico: quando se privilegia a discussão das influências negativas sobre o meio ambiente, o Homem, motivação principal da discussão, acaba sempre relegado a segundo plano. É claro que um planeta saudável favorecerá a vida humana. A discussão que eu proponho, entretanto, caminha em outra direção que a da relação homem x natureza: é preciso discutir a relação homem x homem.
um evidente desequilíbrio no “meio ambiente pessoal” do homem moderno. Se olharmos ao nosso redor, veremos uma situação caótica no nosso dia-a-dia, decorrente da deficiência no atendimento às nossas necessidades mais elementares: saúde, educação, justiça, água, energia elétrica... E o que falar do caos no trânsito? E da violência gratuita, que se pratica como diversão? E da corrupção generalizada? E da absoluta falta de confiança em nossos representantes políticos, o que ameaça, mesmo, o próprio sistema político?
Você parou para contar quantas horas tem de verdadeiro lazer por dia? A competitividade exacerbada criou um mutante, o trabalhador compulsivo, chamado pelos pedantes de workaholic, que tem no trabalho seu maior divertimento. Falsa ilusão. O compulsivo administra mal sua libido: é um estressado, um infeliz, e sério candidato ao infarto.
É preciso repensar a própria trajetória humana. Os valores mais caros da humanidade parecem relegados a um plano inferior. Justiça social? Oportunidade igual para todos? A globalização da economia impõe um paradoxo terrível ao homem que a vive, na medida em que a lei mais elementar da economia pressupõe o equilíbrio entre a oferta de bens, por um lado, e a capacidade de adquirir esses bens, por outro. O avanço da tecnologia aumenta o desemprego, diminui salários e, consequentemente, desequilibra a relação econômica. Posicionarmo-nos contra a tecnologia, entretanto, seria não apenas temerário como também infantil e ridículo. A evolução da espécie tem passado obrigatoriamente pela evolução tecnológica, desde a pedra lascada.
Soluções? Talvez um caminho seja melhorar o nosso humor e, parafraseando Sartre, incutir em nossas mentes que o “ecologismo é um humanismo”. Nenhum sistema filosófico e nenhuma religião pressupõem o aniquilamento do homem, mas é a isso que assistimos diariamente: o homem é uma espécie em extinção. A consciência ecológica deve passar obrigatoriamente pela discussão da desumanização do homem. E não adianta argumentar que vivemos uma fase de transição: o homem e as relações humanas estão em permanente mutação, de forma irreversível. Temos que aprender a conviver com o acelerado avanço tecnológico, na medida em que este facilita nossas vidas e aumenta nosso conforto, melhorando nossa qualidade de vida, mas temos que nos insurgir com veemência contra o caos – o caos urbano, o caos do campo, o caos que não nos dá nenhuma garantia de que amanhã ainda estaremos vivos.

Comunicação apresentada em um “Workshop ecológico”, no CAUA, em outubro de 1977.


Medicina na mitologia grega



João Bosco Botelho

As relações entre as práticas de curas e compreensão mítica da realidade se perderam no tempo. Algumas vezes, é impossível distinguir onde começa uma e termina a outra, compreendendo que a mitologia nasce das relações com o mundo da natureza empírica, mas acima do meramente empírico.
Das primitivas relações do homem com o animal, predominando o sangue como garantia da vida, posteriormente substituídas pelas relações com a terra, surgiu empiricamente o vegetal na busca da saúde e evitando a morte.
O uso do vegetal, indispensável para a sobrevivência do homem, se processou em complexa compreensão mítica, marcada pelas explicações que se sucederam nos milênios sobre a origem primeira e do destino final do ser humano. Evoluíram da epopeia de Gilgamesh, dos babilônios, à teoria do Big Bang, dos modernos astrofísicos, passando pela gênese judaico-cristã e Yebá Beló da lenda desana da criação do Sol, indígenas do grupo linguístico tucano, das margens dos rios Tiquié e Papuri, no alto rio Negro.
Os registros do século 6 a.C. descrevendo a Medicina ligada à mitologia grega são, provavelmente, o produto das complexas relações do homem que antecedeu a formação do pensamento grego. É possível estabelecer certo paralelismo entre muitos aspectos das relações médico-míticas das civilizações babilônica, egípcia e indiana com as da Grécia antiga.
De acordo com a mitologia grega, a Medicina começou com Apolo, filho da união de Zeus com Leto. Inicialmente, Apolo era considerado como o deus protetor dos guerreiros. Posteriormente, identificado como Aplous, aquele que fala verdade. Apolo purificava a alma por meio das lavagens e aspersões e o corpo, com remédios. Por essa razão, o deus que lavava e libertava o mal.
Um dos filhos de Apolo, Asclépio recebeu educação do centauro Quiron para ser médico. A escolha do centauro foi feita porque dominava os saberes da música, magia, adivinhação, astronomia e Medicina. Além dessas habilidades, Quiron possuía incomparável destreza, manejava com a mesma habilidade o bisturi e a lira.
Para os gregos daquela época, Asclépio divinizou a Medicina. Celebrado em grandes festas públicas, no dia 18 de outubro, data em que até hoje se comemora o dia do médico no Ocidente. Asclépio conquistou uma fama inimaginável, tinha a delicadeza do tocador de harpa e a habilidade agressiva do cirurgião. Todos os doentes que não obtinham cura em outros lugares, procuravam as curas milagrosas desse deus curador. Mais cirurgião do que médico, ele criou as tiras, as ligaduras e as tentas para drenar as feridas. Com esse imenso poder, ressuscitou alguns mortos. Zeus, temendo que a ordem do mundo fosse transtornada, ordenou a morte de Asclépio com os raios das Ciclopes.
A genealogia mítica de Asclépio identifica duas filhas, Hígia e Panaceia; a primeira, celebrada como deusa da saúde perfeita; a segunda, curadora por meio das plantas medicinais. Além delas, dois filhos, Machaon e Podalírio, descritos por Homero como médicos guerreiros, com destaque na guerra de Tróia.

Nos muitos registros de agradecimentos dos doentes para Asclépio, as esculturas produzidas, entre os séculos 6 e 2 a.C., contém a serpente enrolada no bastão. Seja qual tenha sido a razão que levou o homem, no passado, a estabelecer elos entre a serpente e a Medicina, está relacionada às imagens metafóricas da luta pela sobrevivência, entre as quais a mitologia é parte sustentadora.


quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Fantasy Art - Galeria


Alberto Pancorbo.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Lábios que beijei 32


Zemaria Pinto

Alice



Como gerente de banco, eu conheci todo tipo de gente. Alice foi a mais estranha, numa escala de um para mil: ainda hoje tenho pesadelos com ela, um nome sem rosto que me infligiu um estigma na memória... Em uma manhã chuvosa, atendi ao telefone uma moça que buscava informar-se sobre operações ordinárias. Sua voz era rouca, jovial e vivaz, e, de repente, vi-me envolvido em uma conversa que há muito extrapolara o meramente profissional. Trocávamos informações sobre gostos comuns, preferências mútuas. Sugeri que conversássemos mais tarde. Ela não quis me dar seu número, disse que ligaria depois do expediente externo. Era uma situação comum: casada, ou algo parecido, ela mandava no jogo, sem expor-se a riscos. Naquela tarde, entretanto, nada aconteceu. Dias passados, já nem lembrava mais de Alice, ela ligou-me. A conversa estendeu-se por mais de uma hora. Alice era desinibida e talvez até um pouco atrevida em suas posições. Opinava sobre tudo – artes, política, esportes – e era muito firme em suas convicções. Quando eu disse que era casado, ela soltou uma gargalhada: – Até quando? No dia seguinte, ela voltou a ligar, para mais uma longa conversa. Aos poucos, percebi que aquele desembaraço escondia a mais amarga solidão. Mas ela não falava nada sobre sua vida pessoal. Dizia que quando nos encontrássemos eu ficaria sabendo de tudo sobre ela. As ligações continuaram diariamente, durante três semanas, ela sempre se esquivando de um encontro. Nos finais de semana, sentia falta de Alice, de sua voz sensual e moleca. Até que ela cedeu: marcamos um encontro para o anoitecer de sexta-feira. Trocaria o sagrado horário da cerveja com os amigos para conhecer de perto aquela mulher cuja voz me seduzia. Fui até o coreto da Praça da Polícia; esperei cerca de uma hora e meia. Alice não deu o ar de sua graça. Na segunda-feira, minha ânsia foi atendida com o toque do telefone no horário de costume: – Você não falou comigo... – Como, se você não apareceu? Fiquei feito um idiota, no coreto, vendo as pessoas passarem. Nem sequer me olhavam, tão apressadas. Além de mim, só uma moça paraplégica, levada por uma senhora de idade, estava no local. Aliás, eu saí e ela ficou... Nesse momento, percebi um “clic” do outro lado da linha. E nunca mais ouvi a enigmática voz de Alice.

domingo, 19 de outubro de 2014

Manaus, amor e memória CLXXXII


Homenagem ao caro Jacintho Fontenelle, que trazia o cinema no sangue.

sábado, 18 de outubro de 2014

Fantasy Art - Galeria


Autor desconhecido.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Adrino Aragão: a grandeza do minimalismo na literatura 3/3


Zemaria Pinto

Caderno do escritor

Falei da árvore e dos frutos maturados. Pouco resta para falar desse fruto novo (novo, mas não verde) que é o livro Caderno do escritor, onde Adrino Aragão exercita, de modo ainda mais radical, o conto minimalista, não importa o nome que damos a ele. São 116 contos, mais um bônus sobre o qual falarei mais adiante.

Espelho meu, dizei-me: qual desses dois sou eu?[1]

Uma frase em uma linha, duas orações e nove palavras. Isto é um nanoconto de Adrino Aragão.

Vamos analisá-lo sumariamente. Em cada uma das orações, Adrino recupera alguns séculos de tradições literárias. “Espelho meu” é a clássica fala da madrasta de Branca de Neve, narrativa originária da tradição oral alemã, provavelmente da Idade Média, e compilada pelos irmãos Grimm na primeira metade do século XIX. A segunda frase – qual desses dois sou eu? – é a expressão profunda da figura literária chamada “duplo”, expressa, para melhor entendimento, pela fórmula “eu = outro”. Ao defrontar-se com o espelho e fazer a pergunta, o narrador-personagem remete-nos a Jorge Luis Borges, uma influência confessa na obra de Adrino Aragão. Mas isso é pouco. Há mais de dois mil e duzentos anos, o romano Plauto já brincava com essa figura em Anfitrião. Mas não nos alonguemos, isto é apenas uma apresentação, não uma tese.

Alguns contos parecem ser a conclusão de uma narrativa mais longa. Cabe ao leitor montar a história anterior. Um exemplo:

Há uma dor ácida de profunda solidão por toda a quitinete, desde que ela me deixou. Acordo (acordo?) no meio da noite, não sei que rumo tomar: você não sabe o que é o amor de um velho apaixonado[2].

Alguns contos não escondem que são poemas, como neste autêntico haicai:

Trégua na mata:
o grito do acauã
esfacela o silêncio[3].

A metalinguagem é tema recorrente, como demonstrado por Joaquim Branco, na obra de Adrino Aragão. E não poderia ser diferente neste livro, onde vários contos são construídos a partir do tensionamento entre o narrador e a narrativa. Este conto de sete palavras poderia ser inserido na parte inicial deste trabalho, onde tentamos definir o conto enquanto gênero literário:

O conto não é ponto final: é interrogação[4].

O bônus a que me referi anteriormente é um conto chamado “Velho Catuxo”, apresentado em três versões. E mais não direi para não estragar a surpresa.

Poderia falar muito mais sobre este pequeno grande livro, que confirma a assertiva de Bachelard: “a miniatura é uma das moradas da grandeza”[5]. Poderia citar exemplos da sensualidade que penetra suavemente vários contos do livro... Poderia falar das personagens do povo, naturalmente anônimas: o homem rico e generoso que foi parar no asilo de velhos desamparados, a menina pobre que deu o golpe do baú, o jogador de futebol vencido pelas drogas, a Nega Charuto no céu... Não. Leiam e releiam e descubram esse universo mínimo de Adrino Aragão, contido nesta casca de noz que é o Caderno do escritor e vão compreender porque o poeta e pintor Fernando Abritta, que ilustrou o livro, dedicou-lhe estas enigmáticas palavras:

Adrino escreve como um menino que, munido de uma atiradeira, vai acertando as lâmpadas acesas que iluminam o cotidiano e, ao quebrar essas certezas, faz com que a gente enxergue um pouco melhor[6].

Adrino, meu velho, aceite o meu abraço fraterno por mais esta façanha.




[1] Obra citada: p. 56.
[2] Obra citada: p. 18.
[3] Obra citada: p. 100.
[4] Obra citada: p. 126.
[5] In: A poética do espaço (São Paulo: Nova Cultural, 1988), p. 210.
[6] 4ª capa do livro Cadernos do escritor.

Os anseios das cunhãs



Aldisio Filgueiras e Leyla Leong debatem a crise do jornalismo cultural



Doutores fritz



João Bosco Botelho
          
           A antropóloga Maria Andréa Loyola após pesquisa realizada em Nova Iguaçu e Santa Rita (RJ), entre 1976 e 1979, estabeleceu importantes relações entre a busca de saúde nos hospitais e ambulatórios púbicos e a dos curadores por ela denominados "especialistas não reconhecidos" (rezadores, padres, freiras, pastores, benzedores, pais e mães de santos) e por mim caracterizados como "doutores fritz".
           Os resultados desse trabalho estão publicados no livro "Médicos e curandeiros: conflito social e saúde", de 1982, onde a pesquisadora esclarece que a procura do tratamento fora das instituições públicas representa reconstruções pessoais e coletivas, para superar a absoluta ausência do Estado, na atenção médica primária, a penúria social, certeza do abandono e, especialmente, o descrédito nos médicos e hospitais. Os "doutores fritz" possibilitam reinserções sociais por meio de outros sistemas de poderes locais relativamente autônomos que permitem aos suplicantes afirmarem as identidades e pensarem ser possível possuir lugares no mundo.
           Existem pontos que podem ser questionados tanto na elaboração quanto na reprodução da liberdade com que os "especialistas não reconhecidos" ou "doutores fritz" se multiplicam e atuam nas igrejas ligadas às muitas tendências religiosas. O início da discussão pode ser a partir do pressuposto de alguns segmentos dos poderes políticos usarem esses curadores como anteparo às pressões coletivas frente às dificuldades do atendimento médico no sistema público. Dito de outro modo, sem esses "especialistas não reconhecidos", a insatisfação popular cresceria gerando conflito e desgaste político.
           Nos anos 1970, apareceu no Rio de Janeiro um "doutor fritz" autodenominado "sete da lira". Esse personagem, durante alguns meses, sem ser importunado pelas autoridades sanitárias, atendeu milhares de pessoas no subúrbio de Campo Grande. Desgastado pelos incontáveis insucessos, esvaziado, restou o enorme patrimônio econômico da "fundação que administrava os dons mágicos do curador."
           Não é adequado rejeitar ou criticar a priori os "doutores fritz". É importante que essa discussão tome maior corpo nas universidades, inclusive na disciplina História da Medicina, para que os pesquisadores sociais, como a antropóloga Maria Andréa Loyola, continuem as análises e divulguem os resultados.
           No livro "Medicina e religião: conflito de competência", 2a. edição, que eu publiquei pela Editora Valer, em 2005, mantive a ideia de a importância mais imediata do sagrado continuar sendo a coisa sagrada, onde o conjunto que encanta e reproduz possui um ou mais objetos de fixação, do culto do corpo santo às relíquias, das imagens às oferendas nas encruzilhadas, gerando consciência e resposta, ajudando os suplicantes a achar e ocupar os lugares no mundo.
           Historicamente, a maioria dos cultos de conjuração é terapêutica, para amenizar a dor da pobreza ou a cólica menstrual. Essa forma de atuar na saúde e na doença, por ser mágica, sem passar por médicos e hospitais desacreditados, é a mais comum e toca fundamentalmente no cerne da existência humana na ambição de recuperar a saúde e evitar a morte precoce.

           Os inaceitáveis indicadores que continuam contribuindo para a reprodução dos "doutores fritz" começam no atual modelo de desenvolvimento, gerador dos enormes desníveis socioculturais e se consolidam na ausência de uma política voltada para a atenção primária da saúde e da infância nos países onde os atendimentos médicos primários são frágeis ou inexistentes.


quarta-feira, 15 de outubro de 2014

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude


Embora um pequeno-burguês, eu penso como aquele príncipe de Lampedusa: para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude.

(João Sebastiãong  ebastião - a, num surto de cinismo, justificando seu voto em Apoeta nefelibata, filósofo de boteco, profeta do caos, eleitor do PT desde 1982 –, num acesso de cinismo, justificando seu voto em Aécio Neves)

O verdadeiro caminho


O verdadeiro caminho passa por uma corda que não está esticada no alto, mas logo acima do chão. Parece mais destinada a fazer tropeçar do que a ser trilhada.


(Franz Kafka)

domingo, 12 de outubro de 2014

sábado, 11 de outubro de 2014

Fantasy Art - Galeria


Benita Winckler.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Adrino Aragão: a grandeza do minimalismo na literatura 2/3


Zemaria Pinto

O conto à meia-luz

O professor Joaquim Branco trabalha com três livros de Adrino Aragão: Inquietação de um feto, Tigre no espelho e Conto, não-conto & outras inquietações. Três momentos diferentes do autor, três fases distintas de uma mesma obra: o jovem, o homem maduro, o mestre.

De Inquietação de um feto, Joaquim Branco destaca “o poético na confluência da prosa”[1]: de fato, Adrino Aragão opta pelo afastamento total do realismo que minava a contística amazonense e constrói pequenas narrativas onde a linguagem transita, sem nenhum pudor, entre o mito e o místico: “Voo de Ícaro”, “Invenção”, “Rosa vigiada”, “Filho”, “O afogado”, são contos que, nas palavras de Arthur Engrácio, sabiamente recuperadas por Joaquim Branco, “além de invadirem o terreno do fantástico, do mistério e do absurdo, tocam de perto o poético.”[2] Para ilustrar sua tese, Engrácio transforma os dois parágrafos, de cinco linhas cada, do conto “Filho” em um poema, de duas estrofes, com sete versos cada, “com resultados surpreendentes”:

Tens as vestes esfarrapadas, meu filho.
Teus caminhos são tortuosos.
Teus pés estão feridos e o corpo lanhado de espinhos.
Te perdeste na procura do caminho
onde poucos estiveram.
O cavaleiro da estrada quis punir-te;
foste poupado.

Vem, meu filho.
Vou cobrir a nudez de teu corpo cansado.
Do cordeiro e do leão fiei tuas vestes.
E nas três varas de bambu
sustentarás teu corpo.
Até que a espiga haja crescido viçosa
e teus filhos estejam alimentados[3].
   
Em Tigre no espelho, Joaquim Branco ressalta “o uso da intertextualidade, da metalinguagem e o enfrentamento do ‘outro’, presentes em quase todo o percurso narrativo do livro, preparando o terreno que vai se tornar a própria substância da ficção”[4].

De fato, usando referências que fazem pontes entre Edgar Allan Poe e Franz Kafka, Guimarães Rosa e Ernest Hemingway, Adrino Aragão constrói um labirinto borgeano onde em cada passagem questiona-se o próprio fazer literário, tal como ensinara o onipresente Jorge Luis Borges. Joaquim Branco diz que, valendo-se do entrelaçamento de textos e personagens diversos, e de uma linguagem adstrita ao realismo fantástico, em Adrino “a mímese se realiza predominantemente através de processos metalinguísticos”[5], ao que eu acrescentaria o embate consigo mesmo (o outro, o espelho), usando a literatura para desmistificar a si mesma, como neste fragmento, extraído de “Anotações para um conto”:

Que diabo! Um escritor não pode ficar tanto tempo sem escrever. Por mais que me esforce não consigo escrever nada. Nem um conto sequer. O último trabalho como que me sugou totalmente. Decidi não ficar esperando pela inspiração e tentei desenvolver algumas ideias mas não deu certo. Só consigo escrever impulsionado por uma força interior me sufocando, gritando para sair[6].  

Em 1999, escrevi um breve e despretensioso ensaio sobre Tigre no espelho, onde observo que o tema central do livro é a problematização do ato de criar, de fazer arte[7]. Esse tema está presente em dez dos doze contos do livro – que, por sinal, não se enquadram no escopo restrito da obra de Joaquim Branco: os mini, micro ou nanocontos. Mas é exatamente esse questionamento recorrente que interessa ao crítico, antes de chegar à grandeza das miniaturas de Conto, não-conto & outras inquietações, o cerne de sua pesquisa.

Nesse livro, Joaquim Branco anota que “se concentra a maior força criativa do autor, que consegue em poucas linhas, descobrir – no sentido de abrir, levantar o véu – um universo de sugestões e vias para o leitor. Ali são demonstradas as relações entre o trágico e o cotidiano, remontando ao mitológico grego”[8]

Eu diria mais, pois Adrino Aragão, neste livro mais que em qualquer outro, assume um lado regionalista – mas não aquele ligado ao realismo-naturalismo: um regionalismo anterior, mítico, essencialmente amazônida. Aliás, nunca é demais repetir: “poucas literaturas têm uma retaguarda mitológica tão expressiva como a literatura amazonense; poucas literaturas têm o luxo de uma mitologia própria, cujas origens confundem-se com as várias etapas do desenvolvimento da humanidade”[9]. Como exemplo, o próprio Joaquim Branco cita o miniconto “encantamento”:

a canoa solitária descia de bubuia as águas barrentas do solimões. ao redor de chapéus de palha que flutuavam ao sabor da correnteza, o festim dos botos anunciava o encantamento de duas cunhãs do vilarejo[10].




[1] Obra citada: p. 62.
[2] Obra citada: p. 68.
[3] Obra citada, p. 68-69.
[4] Obra citada: p. 51.
[5] Obra citada: p. 53
[6] Tigre no espelho, p. 75.
[7] “Tigre no espelho”, in: Análise Literária das Obras do Vestibular 2000 (Manaus: EDUA, 1999).
[8] Obra citada: p. 80.
[9] Frases pinçadas do meu livro O conto no Amazonas (Manaus: Valer, 2011. p. 19).
[10] Obra citada: p. 75.