quinta-feira, 25 de março de 2010

O mau-olhado

João Bosco Botelho



Para iniciar uma abordagem mais ampla do mau-olhado, a partir da importância social da reprodução da crença no mau-olhado, ao longo de milhares de anos, se torna necessário trabalhar com uma categoria – a medicina-divina – que engloba as práticas de curas relacionadas às expressões de crenças religiosas, contraponto às terapêuticas da medicina-oficial. A discussão teórica que envolve esse conjunto relacional deve estar associada a dois questionamentos:

– Seria possível causar doenças por meio do mau-olhado?

– Seria possível curar doenças por meio da medicina-divina?

Não há dúvida da universalidade da crença do mau-olhado. Luis da Câmara Cascudo (Dicionário do Folclore Brasileiro, 5ª ed, Itatiaia, 1984) é um dos autores que sustenta sua antiguidade e presença nos cinco continentes.

Junito Brandão (Mitologia Grega, v. 1, 2ª ed. Vozes, 1986) assinala a origem pré-olímpica do mau-olhado, explicando as mudanças na transição greco-romana para absorver a concepção helenística predominante nos países cristãos. Na mitologia grega, a mortal Medusa, com a cabeça coberta de serpentes, possuía olhos com excepcional brilho e o olhar maligno que transformava em pedra quem ousasse fixá-los.

Carlo Ginzburg (Os Andarilhos do Bem, Companhia das Letras, 1988) interpretou do modo magistral os cultos agrários, no século 17, em uma sociedade camponesa italiana. A crença no mau-olhado era muito comum naquela comunidade e o tratamento só obtinha sucesso se realizado por alguém com poderes especiais: o benandanti ou andarilho do bem. Em um dos processos do Santo Ofício, para punir o benandanti, no depoimento de um dos acusados, está claro o entendimento do mau-olhado: O que significa, pergunta o inquisidor, ter mau-olhado? E a jovem explica: nós dizemos que têm mau-olhado as mulheres que secam o leite das mulheres que amamentam e são também bruxas que comem as crianças.

Essa compreensão do mau-olhado, numa pequena vila italiana, há três séculos, está próxima de outras, nos dias atuais, que recebem identificações semelhantes: olho de seca pimenteira, malocchio, evil eye, bose blick, mal de ojo, olho grande, significando o malefício intencional causado pelo olhar de alguém.

É possível causar doenças por meio do mau-olhado

A pessoa atingida pelo mau olhado sente, imediatamente ou após algumas horas: apatia generalizada, dores no corpo e na cabeça, alterações na digestão, inapetência, irritação e desânimo. Quando o alvo é uma criança, as consequências são mais intensas, podendo incluir sonolência profunda, olhos encovados e moleiras afundadas.

O mau-olhado é reconhecido como uma das doenças que deve ser tratada pelos especialistas da medicina-divina. Em muitas regiões brasileiras, o ritual de cura continua sendo realizado com a ajuda de um ramo de arruda ou erva-doce recém tirado do galho, semelhante ao registro de Luiz Edmundo (O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-Reis. 2 ed., 1981), no século 18. A reza é repetida até as folhas murcharem, sinalizando a cura do solicitante:

Todo mal que nesse corpo entrou,
Ar de névoa, ar de cinza,
Ar de galinha choca, ar de cisco,
Ar de vivo em pecado,
Ar de morto excomungado,
Ar de todo o mau-olhado,
Seja desse corpo apartado,
Deus te desacanhe de quem te acanhou,
Deus te desinveje de quem te invejou.

Em pesquisa sobre a nosologia, no município de Coari e no bairro Novo Paraíso, na periferia urbana de Manaus, que eu orientei, com a participação de alunos do Curso de Medicina, da UFAM, entre 1984 e 1985, presenciamos muitas benzeduras em crianças e adultos, realizadas pelos curadores da medicina-divina, também com ramos de arruda, para evitar ou curar o mau-olhado. A quase totalidade dos doentes que buscava ajuda dos agentes da medicina-divina era composta de mães que levavam as crianças desnutridas, com diarréia e diferentes tipos de desidratação.

É possível curar doenças por meio da medicina-divina


Existem na literatura alguns relatos intrigantes, gerados a partir de estudos controlados, publicados por entidades com credibilidade científica, sobre certas mudanças no curso de doenças, isto é, comprovadas regressões parciais ou totais de doenças, obtidas fora das terapêuticas da medicina-oficial.

Um dos grupos mais interessantes é composto pelas curas obtidas no santuário de Nossa Senhora de Fátima. Apesar das milhares de curas anunciadas pelos penitentes, até 1990, uma comissão independente de cientistas só reconheceu sessenta relatos como fora dos padrões científicos.

Tão importante quanto iniciar a abordagem desse assunto, é continuar indagando qual seria o mecanismo relacionado à cura ou à melhoria de quais doenças provocada pela ação dos agentes da medicina-divina. Até o momento, não há uma resposta satisfatória.

Apesar de a medicina-oficial ser a responsável pelos progressos no controle planetário de algumas doenças infecciosas e o desvendar de muitas outras, na dimensão microscópica, ainda não consegue explicar em qual dimensão da matéria viva o “normal” se transformaria em “doença”. Se é que, realmente, existe a doença como a medicina-oficial concebe.

As variáveis envolvidas nessa complexa questão são incontáveis: todas as emoções relacionadas ao que ouvimos, vemos e imaginamos são processadas no sistema nervoso central, em áreas também pouco conhecidas, enquanto o sistema imunológico, a cada instante, reage às agressões físicas, químicas e biológicas que alcança o corpo. As conjunções dos dois sistemas, estritamente integrados, fazem parte integrante da relação com o meio exterior.

Dessa forma, a medicina-oficial não tem respostas para todas as perguntas. Os agentes da medicina-oficial, com frequência, observam no cotidiano, que certos doentes portadores de determinados tipos de tumores malignos, que evoluem favoravelmente ao tratamento, ao tomarem conhecimento da gravidade da própria doença, inexplicavelmente, ocorre a piora e acabam morrendo rapidamente. Ao contrá-rio, outros que sabem da doença e lutam para viver, acabam superando os índices das estatísticas de sobrevivência.

Talvez, aqui, numa dimensão ainda não desvendada da doença pela medicina-oficial, situam-se os intrincados mecanismos cerebrais e imunológicos, induzidos pelos agentes da medicina-divina, capazes de mudar o curso de algumas doenças e em certas circunstâncias.

É relevante recordar que existe pouco espaço para a medicina-divina nas doenças curáveis pela medicina-oficial. Entre incontáveis exemplos, no braço fraturado, o conhecimento comum aponta, sem dificuldade, para a redução da fratura e a imobilização gessada. Porém, em outros grupos de doenças, nos quais a medicina-oficial é parcialmente competente, como em muitos tipos de cânceres, imunomoduladas, comportamentais e dores crônicas de diferentes naturezas, existe maior presença dos agentes da medicina-divina.

Em 1985, uma das mais respeitáveis revistas da medicina-oficial, o New England Journal of Medicine, advertiu que a suposição do poder da mente sobre a doença era folclórica. Apesar da conclusão da respeitada revista inglesa, no mínimo, precipitada, o conhecimento comum sabe ser usual que as pessoas que estão submetidas às situações angustiantes, adoecem mais facilmente, ao serem comparadas com outras sem estresses.

Mesmo sem respostas consensuais aos dois questionamentos iniciais:
– Seria possível causar doenças por meio do mau-olhado?
– Seria possível curar doenças por meio da medicina-divina?
a experiência imemorial na crença no mau-olhado, sugere que as emoções, ainda pouco compreendidas pela medicina-oficial, podem interferir no rumo de certas doenças e na saúde das pessoas.

Ilustração: Medusa, autor desconhecido.