Zemaria Pinto
Marcial – Na língua
de Catulo, outros poetas mantiveram acesa a chama do lirismo que vê além das
pequenas grandes dores individuais, rindo-se de si mesmos ou tematizando o amor
e o erotismo muito além do permitido pela moral vigente: o elegíaco Propércio,
o decadente e censurado Ovídio e o epigramático Marcial sobreviveram a dois mil
anos de guerras, revoluções, flagelos e boleros. Marcial, tendo vivido no
primeiro século da era cristã, é o grande cronista daquela época, com seu
estilo conciso e alegre:
Afra tem amas e amos – mas é ela
a maior mama entre amos e mucamas. (8)
Corre o rumor,Chione: nunca foste fodida,
e nada mais puro existe que tua cona.
Nessa parte (por vestes velada) nem te lavas.
Se é pudor, desnuda a cona e vela a face. (9)
A Faixa Peitoral
Comprime, de minha amante, os dois seios em botão
para que caibam sempre no oco de minha mão. (10)
Mas se o título deste artigo fala em dois mil anos de poesia, e até agora mal chegamos a cem, demos um salto no tempo e no espaço, e observemos a lírica escrachada da última flor do Lácio. O que quer, o que pode esta língua?
Gregório de Matos – Segunda metade do século XVII, Bahia. Gregório de Matos, o Boca do
Inferno, é a gargalhada barroca aprisionada durante séculos em sonetinhos de
piedade e arrependimento, só recentemente libertada. Gregório escarnece de
políticos, do clero, do povo e de si mesmo, dessacralizando modelitos
seculares, e criando em língua portuguesa as bases mais sólidas das vanguardas
do século XX. A propósito, o cardeal Augusto de Campos apaixona-se:
Há muito mais novidade, mais juventude em Gregório do que em muito blá blá blá de vanguarda que anda por aí. Gregório já rompe os limites entre a poesia de produção e a de consumo: faz poemas requintadíssimos e faz canção popular, vai do grosso ao fino, do bronco ao barroco, com a maior liberdade.
Vejamos alguns fragmentos, como exemplo, das “Queixas Da Sua Mesma
Verdade”, onde o poeta define os “maos modos de obrar na governança da Bahia”:
1 Que falta nesta cidade?..................................................... Verdade
Que mais por sua desonra................................................. Honra
Falta mais que se lhe ponha............................................... Vergonha
O demo a viver se exponha,
por mais que a fama a exalta,
numa cidade,onde falta
Verdade, Honra,Vergonha.
Verdade, Honra,Vergonha.
3 Quais são os seus doces objetos?..................................... Pretos
Tem outros bens mais maciços?........................................ Mestiços
Quais destes lhe são mais gratos?...................................... Mulatos
Dou ao demo os insensatos,
dou ao demo a gente asnal,
que estima por cabedal
Pretos, Mestiços, Mulatos.
5 E que
justiça a resguarda?................................................. Bastarda
É grátis distribuída?........................................................... Vendida
Que tem,que a todos assusta?.............................................Injusta
É grátis distribuída?........................................................... Vendida
Que tem,que a todos assusta?.............................................Injusta
Valha-nos Deus, o que custa,
o que El-Rei nos dá de graça,
que anda a justiça na praça
Bastarda, Vendida, Injusta.
o que El-Rei nos dá de graça,
que anda a justiça na praça
Bastarda, Vendida, Injusta.
7 E nos Frades há manqueiras?............................................ Freiras
Em que ocupam os serões?............................................... Sermões
Não se ocupam em disputas?.............................................Putas
Com palavras
dissolutas
me concluís na verdade,
que as lides todas de um Frade
são Freiras, Sermões e Putas.
me concluís na verdade,
que as lides todas de um Frade
são Freiras, Sermões e Putas.
9 A Câmara não acode?.......................................................
Não pode
Pois não tem todo o poder?............................................... Não quer
É que o governo a convence?............................................. Não vence
Pois não tem todo o poder?............................................... Não quer
É que o governo a convence?............................................. Não vence
Quem haverá que tal pense,
que uma Câmara tão nobre
por ver-se mísera, e pobre
não pode, não quer, não vence.
Traduções:
(8), (9): Luiz António de Figueiredo e Ênio Aloísio Fonda
(10): José Paulo Paes
(8), (9): Luiz António de Figueiredo e Ênio Aloísio Fonda
(10): José Paulo Paes