Zemaria Pinto
Um filme é o esforço coletivo de uma equipe, onde
cada componente tem teu papel específico. Todos são igualmente importantes e se
um elo da cadeia produtiva falha, uma série de consequências negativas se
acumulam no processo de produção.
Márcio Souza, em A substância das sombras (2010),
p. 143.
Depois de mais de um
ano de produção, Garrote finalmente estreou, para um público restrito, no dia 14 de junho, no Cine Carmen Miranda. E após
várias exibições, variando de casas cheias a vazias, já tínhamos o desenho da
reação do público, entre a “vingança” pela ousadia da denúncia e a paradoxal indignação
por termos trazido à tona aquelas lúgubres lembranças. Mas, faltava uma avaliação
técnica, o que tivemos do jornalista Caio Pimenta, cujo link transcrevo abaixo,
caso o caro leitor ou a cara leitora queiram ler o texto crítico e já se
desobriguem de voltar a estas mal traçadas...
A obra marca as estreias de Bruno Pantoja e Zemaria
Pinto no cinema: o primeiro como diretor e o segundo na função de roteirista
após trabalhos como escritor e dramaturgo. E fica nítido como “Garrote” traz
parte de seus problemas justamente da falta de experiência de ambos com a
linguagem cinematográfica. De um lado, temos um filme que se apoia grande parte
em diálogos, logo, os personagens falam tudo o que sentem e pensam a todo
momento.
Apesar de “estreante”,
não sou exatamente um neófito em escrever roteiros. Explico. No meu livro de
contos Os que andam com os mortos (2023), entre entrevistas, ensaios,
crônicas, fábulas, fragmentos dramáticos e até alguns contos mal disfarçados,
há pelo menos dois roteiros cinematográficos, um deles escrito na primeira
metade dos anos 1970. Mas, apesar do carnaval de gêneros, são apenas contos.
Inclusive, os roteiros. Nada que eu diga, entretanto, vai ocultar minha
incompetência. Uma curiosidade: foi meu primeiro livro, e talvez o último, de
contos adultos, vencedor do prêmio de publicação Frauta de Barro, da Editora
Valer. Artes do Bacellar, é provável, pois ele é o protagonista do conto que
nomeia o livro.
Mas o livro tem a
pretensiosa intenção de trazer à luz um debate antigo: quais os limites da
literatura? Ninguém tem dúvida de que o texto dramático é literatura. Seria
Shakespeare o centro do cânone literário universal? E a poesia acasalada com a
música? E não falo de ópera: Mr. Zimmermann, por favor... Deixo no ar duas
apostas: nas graphic novels e no
cinema. Ao fim e ao cabo, tudo é literatura. Mesmo quando não passa, como o
nosso roteiro, de reles falatório.
Se, como diz o querido
Márcio Souza, na continuidade do texto usado como prólogo, “O ponto de partida
para qualquer filme é o roteiro”, vamos falar do roteiro, responsabilidade
deste que vos fala. Mas, antes, ouçamos novamente o crítico:
Este falatório se mostra voltado para uma ilustração da divisão social e política da cidade ao colocar a personagem de Amanda mais ligada à esquerda, pró-vacina e humanista, enquanto Begê faz o tipo negacionista, machista e bolsonarista. Seria um conflito rico não fosse a forma açodada como isso se cria, afinal, o personagem masculino sai do perfil príncipe encantado para um troglodita em um curto espaço de tempo, enquanto a outra fica como sendo a voz da racionalidade.
A ideia de roteiro como
falatório me traz boas lembranças dos primeiros contatos com Fellini, Godard,
Truffaut – e sobretudo Glauber. Se em Terra
em transe o falatório se tornava em música celestial, o que dizer de A idade da terra? A verdade, agora
revelada, é que nada aprendi com eles. Talvez tenha me faltado capacidade ou
talento mesmo para mostrar que o personagem João desde o início é um direitão
raivoso, babando de ódio. Ele não se transforma de príncipe encantado em troglodita
de forma açodada, pelo contrário: desde o primeiro contato com Maria, no bar,
isso fica claro. Vou citar um ponto, bastante marcante na conversa com o
público: negar-se a cantar “João e Maria”, de Sivuca e Chico Buarque, é uma afirmação
ideológica. Outro: a primeira vez que eles falam em vacina, João “cria” um
neologismo: vaChina. Se me disserem que forcei a barra, que é uma incoerência
usar a expressão à época da narrativa, direi que usei uma licença poética. O
resto seria inverossímil.
Sobre Maria, ela não é exatamente
um poço de virtudes, tanto que pensava que seu pai era o “dono” da cidade onde
moravam, mas ela não critica isso; pelo contrário, não só aceita, como usufrui:
seu emprego foi conseguido por seu pai... Os personagens não são chapados, como
o crítico afirmou sem dizer, mas esféricos, como pedem os bons manuais da área.
Mas ninguém entendeu nada. Mea culpa, mea
culpa, mea maxima culpa.
Aqui, entra a incapacidade de “Garrote” em conseguir
pensar visualmente esta história. Desde as primeiras cenas no bar e na orla de
Manaus, as cenas possuem um ar teatral com a câmera em plano aberto ou médio
com os dois atores no centro. Não há closes, planos-detalhes nem mesmo um
trivial plano e contraplano. Isso se agrava quando vamos para o
apartamento em que não se pensa o imóvel como um personagem, algo visto
diversas vezes ao longo da história do cinema – de “Gritos e Sussurros”
a “Amor” e até em obras amazonenses com todas suas limitações
financeiras como ocorreu com “O Barco e o Rio”, de Bernardo
Abinader.
Mais uma vez, dou a mão
à palmatória: o apartamento foi pensado, sim, como um personagem. E seria
estúpido se assim não fosse. Se não conseguimos passar essa ideia é outra
coisa. O crítico não percebeu o ambiente opressivo, ajudando a esfacelar o
relacionamento de João e Maria, trazendo à flor da pele os nervos decompostos.
Culpa do roteiro, claro.
De resto, não sendo a
minha praia, apenas pergunto-me se a falta de obviedade nos posicionamentos de
câmera seria uma falha ou uma recusa de seguir o exibicionismo padrão, por
parte do diretor Bruno Pantoja?
Sendo um filme de primeira viagem, pode-se relevar
muitos dos problemas de “Garrote”, mas, isso não significa que eles não estejam
lá e gritem a cada segundo. [Claro, claro,
nós estamos surdos ouvindo tantos gritos.] Por
fim, igual ocorrera em “O Buraco”, de Zeudi Souza, a preocupação na mensagem e
condenação política à ignorância da extrema-direita é compreensível, mas, não
podemos cair na armadilha que negacionistas e irresponsáveis pelo caos em
Manaus – assim como machistas violentos no caso do curta estrelado por Jocê
Mendes e Victor Kaleb – são exclusividade apenas dos bolsonaristas; esquerdomachos
e estúpidos também sobram do lado da esquerda, infelizmente…