Simão Pessoa[*]
Quando a gente lê esses Fragmentos de
Silêncio, do Zemaria Pinto, a sensação que se tem – a mais imediata – é de
intensa alegria. Não que o poeta seja um cândido otimista incurável e que passe
o tempo todo afirmando que esse é o melhor dos mundos possíveis. Não se trata
disso. Refiro-me a uma alegria que está nas frases, nas palavras, independente
às vezes até do que ele está dizendo. Uma alegria de dizer as coisas, de
misturar sensações e pensamentos, fatos de agora e de ontem – um exercício
pleno de liberdade.
Zemaria Pinto tem uma curiosa maneira de
encarar a realidade marrom glacê e a partir daí construir seus poemas. Melhor
ainda: de escrevê-los, porque a palavra construir não expressa com
propriedade esse desenrolar tão solto da linguagem, que é a maneira que ele tem
de dizer as coisas. É uma maneira simples, entendam bem, que não é,
rigorosamente, simples. Sua naturalidade consiste em manter a linguagem no
nível coloquial, valendo-se não apenas de formas comuns de falar, mas também da
matéria cotidiana, vulgar às vezes, parte da experiência de todo mundo. Não é
fácil, porém, o processo de organização dessa matéria. E daí que a
espontaneidade do discurso esconde uma complexidade de elaboração e uma
maestria sublimes: um domínio que não é habilidade em lidar com palavras, ou
não é apenas isso, porque as palavras, em seus poemas, não são objeto de
manipulação, ou raramente o são. Zemaria domina a linguagem na medida em que se
identifica de tal modo com ela que, quando escreve, a linguagem é seu jeito de
ser, de fazer-se e refazer-se, de inventar-se, recuperar-se. Pois é assim, acredito,
que sempre se dá o milagre da poesia, de um modo pessoal e intransferível,
próprio de cada poeta.
Os poemas de Zemaria Pinto, apesar de
rigorosamente artesanais, estão isentos daquele formalismo borocoxô e meio
senil que faz a glória das academias de letras e dos grêmios literários
parnasianos. Não refletem, ou melhor, não demonstram qualquer preocupação com a
coerência e a concisão. Nem com a originalidade pós-retrô que, quando obsessiva,
conduz ao empobrecimento e ao hermetismo – doença de alguns maus poetas que
concebem a poesia como algo distante da realidade comum e, portanto, distante
das pessoas. E isso, exatamente, é o que não acontece com Zemaria Pinto: ele se
sabe vivendo a mesma vida de todos e é dessa vida comum que ele desentranha o
poema, na base do fórceps ou da porrada.
Vou mais longe: a exemplo dos poetas da Geração
Beat, ele não quer desligar os poemas desse mundo banal, antes evita que isto
aconteça, misturando sua linguagem de poeta com a linguagem do dia-a-dia,
citando frases de conversas que, no conjunto do poema, revelam sua
universalidade. Nesse contexto, ele também mistura a experiência excepcional,
impactante, à experiência banal – o contexto cotidiano onde a poesia fulge de
repente, como fulge de repente no contexto banal da linguagem. Não há uma coisa
sem a outra: a poesia nasce do prosaico, a originalidade, do vulgar.
Dentro desse arco-íris de cores quentes –
em que se confundem o insondável e o pé no chão – Zemaria pinta e borda, bebe e
trepa, ama e trabalha, destila angústias e humor ferino, para realizar uma
poesia cristalina, sem concessões à babaquice ou ao regionalismo piegas. Uma
poesia que, por isso mesmo, desenvolve-se à margem dos grandes dramas sociais,
mas que nem por isso deixa de ser tão atual quanto amazônica.
Mesmo
que uma declaração dessas pareça pretensiosa ou que provoque choros e ranger de
dentes na fogueira das vaidades barés, considero o Zemaria Pinto o poeta mais
lúcido, brilhante e talentoso da minha geração, o que não é pouca porcaria.
Lendo esses Fragmentos de Silêncio vocês vão descobrir o porquê.