Amigos do Fingidor

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Apresentação de Fragmentos de Silêncio

 Simão Pessoa[*] 


Quando a gente lê esses Fragmentos de Silêncio, do Zemaria Pinto, a sensação que se tem – a mais imediata – é de intensa alegria. Não que o poeta seja um cândido otimista incurável e que passe o tempo todo afirmando que esse é o melhor dos mundos possíveis. Não se trata disso. Refiro-me a uma alegria que está nas frases, nas palavras, independente às vezes até do que ele está dizendo. Uma alegria de dizer as coisas, de misturar sensações e pensamentos, fatos de agora e de ontem – um exercício pleno de liberdade.

Zemaria Pinto tem uma curiosa maneira de encarar a realidade marrom glacê e a partir daí construir seus poemas. Melhor ainda: de escrevê-los, porque a palavra construir não expressa com propriedade esse desenrolar tão solto da linguagem, que é a maneira que ele tem de dizer as coisas. É uma maneira simples, entendam bem, que não é, rigorosamente, simples. Sua naturalidade consiste em manter a linguagem no nível coloquial, valendo-se não apenas de formas comuns de falar, mas também da matéria cotidiana, vulgar às vezes, parte da experiência de todo mundo. Não é fácil, porém, o processo de organização dessa matéria. E daí que a espontaneidade do discurso esconde uma complexidade de elaboração e uma maestria sublimes: um domínio que não é habilidade em lidar com palavras, ou não é apenas isso, porque as palavras, em seus poemas, não são objeto de manipulação, ou raramente o são. Zemaria domina a linguagem na medida em que se identifica de tal modo com ela que, quando escreve, a linguagem é seu jeito de ser, de fazer-se e refazer-se, de inventar-se, recuperar-se. Pois é assim, acredito, que sempre se dá o milagre da poesia, de um modo pessoal e intransferível, próprio de cada poeta.

Os poemas de Zemaria Pinto, apesar de rigorosamente artesanais, estão isentos daquele formalismo borocoxô e meio senil que faz a glória das academias de letras e dos grêmios literários parnasianos. Não refletem, ou melhor, não demonstram qualquer preocupação com a coerência e a concisão. Nem com a originalidade pós-retrô que, quando obsessiva, conduz ao empobrecimento e ao hermetismo – doença de alguns maus poetas que concebem a poesia como algo distante da realidade comum e, portanto, distante das pessoas. E isso, exatamente, é o que não acontece com Zemaria Pinto: ele se sabe vivendo a mesma vida de todos e é dessa vida comum que ele desentranha o poema, na base do fórceps ou da porrada.

Vou mais longe: a exemplo dos poetas da Geração Beat, ele não quer desligar os poemas desse mundo banal, antes evita que isto aconteça, misturando sua linguagem de poeta com a linguagem do dia-a-dia, citando frases de conversas que, no conjunto do poema, revelam sua universalidade. Nesse contexto, ele também mistura a experiência excepcional, impactante, à experiência banal – o contexto cotidiano onde a poesia fulge de repente, como fulge de repente no contexto banal da linguagem. Não há uma coisa sem a outra: a poesia nasce do prosaico, a originalidade, do vulgar.

Dentro desse arco-íris de cores quentes – em que se confundem o insondável e o pé no chão – Zemaria pinta e borda, bebe e trepa, ama e trabalha, destila angústias e humor ferino, para realizar uma poesia cristalina, sem concessões à babaquice ou ao regionalismo piegas. Uma poesia que, por isso mesmo, desenvolve-se à margem dos grandes dramas sociais, mas que nem por isso deixa de ser tão atual quanto amazônica.

  Mesmo que uma declaração dessas pareça pretensiosa ou que provoque choros e ranger de dentes na fogueira das vaidades barés, considero o Zemaria Pinto o poeta mais lúcido, brilhante e talentoso da minha geração, o que não é pouca porcaria.

Lendo esses Fragmentos de Silêncio vocês vão descobrir o porquê. 




[*] Publicado nas duas edições do livro: em 1995 e em 1996, pela EDUA.