Amigos do Fingidor

terça-feira, 30 de abril de 2024

Questão de fé

 Pedro Lucas Lindoso


Recebo um telefonema de minha querida tia Idalina. Pergunta-me como vou passando. Disse a ela que ando muito cansado. Estou passando por um longo período de convalescença. Não tem sido fácil superar um sério problema de hérnia cervical o qual me levou a operar a coluna.

Disse a titia que o problema de saúde que enfrento me abalou muito fisicamente. E também me abalou espiritualmente. Tenho questionado minha fé em Deus. Foi então que lhe perguntei. A senhora nessa idade ainda acredita em Deus?

Ela sorriu e me deu uma grande lição. Disse-me que acredita num Deus que se faz presente em Jesus. O Jesus que perdoa e liberta. O Jesus que vai à casa do fariseu Simão. Lá, uma mulher pecadora sorrateiramente perfuma os pés de Jesus. Trata Jesus com todo carinho. Jesus acolhia os pecadores. O Papa Francisco pediu aos padres para não deixar de abençoar casais divorciados, homoafetivos ou em situação irregular perante os cânones da Igreja.

Esse é o Deus em que acredito. O Deus que acolhe e não discrimina.  Me disse ela. O Deus que se manifesta no Jesus que gosta de vinho. Que fez o milagre nas bodas de Caná. Um Deus que gosta de perfume, vinho e festas.

Um Deus que se apresenta feliz. Um Deus que louva o amor. Um Deus que providenciou o melhor vinho para o final naquela festa de casamento, em Betânia. Festa de casamento tem sempre dança.  Um Deus que dança. Um Deus que esbanja contentamento. Enfim, um Deus que liberta. Um Deus verdadeiramente de amor. Não um Deus que mete medo. Que apavora.

Vejo Deus como uma força procriadora. Ao mesmo tempo Pai e Mãe de todo o universo. Não o concebo, portanto, como um velhinho de barba branca. Meu Deus está sempre mirando sua divina luz sobre nós. Sempre nos abençoando. Dando a nós o que necessitamos. O pão e o entendimento. Nos livrando de coisas superficiais e ilusórias.

Pedi à Tia Idalina para me emprestar ou me ceder esse Deus tão bom e sublime. E ela me respondeu:

– Está a sua disposição. Primeiro, você deve procurar ver e conhecer esse Deus com clareza. Depois, é importante segui-lo e finalmente amá-lo. Em retorno ele irá abençoar você. E mais! Sob a direção divina o caminho é sempre do amor, da sabedoria e da serenidade. E uma questão de fé. Só isso.

 

domingo, 28 de abril de 2024

quinta-feira, 25 de abril de 2024

A poesia é necessária?

 

Tristeza

Astrid Cabral

 

Quis lavar a tristeza

no manancial da vida.

Então enxuguei os cílios

em panos de cambraia.

Sobre o sorriso amarelo

acrescentei no rosto

o realce do carmim.

Coloquei minha tristeza

numa cadeira de rodas

e empurrei-a rua afora.

Porém a tristeza tem

cabeça de medusa

e fundo aparafusa.

Não há como pentear-

lhe o emaranhado mar.

 

 

terça-feira, 23 de abril de 2024

O petisqueiro

Pedro Lucas Lindoso

 

Um dos mais icônicos móveis que havia na casa de minha avó era o petisqueiro. Não confundir petisqueiro com petisqueira. Petisqueiras são bandejas próprias para servir petiscos. Normalmente, são grandes pratos com divisórias. Em cada divisória se serve um petisco diferente tais como azeitonas, amendoins ou castanhas, salgadinhos e que tais.

O petisqueiro não é isso! O petisqueiro é um móvel. Um armário onde se guardavam viandas, quitutes, guloseimas, biscoitos, frutas e quitandas em geral. Em Minas Gerais e em Brasília usa-se muito a palavra quitandas.  Quitandas no sentido de pastelaria e salgados caseiros.

Para nós, amazonenses, quitanda é o local ou estabelecimento onde se vendem legumes, verduras, ovos, galinhas, carvão etc.  Minha mãe era freguesa de uma quitanda bem sortida na avenida Joaquim Nabuco. Isso nos anos de 1960 do século passado.

Mas voltemos ao petisqueiro. Em alguns locais é conhecido como guarda-comida. Os petisqueiros saíram de moda ou perderam sua utilidade, acredito eu, com a chegada das geladeiras. Sem querer ser saudosista. Uma pena!

Os petisqueiros eram móveis repletos de magia para muitos meninos e meninas. Pelo menos foi para mim. Em especial o petisqueiro que tinha na casa de minha avó. Magia esta que a geladeira não tem. E nunca terá.

O petisqueiro de minha avó tinha um delicioso cheiro de abricot. Ou abricó. Possivelmente a fruta favorita de minha vozinha. Abricó da Amazônia, também conhecido como abricó-selvagem, é uma árvore que atinge mais ou menos seus vinte metros de altura. Seu tronco é curto e bastante grosso. O fruto, o gostoso abricó, é uma baga, como dizem os botânicos. Carnoso e sumarento.

Além de abricós, guardavam-se mangas e jambos. Todos do grande quintal da chácara da então Vila Municipal. Havia ainda um pequeno estojo de porcelana azul. Vovó guardava ali seu dinheirinho proveniente da venda de frutas, principalmente de mangas. Ela as vendia escondido. Não precisava daquilo. Mas não abria mão. No petisqueiro também escondia cigarros. Outra coisa que ela fazia escondido era fumar. Eu era seu cúmplice.

No petisqueiro também se guardavam velas e uma caixa de fósforos. Usados para quando faltava energia. E também um baralho. Uma das distrações de vovó era jogar paciência. Um certo jogo de cartas também conhecido como solitário. Encontrado frequentemente nos computadores. Aprendi a usar o mouse jogando paciência no computador. Só lembrava de minha avó.

Oura coisa que tinha no petisqueiro era incenso. Desses, do tipo indiano, com cheiro de sândalo. Conclui-se que o petisqueiro de minha avó já tinha extrapolado mesmo a sua antiga função de guarda-comida. Mas, além das frutas, o petisqueiro ainda era lugar de se guardar bolos e sucrilhos.

 A casa de minha avó não existe mais. O petisqueiro desapareceu. Mas o cheiro do abricó continua vivo na memória daquele menino.

 

 

domingo, 21 de abril de 2024

Manaus, amor e memória DCLXVII


Tenente Ribeiro Júnior (1889-1938), líder dos revoltosos que fundaram a Comuna de Manaus 
(23/07 a 28/08/1924). 

 

quinta-feira, 18 de abril de 2024

A poesia é necessária?

 

distopias

Marta Cortezão

 

Pueden dispararle a mi cuerpo,

pero no pueden disparales a mis sueños.

(Malala Yousafzai)

 

já não me serve

a desmedida do olhar

 

não me serve a crueza

que dilacera verdades

e mentiras tão óbvias

em minhas trêmulas carnes

 

não me serve a mão

manchada de sangue

que mutila sonhos imensos

 

não me serve a demagogia

que devora humanidades

 

o que me serve

é o que me sente

 

a dor que me (des)veste

é este elo benévolo

perdido no tempo

este coração humano

raquítico e doente

gritando no peito

a dor insana

de ser gente

 


terça-feira, 16 de abril de 2024

Eclipses

 Pedro Lucas Lindoso

 

Um colega de Brasília, oficial militar, está servindo em São Gabriel da Cachoeira. O distrito de Cucuí fica a cerca de 200km de São Gabriel. O Exército tem presença importante por lá. Cucuí é uma grande pedra. Fica na margem esquerda do Rio Negro, na tríplice fronteira Brasil-Venezuela-Colômbia.

Meu amigo brasiliense está encantado com a região. Eventualmente, me manda e-mails relatando a sua experiência no local. São Gabriel é um município predominantemente indígena. A comunicação só não é mais precária devido à presença do Exército. O local fica acima da linha do Equador. Portanto, está obviamente localizado no Hemisfério Norte.

No último dia oito de abril houve um eclipse solar total visto somente no Hemisfério Norte. Mais precisamente nos Estados Unidos e parte da Europa. Por uma pitoresca falha de comunicação alguém espalhou que o fenômeno seria visto também pelas bandas de São Gabriel da Cachoeira e adjacências. Mais precisamente do alto da Pedra de Cucuí.

Mesmo com as explicações e desmentidos, parte da pequena população acreditou que o sol iria desaparecer pela manhã daquela segunda-feira. O que, obviamente, não aconteceu.

O povo do interior fica muito impressionado com esses fenômenos. O luar é de grande importância para os habitantes de seringais. O seringueiro vai para a mata pela noite cortar a seringueira e colher o látex. Um eclipse total da lua pode assustar aqueles que, por falta de instrução, desconhecem o fenômeno. A lua não pode “dormir”. E o sol também não pode sumir durante o dia.

No seringal Vencedor, que foi propriedade de meu avô, tanto um certo eclipse lunar quanto um solar deram o que falar durante muitos anos. Estórias e relatos perpassaram gerações.

No eclipse lunar, a lua desapareceu na hora em que os seringueiros entravam pela mata. Foi uma gritaria só. As mulheres batiam panelas e de joelhos clamavam aos céus para a lua não morrer.

No eclipse solar total, ocorrido há muitos anos, o furdunço foi ainda maior. As galinhas ficaram alvoroçadas e se recolheram para dormir. As araras e tucanos interromperam seus voos majestosos e os passarinhos em geral silenciaram. Aliás, a mata ficou em total silêncio. Os grilos se manifestaram. E, de repente, as sombras das árvores obedeceram novamente às determinações da luz do sol. E voltaram com seu frescor quando o fenômeno terminou e o sol voltou a brilhar novamente.

Segundo o Google, o próximo eclipse total solar visível no Brasil ocorrerá em agosto de 2026. Cucuí pode esperar!


domingo, 14 de abril de 2024

Manaus, amor e memória DCLXVI


Teatro Amazonas e igreja de São Sebastião.

 

quinta-feira, 11 de abril de 2024

A poesia é necessária?

 

A pantera

Jorge Luis Borges (1899-1986)

 

Atrás das fortes grades a pantera

Repetirá o enfadonho itinerário,

Que é (mas não sabe) seu fadário

De negra joia, aziaga e prisioneira.

Vão e vem aos milhares, em desfiles

Infindáveis, mas é só uma e eterna

A pantera fatal em sua caverna

Traça a reta que um eterno Aquiles

Traça no sonho que sonhou o grego.

Não sabe que há prados e montanhas

De cervos cujos trêmulas entranhas

Deleitariam seu apetite cego.

Em vão é vário o orbe. A jornada

Que cumpre cada qual já foi fixada.

 

Tradução: Josely Vianna Baptista



terça-feira, 9 de abril de 2024

De verdade?


Pedro Lucas Lindoso

 

Segunda-feira passada, li um edital de licitação para restauro total do Centro Histórico de Manaus. O projeto apresentado no edital representa um antigo desejo dos amazonenses.

Terá, indiscutivelmente, grandioso apelo turístico. Visa transformar o Centro de Manaus. Um retorno a arquitetura predominante no auge do Ciclo da Borracha. Uma volta à Belle Époque.

O ponto de partida é o Largo de São Sebastião. Descendo a Rua Costa Azevedo, indo pela Rui Barbosa até a Praça da Polícia. Incluindo o antigo “miolo da Zona Franca” até o Hotel Amazonas. Subindo à esquerda até os Remédios e descendo novamente por toda a área da Joaquim Nabuco e adjacências. Na parte oeste, o projeto partiria desde a Ilha de São Vicente, inclusive o Porto, a Catedral e a Eduardo Ribeiro.  Em princípio, todo o Centro Histórico ficaria no mesmo padrão do entorno do Largo.

Fiz uma visita a Curaçao. Uma bela ilha caribenha de colonização holandesa.  A arquitetura da ilha é típica dos países baixos. Predominam prédios coloniais holandeses. Todos restaurados e bem conservados. A gente sempre se pergunta: por que Manaus não é assim?

Existem experiências de restauro de grandes áreas urbanas no Brasil. Me veio à mente o grande restauro do Pelourinho em Salvador, na Bahia. Uma amiga arquiteta brasiliense me disse que o projeto original foi da  arquiteta italiana Lina Bo Bardi. A princípio, o projeto procurava preservar as relações sociais e a cultura ali existentes.

As coisas não saíram exatamente como a famosa arquiteta desejara. Todavia, nos anos de 1990 se iniciou um projeto de intervenção chamado "Programa de Recuperação do Centro Histórico de Salvador".  O projeto direcionava o Pelourinho para o seu potencial turístico e econômico.

Muitos acreditam que o centro histórico de Manaus tenha o mesmo potencial voltado para o turismo, a famosa indústria sem chaminé. Os estudiosos apontam erros e acertos no projeto de Salvador. Que Manaus possa aproveitar-se dos acertos e evitar os erros. Houve desapropriações, investimentos de diversas fontes e claro, muita polêmica. O fato é que a área ficou uma beleza e de grande apelo turístico.

E recebeu prêmios. A restauração do centro histórico do Pelourinho, recebeu, há alguns anos, o Prêmio Internacional Reina Sofía de Conservação e Restauração do Patrimônio Cultural, concedido pelo Ministério de Assuntos Exteriores da Espanha. O prêmio valoriza projetos para a conservação e a restauração do patrimônio histórico e cultural.

O restauro do centro de Manaus prevê reconstrução de prédios e fachadas já destruídas, como a do Cine Guarany. Prédios na antiga Berlim Oriental foram recentemente reconstruídos com as fachadas de antes da guerra. Tudo é possível com a moderna tecnologia, fotos e etc.

Ah, segunda-feira passada foi primeiro de abril. O tal edital de restauro do nosso centro é uma pegadinha de dia da mentira. Será que um dia sai? De verdade?


sábado, 6 de abril de 2024

Manaus, amor e memória DCLXV


Palácio Rio Negro.

 

quinta-feira, 4 de abril de 2024

A poesia é necessária?

 

Os doentes

Augusto dos Anjos (1884-1914)

 

I

 

Como uma cascavel que se enroscava,

A cidade dos lázaros dormia...

Somente, na metrópole vazia,

Minha cabeça autônoma pensava!

 

Mordia-me a obsessão má de que havia,

Sob os meus pés, na terra onde eu pisava,

Um fígado doente que sangrava

E uma garganta de órfã que gemia!

 

Tentava compreender com as conceptivas

Funções do encéfalo as substâncias vivas

Que nem Spencer, nem Haeckel compreenderam...

 

E via em mim, coberto de desgraças,

O resultado de bilhões de raças

Que há muitos anos desapareceram!

 

II

 

Minha angústia feroz não tinha nome.

Ali, na urbe natal do Desconsolo,

Eu tinha de comer o último bolo

Que Deus fazia para a minha fome!

 

Convulso, o vento entoava um pseudo-salmo,

Contrastando, entretanto, com o ar convulso

A noite funcionava como um pulso

Fisiologicamente muito calmo.

 

Caíam sobre os meus centros nervosos,

Como os pingos ardentes de cem velas,

O uivo desenganado das cadelas

E o gemido dos homens bexigosos.

 

Pensava! E em que eu pensava, não perguntes!

Mas, em cima de um túmulo, um cachorro

Pedia para mim água e socorro

À comiseração dos transeuntes!

 

Bruto, de errante rio, alto e hórrido, o urro

Reboava. Além jazia aos pés da serra,

Criando as superstições de minha terra,

A queixada específica de um burro!

 

Gordo adubo da agreste urtiga brava,

Benigna água, magnânima e magnífica,

Em cuja álgida unção, branda e beatífica,

A Paraíba indígena se lava!

 

A manga, a ameixa, a amêndoa, a abóbora, o álamo

E a câmara odorífera dos sumos

Absorvem diariamente o ubérrimo húmus

Que Deus espalha à beira do teu tálamo!

 

Nos de teu curso desobstruídos trilhos,

Apenas eu compreendo, em quaisquer horas,

O hidrogênio e o oxigênio que tu choras

Pelo falecimento dos teus filhos!

 

Ah! Somente eu compreendo, satisfeito,

A incógnita psiquê das massas mortas

Que dormem, como as ervas, sobre as hortas,

Na esteira igualitária do teu leito!

 

O vento continuava sem cansaço

E enchia com a fluidez do eólico hissope

Em seu fantasmagórico galope

A abundância geométrica do espaço.

 

Meu ser estacionava, olhando os campos

Circunjacentes. No Alto, os astros miúdos

Reduziam os Céus sérios e rudos

A uma epiderme cheia de sarampos!

 

III

 

Dormia embaixo, com a promíscua véstia

No embotamento crasso dos sentidos,

A comunhão dos homens reunidos

Pela camaradagem da moléstia.

 

Feriam-me o nervo óptico e a retina

Aponevroses e tendões de Aquiles,

Restos repugnantíssimos de bílis,

Vômitos impregnados de ptialina.

 

Da degenerescência étnica do Ária

Se escapava, entre estrépitos e estouros,

Reboando pelos séculos vindouros,

O ruído de uma tosse hereditária.

 

Oh! Desespero das pessoas tísicas,

Adivinhando o frio que há nas lousas,

Maior felicidade é a destas cousas

Submetidas apenas às leis físicas!

 

Estas, por mais que os cardos grandes rocem

Seus corpos brutos, dores não recebem;

Estas dos bacalhaus o óleo não bebem,

Estas não cospem sangue, estas não tossem!

 

Descender dos macacos catarríneos,

Cair doente e passar a vida inteira

Com a boca junto de uma escarradeira,

Pintando o chão de coágulos sanguíneos!

 

Sentir, adstritos ao quimiotropismo

Erótico, os micróbios assanhados

Passearem, como inúmeros soldados,

Nas cancerosidades do organismo!

 

Falar somente uma linguagem rouca,

Um português cansado e incompreensível,

Vomitar o pulmão na noite horrível

Em que se deita sangue pela boca!

 

Expulsar, aos bocados, a existência

Numa bacia autômata de barro,

Alucinado, vendo em cada escarro

O retrato da própria consciência!

 

Querer dizer a angústia de que é pábulo,

E com a respiração já muito fraca

Sentir como que a ponta de uma faca,

Cortando as raízes do último vocábulo!

 

Não haver terapêutica que arranque

Tanta opressão como se, com efeito,

Lhe houvessem sacudido sobre o peito

A máquina pneumática de Bianchi!

 

E o ar fugindo e a Morte a arca da tumba

A erguer, como um cronômetro gigante,

Marcando a transição emocionante

Do lar materno para a catacumba!

 

Mas vos não lamenteis, magras mulheres,

Nos ardores danados da febre hética,

Consagrando vossa última fonética

A uma recitação de misereres.

 

Antes levardes ainda uma quimera

Para a garganta onívora das lajes

Do que morrerdes, hoje, urrando ultrajes

Contra a dissolução que vos espera!

 

Porque a morte, resfriando-vos o rosto,

Consoante a minha concepção vesânica,

É a alfândega, onde toda a vida orgânica

Há de pagar um dia o último imposto!

 

IV

 

Começara a chover. Pelas algentes

Ruas, a água, em cachoeiras desobstruídas,

Encharcava os buracos das feridas,

Alagava a medula dos Doentes!

 

Do fundo do meu trágico destino,

Onde a Resignação os braços cruza,

Saía, com o vexame de uma fusa,

A mágoa gaguejada de um cretino.

 

Aquele ruído obscuro de gagueira

Que à noite, em sonhos mórbidos, me acorda,

Vinha da vibração bruta da corda

Mais recôndita da alma brasileira!

 

Aturdia-me a tétrica miragem

De que, naquele instante, no Amazonas,

Fedia, entregue a vísceras glutonas,

A carcaça esquecida de um selvagem.

 

A civilização entrou na taba

Em que ele estava. O gênio de Colombo

Manchou de opróbrios a alma do mazombo,

Cuspiu na cova do morubixaba!

 

E o índio, por fim, adstrito à étnica escória,

Recebeu, tendo o horror no rosto impresso,

Esse achincalhamento do progresso

Que o anulava na crítica da História!

 

Como quem analisa um apostema,

De repente, acordando na desgraça,

Viu toda a podridão de sua raça...

    Na tumba de Iracema!...

 

Ah! Tudo, como um lúgubre ciclone,

Exercia sobre ele ação funesta

Desde o desbravamento da floresta

À ultrajante invenção do telefone.

 

E sentia-se pior que um vagabundo

Microcéfalo vil que a espécie encerra,

Desterrado na sua própria terra,

Diminuído na crônica do mundo!

 

A hereditariedade dessa pecha

Seguiria seus filhos. Dora em diante

Seu povo tombaria agonizante

Na luta da espingarda contra a flecha!

 

Veio-lhe então como à fêmea vêm antojos,

Uma desesperada ânsia improfícua

De estrangular aquela gente iníqua

Que progredia sobre os seus despojos!

 

Mas, diante a xantocróide raça loura,

Jazem, caladas, todas as inúbias,

E agora, sem difíceis nuanças dúbias,

Com uma clarividência aterradora,

 

Em vez da prisca tribo e indiana tropa

A gente deste século, espantada,

Vê somente a caveira abandonada

De uma raça esmagada pela Europa!

 

V

 

Era a hora em que arrastados pelos ventos,

Os fantasmas hamléticos dispersos

Atiram na consciência dos perversos

A sombra dos remorsos famulentos.

 

As mães sem coração rogavam pragas

Aos filhos bons. E eu, roído pelos medos,

Batia com o pentágono dos dedos

Sobre um fundo hipotético de chagas!

 

Diabólica dinâmica daninha

Oprimia meu cérebro indefeso

Com a força onerosíssima de um peso

Que eu não sabia mesmo de onde vinha.

 

Perfurava-me o peito a áspera pua

Do desânimo negro que me prostra,

E quase a todos os momentos mostra

Minha caveira aos bêbedos da rua.

 

Hereditariedades politípicas

Punham na minha boca putrescível

Interjeições de abracadabra horrível

E os verbos indignados das Filípicas.

 

Todos os vocativos dos blasfemos,

No horror daquela noite monstruosa,

Maldiziam, com voz estentorosa,

A peçonha inicial de onde nascemos.

 

Como que havia na ânsia de conforto

De cada ser, ex.: o homem e o ofídio,

Uma necessidade de suicídio

E um desejo incoercível de ser morto!

 

Naquela angústia absurda e tragicômica

Eu chorava, rolando sobre o lixo,

Com a contorção neurótica de um bicho

Que ingeriu 30 gramas de nux-vomica.

 

E, como um homem doido que se enforca,

Tentava, na terráquea superfície,

Consubstanciar-me todo com a imundície,

Confundir-me com aquela coisa porca!

 

Vinha, às vezes, porém, o anelo instável

De, com o auxílio especial do osso masséter,

Mastigando homeomérias neutras de éter

Nutrir-me da matéria imponderável.

 

Anelava ficar um dia, em suma,

Menor que o anfióxus e inferior à tênia,

Reduzido à plastídula homogênea,

Sem diferenciação de espécie alguma.

 

Era (nem sei em síntese o que diga)

Um velhíssimo instinto atávico, era

A saudade inconsciente da monera

Que havia sido minha mãe antiga!

 

Com o horror tradicional da raiva corsa

Minha vontade era, perante a cova,

Arrancar do meu próprio corpo a prova

Da persistência trágica da força.

 

A pragmática má de humanos usos

Não compreende que a Morte que não dorme

É a absorção do movimento enorme

Na dispersão dos átomos difusos.

 

Não me incomoda esse último abandono.

Se a carne individual hoje apodrece,

Amanhã, como Cristo, reaparece

Na universalidade do carbono!

 

A vida vem do éter que se condensa,

Mas o que mais no Cosmos me entusiasma

É a esfera microscópica do plasma

Fazer a luz do cérebro que pensa.

 

Eu voltarei, cansado da árdua liça,

À substância inorgânica primeva,

De onde, por epigênese, veio Eva

E a stirpe radiolar chamada Actissa!

 

Quando eu for misturar-me com as violetas,

Minha lira, maior que a Bíblia e a Fedra,

Reviverá, dando emoção à pedra,

Na acústica de todos os planetas!

 

(continua)