Os doentes
Augusto dos Anjos (1884-1914)
I
Como uma cascavel que se enroscava,
A cidade dos lázaros dormia...
Somente, na metrópole vazia,
Minha cabeça autônoma pensava!
Mordia-me a obsessão má de que havia,
Sob os meus pés, na terra onde eu
pisava,
Um fígado doente que sangrava
E uma garganta de órfã que gemia!
Tentava compreender com as
conceptivas
Funções do encéfalo as substâncias
vivas
Que nem Spencer, nem Haeckel
compreenderam...
E via em mim, coberto de desgraças,
O resultado de bilhões de raças
Que há muitos anos desapareceram!
II
Minha angústia feroz não tinha nome.
Ali, na urbe natal do Desconsolo,
Eu tinha de comer o último bolo
Que Deus fazia para a minha fome!
Convulso, o vento entoava um
pseudo-salmo,
Contrastando, entretanto, com o ar
convulso
A noite funcionava como um pulso
Fisiologicamente muito calmo.
Caíam sobre os meus centros nervosos,
Como os pingos ardentes de cem velas,
O uivo desenganado das cadelas
E o gemido dos homens bexigosos.
Pensava! E em que eu pensava, não
perguntes!
Mas, em cima de um túmulo, um
cachorro
Pedia para mim água e socorro
À comiseração dos transeuntes!
Bruto, de errante rio, alto e
hórrido, o urro
Reboava. Além jazia aos pés da serra,
Criando as superstições de minha
terra,
A queixada específica de um burro!
Gordo adubo da agreste urtiga brava,
Benigna água, magnânima e magnífica,
Em cuja álgida unção, branda e
beatífica,
A Paraíba indígena se lava!
A manga, a ameixa, a amêndoa, a
abóbora, o álamo
E a câmara odorífera dos sumos
Absorvem diariamente o ubérrimo húmus
Que Deus espalha à beira do teu
tálamo!
Nos de teu curso desobstruídos
trilhos,
Apenas eu compreendo, em quaisquer
horas,
O hidrogênio e o oxigênio que tu
choras
Pelo falecimento dos teus filhos!
Ah! Somente eu compreendo,
satisfeito,
A incógnita psiquê das massas mortas
Que dormem, como as ervas, sobre as
hortas,
Na esteira igualitária do teu leito!
O vento continuava sem cansaço
E enchia com a fluidez do eólico
hissope
Em seu fantasmagórico galope
A abundância geométrica do espaço.
Meu ser estacionava, olhando os
campos
Circunjacentes. No Alto, os astros
miúdos
Reduziam os Céus sérios e rudos
A uma epiderme cheia de sarampos!
III
Dormia embaixo, com a promíscua
véstia
No embotamento crasso dos sentidos,
A comunhão dos homens reunidos
Pela camaradagem da moléstia.
Feriam-me o nervo óptico e a retina
Aponevroses e tendões de Aquiles,
Restos repugnantíssimos de bílis,
Vômitos impregnados de ptialina.
Da degenerescência étnica do Ária
Se escapava, entre estrépitos e
estouros,
Reboando pelos séculos vindouros,
O ruído de uma tosse hereditária.
Oh! Desespero das pessoas tísicas,
Adivinhando o frio que há nas lousas,
Maior felicidade é a destas cousas
Submetidas apenas às leis físicas!
Estas, por mais que os cardos grandes
rocem
Seus corpos brutos, dores não
recebem;
Estas dos bacalhaus o óleo não bebem,
Estas não cospem sangue, estas não
tossem!
Descender dos macacos catarríneos,
Cair doente e passar a vida inteira
Com a boca junto de uma escarradeira,
Pintando o chão de coágulos sanguíneos!
Sentir, adstritos ao quimiotropismo
Erótico, os micróbios assanhados
Passearem, como inúmeros soldados,
Nas cancerosidades do organismo!
Falar somente uma linguagem rouca,
Um português cansado e
incompreensível,
Vomitar o pulmão na noite horrível
Em que se deita sangue pela boca!
Expulsar, aos bocados, a existência
Numa bacia autômata de barro,
Alucinado, vendo em cada escarro
O retrato da própria consciência!
Querer dizer a angústia de que é
pábulo,
E com a respiração já muito fraca
Sentir como que a ponta de uma faca,
Cortando as raízes do último
vocábulo!
Não haver terapêutica que arranque
Tanta opressão como se, com efeito,
Lhe houvessem sacudido sobre o peito
A máquina pneumática de Bianchi!
E o ar fugindo e a Morte a arca da
tumba
A erguer, como um cronômetro gigante,
Marcando a transição emocionante
Do lar materno para a catacumba!
Mas vos não lamenteis, magras
mulheres,
Nos ardores danados da febre hética,
Consagrando vossa última fonética
A uma recitação de misereres.
Antes levardes ainda uma quimera
Para a garganta onívora das lajes
Do que morrerdes, hoje, urrando
ultrajes
Contra a dissolução que vos espera!
Porque a morte, resfriando-vos o
rosto,
Consoante a minha concepção vesânica,
É a alfândega, onde toda a vida orgânica
Há de pagar um dia o último imposto!
IV
Começara a chover. Pelas algentes
Ruas, a água, em cachoeiras
desobstruídas,
Encharcava os buracos das feridas,
Alagava a medula dos Doentes!
Do fundo do meu trágico destino,
Onde a Resignação os braços cruza,
Saía, com o vexame de uma fusa,
A mágoa gaguejada de um cretino.
Aquele ruído obscuro de gagueira
Que à noite, em sonhos mórbidos, me
acorda,
Vinha da vibração bruta da corda
Mais recôndita da alma brasileira!
Aturdia-me a tétrica miragem
De que, naquele instante, no
Amazonas,
Fedia, entregue a vísceras glutonas,
A carcaça esquecida de um selvagem.
A civilização entrou na taba
Em que ele estava. O gênio de Colombo
Manchou de opróbrios a alma do mazombo,
Cuspiu na cova do morubixaba!
E o índio, por fim, adstrito à étnica
escória,
Recebeu, tendo o horror no rosto
impresso,
Esse achincalhamento do progresso
Que o anulava na crítica da História!
Como quem analisa um apostema,
De repente, acordando na desgraça,
Viu toda a podridão de sua raça...
Na
tumba de Iracema!...
Ah! Tudo, como um lúgubre ciclone,
Exercia sobre ele ação funesta
Desde o desbravamento da floresta
À ultrajante invenção do telefone.
E sentia-se pior que um vagabundo
Microcéfalo vil que a espécie
encerra,
Desterrado na sua própria terra,
Diminuído na crônica do mundo!
A hereditariedade dessa pecha
Seguiria seus filhos. Dora em diante
Seu povo tombaria agonizante
Na luta da espingarda contra a
flecha!
Veio-lhe então como à fêmea vêm
antojos,
Uma desesperada ânsia improfícua
De estrangular aquela gente iníqua
Que progredia sobre os seus despojos!
Mas, diante a xantocróide raça loura,
Jazem, caladas, todas as inúbias,
E agora, sem difíceis nuanças dúbias,
Com uma clarividência aterradora,
Em vez da prisca tribo e indiana
tropa
A gente deste século, espantada,
Vê somente a caveira abandonada
De uma raça esmagada pela Europa!
V
Era a hora em que arrastados pelos
ventos,
Os fantasmas hamléticos dispersos
Atiram na consciência dos perversos
A sombra dos remorsos famulentos.
As mães sem coração rogavam pragas
Aos filhos bons. E eu, roído pelos
medos,
Batia com o pentágono dos dedos
Sobre um fundo hipotético de chagas!
Diabólica dinâmica daninha
Oprimia meu cérebro indefeso
Com a força onerosíssima de um peso
Que eu não sabia mesmo de onde vinha.
Perfurava-me o peito a áspera pua
Do desânimo negro que me prostra,
E quase a todos os momentos mostra
Minha caveira aos bêbedos da rua.
Hereditariedades politípicas
Punham na minha boca putrescível
Interjeições de abracadabra horrível
E os verbos indignados das Filípicas.
Todos os vocativos dos blasfemos,
No horror daquela noite monstruosa,
Maldiziam, com voz estentorosa,
A peçonha inicial de onde nascemos.
Como que havia na ânsia de conforto
De cada ser, ex.: o homem e o ofídio,
Uma necessidade de suicídio
E um desejo incoercível de ser morto!
Naquela angústia absurda e
tragicômica
Eu chorava, rolando sobre o lixo,
Com a contorção neurótica de um bicho
Que ingeriu 30 gramas de nux-vomica.
E, como um homem doido que se enforca,
Tentava, na terráquea superfície,
Consubstanciar-me todo com a
imundície,
Confundir-me com aquela coisa porca!
Vinha, às vezes, porém, o anelo
instável
De, com o auxílio especial do osso
masséter,
Mastigando homeomérias neutras de
éter
Nutrir-me da matéria imponderável.
Anelava ficar um dia, em suma,
Menor que o anfióxus e inferior à
tênia,
Reduzido à plastídula homogênea,
Sem diferenciação de espécie alguma.
Era (nem sei em síntese o que diga)
Um velhíssimo instinto atávico, era
A saudade inconsciente da monera
Que havia sido minha mãe antiga!
Com o horror tradicional da raiva
corsa
Minha vontade era, perante a cova,
Arrancar do meu próprio corpo a prova
Da persistência trágica da força.
A pragmática má de humanos usos
Não compreende que a Morte que não
dorme
É a absorção do movimento enorme
Na dispersão dos átomos difusos.
Não me incomoda esse último abandono.
Se a carne individual hoje apodrece,
Amanhã, como Cristo, reaparece
Na universalidade do carbono!
A vida vem do éter que se condensa,
Mas o que mais no Cosmos me
entusiasma
É a esfera microscópica do plasma
Fazer a luz do cérebro que pensa.
Eu voltarei, cansado da árdua liça,
À substância inorgânica primeva,
De onde, por epigênese, veio Eva
E a stirpe radiolar chamada Actissa!
Quando eu for misturar-me com as
violetas,
Minha lira, maior que a Bíblia
e a Fedra,
Reviverá, dando emoção à pedra,
Na acústica de todos os planetas!
(continua)