De musa da Tropicália a diva do
samba-canção
Zemaria
Pinto
“Eu
não tenho medo de mudar, gosto do novo e encaro os possíveis erros de frente,
porque sei que só assim se pode criar. O caminho é feito de descobertas e sou
feliz assim.”
(Gal
Costa, em 1970)
Se você
chegou até aqui é porque percebeu que o título é uma provocação. Não há apenas
duas Gal, mas múltiplas. Tomemos a mão da menina extremamente tímida, que, aos
24 anos, ainda quase Maria da Graça, iniciou uma revolução estética e de
costumes – enquanto o país era dilacerado por uma ditadura sanguinária. Gal,
sem pegar em armas, fez a sua parte na Resistência.
O
primeiro álbum de que ela participou foi Domingo (1967), de
Caetano, onde era coadjuvante de luxo. Caetano, na contracapa, justifica a
parceria: “Gal participa dessa qualidade misteriosa que habita os grandes
cantores de samba: a capacidade de inovar, de violentar o gosto contemporâneo,
lançando o samba para o futuro, com a espontaneidade de quem relembra velhas
musiquinhas”. Como se percebe, Caetano ainda não abrira a mente para as
inovações que ele, Gil, Tom Zé, Torquato Neto, Capinam, Os Mutantes et cetera
promoveriam a partir do ano seguinte, quando lançaram Tropicalia ou Panis et
circencis, onde Gal seria novamente figurante, não mais cantando sambas...
Em
1969, enfim, o primeiro solo: na capa, o seu nome e o rosto em close, saindo de um look
de plumas, o olhar perdido nalgum vão do éter... “Não identificado”, de
Caetano, a primeira faixa, era o primeiro estranhamento. O arranjo do maestro
Rogério Duprat, pleno de cordas, colocava o ouvinte numa sala de cinema, onde
se projetava um filme de sci-fi, mas a poesia da letra apontava, num processo
metalinguístico, para algo mais singelo: apenas um “iê-iê-iê romântico”. E
Caetano cria uma rima interna sublime: “um anticomputador”: romântico x
anticom...
Na
sequência, “Sebastiana”, do repertório de Jackson do Pandeiro, com uma levada
de rock, no arranjo de Gil, era o tributo à tradição, um dos pilares da
Tropicália. “Saudosismo”, de Caetano, cumpre a mesma função, ao reverenciar
criticamente a Bossa Nova: “as notas dissonantes se integraram ao som dos
imbecis”. E conclui com uma avalanche de “chega de saudade, chega de saudade,
chega de saudade...”. O novo chegara.
E Gal
repete “Baby”, gravada com Caetano, uma das mais emblemáticas e polêmicas do
álbum manifesto Tropicalia (assim mesmo, sem acento). “Leia na minha
camisa: Baby, I love you”. A letra de Caetano reforça a ideia de Iê-iê-iê
romântico e clama “você precisa ouvir aquela canção do Roberto”. E o álbum traz
duas delas, com o indefectível parceiro Erasmo: “Se você pensa” e “Vou
recomeçar”. A MPB se expandia, ainda que a contragosto dos caretas.
O álbum
traz ainda outras canções de Gil, Torquato Neto, Caetano, Tom Zé e Jorge Ben. A
polêmica “Lost in the Paradise”, com letra em inglês, era uma agressão ao
purismo de muita gente. Mas, a composição mais forte do álbum, uma parceria de
Gil e Caetano, era “Divino, maravilhoso” – uma alusão à luta armada que se
desenvolvia nas sombras, com a imprensa censurada, noticiando apenas os
releases paridos nos quartéis: “É preciso estar atento e forte, não temos tempo
de temer a morte”. No mesmo ano, a dupla de compositores gravou “Alfômega”, no
terceiro disco de Caetano, uma letra hermética, onde Gil grita ao fundo o nome
do guerrilheiro Marighella. A censura comeu mosca. Marighella, assassinado
covardemente em novembro daquele ano, hoje é História.
Talvez
para compensar os dois anos como coadjuvante, que ela, baixinho, dizia que foram anos de
aprendizado, Gal lança ainda em 1969 o segundo disco solo, radicalizando as
propostas do disco anterior. Na capa, apenas as três letras do primeiro nome
sobre um quadro policrômico, com representações de animais míticos e o seu
rosto, em meio perfil, em destaque, no lugar de uma possível assinatura. O
quadro era uma leitura do artista plástico baiano Dicinho, creditado como
Dircinho, do conjunto das músicas do disco – de “Cinema Olympia” a “Pulsars e
Quasars”. Ouça o quadro (ou a capa) e veja o disco. Ou vice-versa. A música
psicodélica invadia o Brasil.
Gil,
Caetano, Jorge Ben, Roberto/Erasmo e a dupla Macalé/Capinam assinavam as nove
faixas do disco. Lanny Gordin (ainda chamado Alexander) faz a diferença na guitarra,
correspondendo plenamente aos arranjos sempre ousados do maestro Duprat.
Entre
as canções, destacam-se “The empty boat”, de Caetano, só pela provocação;
“Cultura e civilização”, de Gil, um rock pesado, onde Gal solta a voz com
personalidade; “Com medo, com Pedro”, também de Gil, parece dialogar com
“Divino, maravilhoso”: “quem pisar no fundo / encontra a porta / do fim de
tudo”; “Objeto sim, objeto não”, do quase onipresente Gil, permite ao maestro
Duprat exercitar seu lado “música concreta”, com a fragmentação da melodia em
sons que se encontram mais adiante, guiados pela vibrante voz de Gal. “Pulsars
e quasars”, de Macalé e Capinam, é outra ousadia do trio Gal-Gordin-Duprat,
numa síntese: “os ruídos terão sentidos e teus sentidos perdidos”.
“Cinema
Olympia”, de Caetano, numa levada de rock, “Tuareg”, de Jorge Ben, num exótico
arranjo árabe, não comprometem. “País tropical”, entretanto, do mesmo Ben, com o
auxílio luxuoso de Gil e Caetano na interpretação, não é inesquecível, tantas
as regravações dessa música, que, para meu gosto, tem o agravante de destoar do
momento histórico. Mas, você não precisa concordar comigo, querida leitora.
Só
falei de oito músicas? Ah, tá, faltou “Meu nome é Gal”, que segundo todas as
fontes históricas, disfóricas e folclóricas foi feita só por Erasmo, entrando
Roberto como sócio e não parceiro. Mas, o que importa é que o iê-iê-iê é
fofíssimo, começando como um anúncio de classificado – de uma moça chamada Gal,
de 24 anos, amiga de Gil e Caetano e mais um monte de gente boa, procurando
namorado – e termina com a assinatura da cantora, da maneira mais completa: com
a voz, a melhor tradução de Gal.
Este
segundo disco vendeu muito menos que o primeiro, o que não quer dizer
absolutamente nada. Azar do público. Pensando na construção histórica da
cantora Gal Costa, diria que é um disco fundamental na definição do perfil e do
jeito de cantar daquela que viria a ser a referência maior da geração que surge
na segunda metade da década de 1960 e, sem envelhecer, chega ao zênite da
plenitude na década seguinte.
Em
1970, Legal é
o terceiro solo. Com capa e contracapa de Hélio Oiticica, arranjos de base
de Lanny e Macalé, e arranjos de orquestra de Chiquinho de Moraes, é um disco
mais ameno que o anterior, mas nem por isso menos ousado. Abrindo com “Eu sou
terrível”, da dupla Roberto/Erasmo, a guitarra de Lanny e a voz de Gal no
último volume, parece uma continuação do disco anterior. A letra, que na voz de
Roberto soa como autoafirmação machista, na voz de Gal, é um grito ameaçador,
de resistência: “estou com a razão no que digo / não tenho medo nem do perigo”.
Alguém lembrou de “não temos tempo de temer a morte”?
Um
xaxado de Gil, “Língua do P”, desfaz a impressão de continuidade. Uma intro de
não mais que dez segundos, com guitarra, baixo e bateria, dá lugar a uma base
com sanfona, zabumba e triângulo – e muita ironia: “gapa-ranpan-topô quepê
vopô-cepê nãopão vaipai compom-prepre-enpen-derper bulhufas!” A censura, para
sorte nossa, não compreendeu nada mesmo.
No
quesito letras em inglês, uma overdose: “Love, try and die”, de Macalé, Gal e
Lanny, é uma boutade à Broadway, com a voz de Gal soando límpida como
água de fonte, e um coro luxuoso, formado por Erasmo, Tim Maia, Macalé e uma
misteriosa Nana. Ou seria Naná, o percursionista? “London, London” dispensa
comentários. É a melancólica “canção do exílio” de Caetano, com uma levada
caribenha. O uso da gaita de boca é extraordinário, mas o músico não foi
creditado. Para fazer justiça, ainda que tardia: foi Angela Ro Ro, ela mesma,
com sua própria gaita, segundo depoimento tardio de Macalé. A terceira letra
mistura inglês e português, blues e samba-canção: “The archaic lonely star
blues”, de Macalé e Duda. Pura experimentação.
Aliás,
da mesma dupla, “Hotel das estrelas” começa como um blues sombrio e evolui para
um rock progressivo, de letra cortante: “no fundo do peito esse fruto /
apodrecendo a cada dentada”. “Acauã”, de Zé Dantas, um clássico do repertório de
Luiz Gonzaga, vira uma balada que, após uma pausa de segundos, se transforma
pela guitarra de Lanny e pela voz de Gal. “Minimistério”, de Gil, remete-nos de
volta a “Divino, maravilhoso” ao ecoar as sinistras palavras de Kurtz, no Coração
das trevas: “oh, terror, terror, terror...”
Um
inusitado frevo de Caetano, “Deixa sangrar” é uma referência direta ao Let
it Bleed, dos Stones, mas é também uma espécie de “carnaval do apocalipse”,
uma referência direta à situação política do Brasil: “deixa o mar ferver /
deixa o sol despencar / deixa o coração bater / se despedaçar / chora depois,
mas agora / deixa sangrar / deixa o carnaval passar”. A ditadura fazia sangrar,
mas a sangria stoniana – que não tem nada com a conformista “Let it Be”, dos
Beatles, posterior –, é uma celebração hedonista, a cara de Keith Richards, o
que nos leva a entender o “carnaval do apocalipse” como uma metáfora da ditadura.
“Falsa
baiana”, clássico do mineiro Geraldo Pereira, fecha o disco, de maneira
surpreendente: Gal reverencia a Bossa Nova, especialmente o conterrâneo João
Gilberto, cantando num tom que não usava desde o pioneiro Domingo. Uma transformação
se anunciava.
Os
símbolos da resistência se espalham pelas dez faixas de Legal. Com Gil e
Caetano no exílio, Gal vai encontrar-se com eles em Londres. Em agosto de 1970,
assistem ao lendário Festival da Ilha de White. Gal encanta-se em particular
com Jimi Hendrix, que morreria no mês seguinte. De volta para o Brasil, ela
frequenta, em Ipanema, um lugar conhecido como Dunas do Barato – descrito por quem
andava por lá como um oásis de liberdade em meio ao ambiente repressivo do país.
Com o tempo, o local ganhou um segundo nome, em homenagem a sua mais notável
frequentadora: Dunas da Gal.
Para
falar do quarto disco solo, o emblemático Gal a todo vapor, também conhecido como FA-TAL,
gravado ao vivo, é preciso dizer de uma das mudanças fundamentais na indústria
da música de entretenimento nestes 50 anos. Hoje, ou pelo menos até a explosão
do streaming e da pandemia, há uma sequência básica: disco, show do disco,
disco do show. No início dos anos 1970, um disco ao vivo, com todas as suas
imperfeições técnicas, era um acontecimento raro. Havia ainda o conceito de “ao
vivo, no estúdio”, mas essa é uma outra história.
Gravado
no Teatro Thereza Rachel, em Copacabana, em 1971, o disco é todo ele uma
invenção coletiva, da qual participam, entre muitos outros: o veterano
bossa-novista Roberto Menescal (direção de produção), Lanny Gordin (arranjos,
direção musical e guitarra); Novelli (baixo); Jorginho (bateria); Baixinho
(percussão); Luciano Figueiredo (cenografia e capa); Óscar Ramos (capa) e Wally
Salomão (naquela época, ainda Sailormoon, na direção geral). Na contracapa, uma
foto parcial de Gal tocando violão e as palavras “boca microfone mão violão”.
Estas palavras combinavam com a capa, onde se lia, sobre a boca vermelhíssima
de Gal, “FA-TAL”. Óscar me confidenciou que ele e Luciano não concordaram, de
início, com a interferência de Wally, por achá-la óbvia, mas acabou virando um
emblema do disco e a síntese da sensualidade que ele emana ainda hoje.
O disco
lançado como álbum duplo, hoje é disponibilizado, em CD e no streaming, na
ordem inversa – primeiro o disco dois, depois o um. E isso tem uma explicação.
Na ordem que prevaleceu, o show começa intimista, com Gal cantando e se
acompanhando ao violão e evolui, na nona faixa, “Vapor barato”, para um
trabalho coletivo, sob o comando febril de Lanny. Na verdade, essa era a ordem
das músicas no show. Das dezenove faixas, apenas três haviam sido gravadas
antes por Gal: “Coração vagabundo”, “Hotel das estrelas” e “Falsa Baiana”. Entre
as novidades, composições de Caetano e das duplas Macalé/Wally, Moraes/Galvão e
Roberto/Erasmo. Gil é uma inexplicável ausência. Do repertório de Luiz Gonzaga,
a lancinante “Assum Preto”, cantada como jamais será cantada novamente. Ainda
no capítulo “velha guarda”/tradição, a clássica “Antonico”, de Ismael Silva. A
lista fecha com duas faixas do folclore baiano: “Fruta gogóia” e “Bota a mão
nas cadeira”.
Ao
contrário dos discos anteriores, onde uma Gal politizada desafia o establishment,
a censura, a ditadura, este continua no mesmo tom, mas, sem falar em política,
desafia os “bons costumes” – ou eu preciso explicar o que é “vapor”?
É
difícil apontar destaques sem ser prolixo e redundante. Gal a todo vapor é,
como se dizia na época, um desbunde. Uma experiência única e definitiva. Não é
apenas o “ponto alto da contracultura no Brasil”, um chavão desgastado. É, sim,
um dos momentos culminantes da música e, por extensão, da cultura brasileira.
Em
1974, assisti a um show de Gal Costa pela primeira vez, na quadra do Olímpico Clube, em Manaus.
Não sei mais o que é memória ou o que é sonho, delírio, invenção. Era o show do
quinto disco solo, Índia, lançado no ano anterior – portanto, dois anos
após a catarse de Gal a todo vapor. Transpirando sensualidade, Gal
cantou músicas do novo disco, e, para encanto da geral, várias de FA-TAL.
Hoje percebo que Índia, se não era um caminho novo, era um novo jeito de
caminhar, como diria o querido Thiago.
À
guarânia clássica, de origem paraguaia, um tanto cafona para os meus
mal-acostumados ouvidos, somava-se um dolorido samba-canção de Lupicínio,
“Volta”. Ali nascia uma nova Gal.
Em não
mais que três anos, a presença de Gal Costa eternizara-se na música brasileira
– e nem precisava das dezenas de discos e centenas de interpretações
antológicas dos cinquenta anos seguintes. Aqueles primeiros quatro discos bastavam.