Palácio Rio Negro. |
domingo, 30 de agosto de 2015
sábado, 29 de agosto de 2015
quinta-feira, 27 de agosto de 2015
exercício nº 4
Zemaria Pinto
O
som do sol se pondo sobre o rio
compõe
a melodia-desatino
de
negros ecos, negras ressonâncias,
inventando
hemoptises na calçada.
Um
barco rasga lentamente a água
e
uma gaivota faz evoluções
tardias.
Pela beira, dois cães magros,
como
dois homens, caçam nos monturos.
Aos
poucos, desfaz-se a tarde submissa
à
noite, o imenso pássaro sombrio,
sobrepairando
azul sobre a cidade,
o
hálito morno, as garras afiadas.
Meu
peito inda lateja a dor antiga,
tanto
cruel quanto serena e amiga.
Evolução histórica dos códigos de ética médica
João Bosco Botelho
Na
tese de doutorado defendida em Paris, em 1955, intitulada “A ética médica”, o
professor Derrien firmou relações conceituais da ética médica voltada ao
benefício do homem e da mulher. Assim, o entendimento do professor Derrien da
virtude kantiana nas práticas médicas, obrigatoriamente, estaria ligada ao
“bem”, ao “bom”, à praticidade, estreitando os vínculos das ações médicas, de
modo geral, ao controle da dor e adiando os limites da vida. Dessa forma, é
inadmissível pensar a Medicina como uma especialidade social para provar a dor
ou a morte. Essa vertente ligando a ética médica aos resultados entendidos como
“boas práticas”, gerando bem-estar ao doente, está presente na maior parte das
abordagens teóricas referenciais.
Nesse
sentido, é possível resgatar relações do conhecimento historicamente acumulado
que ligam a ética médica à boa prática, entendidas pelo senso comum como bons resultados
profissionais atadas às ações que devem, obrigatoriamente, trazem melhorias à
vida pessoal e coletiva.
Parece
razoável pressupor que o conhecimento historicamente acumulado, desde os
primeiros registros do médico como personagem social, se ajustou na maior
inclusão dos curadores (aqui compreendidos tanto os médicos, como
representantes da medicina-oficial, aquela amparada pelo poder dominante,
quanto os benzedores, erveiros, parteiras, sacerdotes, encantadores e muitos
outros) que obtinham melhores resultados nos respectivos procedimentos de
curas. Do outro lado, nos mesmos milhares de anos, os curadores que não conseguiam
firmar o reconhecimento coletivo em torno da competência na solução dos
problemas expostos pelos postulantes, não recebiam o reconhecimento coletivo.
Entre
esses dois grupos, as organizações sociais, em diferentes instâncias, ao mesmo
tempo em que reconheciam e nominavam a medicina e o médico, inclusive em
algumas sociedades, também os especialistas, compondo parte do conjunto das
profissões, procuraram refletir, identificar, coibir e punir a má-prática
médica. De modo geral, essa má-prática está mais atada ao resultado
desfavorável à saúde do doente, seja pessoal ou coletivo. Nenhum procedimento
médico, no passado e no presente, tem sido aceito se provoca piora no estado de
saúde do doente.
Esse
conjunto normativo entre ética e moral culminou, na Grécia, com o aparecimento
do conceito de deontologia (do gr. déontos, “o que é obrigatório, necessário” +
logia), que evoluiu para “o estudo dos princípios, fundamentos e sistemas de
moral”.
A
palavra deontologia ligada à prática médica, em torno da ética e da moral,
apareceu pela primeira vez, em 1845, no Congresso Médico de Paris, no trabalho
do médico M. Simon, intitulado “Deontologia médica ou dever e direitos dos
médicos no estado atual da civilização”.
De
modo geral, os códigos de deontologia médica comportam três fundamentos
estruturantes, reafirmando o indivíduo e não o coletivo como o mais importante
valor da prática médica, maior parte das vezes, distribuídos entre os artigos:
-
O médico deve estar sempre a serviço do indivíduo, respeitando a vida e sua
dignidade, e da saúde pública;
-
O médico deve exercer a profissão com liberdade de decidir, prescrever e
indicar tratamento, ao mesmo tempo em que o doente deve manter a liberdade de
escolher o médico para dirigir o tratamento. Essa plena liberdade dos médicos
deve estar atada ao conjunto de explicações por meio dos “termos de
consentimentos livres e esclarecidos” para que o doente tenha maior
conhecimento da doença e do tratamento proposto;
-
O médico é responsável pelos seus atos entendidos como valores de competência
amparada na ciência.
quarta-feira, 26 de agosto de 2015
terça-feira, 25 de agosto de 2015
Panapaná
Pedro Lucas Lindoso
Encontrei-me
com Dr. Chaguinhas no Tribunal. Comentávamos com entusiasmado sobre a
Semana Internacional de Museus, cujo dia
é comemorado em 18 de maio. Disse a ele que o Dr. Adalberto Karim Antônio, juiz
e articulista do Jornal do Commercio, fez excelente palestra sobre museus e sustentabilidade
na sede do IGHA – Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. Naquela manhã,
o museu do Instituto recebia um grupo grande de alunos de uma escola pública.
Chaguinhas
é um apaixonado por museus. Ao ponto de passar vinte dias de férias em Paris,
exclusivamente dedicados a visitação do Louvre.
Chaguinhas
não se conforma com o fechamento do Museu de Ciências Naturais da Amazônia, que
ficava localizado na Colônia dos Japoneses, aqui em Manaus. Conhecido como
Museu do Japonês.
Por
lá, havia coleções de animais empalhados e um vasto acervo em taxionomia. Parte
da Botânica e da Zoologia que trata da descrição, identificação e
classificação, o acervo taxionômico do museu em borboletas, insetos, aranhas e
peixes raros da região era significativo e não deveria ser relegado ao abandono
e fechamento definitivo.
Um aquário enorme abrigava pirarucus e
tambaquis. Esses provavelmente já foram
objeto de nutrição para humanos, mas onde estariam os insetos, os enormes
besouros e as fabulosas aranhas amazônicas?
Chaguinhas
já foi um exímio colecionador de borboletas e não se cansa de indagar pelo
destino da coleção de borboletas do acervo do Museu de Ciências Naturais.
Perguntei
a ele o que o atraia tanto nas borboletas. Chaguinhas me disse que era a
metamorfose. A transformação de um ser em outro. A Mudança de forma e de
estrutura que ocorre no monstro lagarta ao se transformar na bela borboleta.
–
Se você souber onde se encontra aquele maravilhoso panapaná, que estava no Museu do Japonês, me avisa.
–
O que é panapaná, Chaguinhas?
–
Então você não sabe? É o coletivo de borboletas.
domingo, 23 de agosto de 2015
sábado, 22 de agosto de 2015
quinta-feira, 20 de agosto de 2015
exercício nº 12
Zemaria Pinto
à
fronte guarda sombras de outras eras
e
um par de olhos tão tristes, que canção
alguma
alcança. fixas ancas lançam
o
rabo que balança ao som do vento.
a
branca estrada sob o ubre úmido
é
o caminho da força eclipsada
à
meia-lua que se forma em aura
no
cósmico avatar da terra farta.
esta
a imagem da Vaca, impura e bela.
à
tortura ordenada indiferente,
as
asas ruflam num ruído surdo
buscando
o largo campo do universo:
a
Vaca precipita-se no espaço,
o
olhar perdido nalgum vão do éter.
Historicidade da ética médica
João Bosco Botelho
O
alfabeto grego possui duas letras “e” longo = eta e o “e”curto = épsilon. Dessa
forma, êthos com a letra eta significa: característica, modo habitual de se
comportar; éthos com a letra épsilon: corriqueiro, costume, usual. O processo
histórico linguístico impôs semelhança etimológica entre os dois termos: ambos
estão vinculados à virtude. Talvez também por essa razão, no cotidiano, a ética
tem caminhado ao lado da moral.
A
palavra “moral” é de origem latina, “mores” significa “costume”, mas não
qualquer costume, e sim estritamente aderido à virtude. Assim, Kant, de modo
genial, caracterizou a ação moral plena de virtude e realizada, exclusivamente,
por dever legalista, em respeito às leis, em caráter universal.
Em
muitas circunstâncias, essa característica universal da ação moral, citada por
Kant, isso é, a busca incessante para que o comportamento humano estivesse
sempre ao lado da virtude, independente do processo fiscalizador, ultrapassa as
relações sociais em si mesmas. Não é impertinência pensar que esse desejo
humano, desde um passado impossível de precisar, de valorizar a virtude, como
antagonismo ao vicio, seja um processo gerado ao longo da humanização, ligado à
sobrevivência do grupo humano.
Sem
esforço, torna-se inevitável articular um pensamento teórico voltado à herança
genética, para a existência de uma ou mais memórias-sócio-genéticas (MSGs)
ligadas à valorização da virtude e o desprezo ao vício, atadas aos mecanismos
institucionais para valorizar a virtude e unir os vícios. Esse conjunto
organizador social presente nas MSGs, vinculado à sobrevivência – ética-moral
–, presente na espécie humana, a única com neocórtex tão desenvolvido,
desprezando o vício (aqui compreendido como oposição à virtude) também se
manifesta socialmente por meio de outras categorias metamórficas, todas
amparando a sobrevivência pessoal e coletiva: linguagem, ser-tempo (pessoas
vistas e pensadas), ser-não-tempo (seres pensados impossíveis de serem vistos),
relações médico-míticas (associação de deuses e deusas de muitos panteões com a
saúde a doença), dor-histórica (presentes nas MSGs, ao contrário da dor
pessoal, tratada pelo agente da cura, funciona alerta de um ou mais sofrimentos
coletivos que impuseram mudanças socias) e a coesão social. A ética-moral ampara e mantém as MSGs.
É
claro que nos dias atuais ainda não existem mecanismos na engenharia genética
capazes de identificar essas MGSs, mas esse fato não invalida essa construção
teórica.
É
difícil atribuir a atávica busca da virtude somente às relações sociais. Em
incontáveis ações humanas, sejam pessoais ou coletivas, em grupos sociais das
mais diversas etnias, nos quatro cantos do planeta, existem fortes indicativos
de que esse encanto coletivo pela virtude seja motivado por impulsos que
transcendem o exclusivamente social.
Desse
modo, sob essa perspectiva, os significantes da ética ligada a moral, oriundos
da escrita grega, com o “e” longo, o eta, ou com o “e”curto, o épsilon,
reproduzem importantes e indispensáveis mecanismos sociogenéticos da
sobrevivência da espécie humana, materializados nos códigos de ética de muitas
atividades, nas quais a ética médica é um deles.
Ainda
em torno das associações entre a ética e a moral, especificamente, na
compreensão ética e moral das práticas médicas, existem algumas tentativas para
conceituar a ética médica também integrando à virtude, independentes de a
primeira estar pressuposta ao coletivo e a segunda, ao indivíduo.
quarta-feira, 19 de agosto de 2015
terça-feira, 18 de agosto de 2015
Estrogonofe, não!
Pedro
Lucas Lindoso
O
mês de agosto nos traz muitas saudades de meu inesquecível pai, JOSÉ LINDOSO.
Não só pelo dia dos pais e pelo dia do advogado, comemorado em 11 de agosto,
mas principalmente pelo dia 21, quando faria 94 anos.
JOSÉ
LINDOSO, advogado e professor, foi secretário de educação, deputado federal,
senador e governador do Amazonas. Todavia, o mais importante para ele foi ser
marido de Amine Daou Lindoso, filho de vovó Zezé e pai de seus sete filhos.
Amigo e companheiro dos filhos e idolatrado pelas filhas, surpreendia nossos
professores em Brasília ao comparecer às reuniões de pais e mestres. Afinal era
senador, líder do governo no Congresso, membro da mesa do Senado.
Antes
de governar o Amazonas foi vice-presidente do Congresso Nacional. Mas sempre
teve tempo para os filhos. Prezava sua família. Gostava de livros, de estudar,
de conversar, dos amigos e principalmente do diálogo com os filhos.
Certo
dia, tia Vitória, sua irmã, chegou a casa e perguntou: “Cadê o Zeca?” Achei
Zeca muito chinfrim e comecei a chamá-lo de Zecão. Pegou. Até os netos o
chamariam de vovô Zecão.
JOSÉ
LINDOSO era um homem simples, despojado de vaidades. Gostava de política, no
bom sentido. No sentido original da palavra “polis+ética” = política. Coisa
rara nos dias de hoje. Em jantares entre políticos, em nossa casa, lembrava aos
convivas que o cerimonial que conhecia era o do “Rio Madeira”. O protocolo era
o aprendido em Manicoré.
Gostava
de ir às livrarias, aos sábados pela manhã. No final da vida voltou a exercer o
magistério no Departamento de Direito da UnB. Caminhava diariamente pelas
arborizadas quadras de Brasília. Nunca precisou de seguranças. Como bom
amazonense, apreciava nossos peixes e a culinária regional. Comia normalmente
de tudo. Só não gostava de estrogonofe.
No
final dos anos setenta, havia uma propaganda de creme de leite na televisão. A
esposa preparava um estrogonofe com o tal creme de leite, quando o marido
telefonava informando que levaria um colega para o almoço. E virava-se para o
amigo e dizia: Arnaldo, vais comer um estrogonofe! Ao ver a tal propaganda,
invariavelmente dizia: Coitado do Arnaldo! Vai comer estrogonofe! A saudade de
meu pai é imensa. Se houver festa no céu e servirem a tal iguaria, com certeza
vai dizer: “Estrogonofe, não. Obrigado”.
domingo, 16 de agosto de 2015
sábado, 15 de agosto de 2015
sexta-feira, 14 de agosto de 2015
O primeiro amor de Maranhão Sobrinho
Kissyan
Castro
Entrar na intimidade de
um artista sem divisá-la de sua própria arte é como estar às apalpadelas em
intrincado labirinto, sem contar com a ajuda de um fauno. Sobretudo a
intimidade de poetas da esteira de um Maranhão Sobrinho. Pois, como bem nos
acautela Fernando Pessoa, esses demiurgos da lira costumam celebrar, também, as
suas “dores fingidas”. No entanto, valendo-me do que a despeito disso escreveu
o poeta Floriano Martins, em Escritura
Conquistada, de que “os poetas estamos todos em cada um de nossos versos”,
além do relato de testemunhas auriculares, apoiado por documentos oficiais, e
do que se pode depreender do que nos deixou em prosa e verso o próprio Maranhão
Sobrinho, arrisco-me a falar, ainda que minimamente, desta que talvez tenha
sido o primeiro amor do nosso poeta maior. Refiro-me a Honorina Fernandes de
Miranda.
Com o passamento do
pai, o Capitão Honório Fernandes de Miranda, e vendo abalada a estrutura
econômica da família, Manoel Raimundo Nonato de Miranda resolve deixar
Cururupu, sua gleba natal, para vir exercer o magistério na então próspera Vila
de Santa Cruz da Barra do Corda. A mãe, Dona Rita Maria da Silva Miranda,
recusa-se a acompanhá-lo, mas recomenda-lhe a irmã, a pequena Honorina
Fernandes de Miranda, que, mesmo tenra, manifestava disposição e vivacidade
incomuns, podendo muito bem auxiliá-lo em suas atividades.
Maranhão Sobrinho fora
seu mais obstinado aluno, e não escapou às suas recorrentes traquinagens,
chegando a botar pimenta moída no seu “torrado”. Hábil educador, Raimundo
Nonato conseguiu vislumbrar, por trás da excentricidade peráltica do pequeno
Zeca, o gênio invulgar que se tornaria mais tarde. Além da instrução basilar,
Maranhão Sobrinho recebeu de seu mestre admiração e sincera amizade. Quantas
vezes o poeta não deve ter-lhe visitado para tirar alguma dúvida retida durante
a aula formal, ou para ouvir-lhe as exóticas histórias, folhear os livros de
sua biblioteca particular, ou simplesmente – e por que não? – para contemplar a
jovem Honorina, por quem cedo passou a nutrir especial afeto, e cuja formosura entusiasticamente
exalta num poema publicado no jornal cordino O Porvir, em 21 de fevereiro de 1897, época em que supostamente
namoravam:
Vês? Teus
seios gentis por entre as rendas
Da perfumosa
e cândida mantilha,
Cantam
baladas e soletram lendas.
Teu rosto
tem a palidez de Ofélia,
O perfume
das virgens de Sevilha
E a mágica
expressão do de Cordélia!
O saudoso escritor
Antonio de Oliveira, na separata nº 82 da Revista das Academias de Letras, de
1976, foi quem primeiro trouxe à tona o assunto, ao referir-se a uma entrevista
com Olímpio Fialho, amigo de infância de Maranhão Sobrinho, o qual lhe segredou
que o autor de Papéis Velhos..., aos
18 anos de idade, tivera uma namorada chamada Honorina de Miranda, a Noca, como
era comumente conhecida. Moça que, a julgar pela caligrafia impecável com que
assinava os documentos oficiais, possuía esmerada educação.
Eu mesmo não tinha
sequer noção do quanto significou essa primeira experiência amorosa para o aedo
barra-cordense, até encontrar, em O
Guarany, outro antigo periódico cordino, como por acaso, um texto em prosa
do poeta, uma crônica que denuncia um Maranhão Sobrinho romântico, a desaguar o
coração sem o menor desvelo. Transcrevo aqui um trecho:
Há lá para as bandas da Rua Formosa[1],
célebre, muito célebre no canhenho do humilde rabiscador modelo destas linhas,
uma celestial senhorita que me cativou docemente o coração. É um mimo da
natureza; é a verdadeira coroa da criação...
Refere-se esta
“celestial senhorita” a Honorina de Miranda? Provavelmente. Tanto que mais
adiante ele indaga:
Conheces a minha bela?
Maranhão Sobrinho
emitiu essa crônica ao jornal enquanto passava alguns dias com parentes,
provavelmente em Carolina ou Riachão, cidades onde o clã Maranhão possuía
presença expressiva. E a julgar pelo temperamento irrequieto do poeta, não é de
se estranhar sua tendência andarilha de viajor. No entanto, sua aventura
amorosa inaugural chegou ao fim quando numa dessas viagens teve um sonho, não
um sonho qualquer, fruto do enfado e ansiedades da vida, mas um sonho
premonitório, cujo relato do cumprimento Maranhão Sobrinho deixa registrado em
versos, na Revista Elegante, em 23 de
março de 1899:
Parti... e
tu ficaste! Um só momento
Não pude me
esquecer de ti, amada!
Do fundo da
minh’alma angustiada
Fugira todo
o meu contentamento.
E andei...
mas tendo em ti o pensamento,
Nunca
olvidei-te. Em meio da jornada,
Sonhei
qu’esta minh’alma apaixonada
Tinhas
lançado em tredo esquecimento!
Voltei
então... julguei achar-te a espera
Minha
cantando a doce primavera
Do nosso
amor, festiva, palpitante...
Cheguei,
enfim... Ó dor! Ó sentimento!
Como sonhei
– achei o esquecimento...
E sorrias
nos braços d’outro amante!
Quem teria sido esse
“outro amante” em cujos braços o poeta flagrou sua amada Honorina? Em minhas
pesquisas, acabei descobrindo que se tratava de Políbio Martins Jorge, filho do
capitão Caetano Martins Jorge e Ana Martins da Cunha, influente família nesta
cidade. Esse pérfido ato teria deixado profundas e indeléveis marcas em sua
alma de poeta.
Este assunto seria
irrelevante não fossem as implicações que viriam a ter tanto na poesia de
Maranhão Sobrinho, quanto, talvez, nas motivações que lhe fizeram deixar Barra
do Corda. A propósito, o que teria mesmo motivado o nosso aedo a deixar sua
família, amigos, seu torrão natal, para nunca mais voltar a vê-los? A versão
oficial reza que Barra do Corda tornara-se pequena demais para ele, e, à
maneira de Rimbaud, exaurira todas as possibilidades de aquisição do conhecimento
que sua aldeia poderia oferecer. Concordo. Mas parece uma versão cômoda demais.
Teria sido apenas isso? Não buscava o nosso poeta destaque, posição social?
Não. Ou não teria abandonado o curso normal em São Luís só por se ter
indisposto com um dos professores. Ou teria procurado amparo em outra entidade
afim, o que não fez. O que o levou daqui não teria sido a ambição por “metais
preciosos”? Definitivamente, não. Pois, como nos diz Antônio Lobo em Os Novos Atenienses, Maranhão Sobrinho
“possuía pelas coisas materiais da vida a mais soberba das indiferenças”.
Poderíamos atribuir o seu êxodo talvez a uma frustração política, por causa da
prevalescência do republicanismo local? Ou mesmo por suas inclinações
nomadistas, próprias do seu temperamento erradio? Vale ressaltar que O Guarany, de 26 de fevereiro de 1899,
trazia estampada na primeira página a seguinte manchete: “O Fim do Mundo em 13
de Novembro deste Ano”. Teria esta charlatanesca mensagem fustigado o nosso
poeta, que para não enfrentar o Juízo Final por aqui mesmo, saíra às pressas
apenas três meses antes? Seria trágico,
não fosse cômico. Por fim, não poderíamos atrelar a essas hipóteses também a
sua frustração amorosa?
Creio que nos
esquecemos de relacionar dois detalhes importantes: a mudança de Maranhão
Sobrinho para São Luís, em 15 de agosto de 1899, com o casamento de Políbio
Martins Jorge e Honorina Fernandes de Miranda, ocorrido em 27 de maio de 1899.
Terá sido mera coincidência o nosso aedo ter deixado Barra do Corda,
definitivamente, a menos de três meses do casamento do seu primeiro e grande amor?
Junte a isso a tendência escapista do poeta e já não teremos uma hipótese que
se possa descartar.
Dizem os antigos que
jamais nos esquecemos do primeiro encontro, do primeiro beijo, da primeira
intimidade, enfim, do primeiro amor. Verdade
ou não, deixemos que o próprio Maranhão Sobrinho nos conte em versos a sua
experiência, num dos primeiros poemas que publicou ao chegar em São Luís:
E tu passas
mimosa,
Ó casta e
meiga flor da minha aldeia!
Gravando com
os pezinhos cor de rosa
Estrofes
raras na suave areia...
Maranhão Sobrinho de
fato não a esqueceu. Sua imagem foi sendo mistificada, e verso a verso
expurgada até a sublimação arquetípica da perfeição feminina, até que enfim estivesse
pronta para reencontrá-lo, não mais em carne e osso, e correr o risco de
perdê-la novamente, mas no âmbito do poema, onde a aguarda em sua turris
ebúrnea, “longe dos homens e das casas”, onde só há lugar para dois, onde a
eternidade é descartável, e apenas “dois brancos pares de travessas asas”
ruflam uníssonas na imensidão azul do Sonho.
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quinta-feira, 13 de agosto de 2015
Bioética: fiscalização da pesquisa médica
João
Bosco Botelho
A
bioética compõe parte importante das novas exigências do movimento social em
torno das aquisições da ciência e da tecnologia, a partir da segunda metade do
século 20, que introduziu no cotidiano científico as mudanças impostas pelos
estudos e aplicações da genética dos seres vivos, especialmente, dos humanos.
Do ponto de vista pedagógico, a bioética pode ser considerada subárea da
filosofia.
As
mudanças na ciência e na tecnologia com aplicação imediata dos produtos da
genética em caráter pessoal, coletivo e industrial chegou simultaneamente às
transformações sociopolíticas que alcançaram o indivíduo, a família e o mercado
consumidor.
Parte
da estrutura teórica da bioética está ligada ao livro “Bioética: uma ponte para
o futuro”, do médico cancerologista Van Rensselaer Potter, de 1971. Para esse
autor, o termo “bioética” por ele proposto estaria vinculado em dois alicerces:
os saberes biológicos associados aos valores humanos da ética e da moral.
É
possível resgatar eventos degradantes, tanto durante a II Guerra Mundial quanto
nos anos 1950 e 1960, nos Estados Unidos e outros países, relacionados às
pesquisas médicas causando malefícios ou morte às pessoas:
-
Os horrores nos campos de concentração nazistas;
-
Estudos experimentais em seres humanos, não autorizados, da transmissão e
complicações da sífilis, em homens negros, após uso da penicilina;
-
Abandono intencional do tratamento com penicilina em pacientes portadores de
infecções para o estudo das complicações;
-
Injeção de células cancerosas vivas em doentes idosos;
-
Injeção do vírus da hepatite B em crianças em um hospital de Nova Iorque;
-
Um comitê de ética médica, o Comitê de Seattle, como ficou conhecido, decidia
quem iria para a hemodiálise, isto é, quem iria viver ou morrer, já que
existiam mais doentes necessitados do que máquinas disponíveis;
-
Publicação do médico anestesista Henry Beecher, relacionando pesquisas médicas
envolvendo seres humanos, chamados de “segunda classe”, hospitalizados em
hospitais de caridade, adultos com distúrbios mentais, crianças com graves
retardos mentais, idosos e presidiários, todos sem possibilidade de assumir
postura ativa de questionamento junto ao pesquisador.
Em
1974, nos Estados Unidos, a “Comissão nacional para a proteção de sujeitos
humanos na pesquisa biomédica e comportamental” gerou o Relatório Belmont com o
objetivo de resguardar a ética e a moral nas pesquisas envolvendo seres
humanos, ancorado em três âncoras pétreas: respeito às pessoas, justiça e
beneficência.
quarta-feira, 12 de agosto de 2015
terça-feira, 11 de agosto de 2015
É sempre primavera
Pedro
Lucas Lindoso
Estive
visitando um sítio de amigos lá pelas bandas do Tarumã. Paulinho, um garoto
esperto e inteligente de 10 anos de idade, é filho do caseiro. Disse-me que
estudava em escola rural e fazia o quinto ano. Pedalava sua bicicleta por quase
uma hora até chegar à escolinha. A professora, dona Vanessa, ia de moto.
Paulinho
me contou que estava estudando as estações do ano. Entendeu o que era inverno e
verão. Mas não compreende bem o que era a tal primavera e o outono.
Disse
a ele que o nosso planeta terra divide-se em zonas temperadas, equatorial e os
polos. Na verdade, a primavera só é bem definida nas zonas temperadas, como no
sul do Brasil. Nós moramos na Zona Equatorial.
Para
nós, que vivemos na Amazônia, o importante mesmo é o regime das águas. O rio
sobe de dezembro a junho e a vazante de julho até novembro. Como na vazante
chove menos, aí ocorre o nosso verão. Os dias são mais quentes ainda!
A professora disse que outono é estação das
frutas e as folhas caem. Paulinho argumentou que tem fruta o ano todo. E deu
exemplos:
– De
janeiro a maio dá muito araçá-boi. De julho a dezembro a gente colhe açaí. De
novembro até março é época de pupunha e camu-camu.
Dadas
essas explicações Paulinho foi me mostrar os jardins da propriedade. As flores
estão sob os cuidados da mãe dele. Paulinho e os irmãos também ajudam no
cultivo. O sítio produz muitas flores que são vendidas em Manaus.
Dona Vanessa havia ensinado que a primavera é
a estação das flores.
Paulinho
mostrou-me um canteiro com lindas açucenas e malvinas. Havia também antúrios,
cambraias e flor de janeiro.
– Aquela
é conhecida como oxum amarela, explicou-me.
Finalmente
o curumim sabido me levou perto de árvores frondosas e me disse:
– Olhe
só: nessas árvores tem bromélia, pingo do céu e sininho.
Aqui
no sítio é sempre primavera.
segunda-feira, 10 de agosto de 2015
Carta aberta ao presidente da Academia Amazonense de Letras
Manaus, 10 de agosto de 2015
Caro Armando,
Ao longo de 19 meses,
trabalhamos para colocar a quase centenária AAL no centro dos debates e
realizações culturais de Manaus. Os planos eram muitos, mas as limitações foram
maiores. Além de lançamentos de livros e eventos do calendário ordinário,
conseguimos emplacar o Sábado na Academia,
com as séries sobre os Patronos (17 palestras); Augusto dos Anjos em dois tempos (2 palestras); Márcio Souza, o mostrador da derrota (4
palestras); O pensamento amazônico (3
palestras); 60 anos do Clube da madrugada
(3 palestras); A Amazônia na visão dos
viajantes (5 palestras); e Arte em
tese (4 palestras). A partir de maio deste ano, com a doação pelas famílias
Benchimol/Minev de um piano, promovemos o Sarau
na Academia, que bateu recordes de público nas suas três edições, sendo que
à mais recente, realizada no último 5 de agosto, compareceram mais de 140
pessoas.
Tudo isso foi feito, meu
caro, sem que a Academia tivesse qualquer dispêndio. Para tal, contamos com a
colaboração de acadêmicos, escritores, professores da UFAM, da UEA e da Uninorte, além de
artistas ligados à música, ao canto lírico e ao teatro. Todos, profissionais da
mais alta qualificação.
Por esse motivo, causou-me
espanto e profunda decepção ver estampado no folder da 4ª série dos patronos as
logomarcas da SEC e da ManausCult – acompanhadas da informação de que todos os
eventos da Academia deverão, de ora em diante, estampar as referidas logos.
As subvenções que a AAL
recebe desses órgãos destinam-se ao custeio da instituição. Associar essas
subvenções a eventos onde os profissionais participam de forma voluntária é
tripudiar sobre os eventos e sobre os profissionais, que, ao aceitarem nossos
convites, o fazem para a Academia e não para aqueles órgãos, que promovem
megaeventos, pagando muito bem por eles.
Lembro que no dia 31 de
março do ano passado, organizamos, em conjunto com a ManausCult, um debate
memorável intitulado 50 anos do golpe
militar. Coube ao citado órgão, devidamente referenciado no folder de
divulgação, organizar o coquetel.
Assim, meu caro, sem
colocar em jogo nossa amizade que já se estende por mais de uma década, e pelo
respeito que tenho a você, por sua trajetória de vida, sirvo-me desta para
desligar-me, em caráter definitivo e irrevogável, da função de Diretor de
Eventos, que exerço pela segunda vez e que muito me honra.
Desejo sucesso na
continuidade dos eventos, colocando-me à disposição para colaborar no que for
possível.
Renovando meus votos de
consideração e apreço, sou
Zemaria Pinto
Maçãs podres
Inácio Oliveira
Quando meu avô estava
para morrer ele desejou comer uma maçã. Era difícil encontrar maçãs na nossa
cidade; meu pai percorreu todas as feiras naquele domingo sem encontrar nenhum
lugar que vendesse maçãs. As maçãs levavam meses para chegar, vinham do sul em
caminhões cobertos com lona, quando chegavam já estavam quase estragadas. Nunca
vi meu avô comer uma maçã. Quando ele ficou doente era difícil comer qualquer
coisa, tomava quase só líquidos, mas assim que soube que ia morrer pediu que
meu pai lhe trouxesse uma maçã. Meu avô morreu sem realizar seu último desejo.
Ele podia ter desejado comer uma banana, mas queria comer uma maçã. Agora,
quando meu pai encontra maçãs na feira ele compra e traz para casa, coloca na
fruteira sobre a mesa e não come nenhuma, deixa que elas apodreçam no calor da
tarde. Depois de alguns dias as maçãs podres sobre a mesa me parecem uma coisa
bela e comovente, um desejo não saciado.
domingo, 9 de agosto de 2015
sábado, 8 de agosto de 2015
sexta-feira, 7 de agosto de 2015
Será que pensar nisso resolve?
Mauri Mrq
Será
que pensar nisso resolve?
Quando
Hermenina partiu no motor em busca da felicidade, não imaginava tão grande
sorte que teria em Manaus.
Hoje,
aqui, no mercadão, o cheiro de peixe me lembra do perfume da feira de minha
cidade que ficava na beira, bem na beira do rio, deslocando no ano conforme o
rio subia com sua vontade. Nessa época já sentia que Hermenina não ia ficar lá,
era muita afoita! Ninguém passava a perna nela, acho que herdou a destreza do
avô que minha mãe fala. Cada comunidade, cidade ou vilarejo em que parava,
fazia negócio ou vendendo ou comprando, vendendo e comprando pra ganhar mais
adiante. Chamavam de turco e outros de judeu, mas na verdade era português
bastardo que chegou a Manaus pelos favores de um aventureiro que trazia uma
máquina de fazer filme, para negociar com os barões da borracha. Acabou virando
ajudante de peixeiro sem dar chance de se tornar assistente de filmador,
derrubando um filme no rio Negro. Levando peixe na cabeça para os bairros com
um bom lucro, conseguiu o pequeno batelão para o regateio. Mas será que pensar
nisso resolve?
Até
hoje, aqui, minha irmã, a história do meu avô, essa vontade de voltar, a calma
de lá, o tempo pra repousar, o almoço vivo ali no rio, a farinha ao vento com o
talo caraquento da mandioca, o fogo no tacho e o remo a ondear a farinha,
virando ovinha, que hoje pago caro pra enrolar com o peixe pro bucho. Praia,
boto, pasmaceira e o cheiro de pão na madrugada exalando do forno da padaria
antiga que na bicicleta trazia para o café, pra família.
Não!
Tô bem. Descansando. Pensativo, eu? É, pensando na vida. Sei lá. Minha irmã que
não vejo e a vontade de voltar pra Maués. Toco daqui há pouco. Na boate da
Instalação. Não implica. Levo dinheiro pra patroa. Não dá! Gonorreia! É,
prefiro não arriscar. É comida caseira, sem risco. Tá! Vai! Tudo bem! Até!
Toco. É de criança? Não! Meu repertório é abolerado. Não!
Não
assisto TV. Música da Xuxa? Não sei. É! Compra um disco, ela vai achar melhor.
Tá! Tchau.
Cara
chato, interrogatório!
Vou
sair daqui, circulação aumenta e a paciência diminui.
Vê
uma cerveja aí, não muito gelada, pra vê se bate mais rápido, que a noite hoje vai
ser longa. Boleros em boleros com fumaça contemplando o ambiente. Até gosto dessa
sensação. Mas o tempo, os flertes, os pedidos de música, a embromação do patrão
pra pagar, o amanhecer, caminhando ao ponto onde meu motorista de linha ataca
para o São Jorge. Chego em casa, patroa dormita e aproveito para me servir do
seu afeto, que só as mulheres ofertam, por pena, compromisso ou satisfação para
a finalização da leseira.
Oh!
Comandante, como vai! Ainda passeando pelas praias do rio Negro com as meninas
dando prazer aos comerciantes de Manaus, tendo o Pacu para servir? “Pacu é o apelido
do imediato do comandante Araújo”. O comandante é aposentado pela Petrobras
como comandante de empurrador de balsa de combustível. Hoje, freta seu batelão
em passeios exóticos pelo Amazonas. Melhor que ser tocador de guitarra em
puteiro do centro da cidade. Às vezes me convida para ambientar uma música no
deserto sonoro de uma embarcação parada numa praia em luar no rio Negro. É
divertido e calmante para os sentidos. Mas pensando bem, será que pensar nisso
resolve?
Ah!
Noite fresca. Também, depois de passar o dia chovendo, só pode estar úmido. O
balanço da rede, o dia seguinte do hoje que já vivi. O caldo de peixe, a soneira,
o fim, o começo do meio-dia num balneário, a diversão enchendo a lata e
novamente o peixe, o tambaqui, a brasa, o cheiro de banho.
Uma
vez um sulista, morando em Manaus, estranhava a indagação nos fins de semana,
principalmente das cabocas, se ele ia pro banho. Achava estranho quererem saber
de sua intimidade, levando em consideração que o sujeito era um pouco aviadado;
depois ele entendeu que era ir ao Clube Balneário.
Será
que pensar nisso resolve? É muito estranho fugir do que se vai ter que fazer
quando não dá pra segurar a evolução da hemorroida. Me assusta ficar em flor
para o médico proceder o retorno a botão depois de tantas intervenções.
Chegou
o dia, vamos ver se dessa vez resolve, não aguento mais comer peixe sem pimenta
murupi.
quinta-feira, 6 de agosto de 2015
A materialidade das emoções
João
Bosco Botelho
Os
avanços da genética já identificaram muitas substâncias que atuam no controle
das emoções que envolvem a dor e o prazer. A maior parte das incontáveis
reações químicas específicas processadas no corpo, em cada instante, está
voltada para manter o ser vivo e embotar, temporária ou perenemente, as
sensações desagradáveis e perturbadoras.
Nesse
sentido, para manter a vida, parece lógico pressupor que as atitudes
específicas, usadas no enfrentar da adversidade temida, minorando o sofrimento
do homem e da mulher, tenham sido valorizadas e, continuamente, aperfeiçoadas
pela ordem social, por trazerem resposta de bem-estar, a partir dessas reações
químicas. As ações humanas entrelaçadas na ordem social, transformando a
natureza para atenuar o desconforto, são imperativas. Estão ligadas direta e
indiretamente aos mecanismos neuroquímicos endógenos reguláveis pelas
necessidades de cada um.
As
dores, física e mental, determinadas pela ferida, na carne dilacerada no
acidente traumático ou na morte da mulher amada, são sempre temidas. Esse
imperativo da vida tem sido a inspiração dos poetas e a arma preferida da
insanidade para aqueles que exigem o desmemoriar dos sentidos, a fim de
limitar, pelo pavor, o confronto das ideias no exercício da livre
consciência. Diversas circunstâncias, do
homem chorando a perda do amor ao suplício do torturado pelas ditaduras de
todos os matizes, determinam o alerta dos sentidos e modificações
significativas em todos os órgãos, em níveis moleculares, hoje
inacessíveis.
Uma
das características mais intrigantes é como a dor altera a noção do tempo.
Suportar o desconforto doloroso, por um minuto, é como estar sofrendo na
imensidão do infinito. Durante a manipulação dentária, quando a pequena broca
alcança o nervo sensitivo, as sensações cerebrais são indescritíveis. Ao
contrário, a hora de prazer corre como um breve instante.
Por
essa razão, é impossível manter, durante muito tempo, a dor fulgurante. De
pronto, todos os sentidos natos atiçam para evitá-la ou os sentidos são
apagados, pela inconsciência forçada, para aliviar o desastre biológico.
Qualquer pessoa ou construção ficcional capaz de interromper o sofrimento é
identificada como amigo, aliado na defesa contra o perigo.
As
reações corpóreas de todos os animais precisam dessas defesas, presentes nas
reações químicas regidas pelo genoma, para continuar vivendo e reproduzindo. A
espécie humana elabora muitas substâncias específicas, requisitadas pelas
trocas sociais e biológicas, independentes da vontade, para modular a dor.
Existem moléculas especiais, acopladas às membranas celulares, no sistema
nervoso central, capazes de gerar estímulo para secretar substâncias
semelhantes ao ópio para conter a dor alucinante e, assim, manter a vida.
A
incrível disseminação das drogas proibidas também não é um exclusivo problema
social. A sedução exercida pelo consumo ilegal é diferente em cada pessoa. Está
contida na individualidade material molecular e é transmitida geneticamente.
Não é possível que tantas pessoas, espalhadas no mundo, algumas coagidas por
métodos brutais, continuassem desafiando com acinte o controle social, mantendo
o vício que coloca a vida em risco, sem coerência biológica.
As
investigações realizadas em animais de laboratório responderam favoravelmente:
os animais produzem substâncias para atenuar as dores.
O elo
com o complexo universo das ideias e crenças religiosas pode estar inserido no
mesmo contexto: as emoções expressas na vida social terem materialidade
biológica, minorando o sofrimento cotidiano. Os gritos pessoais e coletivos
contra a dor e a injustiça têm encontrado, desde sempre, resposta rápida quando
oferece solução imediata às angústias carreadas pelo desconforto da
insegurança, notadamente, da doença e da morte. O mundo que envolve e forma a
coisa sagrada, como resposta à dor, se materializa nas substâncias químicas
fabricadas no sistema nervoso na eficiência simbólica dos ritos, da linguagem e
da prece, unindo, em atitude mágica de credulidade, num só corpo, o pedinte e o
objeto sagrado.
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