Festa da MPB: no último dia 11 de julho, o agora sessentão Sérgio Souto, entre a cantora Patrícia Bastos e o poeta Paulo César Pinheiro.
terça-feira, 31 de agosto de 2010
O estranho caso da Vila da Barra – 14
Marco Adolfs
Resolvi continuar naquele botequim. Meu almoço foi um peixe grande e fresco que comprei de um índio que apareceu por lá. O dono do boteco se propôs a assá-lo e foi dele que me alimentei. Quando a noite finalmente caiu naquele lugarejo, vários homens começaram a aglomerar-se no interior do boteco. Todos bebiam muito e falavam alto. O assunto principal parecia ser a passagem, que se daria dentro de pouco tempo, do tal bumbá festeiro. Continuava eu naquela bebericagem e conversando com um e com outro quando de repente escutei ao longe o que parecia ser o som de um batuque de escravos. Todos os que estavam no interior do botequim acorreram à rua e perfilaram-se na expectativa de ver o cortejo do boi. Logo divisei, subindo a rua, uma pequena multidão carregando archotes que iluminavam suas faces de uma forma fantasmagórica. À medida que a cantoria e o batuque se aproximavam, pude perceber que os brincantes se organizavam em três filas. Compostas por negros ou cafuzos fantasiados com trajes tingidos em vermelho e azul. Liderando a fila do meio vinha um sujeito paramentado como se fosse um índio e que meus companheiros de bebida disseram representar o tuxaua. A seu lado vinha a figura de uma mulher, que nada mais era que um moleque vestido como índia. Não havia mulheres no cortejo. Esse molecote estava vestido com uma saia curta de tiras coloridas e também com cores alternadas em vermelho e azul. Sua dança era um saracotear de dois passos para a direita e dois passos para a esquerda. Na cabeça ele ostentava um enorme e ridículo penacho. Em dado momento, quando o cortejo se aproximou ainda mais do botequim, o grupo diminuiu as andanças e, do interior da fila do meio, saiu o que todos disseram ser o pajé. Este, assim que viu a plateia reunida, fez um sinal com o archote e apresentou o boi. Quer dizer: uma caveira de boi, com a extensão do corpo feito de um material flexível que servia como estrutura. Este arcabouço era envolvido por panos e saiotes laterais. Em seu interior havia um pequeno homem que arremetia em trotes e gingados vigorosos, imitando espalhafatosamente os movimentos de um boi. Enquanto esse boi gingava para a direita e para a esquerda, os homens entoavam uma canção que mais parecia um lamento. Tudo isso para delírio e deboche da plateia de bêbados do botequim. De repente, o pajé pareceu encenar um drama especial, cutucando o boi com uma espécie de espada. O boi, irritado, tentava arremeter contra os circunstantes e principalmente contra o moleque de saiote. Finalmente, de tanto cutucar o boi com aquela espada, este caiu ao chão, aparentemente morto. Todos pararam imediatamente a cantoria e os sons dos maracás. O pajé aproximou-se do boi para conferir sua provável morte. Quando levantou a espada deu a entender que este realmente estava morto. Nesse momento um dos homens do grupo começou a entoar uma melodia triste e chorosa. Mas, assim que ele terminou essa cantoria, uma arruaça de gritos e sacolejos de maracás irrompeu, partindo de todos os brincantes. Depois de um tempo envoltos nesse barulho infernal, alguns do grupo se deram as mãos e formaram uma corrente a dançar em passos cadenciados. Com movimentos para frente e para trás, em direção ao corpo do boi. Nas suas cantorias todos clamavam para uma lavadeira trazer-lhes um lenço para chorar. Quando cessou o lamento, o pajé retomou seus queixumes. Ficaram nisso um bom quarto de hora, até que todos começaram a despedir-se cantando que já era hora de levar o boi e enterrá-lo dignamente. O mais engraçado aconteceu quando, ao resolverem partir, o boi, como por encanto, levantou-se do chão e partiu também como se nada houvesse acontecido. Todos envolvidos pela mesma cantoria do início de quando se aproximavam.
Passaram-se então mais dois dias naquela cidade; na madrugada do terceiro dia fui obrigado a acordar bem cedo para partirmos em direção à ribeira das naus. Lourenço conseguira alugar uma grande barca e contratara quatro índios para irmos até o local onde um de seus serviçais dissera existir grande quantidade de seringas nativas. A saída do barco, no meio da madrugada, foi feita de forma a evitar “sermos vistos por alguns dos habitantes intrometidos e fofoqueiros da localidade”.
(Continua na próxima terça-feira)
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
Academia Amazonense de Letras abre inscrições para mais duas vagas
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Estão abertas, desde 17 de agosto, as inscrições para o preenchimento das vagas deixadas pelos acadêmicos Oyama Ituassu – Cadeira nº 26, de Rui Barbosa – e Anibal Beça – Cadeira nº 28, de Aníbal Teófilo.
Segundo o edital, “poderão inscrever-se brasileiros residentes no Amazonas há mais de 10 anos, ou que tenham desenvolvido aqui sua formação intelectual.” Os interessados devem encaminhar o pedido de inscrição, indicando a Cadeira desejada e anexando curriculum vitae documentado, bem como um exemplar de cada obra publicada – porque é indispensável que o candidato tenha pelo menos um livro publicado, não importando o gênero.
O prazo para as inscrições estende-se até o próximo dia 16 de setembro.
Mais informações, pelo telefone 3234-0584, ou pessoalmente, de 8 às 13h, na sede da AAL: rua Ramos Ferreira, nº 1009, Centro.
Um acadêmico nato
Rogel Samuel
Leio que Roberto Mendonça é candidato a uma vaga na Academia Amazonense de Letras. Ninguém melhor do que ele pode servir à Academia do que ele. Conheci-o há anos, na biblioteca da UFAM, em Manaus, na rua Ramos Ferreira. Ele já pesquisava os textos dos antigos acadêmicos: Ramayana de Chevalier, Genesino Braga etc. Ele sabia que eu fui o primeiro a colocar na Internet os autores daquela época de ouro da AAL: Álvaro Maia, Péricles Morais, João Leda. Ele sabia do meu gosto pelos autores amazonenses: André Araujo, Hemetério Cabrinha, Mavignier de Castro, João Nogueira da Mata, Pe. Nonato Pinheiro, Moacyr Rosas e tantos outros. Tivemos grandes prosadores, antes dos grandes poetas do Clube da Madrugada.
Mas um livro em particular logo nos uniu naquele dia: “Aparição do Clown”, de L. Ruas. Eu só tinha um xerox do livro, mas mesmo assim consegui colocar o livro no meu site, tempos depois.
Roberto Mendonça tem tudo para entrar na academia, vários livros importantes.
E, principalmente, amor pela literatura amazonense.
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domingo, 29 de agosto de 2010
sábado, 28 de agosto de 2010
sexta-feira, 27 de agosto de 2010
Todo tipo de absoluto indica patologia
As contradições, as afrontas, a desconfiança alegre, a zombaria são sempre sinais de saúde: todo tipo de absoluto indica patologia.
(Friedrich Nietzsche, in Além do bem e do mal - trad: Duda Machado)
Nietzsche, por Fernandes.
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quinta-feira, 26 de agosto de 2010
Arte e literatura de ficção – 1/2
Zemaria Pinto*
Comecemos por invocar o velho Aristóteles, para quem a natureza da arte é a imitação. A arte imita o real, reproduz as aparências da vida, os aspectos essenciais das coisas. O que distingue a arte é o meio e a forma escolhidos para a imitação. A arte que se manifesta através da escrita é a Literatura. Mas, perguntemo-nos, todo trabalho impresso é literário, ou seja, contém elementos estéticos que possam defini-lo como obra de arte?
Para os gregos, a beleza estava diretamente relacionada com o equilíbrio e a simetria, logo, o Belo, tanto no sentido estético quanto no sentido moral, as belas coisas e os bons sentimentos, era aquilo que deveria ser imitado, aquilo que deveria ser transformado em arte. A literatura dramática dos grandes autores gregos – Ésquilo, Sófocles e Eurípides – reflete esse pensamento, na medida em que a catarse do leitor/espectador realiza-se num crescendo, resultando num estado de purificação, em que o mal é banido, ainda que temporariamente, das almas.
Mas já dois mil e quinhentos anos são passados desde que esses senhores ditaram as normas e confirmaram as regras. E hoje, como identificar uma obra de arte literária? Roman Jakobson, pensador contemporâneo, criou o conceito de “literariedade” para identificar a obra de arte literária. Para ele o “objeto da análise literária não é a literatura, mas a literariedade, isto é, aquilo que torna determinada obra uma obra literária”. Ou uma obra de arte, eu completaria.
E o que seria, afinal, essa tal literariedade? Responde o próprio Jakobson: “é um desvio organizado na linguagem, uma violência organizada contra a fala comum”. “Um estranhamento”, diria um outro teórico, o russo Chklovski. Para simplificar, valhamo-nos de outro grande mestre da literatura deste século, o norte-americano Ezra Pound, para sintetizar tudo isso: “grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível”. Portanto, acautele-se: na literatura enquanto obra de arte, não cabem a mesmice, o besteirol, a futilidade.
A linguagem escrita é estruturada em signos que reinventam de maneira artística − imitam a partir de combinações estéticas − a linguagem falada, estabelecida, por sua vez, a partir do conhecimento que temos da língua. Daí a distância abissal entre a literatura oral e a literatura escrita, ramos totalmente distintos da cultura de qualquer povo, ainda que esta se abebere, aqui e ali, naquela. Clarice Lispector, que tinha ares de bruxa, mas era uma fada boazinha (ou vice-versa), botou o dedo na ferida: “só pode transgredir a linguagem quem tem domínio sobre ela”. Então ficamos assim: transgressão é domínio, o resto é gramática.
(*)Escrito e publicado (no Amazonas em tempo) ali pelos meados dos 90, do século passado, a partir das aulas de Teoria Literária, que resultariam, afinal, nO Texto Nu.
Ilustração: busto de Aristóteles, cópia do orignal de Lysippos, sec. IV a.C.
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Zemaria Pinto
quarta-feira, 25 de agosto de 2010
terça-feira, 24 de agosto de 2010
O estranho caso da Vila da Barra – 13
Marco Adolfs
– Até mais ver, senhor vereador – respondi, educadamente.
Quando aquele homem saiu do botequim, minha vontade era não encontrá-lo nunca mais pela frente. Por algum motivo não havia ido muito com seus modos e com sua figura afetada. E além do mais, eu mentira bastante para continuar me aproximando daquele sujeito. Poderia despertar desconfianças.
O dono da bodega havia colocado uns bancos toscos de madeira do lado de fora de seu estabelecimento e, sob a sombra de uma árvore frondosa, fiquei bebericando e observando o movimento das imediações. Na verdade, a única coisa que parecia se movimentar naquela cidade era o urubu. Uma profusão deles circulava no céu azul. E ao longe, o imenso rio, que passava caudaloso e enigmático. Uma coisa que também chamou minha atenção, naquele povo de tapuias circunspectos, foi a indumentária totalmente branca dos homens contrastando com o traje das mulheres, com suas camisas todas cheias de bordados e as saias em tecido xadrez. Estava absorto nessas imagens e em pensamentos sobre aquele lugar quando, às minhas costas, uma voz grave levou-me a prestar atenção no que dizia.
– O senhor precisa ver a festança do boi que vai passar aqui em frente, à noitinha.
– Hã!? Que festança? – perguntei de relance e percebendo que a voz pertencia ao dono da bodega.
– A comemoração ao santo do mês – explicou o homem.
– Santo?
– É! São João!
– Ah! Sim.
– Hoje à noite eles vão passar bem aqui em frente.
(Continua na próxima terça-feira)
segunda-feira, 23 de agosto de 2010
As sandálias do pescador
Xico Gruber
O escritor Morris West escreveu o romance homônimo a este texto, que, por insistência de minha então professora de Português Velina Berwanger, li em minha adolescência.
Isto aconteceu ás margens do caudaloso Rio Uruguai, na cachoeira onde o visionário Hubert Engel havia construído acomodações do seu tradicional Hotel Mauá, em Itapiranga-SC. Nos idos dos anos 70.
O livro trata da história de um jovem, sua vocação, caminhos e descaminhos da igreja. De sua luta, privações e pecados dentro da hierarquia da Igreja católica. Seu sentido em dedicar sua vida a Deus. De buscar no exemplo de Pedro com seu calçado típico de uma época em que pescava homens.
Mas, não quero escrever sobre o livro. É que hoje (domingo, 22/08/2010), logo cedo, calcei um par de sandálias e fui em direção à beira do rio Maués-Açu. Senti algo diferente ao pisar e percebi que as sandálias haviam se partido ao meio; tirei-as e fui jogá-las no lixo.
Ao fazer este gesto um turbilhão de lembranças encheu meus pensamentos. As sandálias haviam sido do Ademar IIº (meu filho), e uma semana após a sua morte, minha filha Sharon, num costume ancestral, distribuiu suas roupas entre amigos e conhecidos. Ficou com duas camisetas, deu-me uma camisa e as sandálias de plástico que ele tanto gostava.
Este gesto ingênuo e simples sempre nos deu satisfação e agradecimento. Sendo comum encontrar o Max, o Rui e tantos outros amigos do meu filho usando algo que dele era. Como também toda vez que calçava as sandálias mais um pouco dele andava comigo. Isto aliviava o coração, este sim pesado, cheio e dolorido.
Não consegui segurar as lágrimas. Uma dor lancinante, forte, sufocou os soluços. Sentei, olhei o rio ali perto, senti a insignificância de nossas vidas, da pequenez da ambição, da mesquinharia das coisas materiais, da efemeridade do poder.
Ele, jovem, uma vida toda pela frente, não quis envelhecer e foi servir ao Senhor, de uma forma bem mais trágica do que o personagem do livro acima citado.
Enquanto aquele enfrentou e viveu os assombros dos subterrâneos da Igreja, meu filho deixou sua juventude, num gesto de afirmação que tomou sua vida num acidente bobo, num ato infantil e que dói em todos nós até hoje.
É, nossos caminhos são sempre diferentes e únicos. Uns vêm, outros vão. Ninguém fica. Apenas o que se semear, plantando com amor e dedicação se colherá aqui. De lá ninguém voltou para nos dizer como é que é.
O personagem de Morris West e meu filho são pescadores. Que Deus nos ilumine. Que nos transforme a todos em pescadores de ideias, de transformações e benesses.
sábado, 21 de agosto de 2010
sexta-feira, 20 de agosto de 2010
El Perikiton cerra las puertas
Depois de mais de 20 anos de atividade, o restaurante El Perikiton encerrou suas atividades no último sábado, 14 de agosto. Dona Dulce e Seu Pedro resolveram se aposentar. Ponto de encontro de artistas e intelectuais, o El Perikiton vai deixar um vazio na vida boêmia da cidade.
Abaixo, alguns flagrantes da festa que deixou um travo amargo em cada um.
D. Dulce com a mascote do El Perikiton.
A atriz Koya Refkalefski e a quase-advogada Paloma Figueiredo.
Professores Doutores Allison Leão e Marcos Frederico Krüger.
(Foto censurada.)
Célio Cruz, cantor e compositor, e Edunira Assef, arquiteta.
Escritores Zemaria Pinto e Luiz Bacellar.
O ator Nonato Tavares e a mascote.
Lydia Lucia, produtora de TV.
Fotos e vídeo: Lydia Lucia.
quinta-feira, 19 de agosto de 2010
A cidade expressionista de Augusto dos Anjos: uma leitura de “Os doentes” – 3/3
Zemaria Pinto*
O último quadro reafirma o que já fora dito, a respeito da arte, pela Sombra, no poema citado. Lembremo-nos que ela representa o desconhecido, o inexplicado. Pois bem, “Os doentes” começa com uma afirmação do eu lírico de que “tentava compreender... as substâncias vivas” (p. 236) que a ciência não compreendia. Depois daquela experiência alucinante, ele reconhece-se vencido:
O inventário do que eu já tinha sido
Espantava. Restavam só de Augusto
A forma de um mamífero vetusto
E a cerebralidade de um vencido.
(p. 248)
Observe-se o eu lírico nomear-se como o próprio poeta. Mas não nos enganemos: as experiências do poema foram “vividas” por um personagem, que, insistentemente, chamei de eu lírico, e não de Augusto dos Anjos. Esse “Augusto” é o nome da máscara lírica do poeta, encerrando uma ironia, pois o significado do nome não guarda nenhuma analogia com o personagem, um “vencido”.
Em seguida, ele afirma o entendimento de que tudo aquilo que fora vivido com tanta intensidade à noite, como um sonho macabro, à luz do dia apresenta-se, sem quaisquer subterfúgios fantásticos, como a desagregação da humanidade, do modo que ele a via, para o surgimento de uma outra, inteiramente renovada e sem vícios:
A ruína vinha horrenda e deletéria
Do subsolo infeliz, vinha de dentro
Da matéria em fusão que ainda há no centro,
Para alcançar depois a periféria!
(...)
A doença era geral, tudo a extenuar-se
Estava. O Espaço abstrato que não morre
Cansara... O ar que, em colônias fluidas, corre,
Parecia também desagregar-se!
(p. 248-249)
“O gênio procriador da espécie eterna” falhara e falira. Mas o eu lírico, “uma sobrevivência de Sidarta”, o Buda, na “filogênese moderna”, isto é, na história da evolução das espécies, sente nascer-lhe n’alma, “o começo magnífico de um sonho”: uma “outra Humanidade”, composta pelos descendentes dos que não se deixam adoecer, dos que acreditam que “Contra a Arte, oh! Morte, em vão teu ódio exerces!” (p. 248-249):
Entre as formas decrépitas do povo,
Já batiam por cima dos estragos
A sensação e os movimentos vagos
Da célula inicial de um Cosmos novo!
O letargo larvário da cidade
Crescia. Igual a um parto, numa furna,
Vinha da original treva noturna,
O vagido de uma outra Humanidade!
(p. 249)
O itinerário percorrido na cidade retoma a clássica descida aos infernos, recorrente na literatura ocidental, desde Homero. Augusto dos Anjos descreve a cidade em nove quadros, tantos são os círculos do inferno dantesco. Um dos pontos-chaves do Expressionismo prega o aparecimento de um novo homem, que irá formar uma nova humanidade. O inferno descrito é a representação da decadência humana – a destruição do apodrecido para propiciar o surgimento do novo: um novo homem, uma nova humanidade, uma nova era. Claudia Cavalcanti observa que “o ‘novo homem’ ansiado pelos jovens expressionistas seria o indivíduo cuja ação era caracterizada por um rigor ético e filosófico e cujo objetivo de vida deveria ser marcado por um humanismo indiferente a classes sociais” (CAVALCANTI, 1995, p.15). Os jovens alemães já começavam a absorver o pensamento de Nietzsche, morto em 1900, que fora influenciado por Schopenhauer, filósofo dileto de Augusto dos Anjos. Não cabe neste espaço estabelecer esses nexos, mas há algo de Zaratustra em nosso autor:
Eu vos proponho o super-homem. O homem é algo que deve ser superado. O que fizestes para isso? (NIETZSCHE, 1991, P. 14)
A conclusão a se tirar deste magnífico poema beira a simplicidade: a evolução não tem limites e aplica-se a todos os campos da experiência humana, por isso os vencidos serão sempre substituídos, não exatamente pelos vencedores, mas pelos mais fortes. E essa força não é física: antes, é moral. São os que se deixam vencer pelos vícios e pelas próprias fraquezas, são os incapazes de lutar que fazem parte dessa humanidade doente. Mesmos os humilhados, os derrotados fisicamente (como os índios e os negros, na concepção de Augusto dos Anjos), podem redimir-se pela luta, mostrando que são, moralmente, eticamente, superiores aos seus algozes – estes, sim, doentes.
Entretanto, o “cientificismo” de Augusto dos Anjos, aqui representado pelo evolucionismo, é apenas uma leitura possível, mas óbvia e desgastada. Retomando a observação de Rosenfeld, constatamos que “Os doentes” se enquadra naquela tradição fundada por Baudelaire, que promove o intercâmbio entre as excludentes representações mentais de multitude e solitude (HYDE, 1999, p. 275-277, apud BENJAMIN, 1970). O poeta é um solitário na multidão. Mas Augusto dos Anjos vai além, desenvolvendo processos expressionistas, que ele certamente não conhecia, para criar “uma poesia moderna da vida urbana, da guerra, da política visionária e radical, retratando a cidade como um lugar de loucura e deserdamento, mas oferecendo a promessa de uma nova energia, antes reprimida, a crescer dentro de si” (SHEPPARD, 1999, p. 313). Esta afirmativa sobre o poeta alemão Georg Trakl – um dos autores citados por Rosenfeld como paradigmas de Augusto dos Anjos – se enquadra com perfeição na leitura de “Os doentes”.
O Expressionismo jamais se constituiu como uma escola ou um movimento organizado. Antes, é uma visão de mundo. Foi um título adotado, no princípio do século XX, inicialmente, por pintores, que não aceitavam mais as limitações do Impressionismo. Na literatura, o termo foi usado pela primeira vez em 1911, na Alemanha, onde, mesmo sem um programa e sem lideranças, registram-se três fases históricas distintas, cobrindo um período que vai até pouco depois da I Guerra, evoluindo, ou seria melhor dizer evolando-se, para o Dadaísmo e para o Surrealismo. Viktor Zmegac, comentando a poesia alemã da época, nos fala, indiretamente, de Augusto dos Anjos:
O entusiasmo patético dos expressionistas por tudo o que leve o carimbo do sofrimento humano não conhece limites e, no vocabulário, quaisquer elementos-tabu; tudo o que até então era considerado feio, nojento, proibido, alcança, no protesto da nova poesia, um sentido artístico, é parte do grito por “imediatismo”. (...) Na visão expressionista da vida, as cenas repugnantes da podridão, da violência e da morte são parte indissociável da realidade. Vivenciá-las significa, para os expressionistas, sair da indiferença socialmente regulamentada, significa vivenciar a realidade mais profunda e completamente. (CAVALCANTI, 2000, p. 26, apud ZMEGAC, 1993, p. 275)
Potencializar a realidade externa, transfigurando-a, deformando-a para muito além dos paradigmas naturalistas ou impressionistas, foi a forma de expressão encontrada por Augusto dos Anjos para construir um arcabouço poético que fosse muito além da mediocridade da vida cotidiana. Nem demente, nem neurótico ou satânico – nem sequer esquisito. O aristocrata rural falido, advogado fracassado e provinciano professor, moldou para si uma máscara, fundida na filosofia de Schopenhauer, na poesia de Baudelaire e, sobretudo, num espírito crítico aguçado, atento às transformações pelas quais passava o país, de um estágio secularmente rural para uma industrialização lenta, mas avassaladora. A poesia de Augusto dos Anjos, conscientemente, registra a entrada do Brasil nesse território nebuloso chamado modernidade.
REFERÊNCIAS
ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Organização, fixação do texto e notas: Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. Tradução: Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
CAVALCANTI, Claudia. A literatura expressionista alemã. São Paulo: Ática, 1995.
___________. Em busca do êxtase. In: Poesia expressionista alemã: uma antologia. Organização e tradução: Claudia Cavalcanti. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Tradução: Vera da Costa e Silva et al. 2. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. Tradução: Marise M. Curioni. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1991.
HYDE, G. M. A poesia da cidade. In: BRADBURY, Malcolm; McFARLANE, James (Org.). Modernismo: guia geral 1890-1930. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
NIETZSCHE, Friedrich. O prólogo de Zaratustra. In: HÉBER-SUFRIN, Pierre. O “Zaratustra” de Nietzsche. Tradução: Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
ROSENFELD, Anatol. Texto/Contexto I. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.
SHEPPARD, Richard. O expressionismo alemão. In: BRADBURY, Malcolm; McFARLANE, James (Org.). Modernismo: guia geral 1890-1930. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
___________. A poesia expressionista alemã. In: BRADBURY, Malcolm; McFARLANE, James (Org.). Modernismo: guia geral 1890-1930. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
(*) Íntegra da comunicação apresentada no congresso IX Jornadas Andinas de Literatura Latino-Americana (JALLA Brasil 2010), relizado em Niterói, entre 02 e 06.08.2010, dentro do simpósio América Latina em desplazamiento: entre a tradução e a tradição literária.
quarta-feira, 18 de agosto de 2010
terça-feira, 17 de agosto de 2010
Meus 80 anos
Jorge Tufic
Há dias, fui surpreendido com um convite do José Telles para ser homenageado no Ideal Clube de Fortaleza, tendo em vista a data de 13 de agosto, quando deveria comemorar os meus oitenta anos de idade. Pensei, então, que fosse uma simples cortesia da Sexta Literária, que ocorre todas as semanas no Clube, e não a festa de onde venho, hoje, carregado de tantos presentes que me foram entregues pelos nobres amigos e escritores Lustosa da Costa, Juarez Leitão, João Soares Neto, Régis Frota e tantos outros.
Tudo começa pelo Menu à Jorge Tufic, com belíssimo prefácio de José Telles, Entrada, Guarnição, Prato principal e Sobremesa. Em seguida, ao calor do afeto de João Soares Neto, recebo exemplares do jornal O Estado, e, vejam só! com artigo de rodapé assinado pelo próprio JSN, sob o título JORGE TUFIC, OITENTANOS. E os telefonemas não param: Ministro Ubiratan Aguiar, Lucio Alcântara, Robério Braga, entre muitos outros, inclusive esta CANÇÃO PARA UM RAPAZ DE OITENTA, do grande poeta continental Francisco Carvalho! Oxalá possa, e vou tentar, fazer o envio de toda essa fortuna sentimental e literária aos meus confrades do Brasil e do Exterior.
Ressaltem-se, ainda, o pôster intitulado Vate fenício, aliás pastor de ovelhas, de Luciano Maia, e a presença de inúmeras autoridades. Horas após este evento, o Chá do Armando, em Manaus, também se reunia com esse mesmo propósito, e eu estive ali, numa viagem espiritual sem precedentes, juntando-me aos queridos Armando Andrade de Menezes, Almir Diniz, Zemaria Pinto, Tenório Telles, Benayas, Simão Pessoa, Sérgio Luiz Pereira, Luiz Bacellar, e tantos outros.
Afinal, aqui registro mais um fato inusitado que, de tempos em tempos, acontece em nossas vidas: trata-se da surpresa que nos colhe, assim de repente, e acaba por mudar os nossos hábitos, mas não para sempre. A partir dos noventa, os ciclos etários ficam mais na expectativa da morte, e vão, assim, reduzindo as despesas com a festa dos parabéns.
Obrigado, amigos!
O estranho caso da Vila da Barra – 12
Marco Adolfs
– Saudações de minha parte, Carlos Costa! – resolveu apresentar-se o homem. – Sou vereador da vila e fico satisfeito quando mais um vem aportar em tão pobre e distante cidade. E o senhor, qual é o seu nome e de onde vens?
– Eurico Pompéia e venho diretamente da Corte – respondi, num rompante.
O homem abriu um largo sorriso de surpresa, e exclamou:
– Vens da Corte! Então deves ter muita coisa para contar.
– Creio que sim. – respondi.
– Sobre o Pedro, por exemplo. – continuou. – Como está se saindo aquele pobre menino com as badernas? – perguntou.
– O Araújo Lima está com a corda no pescoço – respondi-lhe jocosamente. – A Assembléia Nacional está tentando antecipar sua maioridade – continuei. E essa idéia parece ter o apoio de todos os políticos da Corte. Eles acham que só um imperador, mesmo que com apenas quatorze anos, mas no poder, acabará de vez com todas essas revoltas nas províncias.
O vereador concordou.
– Mas a propósito, o senhor disse que vende drogas? – perguntou.
– É isto mesmo, doutor.
– Interessante! – comentou o vereador, com uma ponta de satisfação exposta no sorriso largo que abriu. – Saiba que não temos nenhuma casa de vendas de unguentos e drogas em nossa vila – observou. Estamos entregues a curandeiros.
– É, eu bem o sei; por isso estou sondando o local onde abrir essa casa – afirmei com tanta convicção que até acreditei em minha mentira.
– Excelente! – exclamou o vereador. E continuou: – Se quiseres, posso arranjar-lhe a casa perfeita para manteres esse tipo de negócio. Fica quase ao lado da Câmara.
– É mesmo!?
– A casa é de minha propriedade – disse o velhaco, enquanto tomava um gole de vinho. – Venha ter comigo em minha residência e conversaremos melhor – continuou. Moro numa travessa que passa logo aqui atrás do palácio dos governadores. Um pouco mais adiante da provedoria. Toda a cidade conhece onde fica o palácio. É só perguntar e lhe indicarão. Minha casa é a de número dois. Amanhã lhe esperarei para conversarmos sobre esse seu negócio.
E despediu-se.
– Até mais ver, senhor vereador – respondi, educadamente.
(Continua na próxima terça)
segunda-feira, 16 de agosto de 2010
Carmen Novoa Silva lança novo livro
O lançamento do livro Um Pai Chamado Elias, da escritora Carmen Novoa Silva, acontecerá dia 19 de agosto (quinta-feira), às 19h30, no Salão de Eventos do Edifício Raimar Aguiar (Av. Joaquim Nabuco, nº 1.919, Centro de Manaus).
domingo, 15 de agosto de 2010
O reencontro
Xico Gruber
Final de tarde do Domingo. De mãos dadas, andamos em direção ao Mercado Municipal. Florianópolis, ao final do dia, é linda. De onde estava, avistava as cores da Ponte Hercílio Luz começaando a iluminar a noite.
Olho para as mesas espalhadas nas calçadas e a vejo. Empalideço. Meu coração tem uma parada repentina. Tremo. Minha esposa percebe algo diferente e pergunta:
– O que foi? Estás Bem? O que aconteceu?
Tento falar, mas minha voz está embargada. Pigarreio. Respiro fundo e consigo responder:
– Quanto tempo. Trinta anos e volto a vê-la...
– Ver quem? Do que você está falando? – Pergunta-me ela com um ar desconfiado.
Ela está linda. O tempo foi justo, a vida não. Ela conversa com um amigo, ainda não me viu. Nova respirada e, refeito, respondo:
– A cidade. Eu não me lembrava o quando era bonita neste horário. Olha lá o pessoal! – Emendo rapidamente e aponto para uma mesa.
Nos voltamos. Aceno e somos notados. Chegamos mais perto, João se levanta, Madalena também, os outros apenas observam.
Cumprimento João, que me abraça. Minha esposa fica um passo atrás, embaraçada. Volto-me, e antes de me dirigir á Madalena, digo:
– Ei gente, esta é a minha esposa.
Todos a saúdam. Dou um passo desajeitado. Pego na mão de Madalena. Um leve tremor percorre nossos corpos. Sinto a sinergia. Olho em seus olhos, ela os abaixa. Levo meu rosto para perto do dela para os beijinhos de saudação. Ambos estamos titubeando. Nervosos, desconfiados. Seu perfume é o mesmo e me inebria. Um leve toque e voltamos no tempo.
João me cutuca, dizendo alegremente:
– Ei! Tá bom, tá bom. Vocês dois parecem namorados que não se vêem há muito tempo...
Parece saber que é isto que ela e eu estamos sentindo. Rimos nervosamente. Nos olhamos. Milhões de palavras estão nesta troca de olhares. Nos acalmamos. Sentamos. A vida passa num piscar de olhos. O coração volta ao toque normal. Estamos felizes por nos vermos mais uma vez. Pode até ser a última... Valeu a pena o reencontro. Nada mais nos interessa. Somos dois adolescentes cinquentões que a vida separou. Construímos famílias e vivemos momentos distintos, distantes, separadamente. Mas, lá no fundo, cada um de nós esperava este reencontro. Passamos nossa vida a limpo. Rimos alegremente de momentos passados. Choramos os momentos difíceis, de rumos diferentes, e ao final, na despedida, a certeza de que, mesmo separados, nossas almas sempre estiveram juntas. É muito bom o sentimento do amor, mesmo que interrompido. Na viagem de volta venho mais leve. O coração mais solto. Uma saudade menor. Valeu a pena! Ufa! Que bom.
sábado, 14 de agosto de 2010
sexta-feira, 13 de agosto de 2010
Jorge Tufic faz oitent’anos
.
Os cabelos negros como as asas da graúna e o bom humor constante não denunciam os 80 anos do poeta Jorge Tufic. Neste 13 de agosto, sexta-feira, chutando o balde do azar, fazemos uma singela homenagem ao Turco, em oito flagrantes recentes.
Salve, Jorge!
Posando de matador para o José Farias.
Clicados pelo Luisão, da Confraria do Peixe: Tufic, Mauri Marques, Zemaria Pinto e Luiz Bacellar.
Com o saudoso Anisio Mello, colocando a mordaça no melhor amigo do homem, o cachorro engarrafado, como dizia o Vinicius, no Chá do Armando.
Foto: Mauri Marques.
Com Luiz Bacellar, fazendo pose de sério em frente à vetusta Academia Amazonense de Letras.
Foto: Mauri Marques.
Ao lado do amigo Almir Diniz, em sessão de autógrafos.
Foto: Mauri Marques.
Praticando o seu terceiro esporte favorito: colocando um ovo em pé.
Foto: Mauri Marques.
Emoldurando, com o auxilio luxuoso do poeta e artista plástico José Maciel, a escritora Sarah Rodrigues, na posse desta na Academia de Letras do Pará.
Posando para a posteridade com uma bronzeada Rachel de Queiroz, em Fortaleza.
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Zemaria Pinto
quinta-feira, 12 de agosto de 2010
A cidade expressionista de Augusto dos Anjos: uma leitura de “Os doentes” – 2/3
Zemaria Pinto*
No quarto quadro, sob uma chuva que “Encharcava os buracos das feridas / Alagava a medula dos doentes” (p. 239), o eu lírico comenta o destino dos indígenas do continente americano. A atualidade desses versos é um alívio a quem já deve estar saturado de ouvir falar em “descobrimento”:
Aturdia-me a tétrica miragem
De que, naquele instante, no Amazonas,
Fedia, entregue a vísceras glutonas,
A carcaça esquecida de um selvagem.
A civilização entrou na taba
Em que ele estava. O gênio de Colombo
Manchou de opróbrios a alma do mazombo,
Cuspiu na cova do morubixaba!
(p. 240)
Falamos tanto em Cabral, enquanto Augusto dos Anjos põe o dedo na ferida: foi Colombo, herói do romântico Castro Alves, o primeiro a aportar nas terras do continente americano e a matar e a saquear e a humilhar. Os índios estão também doentes, porque não existem enquanto cidadãos. E Augusto dos Anjos escreveu isto há quase 100 anos!:
E sentia-se pior que um vagabundo
Microcéfalo vil que a espécie encerra,
Desterrado na sua própria terra,
Diminuído na crônica do mundo!
A hereditariedade dessa pecha
Seguiria seus filhos. Dora em diante
Seu povo tombaria agonizante
Na luta da espingarda contra a flecha!
(p. 240-241)
No quinto quadro, a angústia atinge um paroxismo tal que o eu lírico identifica-se com a podridão que o cerca e quer absorvê-la para, assim, tentar anulá-la, numa grotesca eucaristia:
Naquela angústia absurda e tragicômica
Eu chorava, rolando sobre o lixo,
Com a contorção neurótica de um bicho
Que ingeriu 30 gramas de noz-vômica.
E, como um homem doido que se enforca,
Tentava, na terráquea superfície,
Consubstanciar-me todo com a imundície,
Confundir-me com aquela coisa porca!
(p. 242)
Essa imagem, que serviria para reforçar as análises que viam em Augusto dos Anjos um caso patológico, e em sua poesia, manifestações blasfemas, apenas confirma o viés expressionista adotado, ainda que não com esse nome, pelo autor. Richard Sheppard, comentando a poesia de Gottfried Benn, Georg Heym, Jakob van Hoddis e Alfred Lichtenstein (os dois primeiros citados por Rosenfeld), afirma que
Eram poetas de tons e perspectivas diversas, mas unidos numa visão comum – uma visão essencialmente expressionista das forças demoníacas reprimidas que lutavam para irromper e destruir a superfície aparentemente ordenada da cidade industrial. Seus versos são apocalípticos, cheios de imagens de contrastes e conflitos.
(SHEPPARD, 1999, p. 313)
Paradoxalmente, entretanto, após o reencontro com “a saudade inconsciente da monera”³, que havia sido sua “mãe antiga”, ele recobra a calma, mas não o equilíbrio, ao concluir:
Quando eu for misturar-me com as violetas,
Minha lira, maior que a Bíblia e a Fedra,
Reviverá, dando emoção à pedra,
Na acústica de todos os planetas!
(p. 243)
No “Monólogo de uma Sombra”, esta já dissera que somente a Arte “abranda as rochas rígidas” (p. 199), por isso, em “Os doentes”, o eu lírico diz que, após sua morte, sua poesia “reviverá, dando emoção à pedra”, e será ouvida por todos. E ele acertou em cheio, tanto que estamos aqui, a dela nos ocupar. Quanto a ser maior que a Fedra,⁴a comparação não faz sentido, deixando a impressão de que ela entrou aí só para facilitar a rima com “pedra”. Agora, quanto à Bíblia, sem qualquer sectarismo de ordem religiosa, creditemos ao ambiente insano em que se encontrava o eu lírico. Não deixa de ser uma licença poética...
O sexto quadro mostra-nos os distantes “bairros da luxúria”, numa alusão à prostituição, explorada, àquela época, com a discrição possível, na periferia das cidades. A visão que se tem é cruel: mulheres doentes, física e moralmente, degradadas ao extremo. Mas elas são vítimas também, e isso não escapa à percepção do eu lírico:
Talvez tivésseis fome, e as mãos, embalde,
Estendestes ao mundo, até que, à-toa,
Fostes vender a virginal coroa
Ao primeiro bandido do arrabalde.
(p. 244)
O tempo passa, mas os problemas sociais, as feridas sociais, para usarmos a linguagem do nosso autor, continuam as mesmas. Às prostitutas, numa postura moralista, muito comum ao tempo, ele só vê redenção na morte, aqui simbolizada pelos ciprestes:
Prometem-vos (quem sabe?!) entre os ciprestes
Longe da mancebia dos alcouces,
Nas quietudes nirvânicas mais doces,
O noivado que em vida não tivestes!
(p. 244)
No sétimo quadro, o eu lírico vaga “atabalhoadamente pelos becos”, onde tudo lhe lembra morte, luto, ruína. Interrompe seus pensamentos o barulho produzido pelos bêbados da cidade, que, falando línguas estranhas, misturando gírias à língua enrolada dos bêbados, reúnem-se na “promiscuidade das adegas”:
E a ébria turba que escaras sujas masca,
À falta idiossincrásica de escrúpulo,
Absorvia com gáudio absinto, lúpulo
E outras substâncias tóxicas da tasca.
(p. 245)
Contrastando com a falsa alegria produzida pelos bêbados, surge, no ambiente fechado da taberna, um leproso, um morfético, que a norma culta recomenda, hoje, denominar hanseniano. Naquele corpo deformado pela doença, o eu lírico vê o reflexo de toda a humanidade. A imagem, terrivelmente bela, tangencia a blasfêmia; entretanto, detenhamo-nos no adjetivo “negra”, qualificando a eucaristia; ele inverte, ou melhor, subverte o sentido original da palavra sagrada. É, na verdade, se pensarmos nesses termos, uma manifestação demoníaca, para sensibilizar “aquele povo de demônios”, os bêbados.
O fácies do morfético assombrava!
– Aquilo era uma negra eucaristia,
Onde minh’alma inteira surpreendia
A Humanidade que se lamentava.
(p. 246)
O sonho do eu lírico personificava-se na figura daquele doente: um sonho “inchado, / já podre”, “palpável, / como se fosse um corpo organizado” (p. 246). Aquele doente, na sua notória deformação, é uma alegoria da própria poesia de Augusto dos Anjos: deformada, grotesca, expressionista, prenhe das lições de modernidade bebidas em Baudelaire:
Mas o conceito de modernidade de Baudelaire tem outro aspecto. É dissonante, faz do negativo, ao mesmo tempo, algo fascinador. O mísero, o decadente, o mau, o noturno, o artificial, oferecem matérias estimulantes que querem ser apreendidas poeticamente. Contêm mistérios que guiam a novos caminhos. Baudelaire perscruta um mistério no lixo das metrópoles: sua lírica mostra-o como brilho fosforescente.
(FRIEDRICH, 1991, p. 43)
O cemitério descrito no oitavo quadro é um pesadelo de imagens bizarras, dignas de um contemporâneo filme B:
Os defuntos então me ofereciam
Com as articulações das mãos inermes,
Num prato de hospital, cheio de vermes,
Todos os animais que apodreciam!
(p. 246-247)
Ao comparar o cemitério com um bulevar – “Dá-me a impressão de um boulevard que fede / pela degradação dos que o povoam” –, não podemos deixar de referir a ironia de que aquela novidade arquitetônica era o símbolo máximo da cidade moderna⁵.
No seu delírio, “afundado nos sonhos mais nefastos” (p. 246), o eu lírico não perde a consciência social, apontando a opressão à raça negra:
Eu maldizia o deus de mãos nefandas
Que, transgredindo a igualitária regra
Da Natureza, atira a raça negra
Ao contubérnio diário das quitandas!
(p. 247)
A referência comercial não é mais à escravidão, capítulo vergonhoso, já ultrapassado, mas sim à opressão sexual que as mulheres negras pobres sofrem. Duas quadras antes, ele escrevera:
E hirto, a camisa suada, a alma aos arrancos,
Vendo passar com as túnicas obscuras,
As escaveiradíssimas figuras
Das negras desonradas pelos brancos;
Pisando, como quem salta, entre fardos,
Nos corpos nus das moças hotentotes
Entregues, ao clarão de alguns archotes,
À sodomia indigna dos moscardos;
(p. 247)
Essa consciência social é pouco apontada em Augusto dos Anjos, reconhecidamente um conservador, do ponto de vista ideológico. Mas observe-se que, assim como em relação aos índios, o que poderia ser considerado um resquício romântico, também com relação às prostitutas e aos negros sua posição é muito clara. Infelizmente, e é preciso repetir isso diariamente, os versos de Augusto dos Anjos continuam cruelmente atuais, inclusive nas alusões à tuberculose e à hanseníase.
Ainda no oitavo quadro, dentro do cemitério, amanhece o dia, levando o eu lírico a “absorver a luz de fora” e a sentir o “prazer inédito / De quem possui um sol dentro de casa” (p. 248). Após explorar a cidade em ruínas, e conviver com as doenças – físicas e morais – mais terríveis, o desfecho não poderia ser outro senão, após o contato com a morte, receber a luz redentora do sol, ainda que sentindo “O odor cadaveroso dos destroços” (p. 248).
³ O Monismo formava, juntamente com o Positivismo, o Determinismo e o Evolucionismo, a base filosófica da Escola de Recife, que teve grande influência na poesia de Augusto dos Anjos.
⁴Tragédia do francês Racine, escrita no século XVII.
⁵ Comentando o poema em prosa “Os olhos dos pobres”, de Baudelaire – em que o poeta descreve uma cena em um café, “na esquina do novo bulevar, ainda atulhado de detritos, mas já mostrando seus infinitos esplendores” – Marshall Berman afirma que o “novo bulevar parisiense foi a mais espetacular inovação urbana do século XIX, decisivo ponto de partida para a modernização da cidade tradicional.” (BERMAN, 2007, p. 180)
(*) Íntegra da comunicação apresentada no congresso IX Jornadas Andinas de Literatura Latino-Americana (JALLA Brasil 2010), relizado em Niterói, entre 02 e 06.08.2010, dentro do simpósio América Latina em desplazamiento: entre a tradução e a tradição literária.
Obs: a bibliografia será publicada na terceira parte do texto, dia 19.08 próximo.
Obs: a bibliografia será publicada na terceira parte do texto, dia 19.08 próximo.
quarta-feira, 11 de agosto de 2010
terça-feira, 10 de agosto de 2010
segunda-feira, 9 de agosto de 2010
sábado, 7 de agosto de 2010
quinta-feira, 5 de agosto de 2010
A cidade expressionista de Augusto dos Anjos: uma leitura de “Os doentes” – 1/3
Zemaria Pinto*
Anatol Rosenfeld apontou, no ensaio A costela de prata de Augusto dos Anjos, de 1969, “coincidências notáveis” de processos expressionistas na poesia daquele autor, em relação a poetas alemães seus contemporâneos, ressalvando: “sem que se queira fazer de Augusto dos Anjos um expressionista (movimento do qual dificilmente pode ter tido notícia)” (ROSENFELD, 2006, p. 263-270). O poema “Os doentes” (ANJOS, 1994, p. 236-249) é, sem dúvida, um dos paradigmas expressionistas de Augusto dos Anjos. É nele que estão relacionados os “motivos” com os quais o poeta trabalha o tema predominante em sua obra, definido no poema de abertura do Eu, “Monólogo de uma Sombra” (ANJOS, 1994, p. 195-200): a degradação humana vista por uma estética da dor. Doenças, morte, cadáveres, cemitérios, micróbios, vermes – são recorrências que ilustram essa degradação física, metáfora para a degradação moral. O eu lírico descreve a paisagem noturna da “urbe natal do Desconsolo”¹ (p. 236), mas não de uma maneira objetiva, como seria esperado de um parnasiano; a cidade também não é um emaranhado de símbolos, como pensada por um simbolista. Augusto dos Anjos descreve a cidade deformando-a para além do visível: não com a razão naturalista, mas com uma dramaticidade fragmentada, desconexa e tangenciando o grotesco – características do Expressionismo, marca de boa parte dos poemas inseridos no Eu.
Observemos essas recorrências semeadas ao longo do livro: doenças, morte, cadáveres, cemitérios, micróbios, vermes. Para o leitor habitual de Augusto dos Anjos, nenhuma dessas palavras soa estranha; elas estão presentes a cada página do Eu. A sequência lógica que vai das doenças até os vermes é todo o processo de degradação física do ser humano. Ao homem são nenhuma daquelas palavras amedronta. Ao homem degradado, entretanto, elas são a metáfora do caminho percorrido, o caminho de um derrotado, de um vencido. Este é outro motivo assaz explorado por Augusto dos Anjos. É nas cidades, mais outro motivo, que esses vencidos se aglomeram, constituindo a grande massa da degradação humana. E observe-se ainda que, se uma situação leva à outra, podemos também vê-las aos pares: vencidos/cidades, doenças/morte, cadáveres/cemitérios, micróbios/vermes. Assim, o homem, vencido, um habitante das cidades decadentes, acometido de uma doença, sofre até a morte; o cadáver, naturalmente, será levado para o cemitério, onde será pasto para micróbios e vermes.
Dividido em nove quadros, “Os doentes” é o mais longo poema do único livro de Augusto dos Anjos, nos seus 438 versos. A estética da dor é potencializada ao máximo. O eu lírico passeia pela cidade, e o que ele vê? Doença. Doentes físicos e morais. Mas ele é um vencido, “coberto de desgraças”, que procura entender in loco o que nem seus mestres, “nem Spencer, nem Haeckel compreenderam”² :
Como uma cascavel que se enroscava
A cidade dos lázaros dormia...
(p. 236)
Registre-se a plasticidade desses versos, que abrem o poema. A cidade (qualquer cidade) recebe dois atributos que determinam sua forma em nosso imaginário: cascavel e lázaros. O primeiro vocábulo é um símbolo de veneno, traição e morte. O segundo, na acepção primitiva, significa leprosos, mas aqui ele se reporta ao personagem bíblico, simbolizando doenças incuráveis. A cidade dos doentes terminais dormia, como uma serpente, preparada para instilar sua peçonha nos incautos, contaminando-os, tornando-os lázaros também.
No segundo quadro do poema, o eu lírico contempla a paisagem noturna da cidade condenada. A noite apresenta-se calma, ainda que o vento, fantasmagórico e convulso, pareça entoar um “pseudosalmo”, uma falsa oração. Entretanto, sobre os “centros nervosos” do eu lírico, caíam
Como os pingos ardentes de cem velas
O uivo desenganado das cadelas
E o gemido dos homens bexigosos.
(p. 236-237)
E se em “As cismas do destino”, o luar era “da cor de um doente de icterícia” (p. 215), aqui o céu noturno é comparável “a uma epiderme cheia de sarampos!” (p. 237). Ambas as imagens nos fazem pensar em uma paisagem doentia, o que as relacionam diretamente com a ideia de que “o sujeito lírico vê diante de si um mundo inteiramente dilacerado” (CAVALCANTI, 1995, p. 39), resultante de uma poética que lança mão do caricatural, do grotesco e de um humor tão ácido, que nem chega a despertar a graça. Uma paisagem expressionista.
O terceiro quadro mostra o eu lírico entre tuberculosos, reunidos “pela camaradagem da moléstia”:
Falar somente uma linguagem rouca,
Um português cansado e incompreensível,
Vomitar o pulmão na noite horrível
Em que se deita sangue pela boca!
Expulsar, aos bocados, a existência
Numa bacia autômata de barro,
Alucinado, vendo em cada escarro
O retrato da própria consciência!
(p. 238-239)
Ao descrever o sofrimento físico daquele grupo, o eu lírico identifica-se com ele, refletindo que qualquer tentativa de expressão verbal é
Sentir como que a ponta de uma faca,
Cortando as raízes do último vocábulo!
(p. 239)
¹Todas as citações de Augusto dos Anjos têm uma mesma fonte, mencionada nas Referências. Deste ponto em diante, citarei apenas as páginas onde as mesmas se encontram.
²Herbert Spencer (1820-1903), filósofo inglês, antecipou Darwin na formulação da lei da evolução, estendendo-a a todos os campos da experiência humana. Ernest Haeckel (1834-1919), filósofo alemão, foi o principal divulgador do Monismo, doutrina que prega que o conjunto dos fatos, lógicos ou físicos, pode ser reduzido à unidade – a monera.
(*) Íntegra da comunicação apresentada no congresso IX Jornadas Andinas de Literatura Latino-Americana (JALLA Brasil 2010), relizado em Niterói, entre 02 e 06.08.2010, dentro do simpósio América Latina em desplazamiento: entre a tradução e a tradição literária.
Obs: a bibliografia será publicada na terceira parte do texto, dia 19.08 próximo.
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