Jorge Bandeira
João Denys é um dos principais dramaturgos do Nordeste, do Brasil. O autor, diretor e professor potiguar, radicado em Pernambuco, legou para nosso teatro
Deus danado e
Encruzilhada Hamlet, marcos incontestáveis do Teatro feito em nosso país. Agora temos
Flores d’América, dirigido por Daniel Mazzaro, que teve estreia nacional no Teatro Amazonas, no 7º Festival de Teatro da Amazônia. O texto de João Denys é de 2005, quando venceu o cobiçado prêmio “Hermilo Borba Filho” de dramaturgia, do Recife.
Os temas que se destacam nessa história bem elaborada e encenada são aqueles do mormaço sertanejo, o cangaço, a dura peleja das mulheres, a religião que encobre tudo, e escamoteia tantas outras coisas. A protagonista desse drama sagaz é Dona América, uma mulher destemida e ousada, que viu filhos morrendo e que luta pela dignidade das filhas Soledade e Das Dores, onde o criador dramatúrgico inspira-se na linguagem popular e no cordel para florear seu texto de uma riqueza vocabular extraordinária. É, antes de tudo, uma lição para todos do cabedal de termos e adjetivos que se constituem numa cosmogonia da vida nordestina, uma literatura de alto valor antropológico. O texto já seria importante só por este elemento, mas vai além com uma montagem permeada de ousadias, de um calibre cênico tão forte quanto as armas sertanejas de Dona América.
A velha América, calejada pela vida e cotidiano implacável é o que conhecemos como carola, uma católica que preenche sua calejada vida com as santificações, com os quadros de imagens sagradas, com os terços e rosários, que devota sua vida, em primeiríssima instância, aos deveres dessa devoção. América é fruto direto da tradição ibérica, de uma religião católica carregada de catolicismo, mas que possui um “charme” histórico que nenhuma vertente do protestantismo consegue alcançar, pois os condicionantes milenares deste culto católico está impregnado em nossa memória, sejamos ou não católicos. É este Brasil mítico de que trata a peça de João Denys, e ele, sabiamente, busca amparo na visão genial de Federico Garcia Lorca para ter suas criaturas de cena no patamar digno da esfera shakespeariana, algo que já fez com primor com sua
Encruzilhada Hamlet.
O coro que percorre e costura todas as cenas garante o relevo cômico do espetáculo, aliviando a tensão do drama, valorizando a cena subsequente. E nisso tudo, nessa costura eterna protagonizada pela atuação vívida de Socorro Andrade, uma tradição literária nos é brindada no palco iluminado pela boa direção de Mazzaro: o Realismo Fantástico, nas idas e vindas da história, entre o real e o imaginário, onde a verdade é feita da e pela boca dos personagens, em especial da própria América e de suas filhas dissimuladas e emuladas ao cataclisma do cinismo e da possessão.
A força do ritual e seus desvios entre o sagrado e o profano é outro achado magistral dessa dramaturgia tão máscula e vigorosa, sem dúvida uma das mais vinculadas ao universo do nordestino, pelo poder de comunicação, pela capacidade de colocar em cena a fabulosa tradição oral e das narrativas fabulares do repente, do cordel e dos contadores de história. O espaço cênico é um lugar sagrado, mas que é democraticamente profano, com atos coletivos de celebração, seja nas orações, nos cortejos do coro ou no novenário.
O cenário é a projeção de um certo desbotamento dos elementos da religião opressora, mas que não se desprende tão facilmente de seus adeptos, é da cor da terra, de um fauvismo, de uma elaboração de
naif estigmatizado como as chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, diria Dona América. É o triunfo do kitsch cristão, dos quadros de Nossa Senhora, do Sagrado Coração. De um tempo que se cristalizou, por isso o relógio sem ponteiros, parado, centralizado no meio do palco, aprisionando aos personagens em sua “hora eterna”.
A direção de Mazzaro, nesta estreia, conseguiu levar seus atores e atrizes ao desencadear das situações de sacralidade e profanidade, de uma teogonia satírica, o que a afasta de um Milagre, pois as santificações todas são meros exemplos para a superação via Realismo Fantástico, e é nessa Macondo nordestina que adentramos, espectadores cientes do jogo, que emociona e acalenta, que nos assoberba, mas que também nos bate com a palmatória. A atuação de todos os agentes cênicos foi orgânica, com alguns deslizes no texto, numa estreia compreensíveis, e todos fizeram um trabalho de interpretação emoldurando a atuação de Socorro Andrade dos “socorros” que a protagonista precisou, o que fez de sua performance algo bom de se apreciar.
Confesso que no início achei que a voz de Socorro Andrade não aguentaria o jorro de clamor do personagem, num rebento de histerismo vocal que pensei que afetaria a voz da atriz. Enganei-me, pois Socorro Andrade manteve, ao longo do espetáculo, sua voz audível, sem enfraquecer sua atuação. A maquiagem de Jonatas Sales também foi precisa nesse trabalho, sem carregar em demasia as faces, e o trabalho de sonoplastia de Leonel Worton fez com que as passagens sonoras fluíssem naturalmente, destaco as partes incidentais mais intimistas, onde a sensação de estar num local calmo e tranquilo logo em seguida era quebrado pelas situações de conflito tão bem engendradas pelo dramaturgo, e nisso, nesse contraste, a sonoplastia teve seu mérito. O figurino, assinado por Sibele Gomes, captou as essências da atmosfera do texto, com seus mantos e roupas ensolarados, de um traje que carregava, em si, o peso de uma situação desconfortável. E aqui vou falar da nudez das irmãs, da naturalidade tão brilhantemente alcançada pelas duas atrizes, que em nenhum momento deixaram suas dignidades cair por terra. Foi uma cena linda, com lindas mulheres nuas, mas não aquela nudez feita para o deleite dos leitores de revista masculina, mas a nudez como arte, a nudez em seu aparato naturista, natural. Com este espetáculo, Daniel Mazzaro insere, definitivamente, a nudez num patamar cênico que há tanto tempo ela merecia, pois estamos no Amazonas, onde essa tradição cultural indígena raramente é posta em cena com tanto despojamento, tanta coragem. E o público compreendeu perfeitamente o valor intrínseco dessa nudez, e se divertiu com a situação das duas irmãs nuas, armadas e vestidas de pele, que saem, naturalmente nuas, pelo corredor iluminado do Teatro Amazonas. Um marco de nossa cena para não esquecermos. Apelativo? Jamais, da maneira precisa com que Mazzaro o fez, trata-se de arte de alto quilate, e aplaudo as atrizes por esse pacto sincero de seus corpos com a proposta do espetáculo. O público viu naquela nudez natural um vínculo perdido com a naturalidade do corpo, sem apelações, sem segundas intenções, e por ter a verdade cênica frente a seus olhos, não esqueceu a trama para ver apenas as atrizes nuas. Tudo transcorreu naqueles minutos de nudez total, na mais santificada paz dos sentidos estéticos. Ponto para a direção.
A face de Dona América é calejada, e ela tem sua fortaleza em sua religião ancestral, ela se refugia em seu santuário, com as bênçãos do “Padim Ciço”, com sua idolatria amada, seu coração e sua mente são vias sacras de sua existência, de suas dores e decepções. A trama de sua pretensa morte é feita de forma brilhante por João Denys, são diversas e variadas visões, visagens da tradição oral, envolvendo a mitificação, as lendas rurais de um distante nordeste perdido no tempo de nossas memórias, o mito e seu poder de convencimento e uma tradição oral que representa a história do nordeste.
O uso de planos alternados no cenário demonstra que a ritualização foi pensada em nível cênico nos moldes dos altares sacros, sendo essa visão perceptível ao público no formato de palco italiano. O eterno girar dos pedais das máquinas de costura, de uma urdidura que jamais cessa, de um trabalho de Sísifo na tradição de Albert Camus, esse absurdo existencial, são outras referências que destaco, além, obviamente, da shakespeariana projeção das três mulheres numa imagística de suas imagens figurativas. É o grotesco em cena, e seu vínculo com a morte, onde a cabeça degolada de Dona América foi alvo de um sem número de situações, até ser costurada pela própria. É o cataclismo do caos e do absurdo, onde o jogo mágico e surreal ganha ares de obra-prima.
As costureiras cosem seus infortúnios, jogando suas mandingas e maldições, num círculo interminável de trapaças, de desvios de conduta, de profanidades, fugindo da severidade cristã medieval de Dona América, a matriarca, a mãe da cruzada cristã contra as inutilidades do mundo físico. A linguagem nordestina em sua dignidade “além TV Globo”, não colocando aqueles sotaques animalescos tão comuns pelos novelistas, é outro mérito da direção e do trabalho interpretativo do elenco. A força da palavra é exatamente não ser caricatural, pois as circunstâncias cênicas já apontam para essas aleivosias, e o excelente texto de João Denys é o principal mote para o funcionamento desse Teatro.
Por conveniência estilística estaciono aqui esta escrita crítica de
Flores d’América, estou na metade de minhas considerações sobre a peça bem orquestrada e dirigida, numa estreia com os erros naturais de uma estreia, mas erros que não redundaram em prejuízos da encenação. Muita coisa anotei, vou continuar, com certeza, este pensar crítico sobre um trabalho de alta magnitude dramatúrgica, belo e perspicaz, que só eleva a nossa tradição nortista e nordestina na História do Teatro feito no Brasil. Merda a todos! Parabéns ao elenco.
Manaus, 17 de outubro de 2010. Encerramento do 7º Festival de Teatro da Amazônia.