Leonardo de Magalhaens
Uma das questões que ameaçam a universalidade das Poéticas é a segmentação de mercado – por faixa etária, gêneros ou rendimentos – quando um determinado público é 'alvejado' por um determinado grupo de autore/a/s, que pretendem 'fidelizar' os consumidores, digo, os leitores.
Assim, surgem as literaturas infanto-juvenis, as poesias para crianças, ou para 'terceira idade', ou então criam uma poesia mística (que encontramos nas prateleiras de 'auto-ajuda'), para melhor agradar ao público – isto é, melhor segmentar os 'públicos-alvo' do Mercado voraz e insaciável. Criaram uma poesia religiosa, mas também uma poesia erótica, ou poesia para mulheres, ou poesia para rebeldes de plantão. Assim, perde-se uma 'universalidade' que poderia englobar vários leitores, para enfim possibilitar uma real comunicação.
Esses 'nichos de mercado' sempre atraem com facilidades. Iguais aos grupos de 'redes de relacionamento na internet' segmentados em 'comunidades' de gostos/estéticas semelhantes, para reverenciarem autores semelhantes e cultivarem interesses (de consumo, principalmente) semelhantes. Assim, vários já escrevem para um 'determinado público' e esquecem que a Poesia não é apenas para X ou Y, mas para a comunicação (se possível for...) entre X e Y.
Não faz sentido falar de uma poesia para mulheres, ou para homens, ou para homossexuais, ou para heterossexuais, ou para religiosos, ou para materialistas, ou para punks, ou para neo-hippies, etc., pois estes 'públicos-alvo' ou 'segmentações de mercado' não passam de 'compartimentos estanques' que se auto-referenciam e giram no vazio. É como se cada grupo falasse uma 'língua' diversa. O que lembra muito o 'discurso acadêmico' que só é falado por acadêmicos e entendido por acadêmicos.
Não me interessam segmentações. Daí que eu não escreva para 'acadêmicos'. A minha escrita pretende fugir dos muros da faculdade – lugar onde um monte de acadêmicos escrevem para outros tantos acadêmicos, desprezando um tal 'senso comum' e queimando incenso uns para os outros. Tal qual aqueles bons velhinhos no chazinho das cinco horas na Academia Brasileira de Letras (ABL), trocando gentilezas e elogios afáveis, em autoglorificações, julgando-se 'imortais'. A minha crítica pretende dialogar. Infelizmente, poucos concedem um minuto de atenção.
Tudo isso é para apresentar uma Antologia de Autores organizada por uma poeta de expressão feminina e feminista, Tânia Diniz, com militância de 20 anos em movimentos sociais e culturais, que recentemente abriu espaço no seio da Poesia Feminina para a Poética dos 'meninos'. Claro que antes eu devia até pensar que “Mulheres Emergentes” era outra 'segmentação de mercado', onde autoras escrevem para um 'público feminino', um “clube da Luluzinha”. Com esta iniciativa, a Mulheres Emergentes derruba todas as dúvidas e desconfianças.
Na
Antologia Meninos ME encontramos toda uma diversidade de estilos e autores, onde destacamos, de pronto, os nomes de Ronaldo Zenha, Sérgio Bernardo, Lucas Guimaraens, Zemaria Pinto e Lucas Viriato. Intelectuais, profissionais liberais, parentes de poetas famosos, exemplificam uma diversidade de Escrita que marca a Literatura pós-anos 60, a chamada 'pós-modernidade'. Nenhum foco, ou discurso, ou 'movimento vanguardista', mas uma multiplicidade de discursos 'atirando pra todo lado'.
Muita intertextualidade e metalinguagem. O que não faz um curso de Letras? Lucas Viriato, jovem intelectual pretende 'dialogar' com Julia Kristeva (que pretendia 'dialogar' com Bakhtin, cultuado pelos nossos queridos professores). Eis o poema “Efeito Kristeva” (p. 33),
o centro move-se com o sujeito,
Não há verdade absoluta.
E
A intertextualidade
É mais do que a aceitação dos limites humanos
E o fim de suas pretensões metafísicas,
Ela é a chave para uma nova consciência,
Uma nova metafísica.
O 'dialogismo' de Bakhtin hoje é ferramenta-de-mil-e-uma-utilidades (H. Bloom que o diga...) e o excesso de metalinguagem da poesia 'pós-moderna' é uma prova clara desta 'síndrome da influência' (explico: prefiro 'síndrome' a 'angústia', pois ressalta algo doentio, enfermiço) que contamina os autores sem nada a dizer (então falam sobre o ato de escrever).
Temos ao lado a tradição. O acadêmico Lucas Guimaraens, bisneto do poeta-ícone do Simbolismo mineiro Alphonsus de Guimaraens (que muito me influenciou no meu
debut poético, não é sem razão que eu grafo 'de magalhaens'!), aqui compartilha conosco nove peças de sua autoria. Há todo um diáĺogo com a tradição decadentista, que pode ser resumida com versos tais, “Os poentes sepulcrais do extremo desengano / Vão enchendo de luto as paredes vazias, / E velam para sempre o seu olhar humano.” (in
Kiriale, 1902)
Diálogo que se apresenta em “Alphonsus de Guimaraens Filho” (p. 24) quando o autor vai folhear a obra do avô,
folheio seus livros e páginas dissolvem
no palpar de meus dedos como doce em minha boca
seus poemas osmoticamente não são mais matéria,
estão em mim eu os vivo e me torno mais humano.
Os poemas vivem homem vivem humanizando
Referências aos nomes ícones da tradição modernista – João Cabral de Melo Neto, os Andrades, Mário e Oswald – mostrando que o próprio 'modernismo' foi 'diálogo' com outras vanguardas – ou 'antropofagia', como preferia o exaltado Oswald.
(ao francês explico que nordeste se encontra entre vida e
morte, mas João Cabral não é traduzível).
Em São Paulo chão é asfalto de pau
de arara.
Mário, Oswald,
de onde veio esta força em piadas
se trânsito não permite atropelar realidade?
(“São Paulo”, p. 27)
Como todo bom intelectual, adepto de 'dialogismos' e 'interdisciplinaridades', o poeta aqui usando Foucault para ficar 'em cima do muro', pois na moda intelectual hoje em dia é assim: nem Sartre, nem R. Aron, nem Fidel nem Tatcher, 'nem direita nem esquerda', mas 'democrata', 'terceira via', 'centrão'. Claro, vamos admitir, hoje todo mundo é 'democrata'... Terroristas e torturadores abraçados, em lágrimas, sob a flâmula da Democracia...
Foucaultidianamente
nem esquerda nem direita
dar voz às vozes
(“Foucaultidianamente”, p. 28)
Realmente não se pode confiar nos intelectuais. São capazes de destruir qualquer Conceito (logo após terem acabado de inventar o mesmíssimo!) A desconstrução da Linguagem é outra das 'balizas' pós-modernas, com estruturalismos e desconstrutivismos (pesquisem na Wikipédia, please...) pululando nas Cátedras. Tem filosofias e filósofos para Metafísica nenhuma reclamar. Um excesso de Metáforas para a Existência – desde que dê lucro para alguém (ou corporação, claro).
Daí as Palavras já não terem muito valor. Banalizadas, vão cair nos dicionários e enciclopédias, vão importunar os estudantes de Etimologia e Gramática Tradicional. Afinal, usamos e abusamos de 'palavras alheias' para representar os nossos (catalogados) sentimentos,
Nem palavras.
Apenas sentimentos de palavras
alheias: troco dos avessos
dos vazios homens que angustiam
no ar impossiblidade factual de ser o outro.
(p. 29)
Vivemos desconfiando da Linguagem desde Nietzsche e Wittgenstein, vivemos com 'a pulga atrás da orelha' com a impossibilidade de alcançar a Verdade, porque a Filosofia se faz com Palavras – e a Palavra mente, falseia, engana. Mas o poeta não pode deixar de poetizar as polêmicas filosóficas, assim como o filósofo 'estetiza' a liberdade (“ah, liberdade quantos crimes se cometem em teu nome!”, disse a madame diante da guilhotina) lidando com os frutos do “galho da sabedoria” e sempre “ruminando limites nas verdades” (p. 31), para ceder espaço a mais um pouco de intertextualidade, com as velhas referências (como poderíamos esquecer o nosso guru CDA?)
No rumo de casa José colheu a rosa no asfalto.
Imediatamente rosto em lágrimas
braço trôpego alcançou
seu desejo insaciadamente beijado.
(“Passagem”, p. 32)
Assim o desastrado gauche José de “E agora, José?” pula fora do poema e vai colher a flor de “A Flor e a Náusea” onde uma flor (mesmo que feia) vem romper o asfalto do cotidiano e propiciar a 'epifania' ou o 'insight' poético.
Adiante. Os três poemas de Ronaldo Zenha (Boa Esperança/MG) – pp. 43-45 – variam entre o simbólico e o político, o imagético e o saudosismo, quando o poeta recorre ao 'fraseado' de slogans políticos (o que mais lembra algo do tipo: “A liberdade venceu a violência” ou “A justiça venceu o escárnio” ou ainda “A coragem venceu o medo”?), numa leitura que parece irônica – mas então lançamos o olhar à dupla dedicatória “ao povo de Betim / a Maria do Carmo Lara” - e de repente o poeta pode estar falando śerio?! Mas uma leitura séria deste poema coloca em dúvida a sanidade mental do Eu-Lírico (para não dizer do Poeta, e correr o risco de ser processado...) Tive a infelicidade de viver em Betim, de 2003 a 2008, e não tenho saudades. Período posterior ao da citada prefeita, que retornou recentemente. Uma política de cima para baixo, 'trabalhista' ou não, não resolve nada. O povo betinense é despolitizado como qualquer outro. Vive na pobreza, num dos municípios de maior arrecadação no Estado!
O poema “jacumã” é para se ouvir ao som de rock progressivo (pelo menos eu ouvi assim...) e é um convite à viagem. Tal qual um bom rock viajante faz a gente se abstrair da realidade do 'asfalto cotidiano' – numa experiência semelhante aquela de ler os Arcadistas nos prados e colinas de Ouro Preto ao entardecer – num momento de 'lirismo enquanto escapismo'. Daí as imagens do interior/sertão idealizado.
O vento e a chuva, a lavar a alma dos viajantes que passam
por uma interminável vereda.
Navego por esse mar de montanhas, naufragando meus olhos
na mais pura e límpida gargalhada de amor.
e finaliza
São os vales do meu Sertão que me fazem assim...
jacumã das embarcações aladas...
colibri do mato, horizonte aberto...
(p. 45)
leiam também de Ronaldo Zenha:
http://www.tanto.com.br/ronaldozenha-navegar.htm
Folheando, encontramos o interessante poema em prosa (ou prosa poética) “Atrasa o trem na estação de Bergen” de Sérgio Bernardo, onde a narrativa vai tecendo e entretecendo sensações – coisa de poesia! – e apresentando um acontecimento, delineando uma estória – coisa de prosa! – não igual a um romance, mas lembrando aqueles contos da Clarice Lispector, que o/a leitor/a precisa 'ir montando', recriando nas sequências da leitura, a reconstruir um fato disperso em fragmentos textuais.
A estação está vazia, apenas o bilheteiro por trás das grades cochilando como o gato a seus pés. Silêncio de chumbo. O vento e a chuva açoitam.
As personagens se materializam em palavras e névoas, solicitam atenção, até pensamos num passado tenebroso – e deparamos com um futuro angustiante. Nada direi mais para não embaraçar o prazer (ou desprazer) da leitura.
mais textos de Sérgio Bernardo nos links
http://raizdemandragora.zip.net/
http://www.jornalpoiesis.com/mambo/index.php?option=com_content&task=view&id=293&Itemid=2
http://www.jornalpoiesis.com/mambo/index.php?option=com_content&task=view&id=283&Itemid=2
Após tantas páginas de diálogo com a tradição, temos o contraponto. Do mais criativo poeta de nossa geração aqui encontramos apenas um poema – e inexpressivo – enquanto sabemos que Wilmar Silva/Joaquim Palmeira tem uma Obra que ofusca totalmente todas as antologias em que tem participado (e até aquelas que ele tem organizado – com exceto de PORTUGUESIA, onde os seus poemas não causam efeito). Um único poema de “Estilhaços no Lago de Púrpura” ou um fragmento 'não-soneto' de “Cachaprego” (recentemente musicado!*) geraria mais 'massa crítica' do que meia dúzia de antologias iguais a esta (com todo o respeito pela iniciativa desta antologia! O critério ressaltado seria : vanguarda/inovação/nova linguagem).
*Ouçam o enebriante “Musicacha”, da parceria WS com o músico Gilberto Mauro,
http://www.myspace.com/gilbertomauro)
Finalizando, algumas considerações sobre os poemas de Zemaria Pinto (Manaus/AM). Além do vocabulário e das imagens, é destaque o conhecimento/a sensibilidade para os recursos sonoros. É Poesia é para ser lida em voz alta, declamada. “Poesia Sonora” soa como redundância (a menos para quem ache que 'Poesia Concreta' seja mesmo Poesia e não Artes Plásticas...) A exploração (no bom sentido) do som de cada palavra – não apenas aliterações, assonâncias, rimas e métricas – mas a posição das palavras, ou o uso de verbos no particípio na função de adjetivo, detalhes que reativam as palavras enquanto 'coisa' (=som) mais do que 'símbolo' (=ideia)
anêmicas cançonetas
sonetos ossificados
noturnos anoitecidos
baladas banalizadas
delírios delituosos
(“A casa perscrutada – escrivaninha”, p. 54)
Não apenas a escrivaninha é 'perscrutada', mas também a coleção de livros brochuras calhamaços alfarrábios a qual damos o nome singelo de 'biblioteca',
as chamas aprisionadas
entre as páginas dos livros
são metáforas perenes
imagem, símbolo, mito
semeadura de paixões
fronteiras com o infinito
(“A casa perscrutada – biblioteca”, p. 55)
e a 'devassa' continua pelo 'quarto das meninas', p. 56, onde o Eu-Lírico masculino se depara com o universo (des)velado do Imaginário feminino (não é necessário dizer que a mulher será sempre um enigma para o homem, e Freud que o diga...):
embora fixa no espaço
a câmara provisória
se transporta pelo tempo
em múltiplas dimensões
mulheres que um dia foram
em crianças se revelam
(“A casa perscrutada – quarto das meninas”)
A busca certamente continua, se ainda não verbalizada/escrita pelo Autor, certamente reempreendida pelo/a Leitor/a, que vai sair pela casa, a percorrer cômodos e aposentos, exumando lembranças e registrando inventários para ressituar a existência de 'coisa' pensante no meio de outras 'coisas' pensantes ou não.
Mais sobre o Autor Zemaria Pinto no blog
http://ofingidor2008.blogspot.com/ (também para quem aprecia pintura clássica...!)
Assim, elevando nossas desculpas aos que não foram citados (ah, os que ficam nas sombras, rangendo os dentes...!) vamos passar o fecho neste ensaio breve sobre a
Antologia Meninos ME (Mulheres Emergentes), e passar ao dicionário de español-português para lermos as traduções hispânicas da obra-prima “Estilhaços no Lago de Púrpura”. Quem viver, lerá.
Mar/10
Antologia Meninos ME
(Mulheres Emergentes / Anome Livros / 2009)
organizada pela poeta Tânia Diniz
Mais sobre Leonardo de Magalhaens:
http://leoleituraescrita.blogspot.com/
http://desencontrosgrafados.blogspot.com/