Amigos do Fingidor

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

A poesia é necessária?

 

O poema abaixo foi escrito em 1966, em plena ditadura militar. O voto fora usurpado ao povo. Hoje, tem muita gente com saudades desse tempo. Mas, o voto é nossa arma para que as trevas não voltem, jamais.

 

 

A canção do amor armado

Thiago de Mello (1926-2022)

 

 

 

Vinha a manhã no vento do verão,

e de repente aconteceu.

Melhor

é não contar quem foi nem como foi,

porque outra história vem, que vai ficar.

Foi hoje e foi aqui, no chão da pátria,

onde o voto, secreto como o beijo

no começo do amor, e universal

como o pássaro voando — sempre o voto

era um direito e era um dever sagrado.

 

De repente deixou de ser sagrado,

de repente deixou de ser direito,

de repente deixou de ser, o voto.

Deixou de ser completamente tudo.

Deixou de ser encontro e ser caminho,

deixou de ser dever e de ser cívico,

deixou de ser apaixonado e belo

e deixou de ser arma — de ser a arma,

porque o voto deixou de ser do povo.

 

Deixou de ser do povo e não sucede,

e não sucedeu nada, porém nada?

 

De repente não sucede.

Ninguém sabe nunca o tempo

que o povo tem de cantar.

Mas canta mesmo é no fim.

Só porque não tem mais voto,

o povo não é por isso

que vai deixar de cantar,

nem vai deixar de ser povo.

 

Pode ter perdido o voto,

que era sua arma e poder.

Mas não perdeu seu dever

nem seu direito de povo,

que é o de ter sempre sua arma,

sempre ao alcance da mão.

 

De canto e de paz é o povo,

quando tem arma que guarda

a alegria do seu pão.

Se não é mais a do voto,

que foi tirada à traição,

outra há de ser, e qual seja

não custa o povo a saber,

ninguém nunca sabe o tempo

que o povo tem de chegar.

 

O povo sabe, eu não sei.

Sei somente que é um dever,

somente sei que é um direito.

Agora sim que é sagrado:

cada qual tenha sua arma

para quando a vez chegar

de defender, mais que a vida,

a canção dentro da vida,

para defender a chama

de liberdade acendida

no fundo do coração.

 

Cada qual que tenha a sua,

qualquer arma, nem que seja

algo assim leve e inocente

como este poema em que canta

voz de povo — um simples canto

de amor.

Mas de amor armado.

 

Que é o mesmo amor. Só que agora

que não tem voto, amor canta

no tom que seja preciso

sempre que for na defesa

do seu direito de amar.

 

O povo, não é por isso

que vai deixar de cantar.

 

Rio, 6 de fevereiro, 1966



terça-feira, 27 de setembro de 2022

Na fotografia, o importante é o olhar

Pedro Lucas Lindoso

 

Muitos jovens de hoje não sabem o que é secretária eletrônica. Trata-se de um dispositivo para responder automaticamente chamadas telefônicas de fixos e gravar mensagens. Com os celulares ficaram dispensáveis.

E os aparelhos de fax? Eles reproduziam exatamente a edição original de documentos. Eram utilizados para transferência remota desses documentos, via rede telefônica fixa. Com e-mail e celular também caiu em desuso.

Outra coisa que eu pensava ter caído em desuso era a máquina fotográfica analógica. Mas não! Há muitas pessoas que ainda tiram fotos com filmes! Meu amigo sergipano-brasiliense Guilherme Carvalho é um desses aficionados pela fotografia analógica.

Soube disso porque Guilherme me encomendou cartuchos de filmes a serem comprados nos Estados Unidos. Lá é bem mais barato, mesmo com o dólar caro. Guilherme já comprou por 30 reais uma caixa com cinco filmes. Hoje, só um filme custa 50 reais.

Guilherme reconhece a importância da fotografia digital. Inclusive adquiriu uma máquina digital que é usada por sua filha. Ele me  explica que a fotografia digital está sendo praticada com sucesso  por profissionais e jornalistas. Contudo, Guilherme fotografa por diletantismo. E não abre mão do prazer em fotografar como antigamente.

Segundo meu dileto amigo, fotografar no método analógico é muito mais poético. Exige do fotógrafo muito mais sensibilidade. A foto analógica é diferente da digital. Nesta você pode tirar dezenas de fotos em determinada situação. Naquela você tem que ter mais cuidado. Não se pode errar. Não se pode ir gastando filme à toa. Explica-me que a poesia está em captar o momento certo. Aquela hora H.

Existe alguma dificuldade em encontrar o filme e são poucos os lugares para revelação. Mas há o prazer em levar para revelar. Conversar com o técnico e solicitar determinada tonalidade. A foto pode ficar mais clara ou mais escura. A foto digital corta esse caminho. Inviabiliza essa escolha que para Guilherme é um acalento.

Sebastião Salgado, em entrevista na TV, foi questionado sobre todo o universo da fotografia. Tipos de câmeras, fotografia analógica e digital. Métodos de revelação. Filtros e novas tecnologias.  Ao final, o grande fotógrafo disse que o mais importante não lhe tinha sido perguntado. Salgado ressaltou que a máquina e toda a tecnologia são importantes. Mas, o mais importante é o olho, o olhar. Não adianta nada toda a tecnologia do mundo se você não tiver essa sensibilidade. O importante na fotografia é o olhar do fotógrafo.

 

domingo, 25 de setembro de 2022

Manaus, amor e memória DLXXXVI


Atualmente Instituto Benjamin Constant, já foi asilo de meninas órfãs e sede do
Jardim Botânico, criado, por ordem imperial, por João Barbosa Rodrigues, em 1883.  

 

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Um ponto em comum com o Bacellar

Hiram Lopes 


Luiz Bacellar,

nosso poeta,

nascido e falecido em

 dois setembros

 

 A curiosidade com certeza é um dos motivos que movem a humanidade na construção das civilizações. Diariamente somos instigados por eventos que nos aguçam o interesse em conhecer melhor o que ocorre no mundo.

Certa vez encontrei um amigo que é muito religioso e na rápida conversa que mantivemos ele mencionou que estava lendo o livro Cidade Antiga. Estava entusiasmado com a leitura pois o livro relatava a origem das religiões. Fiquei interessado, mas não o suficiente para procurar ler o livro e o assunto caiu no esquecimento.

Alguns meses depois encontrei em uma sala de espera um juiz direito que havia sido meu colega de trabalho. Estava lendo justamente o livro Cidade Antiga e puxei conversa sobre isso. Ele relatou que estava fazendo um mestrado e o livro fazia parte do programa porque relatava a origem do Direito relacionado à propriedade privada.

Pronto, claro que fiquei extremamente interessado nesse livro que possui vieses de diferentes interesses. Comprei um exemplar e comecei a ler imediatamente. O livro foi escrito por um historiador francês no final do século XIX e inaugurou um novo método de estudar a história da Grécia e Roma antigas, baseado na literatura produzida por essas civilizações.

Em resumo, restringindo-me aos dois temas de interesses de meus amigos, o que teria acontecido no início era que os antigos povos que deram origem aos gregos acreditavam que as pessoas ao morrerem passavam a habitar um mundo espiritual paralelo de onde poderiam ajudar os que continuavam vivos. Eram considerados santos.  Para isso precisavam ser cultuados e lembrados permanentemente. Os corpos eram enterrados com cerimônias dentro das terras de propriedade do clã, que eram então consideradas sagradas e não pertenciam àquela família então vivente, mas sim a todos os ancestrais já falecidos, os santos.

Eram criados altares dentro das habitações para cultuar e celebrar esses santos familiares. Uma chama ficava permanentemente acesa em sinal da dedicação eterna. Bebidas e alimentos eram oferecidos aos santos. Cada família tinha seus próprios cânticos, preces e ritos, embora cultuassem crenças comuns relacionadas à origem do mundo e à moral e costumes.

Aconteceu que o progresso encontrou obstáculos nessas crenças porque não era possível abrir estradas, criar prédios, ou dar outro uso para essas terras porque todos as consideravam sagradas. Logo a situação tornou-se muito incômoda e a inquietação tomou conta de todos. Mas alguém bastante sábio, vendo a necessidade de mudança, sugeriu a criação de terras comuns onde os restos mortais dos santos seriam transladados, dando origem aos cemitérios. Com isso foi possível a venda, a troca, a doação, a invasão, a desapropriação dessas propriedades. Pode-se imaginar que toda essa atividade com certeza gerou atritos e injustiças, dando início assim à criação de leis específicas. Foi esta a origem do Direito relacionado à propriedade privada.

Por outro lado, com o distanciamento das famílias das sepulturas dos seus santos, houve progressivamente uma frouxidão nos laços dessas crenças familiares e uma predominância das crenças comuns trazendo mais força às religiões universais. Foi esta então a origem das religiões.

Eu estava entusiasmado com a leitura do livro. Era como se fosse uma epifania. Comecei a comentar com os familiares que ficaram inicialmente interessados, mas logo as preocupações domésticas desviavam a atenção e o interesse desaparecia. Conversava com os colegas de trabalho, mas eles pareciam estranhar meu interesse por um assunto tão extemporâneo. Não viam muita conexão com o dia a dia.

Enquanto continuava a leitura do livro me sentia cada vez mais envolvido naquelas revelações. Ficava absorto tentando identificar nos dias de hoje vestígios daqueles tempos. Me lembrei que os jornalistas muitas vezes chamam os cemitérios de Campo Santo. Quanto mais me envolvia na leitura mais me sentia só. Um tipo de solidão não de todo ruim, mas que incomodava um pouco.

Aconteceu de ir, na hora do almoço, a uma agência bancária que fica em um dos shoppings da cidade. Após resolver o problema na agência, fui até uma lanchonete com ares árabes, sentei em uma mesa de quatro lugares e pedi dois quibes.

Logo chegou o Bacellar e sentou na cadeira diametralmente oposta à minha.

– Vou sentar aqui para um não atrapalhar o outro.

Quem o conheceu pode imaginar a entonação da frase. Foi como se Sua Majestade não tivesse outra opção e logo estabelecia as fronteiras entre as partes. Eu já havia conversado com ele outras vezes, mas sempre acreditei que não se lembrava de mim e nem sabia meu nome. Ele me parecia sempre inibidor.

Fiquei um pouco atônito e percebi um tanto envergonhado que tinha perdido a presença de espírito. Então me lembrei de súbito que meu espírito estava voltado para as leituras e falei:

– Estou lendo o livro Cidade Antiga.

Fiz um breve resumo da temática e esperei ele falar.

A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges. Um livro fundamental. Todo mundo deveria ler. Já li duas vezes. Em francês.

Me senti no momento aliviado daquele sentimento de solidão, um tanto agradável confesso, que me acometia. Logo, um orgulho juvenil me encheu o peito: tenho algo em comum com o poeta.

Hoje quando bebo uma cachacinha sempre verto um pouco no chão.

– Para o meu santo Bacellar.

Luiz Bacellar em dois momentos.
Fonte: https://www.amazonamazonia.com.br/



quinta-feira, 22 de setembro de 2022

A poesia é necessária?

 

Hino ao crítico

Vladimir Maiakovski (1893-1930)


Da paixão de um cocheiro e de uma lavadeira
Tagarela, nasceu um rebento raquítico.
Filho não é bagulho, não se atira na lixeira.
A mãe chorou e o batizou: crítico.

O pai, recordando sua progenitura,
Vivia a contestar os maternais direitos.
Com tais boas maneiras e tal compostura
Defendia o menino do pendor à sarjeta.

Assim como o vigia cantava a cozinheira,
A mãe cantava, a lavar calça e calção.
Dela o garoto herdou o cheiro de sujeira
E a arte de penetrar fácil e sem sabão.

Quando cresceu, do tamanho de um bastão,
Sardas na cara como um prato de cogumelos,
Lançaram-no, com um leve golpe de joelho,
À rua, para tornar-se um cidadão.

Será preciso muito para ele sair da fralda?
Um pedaço de pano, calças e um embornal.
Com o nariz grácil como um vintém por lauda
Ele cheirou o céu afável do jornal.

E em certa propriedade um certo magnata
Ouviu uma batida suavíssima na aldrava,
E logo o crítico, da teta das palavras
Ordenhou as calças, o pão e uma gravata.

Já vestido e calçado, é fácil fazer pouco
Dos jogos rebuscados dos jovens que pesquisam,
E pensar: quanto a estes, ao menos, é preciso
Mordiscar-lhes de leve os tornozelos loucos.

Mas se se infiltra na rede jornalística
Algo sobre a grandeza de Púchkin ou Dante,
Parece que apodrece ante a nossa vista
Um enorme lacaio, balofo e bajulante.

Quando, por fim, no jubileu do centenário,
Acordares em meio ao fumo funerário,
Verás brilhar na cigarreira-souvenir o
Seu nome em caixa alta, mais alvo do que um lírio.

Escritores, há muitos. Juntem um milhar.
E ergamos em Nice um asilo para os críticos.
Vocês pensam que é mole viver a enxaguar
A nossa roupa branca nos artigos?

 

(Trad. Augusto de Campos e Boris Schnaiderman)

 

 

terça-feira, 20 de setembro de 2022

A energia da rainha

Pedro Lucas Lindoso

 

Elizabeth II visitou o Brasil em 1968. Na época eu era um garoto de 11 anos de idade. Estudava em Brasília no projeto educacional Escola Parque e Escola Classe, elaborado pelo educador baiano Anísio Teixeira.

Estava programado que a Rainha visitaria a Escola Parque, onde eu era aluno. Por algum motivo a soberana inglesa foi para o Jardim da Infância da Escola Classe próxima a nossa Escola Parque. E, claro, todos nós corremos para vê-la passar acenando para o povo, como de costume. Um alvoroço total.

À noite houve um baile no Palácio do Itamaraty oferecido pelo Governo Brasileiro. Meu saudoso pai, José Lindoso, à época destacado parlamentar pelo Amazonas, foi convidado. Lembro-me de minha mãe, muito bonita. Ela usou um vestido longo azul. Feito especialmente para a ocasião.

O assunto entre os adultos era como fazer corretamente a reverência ao encontrar-se com a rainha. Para as mulheres, se faz uma pequena reverência ao encontrar a monarca, enquanto para os homens, apenas um gesto com a cabeça é o suficiente.

Houve muitos comentários sobre a visita de Elisabeth II ao Brasil. Um alpinista social brasiliense teria comprado por 2 mil dólares, de um funcionário do Itamaraty, um convite para o baile.

O Príncipe Philip sempre foi atlético e bem apessoado. Hoje as moças diriam que ele era um “gato”. Naquela época a gíria para homens bonitos era “pão”. A esposa de uma grande autoridade da época teria dito ao Príncipe: “You are a bread”. Sua Alteza obviamente não entendeu nada.

No Rio de Janeiro a Rainha foi levada até o Morro da Mangueira. As manchetes dos jornais diziam que a Rainha da Inglaterra visitava Mangueira, a Rainha do samba.  

Quando a capital era no Rio de Janeiro, a Embaixada Britânica ficava num belíssimo prédio, de estilo georgiano, localizado na Rua São Clemente, em Botafogo. Com a mudança para Brasília o imóvel foi vendido nos anos 1970. Hoje funciona o Palácio da Cidade da Prefeitura do Rio. A Rainha esteve no Brasil em 1968. A nossa capital já era Brasília. O Palacete da São Clemente ainda abrigava o Consulado Britânico no Rio. Elisabeth II se hospedou por lá quando da sua estada na Cidade Maravilhosa. A equipe de segurança estranhou a conta de energia elétrica apresentada pela “Light” ao Governo de sua Majestade. Detectou-se a existência do que nós chamamos jocosamente de “gato”.

Algum carioca esperto roubou a “energia” da Rainha. Descanse em paz, Majestade.

 

domingo, 18 de setembro de 2022

Manaus, amor e memória DLXXXV

 

Rua 7 de Setembro, antiga Rua Municipal. 
À esquerda, a praça da Polícia; à direita, o Colégio Estadual Pedro II.

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Cecília Meireles e o devaneio surrealista em Viagem

 Zemaria Pinto

 

Escrito a partir da exposição feita no programa Leituras Compartilhadas, produzido por Dílson Lages Monteiro, sobre o livro A espiral crítica, de Peron Rios.

 

Minha participação centra-se no ensaio “Cecília Meireles: confissão e impostura”, do livro A espiral crítica, do professor Peron Rios.[1] Minha proposta é fazer um contraponto ao ensaio citado, mas não de cunho crítico, divergente; muito pelo contrário: o ensaio de Peron Rios é instigante, muito vivo em termos de reflexão, e, o que é mais importante, muito bem fundamentado. Mas, considerando o aspecto pedagógico desta discussão, e conscientes, todos nós, de que a obra de arte – e a poesia, em particular – tem múltiplas possibilidades de leituras e mesmo múltiplos significados, farei uma leitura complementar do poema “Canção”, de Cecília Meireles (1901-1964), utilizando alguns fundamentos usados no ensaio em contraponto, buscando ampliar a polifonia crítica da obra da poeta.

O poema em tela está no livro Viagem, publicado em 1939, vencedor do prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras, no ano anterior. É o primeiro livro reconhecido pela autora, posto que cinco livros publicados entre 1919 e 1937 não foram reeditados e nem relacionados pela autora na primeira edição de sua Obra Poética, em 1958, dirigida por Afrânio Coutinho.[2] A publicação da Poesia Completa em dois volumes, festejando o centenário de nascimento da autora, organizada por Antonio Carlos Secchin, traz à luz não só esses textos esquecidos, mas outros cinco, datados do mesmo intervalo, jamais publicados antes.[3]

O primeiro ponto a discutir é a presença da música na poesia de Cecília Meireles. São muitos os poemas chamados “Canção” ou “Cantiga” – com ou sem adjetivo. Outros poemas evocam a música, como “Agitato”, “Berceuse”, “Noturno”, “Balada”, “Serenata”. Um de seus livros anteriores à Viagem chama-se Cânticos (1927). Outros títulos relacionados à música: Vaga Música (1942), Doze Noturnos de Holanda (1952), Pequeno Oratório de Santa Clara (1955), Canções (1956) e Oratório de Santa Maria Egipcíaca (1996, escrito em 1957).   

O livro Viagem é repleto de referências à música. Vejamos alguns títulos de poemas: “Música”, “Serenata” (dois títulos), “A última cantiga”, “Canção” (três títulos), “Cantiguinha”, “Guitarra”, “Valsa”, “Noturno” (dois títulos), “Cantiga” (três títulos) e “Cantar”.

Mas a música não está só nos títulos, ela está entranhada nos poemas, como podemos ver nestas amostras:

 

Pousa sobre esses espetáculos infatigáveis

uma sonora ou silenciosa canção:

flor do espírito, desinteressada e efêmera.

(“Epigrama n° 1”)

 

Toca essa música de seda, frouxa e trêmula,

 que apenas embala a noite e balança as estrelas noutro mar.

(“Anunciação”)

 

E aqui estou cantando.

 

Um poeta é sempre irmão do vento e da água:

deixa seu ritmo por onde passa.

(“Discurso”)

 

Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:

não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.

(“Aceitação”)

 

Que música embala a minha música que te embala?

(“Desamparo”)

 

Viagem foi publicado em Lisboa e é dedicado “A meus amigos portugueses”. Peron Rios lembra, no seu ensaio, que “as canções são uma herança da poesia portuguesa, mais precisamente das cantigas de amigo, nas quais as mulheres lamentavam clandestinamente suas perdas amorosas” (p. 214).

Está em Viagem o poema mais popular de Cecília Meireles: “Motivo”, sua poética pessoal, que é uma reafirmação da música em sua obra.   

 

Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.

 

Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.

 

Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço,

– não sei, não sei. Não sei se fico

ou passo.

 

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

– mais nada.

  

Na sequência, vamos ler o poema “Canção”, objeto da análise de Peron Rios, no ensaio “Cecília Meireles: confissão e impostura”, lembrando que, como o livro tem três poemas com o mesmo título, vamos nos referir a ele, considerando a sequência do livro, como “Canção I”.

 

Pus o meu sonho num navio

e o navio em cima do mar;

– depois, abri o mar com as mãos,

para o meu sonho naufragar.

 

Minhas mãos ainda estão molhadas

do azul das ondas entreabertas,

e a cor que escorre de meus dedos

colore as areias desertas.

 

O vento vem vindo de longe,

a noite se curva de frio;

debaixo da água vai morrendo

meu sonho, dentro de um navio...

 

Chorarei quanto for preciso,

para fazer com que o mar cresça,

e o meu navio chegue ao fundo

e o meu sonho desapareça.

 

Depois, tudo estará perfeito:

praia lisa, águas ordenadas,

meus olhos secos como pedras

e as minhas duas mãos quebradas.

 

A classificação mais comum à poesia de Cecília Meireles tem sido um vago Neossimbolismo, inserido no Modernismo. A sua Poética, “Motivo”, é uma afirmação do domínio que o eu empírico tem sobre sua poesia: a poesia do instante tornado em canção – e até emudecer, ele assevera que “não sou alegre nem sou triste; (...) não sinto gozo nem tormento; (...) não sei se fico ou passo”. Se o poeta cabe nessa definição, concluímos pela racionalidade de sua criação. Isso é um patamar acima do Simbolismo, mesmo pespegado do prefixo “neo” – inclusive com relação à musicalidade: sua harmonia é dissonante. Peron Rios explica isso, referindo-se ao poema “Canção I”:

 

Nessa canção, apesar do metro fixar-se em oito unidades silábicas, o ritmo oscila, pois a cadência se alterna entre as várias sílabas do verso. Essa constância ondulatória, somada aos sons de maciez em todo o texto, não destoa do barco ao balanço do mar, ou do que ele, mar, significa. A música não contradiz a imagem. E nem o pensamento: afinal, a melancolia é essa calma aparente, como o azul do mar é ardiloso. A placidez da superfície esconde uma turbulência discreta, um mundo de criaturas por debaixo se rivalizando sem cessar. (p. 216)

 

Se a música é dissonante, o que dizer das imagens produzidas pelo poema? Abstraindo-se que a estrutura do poema é a soma de ritmo e melodia, mais imagens e ideias (“a dança do intelecto entre as palavras”, como pregava Pound), Peron Rios, referindo-se à “Canção I”, diz que “existe no poema uma afinidade subliminar entre o eu e o sonho” (p. 217). E, de fato, na “Canção III” há um paralelo intertextual com a primeira canção:

 

No desequilíbrio dos mares,

as proas giraram sozinhas...

(...)

Quando as ondas te carregaram,

meus olhos, entre águas e areias,

cegaram como os das estátuas,

a tudo quanto existe alheias.

 

Minhas mãos pararam sobre o ar

e endureceram junto ao vento,

e perderam a cor que tinham

e a lembrança do movimento.

 

O primeiro poema começa com o mar em desequilíbrio (“– depois, abri o mar com as mãos”), situação análoga à do terceiro poema. Por outra, os dois últimos versos do primeiro poema (“meus olhos secos como pedras / e as minhas duas mãos quebradas”) são detalhados nas estrofes três e quatro do terceiro poema, reproduzidas acima.

O devaneio é uma expressão do inconsciente. O poeta registra essa expressão, sem censuras, ensinam os manuais especializados. Mas, ao poeta é facultado construir seus devaneios, não fosse ele um fingidor – é disso que trata o poema “Motivo”. E o que temos na “Canção I”, complementada, em paralelo, na “Canção III” é uma sucessão de quadros surrealistas criados pelo eu lírico, que busca esquecer seus sonhos (de juventude, talvez), valendo-se da imagem de um navio que naufraga num desequilíbrio provocado pelas suas próprias mãos, metáfora de decisões equivocadas. O naufrágio não é, portanto, obra do acaso ou do destino, mas uma decisão consciente do eu lírico.

A hipérbole “chorarei quanto for preciso, / para fazer com que o mar cresça”, confirma que a decisão é sim consciente e que o devaneio é uma construção estética. O resultado dessa construção, entretanto, tem uma consequência trágica: apesar dos olhos secos de lágrimas (como pedras), as mãos (a metonímia perfeita para colocar o sonho no navio e o navio em cima do mar – e depois abrir o mar) as mãos, eu dizia, se quebram (como pedras) e deixam o eu lírico impotente, o que leva à hipérbole da segunda estrofe, na “Canção III”:

 

Eu te esperei todos os séculos,

sem desespero e sem desgosto,

e morri de infinitas mortes,

guardando sempre o mesmo rosto.

 

A espiral surrealista de Cecília nos remete, dialogicamente, a outro poema de Viagem, “Retrato”, em que os elementos “olhos” e “mãos” são os mesmos das duas canções antes referidas, para concluir:

 

– Em que espelho ficou perdida

a minha face?

 

O eu lírico posta-se diante de espelhos duplos que se multiplicam em outros espelhos, indefinidamente, mas onde ele não se identifica porque esse devaneio não lhe pertence: cabe ao leitor tentar se reconhecer.        

 

 

 

  



[1] RIOS, Peron. A espiral crítica. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2021. p. 213-220.

[2] MEIRELES, Cecília. Obra Poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1972/1985.   

[3] MEIRELES, Cecília. Poesia Completa. Vol. I e II. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

A poesia é necessária?

 

História

Alexei Bueno

  

Não é minha esta casa, aí entrarei no entanto.

Quebrarei o portão, marcharei entre as flores,

Encherei meu pulmão com os estranhos odores

Do jardim adubado a sêmen, sangue e pranto.

 

Porei a porta abaixo, enfrentarei o espanto

Dos vultos me fitando; e apesar dos bolores

Envergarei sem medo os trajes de idas cores,

Nas suas mãos beberei, entoarei seu canto!

 

Com os corpos rolarei de milhões de mulheres

Sem corpo. Ei-los que já me saúdam e me aclamam,

Meus perdidos avós, desamparados seres.

 

Estendem-me suas mãos como a um filho que os salva.

Deles vim, mas é a mim que eles agora clamam

A vida, como a um pai, um sol sonhando na alva.

 

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Turismo de ilusão

Pedro Lucas Lindoso

 

Os homens tem uma capacidade extraordinária de inventar, criar e mentir. O nome do município de Presidente Figueiredo foi uma homenagem ao último presidente do Regime Militar. Entretanto, com o advento da Nova República, espalhou-se a versão de que Figueiredo seria Tenreiro Aranha, o homem que primeiro governou a Província do Amazonas. Ele se chamava João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha. Os milhares de turistas que visitam o local ainda recebem essa versão inverídica e, para muitos, mais palatável.

O calçamento do Largo São Sebastião é o mesmo do Rossio, em Lisboa. Que também foi feito na famosa calçada de Copacabana. Alguém quis enganar turistas com a versão de que seria uma alusão ao encontro das águas do Rio Negro como o Solimões. Parece que a ideia não vingou. Provavelmente, porque não explicaria o similar feito na calçada de Copacabana. Posterior ao nosso, por sinal.

Provavelmente, não existe nada mais fake do que a casa de Julieta, em Verona, na Itália. Assim como Shakespeare imaginou a tragédia de Hamlet na Dinamarca, resolveu imaginar e escrever o drama de Romeu e Julieta em Verona, na Itália.

O prédio escolhido para ser a casa de Julieta seria de fato, renascentista. Mas o famoso balcão foi colocado lá nos anos trinta do século passado. Na verdade, foi uma adaptação para uma das primeiras filmagens da famosa peça de Shakespeare. E atualmente, o icônico balcão atrai turistas do mundo inteiro, mesmo sendo um turismo fake.

Em Verona ainda se visita a tumba de Julieta, dentre outros locais alusivos a tão conhecida e festejada estória. Há uma estátua de Julieta, cujo seio é tocado por amantes e namorados para dar sorte. Shakespeare nunca esteve em Verona. Mas vale a pena ir lá. As pessoas precisam se iludir, imaginar e louvar o amor.

Viajando por aí, já escutei muitas estórias inverídicas ou fantasiosas contadas por guias de turismo ou entusiasmados habitantes do local. A vida é assim. Há fatos com milhares de versões. A imaginação dos homens é ilimitada.

O nosso principal atrativo turístico, o Teatro Amazonas, teria seus calçamentos encobertos por uma camada de borracha. Isso somente no final do século 19. Os trotes dos cavalos em carruagens não deveriam perturbar os espetáculos. Dizem que Caruso cantou por aqui. Outra lenda. Mas os turistas adoram ouvir isso. Quem viaja parece estar à procura de ilusões perdidas. E acaba encontrando outras. E divertindo-se. Aliás, muitas localidades turísticas são ilusões. Então estamos combinados. Viva o turismo de ilusão.