Amigos do Fingidor

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

O bug do milênio

Roberto Mendonça



Os autógrafos no postal.


Há dez anos, aconteceu a virada do século e, simultaneamente, do milênio. Encerrava-se o século XX, datado por seus novecentos, e o mundo encarava nova era, nova contagem do tempo. Esse fato corriqueiro, naquele dezembro de 1999 prestou-se para diversos debates, fossem os de cunho científico, fossem os de botequim. Em todos, porém, havia o consenso: um desastre rondava nossas vidas pelo possível mau funcionamento do computador, a máquina que já exercia amplo domínio sobre nossas ações. Tanto os especialistas quanto os “brameiros” concordavam: na passagem do milênio, o computador haveria de “travar”, causando sérios desastres. Desse modo, a apreensão amplamente disseminada pelo planeta moveu os governantes à aplicação de medidas preventivas.

Pouco entendo de computação; mas, recordo-me da proclamação de que os dados até então armazenados sofreriam grave descontrole. Argumentava-se que, nos computadores, a modificação de 99 para 00 não se encontrava devidamente programada, poderia não funcionar. Seria melhor prevenir. E assim, em diversas atividades, houve concretização de medidas. Uma das providências drásticas aplicou-se na aviação: nada de avião entre o céu e a terra na virada do ano.

Mas, para tripudiar sobre os especialistas e palpiteiros, uma empresa de aviação nacional desafiou a zebra, encarou o enigma, realizando no território nacional e, nesse horário, o único voo. Falo da extinta Viação Aérea São Paulo (Vasp) que, na noite de São Silvestre, efetuou o VP 234, saindo de São Paulo para Manaus, com escala em Brasília, onde eu embarquei.

Na ocasião, encontrando-me em Curitiba, decidi passar o reveillon em Manaus. Ao buscar passagem, fui surpreendido com essa viagem aérea. Não vacilei. Decidi arriscar e, óbvio, me dei bem. Apesar de programado, não acreditava na realização do voo, pois as autoridades a qualquer momento poderiam suspendê-lo.

Encontrei o aeroporto de Brasília às moscas. Afinal, somente um passageiro “maluco” iria embarcar. E, de fato, apenas eu embarquei naquele momento. A bordo da aeronave encontrei poucos passageiros, quase todos parentes dos tripulantes (soube depois). Como é de praxe no país, na oportunidade, cumpria-se o horário de verão, por isso, decolando pouco antes da meia-noite, logo brindamos a virada de ano. E repetimos o brinde e mais abraços quando, em voo panorâmico, sobrevoamos Manaus, naquele instante, colorida e enfeitada pelos fogos de artifícios estourados ao longo da cidade.

Para ilustrar a aventura, gravei os dados essenciais em um cartão postal. Nele, captei o registro venturoso da tripulação, sob a responsabilidade do comandante Ibrahin. Trata-se de um registro vitorioso, tanto da empresa que se dispôs a enfrentar o desafio do bug (segundo restou crismado), quanto de minha parte, que contribuí ao menos com o registro. Enfim, da apreensão estabelecida ao longo do ano, nada aconteceu de extraordinário. O computador comportou-se com dignidade, transformando toda aquela angústia em grande fiasco (ainda bem!). Lembrou-me em parte o temor espalhado no mundo pelo trânsito no espaço do cometa Halley.

O resultado mais visível do bug do milênio, passado o primeiro decênio: eu perdi os meus cabelos, e a aviação perdeu a Vasp.


 O lado A do postal.

Medicina romana: Galeno e Sorano

João Bosco Botelho


Após a terceira guerra púnica, os romanos consolidaram o vasto império no Mediterrâneo. Com o desenvolvimento obtido pelas conquistas militares e anexação de territórios, a sociedade romana absorveu grande parte das virtudes gregas, especialmente, as prá-ticas médicas voltadas para a tríade: diagnóstico, tratamento e prognóstico, como elementos mais distanciados da vontade das deusas e dos deuses.

Entre as primeiras providências para mudar a Medicina, em Roma e nas colônias, a legislação sacramentou os médicos como uma categoria profissional definida, tanto entre os homens livres como entre os escravos. As obrigações do médico passaram a ser organizadas pelo senado romano, que também definia os pagamentos pelos serviços profissionais.

Sob o Império de Adriano, no século II da era cristã, os médicos eram dispensados do serviço militar e quase todas as cidades romanas dispunham de médico remunerado pelo Estado romano.

Em torno do século IV, as frequentes queixas dos usuários impôs severa fiscalização da profissão médica por parte da administração e instituíram-se rigorosos exames de seleção, organizados pelos mais importantes médicos de Roma, para todos que quisessem exer-cer a profissão.

Os rigores nas seleções provocaram forte diminuição de curadores, que determinaram outro tipo de reclamação coletiva: poucos médicos para atender a demanda, tanto em Roma quanto nas colônias. Sob esse novo tipo de questionamento, o império romano subvencionou os estudantes de Medicina, mas em troca eram obrigados a prestar assistência aos pobres.

Sob forte influência dos textos gregos da Escola de Cós, especialmente, os que tratavam das complicações da interrupção voluntária da gravidez, tanto na mãe quanto no feto, os médicos foram proibidos de praticar o aborto. O extraordinário viés legislador romano norteou outras mudanças de grande importância, que são respeitadas até os dias atuais: o médico recusar o atendimento de qualquer doente seja quais fossem as circunstâncias.

Nessa mesma época, sob o império de Diocleciano, no ano de 300, um édito imperial impunha como condição para que o candidato fosse aceito numa escola de medicina, a apresentação de certificado de boa conduta fornecido pelo comando militar da cidade.

Com o crescimento do número de escolas de medicina, avolumaram-se os conflitos nascidos em torno da má prática. Um dos mais significativos está inserido nas disputas entre clínicos e cirurgiões. Essa diferença entre clínicos e cirurgiões, respectivamente, os que tratavam os enfermos por meio de métodos não invasivos e os que sempre cortavam ou amputavam partes do corpo, está clara em Cícero ao escrever sobre os médicos verdadeiros, que corresponderia aos clínicos gerais de hoje. Esse magnífico orador romano registrou algumas especialidades médicas:
              Cascelio extirpa ou cura os doentes; tu Igino, queimas os cílios que irritam os o-lhos, Eros elimina as tristes cicatrizes dos servos e Hermes goza de fama de ser o Podalírio das hérnias.

A maior ponte entre as Medicinas grega e romana é atribuída ao médico Cláudio Galeno, considerado o sucessor de Hipócrates, e que influenciou de modo marcante a Medicina medieval. Galeno nasceu em Pérgamo, na Ásia Menor, no ano de 130.

Galeno erigiu a teoria dos Quatro Temperamentos acoplando outras variáveis, sem dúvidas, mais visíveis, à teoria dos Quatro Humores, descrita por Políbio, o genro de Hipócrates. Para cada “humor” existiria um “temperamento” que melhor explicaria a etiologia das doenças:

HUMOR - TEMPERAMENTO

Fleuma – Fleumático: doenças úmidas (p. ex. respiratórias, como a asma)
Sanguíneo – Sanguíneo: doenças quentes (p. ex. cardíacas, como o infarto)
Bilioso amarelo – Colérico: doenças secas (p. ex. hepáticas, com a hepatite)
Bilioso preto – Melancólico: doenças frias (p. ex. psiquiátricas, como a depressão)

Desse modo, cada temperamento era mais ou menos suscetível a determinada doença. Sob essa leitura, se fosse possível mudar o temperamento de uma ou de um grupo de pessoas, as doenças poderiam ser evitadas.

As suas obras abordavam a anatomia, a fisiologia, a patologia, a sintomatologia e a terapêutica. Uma parte dos livros foi publicada em Veneza, em 1538, formando um núcleo de consultas dos médicos medievais e do Renascimento europeu.

O outro médico romano que se destacou nos séculos seguintes foi Sorano, nascido em Éfeso. Os escritos de Sorano demonstram extrema lucidez e bom senso. Entre as obras dele destaca-se o Manual de Ginecologia, que serviu de orientação aos médicos durante quase quinze séculos, praticamente, sem qualquer contestação. Nessa obra genial, descreveu com absoluta precisão as posições anormais dos fetos durante o nascimento.

Esses médicos extraordinários viveram no Império Romano, na época em que foi instalado um dos mais competentes sistemas públicos de atenção à saúde. A preocupação dos legisladores com a saúde pública era inquestionável. A Lei das Doze Tábuas, que remonta aos primórdios da República, estabelecia normas para o sepultamento e queima dos cadáveres fora dos muros da cidade, e a construção dos esgotos. As autoridades públicas fiscalizavam o cumprimento das normas que regulamentavam a higiene pública.

As novas idéias da medicina alcançaram a arquitetura. Os grandes arquitetos romanos, como Vitrúvio, recomendavam a escolha de lugares ensolarados para a construção das casas.


A teoria dos Quatro Temperamentos, de Galeno.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Fantasy Art – Galeria

Goh' Cephal.
Henning Ludvigsen.

drops de pimenta 43

.
─ Camarão, caranguejo?...

─ Batata frita!

─ É... nem pra tira-gosto você tem classe!


(Zemaria Pinto)

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

AAL – José Braga é reeleito



O acadêmico José Braga foi reeleito, por unanimidade, nesta tarde, para a presidência da Academia Amazonense de Letras, biênio 2010-2011. A eleição, presidida pelo acadêmico e arcebispo de Manaus Dom Luiz Soares Vieira, transcorreu em clima de fraternal cordialidade.

Poemas no mar mineiro

Cristina Duarte-Simões*


Decididamente, a poetisa brasileira Tânia Diniz tem jeito para semear... Há mais de vinte anos, através do movimento Mulheres Emergentes, ela espalha pela cidade de Belo Horizonte – sob a forma de cartaz – um número impressionante de poemas escritos por mulheres, não somente nos lugares mais propícios (escolas, bibliotecas), como também nos mais inesperados (estações, centros de eventos e convenções). Um trabalho que exigiu muita tenacidade, pois apesar de no início não ter contado com nenhum apoio financeiro, a autora mineira soube persistir no seu projeto e aperfeiçoá-lo com o passar dos anos. Para comemorar o décimo oitavo aniversário desses cartazes poéticos, foi lançada em 2007 a coletânea Antologia ME 18, apresentando uma compilação de poemas escritos por quarenta e três mulheres.

Recentemente, procurando destacar o aspecto masculino desse trabalho original, Tânia Diniz decidiu prestar homenagem a todos os homens que, às vezes nos bastidores, apoiaram o projeto desde 1989. E eis que poetas, escritores, desenhistas, radialistas, jornalistas, colaboradores, amigos e leitores aceitaram o convite. Todos esses textos poéticos foram então publicados na Antologia Meninos, que acaba de ser lançada no Brasil.

O pequeno livro de 63 páginas surpreende pela grandeza do propósito e do conteúdo. "A poesia emerge desses meninos para nos tornar ainda mais humanos", anuncia pertinentemente o escritor Caio Junqueira Maciel, no texto inaugural. Com efeito, um prazer imenso conduz o leitor nesse percurso tecido pelos 25 poetas da coletânea. Há uma grande diversidade: jovens e menos jovens; poetas premiados e desconhecidos do público em geral; alguns preferem poemas curtos, outros mais longos; uns adotam formas poéticas contemporâneas, outros permanecem fiéis às formas clássicas. São poemas-poemas, poemas em prosa e até mesmo visuais. Ainspiração dos autores é também bastante variada. Num momento, um poeta presta homenagem ao animal de companhia que acabou de perder (“Lá vai o poeta fazer a cova…”, Antônio Dayrell); em outro, são versos curtos que descrevem o instante mágico de uma pausa musical (“Dança nordestina”, Osvaldo André); um pouco depois, certos cômodos de uma casa são revisitados com nostalgia (“A casa perscrutada: escrivaninha / biblioteca / quarto das meninas”, Zemaria Pinto). Às vezes, prefere-se a forma clássica para louvar a mulher amada (“Soneto para iluminar você”, J.B. Donadon-Leal); outras vezes, a concisão de seis versinhos é suficiente para falar do desejo (“Aportar”, Cláudio Márcio Barbosa). Um poeta presta homenagem ao piano de uma mãe: toda tecla / plena de história (“Poema pro piano da mãe de Rogério Salgado”, Kiko Ferreira); enquanto outros confessam a admiração que têm por Michel Foucault (“Foucaltidianamente”, Lucas Guimaraens) ou por Julia Kristeva (“Efeito Kristeva”). Se Sérgio Bernardo prefere encenar a fuga de um homem de um campo de concentração para homossexuais (“Atrasa o trem na estação de Bergen”), J.S. Ferreira lembra, em versos incisivos, o drama da Faixa de Gaza, em que o eterno estopim do ódio se acende (“Na faixa de Gaza”).
Como no livro anterior (Antologia ME 18), pinceladas vigorosas fazem reviver o poeta Carlos Drummond de Andrade, mineiro, como aliás os dois livros citados. É o caso do poema “Passagem” de Lucas Guimaraens, que não deixa de relembrar dois grandes monumentos poéticos do grande autor: “José” e “A flor e a náusea”: No rumo da casa José colheu a rosa no asfalto. A inspiração do poeta de Itabira pode também ser encontrada na leitura do poema “Esperança”, do mesmo Lucas Guimaraens, que parece fazer referência ao “Poema de sete faces” (Mundo mundo vasto mundo, / se eu me chamasse Raimundo…), como ao “Soneto da perdida esperança”. Por seu lado, Luiz Zanotti também homenageia Drummond no belíssimo poema “Luiza”, iluminado com muita sensibilidade pelo texto em prosa que o acompanha. A menina Luiza acabou de nascer, é a filha do autor; enquanto que no texto de Drummond trata-se de uma moça desaparecida e de uma mãe completamente desesperada (“Desaparecimento de Luísa Porto”). Entretanto, pensamos que são nos poemas de Di Moreira (“Mineiro uai”) que se encontra a melhor transmissão do espírito do inevitável poeta, por exemplo nos versos: carrego com muito amor / o meu jeito do interior. De uma forma mais geral, pode-se perguntar se a referência ao grande Drummond — forçosamente intertextual — não seria passagem obrigatória para qualquer poesia originária de Minas Gerais; como se os poetas, a um momento do percurso, se sentissem na obrigação de pagar um tributo à essa obra monumental…

O Modernismo paulistano de 1922 também recebe uma homenagem através da pluma de um Lucas Guimaraens, bisneto do conhecido poeta do Simbolismo brasileiro, Alphonsus de Guimaraens. No poema “São Paulo”, o autor interpela os grandes nomes da Semana de Arte Moderna: Mário, Oswald, / de onde veio esta força em piadas / se trânsito não permite atropelar realidade? Por outro lado, se o livro anterior, organizado pela mesma Tânia Diniz, tinha nos acostumado à delicadeza dos textos das mulheres-poetas, esta nova obra surpreende pela exatidão dos sentimentos masculinos : Eu não tenho consciência da minha / fragilidade e do futuro / e me perco nas palavras (“Depoimento”, Sandro Starting); ou então: São os vales do meu sertão que me fazem assim… / jacumã das embarcações aladas… / colibri do mato, horizonte aberto… (“Jacumã”, Ronaldo Zenha); e o que dizer da tão bem sucedida aliteração : errar / a rota rota e surrada / entre / arrotos / matinais do poema, “Cohen et Joplin no Celsea Hotel”, de Kiko Ferreira?

Mesmo que a grande maioria dos poetas da Antologia Meninos seja originária do Estado de Minas Gerais, outras regiões do Brasil também estão representadas por autores que, de uma forma geral, adotaram a terra mineira. O carioca Paulinho Andrade compõe, numa linguagem fresca e coloquial, um dos poemas mais emocionantes da coletânea (“Honra e glória”). O amazonense Simão Pessoa interessa-se pelo próprio mecanismo da construção poética, não sem uma boa dose de humor (“Para fazer um poema concreto”). O artista plástico pernambucano Severino Iabá faz brotar poesia dos objetos de cerâmica fotografados (sem título, p. 50). Único poeta de origem estrangeira, o português Fernando Aguiar não deixa de fazer referência ao mar, inserindo-se numa forte tradição lusitana: e se de noite te acendo e na penumbra te beijo / é no teu mar de desejo que me quero afogar (“E se o riso”).

A dificuldade desta coletânea, hoje em dia, vem do simples fato de ser poesia, gênero um pouco menosprezado pelo público em geral. No entanto, para aquele ou aquela que tiver a delicadeza e a curiosidade de se aproximar e de ouvi-los, os versos desses meninos deixará, sem dúvida alguma, uma marca indelével. E a melhor imagem para definir esse aspecto frágil e fugidio, talvez seja a que foi proposta por Affonso Romano de Sant'Anna, na apresentação da obra: os diversos poemas vogam ao acaso no mar impalpável de Minas Gerais, um dos raros estados brasileiros a não dispor de acesso ao oceano.


(*) Professora na Université de Toulouse-le Mirail, França.

domingo, 27 de dezembro de 2009

malditas criaturas infernais 3

ou a ponte de Pandora*



O governador da província de Zhejiang, na China, reúne seu secretariado e, dedo em riste, liga o ventilador giratório**:

– Bando de incompetentes! Nós constluímos a maiol ponte do mundo – 35 quilômetlos soble o mal! – e pagamos somente 82 milhões de dólales por quilômetlo? Lá em Pandola estão fazendo uma pontezinha de meloda, soble um liozinho chinflin, de apenas 4 quilômetlos, e já pagalam, pol quilômetlo, mais de 215 milhões! Eles é que sabem adminstlar o dinheilo público! Vocês vão fazer um estágio em Pandola, seus bulos, pla aplender com quantos milhões de dólales se faz uma ponte!


(João Sebastião)

(*) Esta Pandora é muito parecida com a do filme. A diferença é que aqui os invasores ganharam a guerra.

(**) Tradução simultânea, com sotaque da 25 de março.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Fantasy Art – Galeria

The Divining Heart.
Michael Whelan.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Mudamos de ciclo! Pois sejam felizes!

.
Cansei-me de ti, Natal,

mas nunca do Senhor Cristo:

não me convence o banal

que fazem de tudo isto.

Ainda assim, Feliz Natal

e um Ano Novo bem longe

desse triste carnaval.


(Jorge Tufic)

véspera de ano novo

.
raspou o pó de café que restava no fundo da lata: deu graças, tinha o suficiente para aquele dia. os bolinhos de farinha fritos na banha substituiriam o pão. e o açúcar? haveria de conseguir um pouco com a vizinha, uma xícara daria para uns dois dias. enquanto fervia a água, estendeu sobre a mesa a toalha branca, comprada pelo marido dias antes de falecer. não esqueceu o pé de arruda no centro da mesa: desejava entrar no ano novo com o pé direito, e a arruda era um santo remédio para mau-olhado e outros malefícios. pitava o cachimbo quando ouviu alguém chamar à porta da casa. uniu as mãos em forma de prece, “deus seja louvado!”, exclamou, reconhecendo a voz da bondosa dona coló.

(Adrino Aragão)

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Entrevista com o Menino

L. Ruas*


Quando me contaram pela primeira vez, não acreditei. Graças a Deus, não sou muito crédulo. É verdade que levo em conta certas verdades que, para muitos, é sinal de estagnação mental. Foi por causa dessas verdades que uns amigos meus, não faz muitos dias, me chamaram de ingênuo. Em outras palavras, eles me quiseram chamar de retrogrado ou coisa que o valha. Não faz mal. Eu continuo acreditando nessas verdades. Não são muitas. No máximo umas doze. Isso mesmo. São somente doze. Em quantas coisas você acredita, leitor? É engraçado. Há muitos como você, leitor, que ainda não sabem em quantas coisas acreditam. Não. Não me diga que não acredita em coisa alguma, porque senão você vai ficar incluído entre os que acreditam em mais de doze verdades. Você, talvez, não acredite nas doze verdades nas quais acredito, mas vai ver que acredita em outras. No final das contas, todos nós somos uns grandes crédulos.

Mas, voltemos ao assunto. O que me disseram foi o seguinte: que todos os anos o menino nasce. Você acredita nisso? Nem eu acreditei quando me contaram. Nem eu nem o diretor do jornal. Quando telefonei dizendo-lhe que ia dar um furo sensacional (quando telefonei já estava acreditando... bem, não era bem isso. Eu estava muito curioso) ele deu uma gargalhada do outro lado:

– Ora, vá às favas com o seu furo! Você vem me incomodar com uma tolice destas! Tenho mais o que fazer. Um menino que nasce todos os anos... Isso é bom para cinema.

Mas agora eu estava curioso demais para desistir. Queria ver. Queria saber. Não era possível que tanta gente estivesse tão enganada ou quisesse simplesmente blefar.

À noite, telefonei para uns fotógrafos meus amigos para ver se podiam ir fazer um serviço comigo. Desta vez fui mais prudente não revelando minha intenção e a minha história. Disseram-me que não podiam, era noite de Natal, você sabe, numa noite assim a gente deve ficar em casa com a mulher e os garotos... Alguns me convidaram para ir cear. Muito obrigado, não posso. Eu tenho que fazer este trabalho... Não, não é com ninguém importante, não. Eu é que estou vendo se consigo tirar rendimento novo de assunto muito velho. Me desculpe, não posso sair de casa numa noite de Natal, você compreende, né?...

Sair de casa numa noite de Natal para ir entrevistar um menino era mesmo coisa de gente que não tinha a cabeça no lugar. Quando ia andando pelas ruas escuras e úmidas e passava pelas casas cheias de luz, árvores de natal coloridas, crianças brincando, mesas cobertas de doces e comidas ou pelas igrejas cheias de gente que aguardavam a Missa do Galo, muitas vezes me deu vontade de voltar para casa. Mas não voltei. Eu estaria sendo um ingênuo mais uma vez, mas não fazia mal. As ruas estavam em péssimas condições. Muito escuras e, como chovera bastante, por várias vezes me atolei em buracos cheios de lama. E o lugar era horrível.

Bati palmas. Tudo muito quieto. Não havia choro de criança nem as costumeiras visitas. Um fugidio cheiro de alfazema se perdia no ar. Misturado com cheiro de samambaia. Deve ser aqui. Cheiro de alfazema é criança nova. Depois de alguns segundos um homem apareceu à porta. Com uma lamparina. Vi que era um homem simples e bom. Uns quarenta anos, no máximo.

– Pode entrar, por favor. Ele está lhe esperando.

Está lhe esperando ou o está esperando? Perguntei a mim mesmo. Mas não tive tempo de resolver a dúvida gramatical porque o homem já me havia conduzido para dentro.

A mãe era uma jovem de seus dezenove ou vinte anos. Alguns me disseram que ela era uma vigarista. Não foi essa a minha impressão. Estendeu-me a mão, cumprimentou-me com certa graça cheia de simplicidade e voltou para o seu lugar. Não vi nada de extraordinário nela. Era tão comum que, no mínimo, seu nome era Maria. Não, não era uma vigarista. Se havia isso de vigarismo naquela história toda, era da parte de alguém que andava explorando aqueles pobres miseráveis. Mas, antes que eu me decidisse a favor ou contra o vigarismo da história, o menino me falou:

– Sente-se, por favor.

Sentei-me numa pedra que estava mais perto dele. Queria ver o menino bem de perto. Não havia muita luz. A lamparina era, apenas, um ouro avermelhado dentro de um círculo azulado. Mal deixava divisar a fisionomia do menino.

– Fique à vontade. O Sr. é jornalista, não é? Eu gosto de vocês, os jornalistas. Já tive bons amigos entre os jornalistas. E ainda os tenho. Outros me são desafetos, mas o são gratuitamente. Não sei se você vai conseguir escrever alguma coisa com esta luz tão fraca. Meu pai, todos os anos, pensa festejar o Natal de um modo mais alegre. Mas ainda não pôde mandar ligar a luz. (E riu). Aliás, muitos, como meu pai, não podem fazer isso. Seria bom que todos tivessem ao menos luz em suas casas na noite de Natal. Mas eu ainda não vi luz elétrica desde que nasci pela primeira vez. Posso dizer que nunca vim à luz, mas, somente às trevas. (Riu de novo). Estou brincando novamente e você está perdendo seu tempo. Com certeza você não veio até aqui para brincadeiras, mas para tratar de assuntos sérios. Logo na noite de Natal. Vamos. Que é que você quer saber de mim?

Fiquei desnorteado quando ele me fez esta pergunta. Eu já estava desejando que ele continuasse a falar, de tal maneira que não me desse tempo para fazer qualquer pergunta. O que era mesmo que podia perguntar? Arrisquei:

– O mundo está melhor ou pior do que...

– Claro que está muito melhor. Será que você não vê isso? Basta que você pense no esforço de união que está havendo no mundo. Já sei. Você vai falar da bomba atômica, da de hidrogênio, da guerra, dos foguetes. Tudo isso é medo. Os homens têm muito medo. Eles querem se unir, mas têm medo. Não condene os homens por isso. O medo é uma coisa pavorosa. Quem diz isso muito bem é o Ariano Suassuna, no Auto da Compadecida. Eu também já tive muito medo. Todos os homens o sentem. É terrível! O que falta nos homens é um pouquinho mais de boa vontade. No dia em que eles tiverem mais boa vontade, terão a paz.

Aproveitei a deixa:

– Você é entreguista ou comunista?

O menino sorriu e eu senti que fizera uma pergunta muito tola. Na verdade, eu já estava sem saber o que perguntar. Olhei de soslaio para a mãe. Ela continuava sentada ao lado do menino, no chão. Remendava uma roupa de trabalho do marido.

– Ainda há muita miséria no mundo. (Disse isso e suspirou um tanto tristemente). Imagino que há quem diga que eu sou culpado disso. Mas como é que sou culpado se eu mesmo sou vítima? Estou sempre nascendo nestas condições. Você já deve ter reparado como é nossa casa... Se é que isso pode se chamar casa... Meu pai é uma vítima da injustiça social. O que ele ganha não dá para nada. Aliás, por aqui pela redondeza há muitos na mesma situação. Já reparou como nós estamos conversando só sobre política? Dizem que isso é política... Mas o culpado foi você que me perguntou sobre o mundo. Os homens pensam que basta trocar o regime político ou econômico para serem felizes...

Eu ia perguntando o que seria necessário fazer para que os homens sejam mais felizes. Mas o menino olhou para mim com tanta bondade e tão fixamente que eu pigarreei e baixei a vista para não encontrar de novo os seus olhos fortes e bons.

– Está vendo? Dizem que eu não falo. Mas até agora só quem falou fui eu. E me sinto mais tagarela do que nunca. Eu sempre falo. Nem sempre, porém, tenho quem me ouça. Quando encontro alguém que tenha paciência de me ouvir (eu quase disse um “não apoiado”, mas me lembrei que eu não estava nem em academia literária, nem em assembleia legislativa, nem em almoço de homenagem) não paro mais de falar. É que eu gosto muito de conversar com os homens. A gente trocando ideias sempre se distrai e os homens andam muito preocupados. Geralmente, todos os que me vêm visitar estão estafados como se estivessem carregando pesadíssimos fardos. Não pense que consigo sempre desfazer, aliviar este cansaço. Há muitos que saem daqui mais preocupados do que estavam antes. Mas sei que estes voltarão.

Olhei o relógio. Duas e meia da manhã. Não era possível! Eu já estava ali há mais de duas horas? Sentado naquela pedra dura? Quase não consegui me levantar. As pernas estavam dormentes e os rins doloridos. Não teria sido só a posição, mas, também, a umidade. A água quase minava da parede. Num canto havia um resto de fogueira. Brasa e cinza. Foi olhando para a fogueira que percebi dois vultos. Apertei bem os olhos discretamente e vi um burro e um boi. Fiz uma pergunta já de pé:

– Dizem que sempre há anjos quando você nasce?

– Anjos? Há, sim.

– E por que sempre que você nasce há, também, um burro e um boi?

Ele me olhou como da vez que eu ia perguntando o que era preciso fazer para que os homens fossem felizes. Pensei que não ia responder, mas respondeu:

– São poucos os que entendem os símbolos. Muito menos os que acreditam neles.

Vi que ele já estava com sono. Eu também. Despedi-me. Não me preocupei mais em descobrir, no pai e na mãe, sinais de vigarismo. Saí. O céu estava cheio de estrelas, mas a noite estava muito úmida. Fora, senti novamente o cheiro de alfazema e de samambaia. Um galo cantou numa árvore do quintal vizinho. Resolvi, de vez, voltar para casa. Quando dei o primeiro passo, me fiz a seguinte pergunta:

– Será que adianta eu escrever isso? Quem terá boa vontade para acreditar nestas coisas?...


(*) Publicado originalmente em O Jornal, Manaus, 27 de novembro de 1966. Garimpagem: Roberto Mendonça.
L. Ruas ou Luiz Ruas (1931-2000) foi poeta, ensaísta, cronista, professor universitário, ativista político e sacerdote católico.

Solstício do inverno e natal: imagens metafóricas de bem-aventurança e saúde

João Bosco Botelho


Só muito recente se tornou possível compreender melhor os ritmos que movem a natureza circundante: a noite e o dia, as flores da primavera após o degelo invernal, as fases da lua e o movimento das estrelas no céu.

De maneira precoce, o saber historicamente acumulado dos nossos ancestrais distantes assimilou o insubstituível significado do Sol à sobrevivência de todos. Após o inverno, a chegada do calor solar derretendo a neve e aquecendo os corpos representou a renovação da vida.

Existe na cidade de Newgrange, na Irlanda, um túmulo que serve de orientação climática aos agricultores da região. Na década de sessenta, os astrofísicos da Universidade de Dublin, comprovaram que a tumba, construída havia mais de cinco mil anos, é o mais antigo ¬ali¬nhamento astronômico conhecido. Essa sepultura pré-histórica foi construída por um povo agrário desconhecido. A característica fundamental do bloco lítico está na abertura de vinte centímetros existente no teto, por onde, no solstício do inverno, a luz do sol penetra e chega exatamente onde deveria estar repousando o morto celebrado.

Mesmo com a tecnologia disponível, que inclui os satélites e as gigantescas estações meteorológicas, é impossível prever com segurança os terremotos, os maremotos e as tempestades que causam tanta desolação e mortes no planeta. Se hoje, esse fato desperta atenção e medo, é possível pressupor significado semelhante nos grupos sociais que viveram há milhares de anos, desde os primeiros núcleos urbanos, quando a imprevisibilidade do clima determinava destruição das construções e colheitas, seguida de morte de pessoas e animais, obrigando à penosa reconstrução ou à migração forçada.

É possível que essa história de longa duração — medo da morte anunciada nos flagelos climáticos e júbilo na chegada do calor solar, na primavera, associado à saúde —, esteja presente na memória-sócio-genética coletiva e expressa no cotidiano por meio de muitas imagens metamórficas. Uma das mais significativas é a mãe-terra.

No processo ontológico de mudanças sociais e culturais, contíguo à luta pela sobrevivência, o instrumento das primeiras relações entre o Homem com outros animais — o sangue — foi substituído pela nova intimidade com a terra cultivada. O sangue, simbolizando a essência da vida, cedeu o lugar ao alimento vindo da terra cultivada.

Ainda hoje, em algumas culturas, na África central, ainda é possível encontrar arados com a forma de falo. Os significantes metafóricos da terra penetrada pelo arado e da vagina pelo pênis são semelhantes: ambos germinam vida nova para manter a sobrevivência do grupo. As colheitas vindas da mãe-terra continuam motivando celebrações semelhantes às dedicadas aos nascimentos de filhos e filhas da mãe-mulher.

As estruturas teóricas das religiões monoteístas e politeístas mantiveram as comemorações ao solstício do inverno. O vedismo (Bahagavad Gita 15,6) contém ensinamentos equivalentes aos da tradição judaico cristã (Is 40,10 11 e Jo 21,15 17). As celebrações religiosas, como a missa cristã, mantêm lugar de destaque à refeição, onde o pão e o vinho, filhos da mãe terra, estão presentes.

É particularmente expressiva a festa do nascimento do Sol Invicto (Dies Solis Invicti Natalis), próximo ao dia 25 de dezembro, comemorada na Roma antiga, junto com a saturnália. No dia em que o sol parecia se dirigir ao Norte, os trabalhos eram interrompidos, as casas recebiam enfeites com árvores e flores, os parentes trocavam presentes junto ao culto do deus Mitra (Natalis Solis).

O cordeiro e o Sol são descritos nos livros sagrados com a clara interdependência das duas fases da humanização: o primeiro, oriundo da primitiva relação do homem com os outros animais, representada pelo sangue, e o segundo, herança do sedentarismo, como condição insubstituível da sobrevivência.

Os incas do altiplano boliviano, sobreviventes de um dos mais brutais genocídios que o mundo conheceu, depois de quase quinhentos anos de humilhações, continuam rendendo graças à bondade da Pachamama, a imemorial mãe terra da cultura andina.

Essa concepção metafísica da ontogenia, no sentido aristotélico, é expressa nas imagens simbólicas dos mitos e ritos interligados ao complexo e coerente sistema de valores sociais sacralizados. Pode ter sido sobre esse antecedente, marcados nas memórias-sócio-genéticas, que os homens e as mulheres apreenderam e continuam reproduzindo, geração após geração, muitos valores atados aos ritmos cíclicos da natureza. Esse sistema de valores parece ter interferido no processo de divinização de coisas.

Nesse sentido, o alimento significa muito mais do que a coisa para engolir, representa a comunhão das pessoas com a mãe-terra, produtora do pão e do vinho, que acaba com a fome e gera saúde. Por esse motivo, nas celebrações terapêuticas, estão presentes o pão e o vinho, filhos da mãe-terra, pressupondo a reprodução a partir do arquétipo divino. De modo geral, os ritos, mitos e símbolos religiosos divinizam imagens metafóricas dos alimentos.

Durante centenas de anos, o dia 25 de dezembro representou a comemoração do solstício do inverno, consagrado ao Sol, cuja luz e calor — sinônimo da saúde e da manutenção de vida — começavam a prevalecer sobre a insegurança determinada pelo frio, modificando a mãe-terra, preparando-a para a semeadura.

Essa forte herança pré-cristã, identificando o Sol como fonte de vida e evitando a morte, contribuiu para que entre os primeiros escritos, no cristianismo primitivo, ocorresse certa comparação entre Jesus Cristo e o Sol.

As idéias e crenças religiosas em torno de origens heliostáticas mantêm certas repetições nas estruturas dogmáticas. Uma das mais interessantes é a importância do número doze. Os romanos adoravam doze grandes deuses e cada um deles presidia um mês; os gregos e os egípcios, doze divindades; e os cristãos, doze apóstolos.

Por outro lado, alguns grupos cristãos, e teólogos dos primeiros tempos, entenderam o cristianismo aderido ao culto solar: os maniqueus Cirilo e Teodoro sustentaram que o Sol era o próprio Jesus. São Leão explicou que os mesmos maniqueus aceitavam a alma com a substância calórica do Sol e que, depois da morte, retornaria à origem.

Os primeiros teóricos da cristandade procuravam estabelecer o dia do nascimento de Jesus Cristo. No ano 194 d.C., Clemente de Alexandria propôs o 19 de novembro do ano 3 a.C.; outros pretenderam que o nascimento ocorrera em 30 de maio ou 19 de abril. Enfim, logo perceberam ser impossível assegurar que Jesus nascera nessa ou naquela data.

Por não haver nos Evangelhos referência à data do nascimento de Jesus Cristo, a discussão dos exegetas perdurou mais de três séculos. Somente em 525, Dionísio, o Pequeno, fixou o nascimento de Jesus, no dia 25 de dezembro do ano 754, Aburbe condita (depois da fundação de Roma).

Os cristãos armênios permaneceram resistentes a essa ordem e acusaram de idólatras os teóricos da Igreja, por estarem adorando o solstício do inverno. Na mesma esteira, o parlamento inglês, quase dez séculos depois, em 1644, sob forte influência puritana, proibiu as comemorações do Natal.

Na tradição francesa, é o Bonhomme Noel, o Papai Noel, quem desce do céu trazendo presentes para as crianças boas, enquanto o Père Fouettard deixa os açoites para as más. Em certas culturas, é o próprio menino Jesus quem distribui os presentes; em outras, São Nicolau ou Santa Claus.

A presença da árvore de Natal é mais recente. É possível que tenha aparecido, primeiramente, na Alemanha, no século 19, em alusão à festa do pinheiro de maio, uma variante da do solstício de inverno.

Sem duvidar do valor da análise histórica da comemoração do Natal, interligando a chegada do solstício de inverno às ideias e crenças religiosas, para a maioria esmagadora dos homens, mulheres e crianças, pouco importa se existe algum fato histórico no dia 25 de dezembro: a extraordinária fé em Jesus Cristo continua unindo com júbilo as pessoas em torno de imagens metafóricas da saúde, como mensagem de bem-aventurança.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Fantasy Art – Galeria

The Messengers.
Griesbach e Martucci.
drops de pimenta 42


─ Pra ganhar tempo, a gente divide. Eu pego a lataria e os frios. Você, o material de limpeza.

─ Não é possível! Nem no supermercado a gente fica junto?


(Zemaria Pinto)

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Um carnaval gigantesco
Jorge Bandeira*


Assisti e me refestelei com a apresentação de Carnaval Rabelais, do grupo TESC, com a direção segura de Márcio Souza e assistência de direção de Márcio Braz. Trata-se de uma ousada e anárquica dramaturgia que contempla o que há de melhor em François Rabelais, este autor “maldito” do Renascimento.

A crueza dos diálogos, a interpretação exagerada e precisa dos intérpretes torna este carnaval um atraente e estimulante jogo de cena do atual Teatro amazonense. Rabelais/TESC não perdoa nem mesmo o dramaturgo, que é inserido nas falas jocosas e corajosas, pois são poucos nesta vertente do Equinócio que dão a cara a bater em assuntos tão delicados como a corrupção nos meios políticos (com nome dado aos bois graúdos) e a oficialidade imposta pela “cultura bovina”, como diz um dos notórios personagens saídos de Rabelais/Márcio Souza.

É um Teatro feito para alegrar, para pensar, para refletir nossa situação aqui e alhures. No palco, tornado “transregional”, eis que aparecem as vicissitudes desta humanidade repleta de aberrações que se tornam ponto comum, onde o gigante Gargantua nasce de forma a recordar uma outra transgressão, desta feita cinematográfica: o momento caótico e absurdo do nascimento de outro anti-herói nas telas brasílicas – Macunaíma, na antológica cena do filme de Joaquim Pedro de Andrade. Porém, trata-se de Teatro, e de um bom e pertinente Teatro, que é elaborado com uma minúcia e técnica, mas que não o deixa “carregado” ou com maneirismos.

O elenco demonstra estar cioso de sua capacidade, de sua responsabilidade para com o espectador, o tempo de respostas, com ínfimos erros de “deixas” teatrais, torna esta trupe teatral de uma envergadura maciça, e entramos pra valer no jogo proposto pela encenação.

A música, com letras de Aldisio Filgueiras, é uma outra delícia, tal qual a glutonaria dos gigantes, da família que em livros posteriores de Rabelais tornar-se-á “pantagruélica.” Das “toadas escrachadas” aos rompantes de um metal jazzístico, das marchinhas insinuantes e calculadamente delinquentes, politicamente incorretas (que bom escrever isso!) tem-se a impressão que o carnaval engoliu o rock, ou blues, seja lá o que os nossos ouvidos escutam.

Tudo dentro de um caos construtivo e anárquico, onde os palavrões proliferam nas bocas das personagens e curiosamente vão adentrando naturalmente no espetáculo, como se aquelas criaturas cênicas imprimissem um selo, um estigma, no confortável ouvido do espectador. Não é um insulto, é uma necessidade objetiva, e os intérpretes o fazem tão bem que se torna uma língua “rabelaisiana”, condição básica para o entendimento desta estética transgressora do autor e do adaptador.

Grandes cenas são apresentadas, o Bar Renascentista acomoda os músicos no andar superior, feito um “deus ex machina” que abusa da sonoridade para tornar a vida mais palatável, a comilança e o sexo um prazer epicurista, enfim, estamos defronte a uma obra de arte verdadeira, protagonizada por atores, atrizes e músicos que se materializam em seres convergentes para que a obra apareça em toda a sua grandiosa estética e linguagem teatral.

Os figurinos lembram contos de fadas grotescos e bufões medievais, fazendo ecos ao teor inovador da escrita de François Rabelais, e de quanto foi inovadora sua contribuição ao mundo da literatura. O teatro feito pelo TESC atinge neste espetáculo uma segurança inquestionável, de elenco e dramaturgia que “regurgita” de forma precisa as contradições deste universo amazônico, inclusive suas neuroses culturais.

O personagem Rabelais costura as cenas com suas engraçadas e absurdas histórias, num jorro de situações que estimulam nossos sentidos, e aqui se inclui o paladar, com as extravagantes culinárias dos gigantes, sempre ávidos em tudo comerem, incluindo a si mesmos! A costura cênica de Márcio Souza é precisa, criteriosa e não força a barra ao fazer o gigante anárquico Gargantua chegar, da França, nesta “Paris dos Trópicos”, a história ganha seu túnel do tempo inserida num contexto histórico que abraça e envolve a França e o Brasil, dentro da ótica do “delírio do látex”, aliás, o tempo é uma convenção desrespeitada criteriosamente dentro desta dramaturgia e encenação exemplar, moderna.

Das grandes “sacadas” da adaptação, temos os saborosos recortes cênicos dos hippies, e aqui destaco que a citação de Theleme nos remete, por tabela, aos esotéricos da estirpe de um Aleister Crowley, personagem tão importante para a contracultura que está retratado em capa de disco dos The Beatles (Sgt. Pepper, de 1967, auge do movimento hippie e da psicodelia), e que emenda as referências dentro deste caos ordenado, ao de Bruxo que parodia um certo “Mago” da Academia Brasileira de Letras, que também transitou por esta literatura hermética nos anos 70, quando era parceiro de um certo Raul Seixas (aquele é imortal e continua fazendo vento, ahahahahah) e a sequência impagável da guerra perpetrada pelo Rei Picrochole, onde a imagem fálica da arma diz tudo: agora estamos fudidos! Ahahahahah.

Grande ator este Robson Ney Costa, de uma entrega total ao seu personagem insano, demente, cruel e fanático. Vale recordar também que estes gigantes da cena não amenizam em nenhum momento, eles não querem um consentimento, a eles interessa a transgressão e a reflexão da cena, do texto, da palavra. A eles importa o seu riso franco e verdadeiro. O aplauso justo e sincero. A vaia é bem-vinda, desde que verdadeira.

A verdade deste espetáculo, o rigor com que foi conduzido, é um momento que não poder ser perdido aos que transitam pelo Teatro feito na terra de Ajuricaba, aos que se interessam por um Teatro que usa a crítica e a existência humana na dose exata da perpetuação dos sentidos, da memória. Sem ser redundante, um espetáculo memorável. Uma boa cagada a todos vocês. Já ia esquecendo, obrigado ao Lázaro. Fui.


(*) Jorge Bandeira é historiador de formação e tradutor por compulsão.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Márcio Souza e a Amazônia
Tenório Telles


A história é um espelho em que se refletem os dramas, as lutas e as esperanças dos seres humanos e civilizações. Contemplá-lo permanentemente é condição imperativa para não cairmos nas repetições e armadilhas que o destino nos impõe. Fruto desse entendimento, o filósofo italiano Benedetto Croce concebia o fenômeno histórico como elemento vivificador da consciência: “A cultura histórica tem o objetivo de manter viva a consciência que a sociedade humana tem do próprio passado, ou melhor, do seu presente, ou melhor, de si mesma”.

O escritor Márcio Souza, cioso da importância da memória histórica no processo de construção da nacionalidade e de formação da subjetividade dos indivíduos, elabora uma obra que tem como um de seus fundamentos a consciência histórica. Sua produção ficcional, ensaística e dramática reflete essa preocupação e, sobretudo, sua profunda identificação com a resistência dos homens e mulheres da Amazônia – em luta permanente contra as investidas dos projetos colonialistas e interesses alienígenas que ameaçam a região.

Comprometido com a História da Amazônia, Márcio lançou este ano um de seus trabalhos mais importantes: História da Amazônia – testemunho contundente sobre o passado do subcontinente amazônico, em que faz a denúncia do processo de destribalização e massacre perpetrado historicamente contra suas populações. Considera que o “processo histórico da Amazônia... tem sido como o instinto animal livre que defende o seu território, que delimita o seu domicílio e repele as investidas da desinformação e do preconceito. Cada momento da história, ao correr o risco de cair no esquecimento ou sofrer uma explicação mistificadora, deve ser como uma prova do ato coletivo de existir, como um marco da presença afirmada ao longo do tempo. Por isso, há livros de História com o mesmo prestígio de uma vitória bélica. E são essas obras que acompanham a construção da personalidade de um povo, como um testemunho de potência, de seu desejo afirmativo”.

História da Amazônia possui esses atributos. É um livro escrito para dizer não ao esquecimento, lançar luzes sobre o passado, denunciar os criminosos e resgatar do limbo os oprimidos e massacrados. É um livro escrito para dialogar com o presente, com os jovens, com os professores, com os homens e mulheres que se preocupam com o futuro da Amazônia. É um chamamento à consciência – libelo contra a perda da memória, para que tenhamos sempre a memória de nossos erros e, assim, possamos trabalhar pela construção de um futuro histórico que não seja a expressão de nossa derrota, mas da vitória do ser humano sobre a opressão e a destruição de nossos rios, florestas, bichos, valores culturais, saberes milenares e dos seres encantados das matas. De nossa identidade, que, como nos alerta o autor, é “um corpo formado pelos rios enormes, pelas selvas brutalmente dilaceradas, pelos povos indígenas dizimados, pela saga de homens na conquista da natureza. Mas ao mesmo tempo não deixa de estar perenemente voltada para Meca, que é a própria Amazônia, um espaço tão vasto quanto a crença, capaz de fazer a geografia confluir para a pedra negra que dentro de nós indica que somos da Amazônia, filhos da mata, filhos das águas”.

O objeto do livro não é apenas a Amazônia brasileira, “mas também aquelas que falam espanhol, inglês e holandês”, e especialmente a que é berço das populações nativas que forjaram sua identidade e história antes da chegada dos conquistadores. A obra foi escrita para ser um farol e lançar luzes sobre as sombras que pairam sobre o tempo e a memória desse vasto e imenso mundo verde e aquoso – e quem sabe ajudar a “superar os erros e até sarar as feridas”.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Sobre a matemática de Borboleta
.
(conto infantil)

Allison Leão

II


Antônio não tinha ficado amigo do Felipe de Oliveira Borboleta por causa da genialidade que este demonstrava ter na tabuada. Havia sido por pena de sua triste figura. Isso não tornava Antônio muito nobre, é claro, mas ele já havia se esquecido dos motivos que o levaram a se aproximar de Felipe de Oliveira Borboleta, porque agora o que importava era que tinha dado muita sorte em ser amigo daquele menino desengonçado. Os demais colegas já tinham percebido o valor de ser amigo de Felipe de Oliveira Borboleta, mas a esta altura ele não se deixava entregar a outra amizade senão à de Antônio. Às vezes aceitava um ou outro pastel de alguém, mas, na hora da tabuada, só aliviava a barra do amigo. Eram antes dois enjeitados ou, na melhor das hipóteses, dois pedaços de nada que faziam companhia um ao outro – um, por não ter nada que chamasse atenção, outro, pela aparência deprimente –, mas agora eram distintos. Na verdade, Antônio não havia feito grandes coisas, permanecia com sua mentalidade mediana: às vezes acertava uma ou outra pergunta na tabuada; muitas vezes errava. Mas eram as mesmas que todos – exceto o Felipe de Oliveira Borboleta – erravam. À sombra de seu amigo Antônio se apontava: o amigo do garoto mais inteligente da 5a série.

De vez em quando, alguém vinha pedir a Antônio que intercedesse junto ao Felipe de Oliveira Borboleta para que ele maneirasse nesta ou naquela mão. Antônio dizia que estudaria o caso, faria lá seu tráfico de influência. Mas nunca chegava a pedir por ninguém. Que se danassem! Qualquer coisa, depois da sabatina, dizia para o suplicante que não se aborrecesse com o Felipe de Oliveira Borboleta, pois ele era muito aplicado na tarefa de dar bolos. Aqueles foram os melhores dias da vida escolar de Antônio Douglas.

Certa semana, a professora, querendo variar, passou a casa de 2. A maldita casa de 2! A turma respirou aliviada porque seria uma semana sem esquentar as mãos com os bolos de Felipe de Oliveira Borboleta, pois todos consideravam moleza a casa de 2. Mas Antônio Douglas tinha seus problemas. Como de costume, Felipe de Oliveira Borboleta estava sentado atrás do amigo, e justo para este calhou: 2+2? Cinco, disse, como sempre hipnotizado por aqueles números tão fáceis de se resolverem. Incrédula, ela repetiu a pergunta, e ela nunca repetia, 2+2? Cinco, ele reafirmou. Antônio Douglas sabia que não devia dizer isso, mas não conseguia evitar. A questão passou ao amigo. O alívio, depois do vexame de errar essa simples pergunta, foi saber que era Felipe de Oliveira Borboleta quem o “castigaria”. Por isso, deixou a mão mole, à mercê da displicência, como sempre.

Talvez por estar tão entregue e desprevenido o choque lhe tenha sido tão grande. Antônio Douglas chorou pela dor na mão, porém muito mais pelo susto e pela confusão na sua cabeça. Não era para ser de brincadeira? Ele costumava ouvir aquele tremendo estalo vindo de mãos alheias – não sabia o que era ouvi-lo e sentir dor ao mesmo tempo. A professora continuou a sabatina e Antônio Douglas permaneceu olhando para o efeito do bolo: a mão inchando lentamente, avermelhado-se e conservando pequenas pintas claras, talvez dos furinhos que havia na palmatória. Requinte didático.

Antônio Douglas não olhou para trás. Estava confuso. Mas também estava furioso com o Felipe de Oliveira Borboleta. Quando acabou a aula, deixou-se retardar. Voltou sozinho para casa, segurando com uma das mãos a outra machucada, como se carregasse um passarinho morto.

Nas semanas seguintes não se falaram. Antônio Douglas andava pelos cantos. Sua imagem havia desmoronado, sua influência estava irremediavelmente perdida na turma. Agora ele era só aquele que um dia foi. Mas o Felipe de Oliveira Borboleta estava bem. Havia se enturmado com os garotos populares. Andava de afagos com o William, o Jackson, o Jean e o Kevin. E, pelo visto, esquecera-se daquela grande amizade.

Nos dias de tabuada Antônio Douglas passou a faltar aula. Saía de casa, mas embromava pelas ruas até a hora de voltar. Nos outros dias era aquele Antônio, menininho de 9 anos, do primeiro dia de aula, pois o Felipe de Oliveira Borboleta tinha contado a todos o seu segredo. Certa vez, não agüentando mais tanta rejeição, Antônio foi procurar o japonês. Perguntou-lhe se podia socar sua barriga. Shito Kano ficou feliz, porque ninguém nunca mais havia feito isso, os colegas tinham se cansado, e agora Antônio, que nunca havia se interessado por aquela prática, o solicitava. Antônio bateu muito naquela couraça e, aliviado, agradeceu. O japonês, em nada alterado, disse que não fora nada, estava mesmo sem treino. Shito aproveitou para fazer um reparo: não era japonês, era neto de índios. Seu nome derivava da conjunção do analfabetismo dos pais com a desatenção ou a surdez de algum tabelião. Shito Kano deveria ter sido Chico Tucano – assim mesmo, e não Francisco. Mas sua infelicidade onomástica não interessava a Antônio, que apenas quis saber se poderia socar-lhe a barriga mais vezes. Chico disse que não tinha problema, Antônio batia muito fraco.

Num dos dias em que se ausentava da escola, quando já voltava para casa, Antônio cruzou, numa rua pouco movimentada, com seu antigo amigo, que vinha acompanhado de novas amizades. Enquanto o William, o Jackson, o Jean e o Kevin cercavam Antônio, na forma de um quadrado hostil, Felipe de Oliveira Borboleta pôs-se no centro dessa formação, perante o ex-amigo. Já que Antônio não havia ido pra aula, Felipe de Oliveira Borboleta faria sabatina ali mesmo. Perguntou quanto eram 2+2. Cinco, Antônio respondeu em cima. Nisto, Felipe de Oliveira Borboleta pediu a um dos garotos que lhe fizesse a mesma pergunta, ao que obviamente respondeu 4. Os outros então seguraram Antônio e o antigo amigo passou a lhe socar a barriga, que infelizmente não era tão preparada quanto a de Chico Tucano. Felipe de Oliveira Borboleta repetia a pergunta, 2+2? 2+2? 2+2? 2+2? E Antônio, sempre absorto pelos fascinantes números, cinco! cinco! cinco! cinco! E cada vez que falava era um soco na barriga. Felipe de Oliveira Borboleta disse para Antônio fazer-lhe a mesma pergunta. Ele fez. E o outro, como era de se esperar, sempre dava a resposta correta, desesperadoramente correta. Como podem ser cinco? – Felipe de Oliveira Borboleta perguntou a Antônio – é impossível! Diz que são 4! diz!, berrou. Os garotos que seguravam Antônio passaram a achar aquilo muito estranho e o soltaram devagar, indo depois embora. Felipe de Oliveira Borboleta estava no chão, de cara no asfalto. Implorava para que Antônio lhe ensinasse a pensar como 2+2 podem ser cinco.

Ficou lá chorando e suplicando. Não chegou a ver o antigo amigo se afastando – devagar e ainda com a barriga dolorida – da sua triste presença.

sábado, 19 de dezembro de 2009

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Candinho & Inês em DVD


Candinho e Inês estarão nesta sexta-feira, dia 18, no Espaço Cultural Valer (Av. Ramos Ferreira,1195 – Centro), a partir das 19h, realizando o pré-lançamento do DVD Em cada palmo desse chão. O evento contará com a participação do cantor e compositor Célio Cruz, da cantora Lucinha Cabral e da cantora Verônica Lima. Além das atrações musicais, haverá declamação de poemas com Tenório Telles e Ana Beatriz, filha de Candinho e Inês. A entrada é franca e os DVDs estarão a venda ao preço de R$ 25,00.

Registro do show homônimo realizado no final de 2008, no Teatro Amazonas, Em cada palmo desse chão comemora os 25 anos de estrada de Candinho & Inês, celebrados em 2007. O álbum reúne desde “Loucos animais” e “Seu moço” – da estreia da dupla em 1982, no Festival Universitário de Música (FUM) –, passa por canções emblemáticas como “Renovação” e chega à produção recente, incluindo a faixa-título, ela mesma uma lembrança da trajetória do casal. Fala dessa caminhada da dupla, do amor pela terra. As 21 canções do DVD atestam a fidelidade de Candinho & Inês à proposta musical que abraçaram desde o início de uma bela carreira.

Evento: Pré-lançamento do DVD Em cada palmo desse chão
Data: 18 de dezembro de 2009
Horário: 19h
Local: Espaço Cultural Valer(Av. Ramos Ferreira, 1195 – Centro)
Quanto: Entrada franca
caminhante


cansado da longa caminhada, sentou-se à beira da estrada. e começou a mastigar as pedrinhas que restavam no bolso do blusão encardido.

era quase fim de tarde quando decidiu retirar da sacola de couro os únicos pertences que o acompanhavam: a ânfora, o caderno de notas e a flauta.

ao sopro da flauta, pousaram-lhe sobre os ombros as primeiras aves. mas foi a pomba branca que trouxe no bico o pequeno ramo de oliveira.


(Adrino Aragão)

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Medicina como Paideia IV
João Bosco Botelho


Platão (Górgias 464b, 465a, 501) utilizou parte da estrutura teórica da medicina-oficial grega como instrumento para compor algumas linhas mestras da sua concepção ético-filosófica. Nesse genial processo, estabeleceu valor significante à verdadeira tékhne, como forma de conhecimento na natureza do objeto destinado a servir ao homem.

Os conceitos platônicos confirmaram o médico como a pessoa que, baseada no que sabe sobre a natureza do homem sadio, conhece também o contrário, o homem doente, e competente para encontrar os meios para restituí-lo à saúde.

Com base neste modelo, Platão traçou a imagem do filósofo tendo a mesma função no trato da alma. Existiu, neste ponto do pensamento platônico, uma semelhança viva entre o médico e o filósofo, ao se completarem na busca da harmonia plena do homem com a natureza.

Os médicos gregos interpretaram um dos mais complexos problemas do diagnóstico: as múltiplas formas como uma mesma doença pode se manifestar. Para superar o estorvo, os teóricos das escolas de Knido e Cós viabilizaram classificações descrevendo essas manifestações, mas reconhecendo-as como uma doença (Thivel, Antoine. Cnide et Cós? Paris. Les belles Lettres. 1981). O genial dessa nova interpretação, nunca antes usada, é o fato de ter evitado o erro cometido nas medicinas-oficiais anteriores, praticadas nas primeiras cidades, onde as muitas manifestações clínicas da mesma moléstia eram consideradas doenças diferentes. Esse método foi identificado por Platão como dissecação ou divisão dos conceitos universais nas suas diferentes classes (Cornford, F. M. Principium Sapientiae: as origens do pensamento filosófico grego. 2. ed. Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian, 1981).

A Medicina como Paideia também contribuiu para que Platão reconhecesse as três virtudes do corpo - saúde, beleza e força - que harmonizariam com as quatro virtudes da alma - piedade, valentia, moderação e justiça.

As atitudes educadoras da Medicina como Paideia ultrapassaram os limites da terapêutica e incluíram a massagem, a prática dos esportes, a música, a dança, o teatro e os banhos coletivos no cotidiano da busca da saúde. No texto Das Epidemias (Darember. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855), da Escola de Cós, esta ideia está clara:
A arte do médico consiste em eliminar o que causa dor e em sarar o homem, afastando o que o faz sofrer. A natureza pode por si própria conseguir isto. Se sofre for estar sentado, não é preciso mais que levantar-se; se sofre por se mover, basta descansar. E tal como neste caso, muitas coisas da arte do médico a natureza as possui em si própria.

Também é possível sentir, ao longo do século 3 a.C., o vigor da ação médica ligada à noção global da natureza jônica. O livro Das Epidemias confirma os conceitos de harmonia e medida (Daremberg. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855): “ ... o esforço físico é o alimento para os membros e para os músculos, o sono é para as entranhas. Pensar é para o homem o passeio da alma”.

Nesse sentido, o médico era chamado para recompor a saúde, por meio de técnicas desconhecidas dos não-médicos. Para esse fim, utilizava os saberes como instrumento de leitura da natureza, como a justa medida da saúde. Hipócrates e os médicos da Escola de Cós, na obra Da Medicina Antiga, seguiram esse pressuposto ao afirmarem que o médico não pode saber de Medicina nem tratar os seus doentes sem conhecer a natureza do homem (Daremberg. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855: “... os argumentos deles apontam para a Filosofia tal como a de Empédocles e de outros que escreveram sobre a natureza e descreveram o que o homem é desde a origem, como primeiro surgiu e de que elementos é constituído”.

A concepção teórica de saúde dos gregos também envolveu a harmonia. Sendo de natureza harmônica em si mesma, isto é, preenchendo na medida e simetria exatas as vicissitudes individuais, a saúde deveria ser procurada neste contexto da compreensão do normal. Sob essa mesma perspectiva, Platão (Fédon, 93e; Leis 773a; Górgias 504c) entendeu a saúde como a ordem do corpo e Aristóteles (Aristote. Ética a Nicômaco. X 1180b) associou a multiplicidade do comportamento moral às múltiplas dietas prescritas pelos médicos para as febres, mas não para todas as febres.

A tendência classificatória do pensamento grego, especialmente o aristocrático, estimulou as tentativas de ordenar as doenças em grupos que apresentassem alguma semelhança no diagnóstico, no tratamento e no prognóstico.

Com a literatura médica contendo as recomendações específicas das normas que deveriam ser obedecidas para evitar a doença, a medicina-oficial grega inicia outra importante contribuição para consolidar-se como Paideia - a saúde não dependeria só dos médicos. A dieta, a higiene, o lazer, a cultura, o esporte são partes do corpo são.

Os hospitais construídos nesse período eram grandes e possuíam divisões destinadas aos médicos e enfermos. O hospital da Escola Médica, na ilha de Cós, possuía salas de exames, alojamentos individuais para os doentes, salas de banhos coletivos, praça de esportes e anfiteatro para dez mil pessoas. É um dos muitos exemplos de como a arquitetura grega amparava o discurso teórico da harmonia com a natureza na busca da saúde.

O novo espaço da Medicina como Paideia junto aos conceitos jônicos com objetivos educadores, contribuíram para o surgimento das mais importantes obras médicas destinadas ao público não médico. Essas obras, Da Dieta, De um Regime de Vida Saudável e Da Natureza do Homem contêm fantásticas sugestões de como deve ser a vida das pessoas para evitar as doenças. Entre muitos aspectos, descrevem detalhes da caminhada após cada refeição dependendo da idade e das condições físicas de cada pessoa nas diferentes estações do ano.

A palavra higiene se impõe no sentido regulador não só da alimentação, mas também como caráter educativo na rotina do trabalho. A ginástica passou a fazer parte da manutenção da saúde. Por esta razão, os ginastas permaneceram independentes frente ao crescente poder médico nas relações sociais e também conquistaram papel importante no aconselhamento do corpo sadio.

O texto De um Regime de Vida Saudável se propõe servir de guia ao público. O autor desconhecido estabeleceu os parâmetros da cultura médica mínima que todos deveriam ter para permanecerem saudáveis. O objetivo central seria estabelecer, pela lei, o caminho que as pessoas deveriam seguir para evitar a doença.

O propósito parece ser o mesmo do autor do livro Da Dieta que aborda, em quatro capítulos, a teoria dos Quatro Humores. Se as patologias eram causados pelo desequilíbrio dos humores - o sanguíneo, o linfático, o bilioso amarelo e o bilioso negro - e estavam relacionadas com o cotidiano das pessoas, nada mais lógico do que estabelecer normas alimentares com o intuito de evitar os males da alimentação.

A estrutura teórica da Medicina como Paideia, na Grécia, no século III a.C., estava tão bem elaborada que perpassou o mundo romano. No século II, o médico Galeno (138-201), o mais conhecido representante da medicina-oficial romano-cristã, acoplou aos humores da Escola de Cós as novas categorias denominadas temperamentos. Os escritos galênicos, valorizados durante mais de quinze séculos, no Ocidente cristão, valorizava a sangria sobre todas as alternativas de tratamentos. Para cada humor haveria um temperamento que ditaria as condições de saúde, de doença, e da capacidade intelectual de cada indivíduo:

Humor / Temperamento

Sanguíneo / Sanguíneo
Fleuma / Linfático
Bilioso preto / Melancólico
Bilioso amarelo / Colérico

A imensa flexibilidade da Medicina como Paideia acabou ferida, na Idade Média, pela intolerância restritiva exaltando a medicina-divina, onde Jesus Cristo e os Santos ao substituírem os deuses e deusas greco-romanos, tornaram-se a única terapêutica requerida pelos incontáveis doentes sem esperanças, nos incontáveis santuários, especialmente em Jerusalém e Compostela.

A influência hipocrático-galênica trazida pelo elemento colonizador esteve claramente presente no Brasil, quando a princesa Paula Mariana, filha do primeiro imperador do Brasil, sob os cuidados dos mais importantes médicos da corte, faleceu após ser submetida a muitas sangrias e clisteres para expurgar os “maus humores”. No século XIX, o viajante Von Martius descreveu o temperamento dos índios como “fleumático, por terem pouco sangue nas veias”.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Fantasy Art – Galeria

Boris Vallejo.
drops de pimenta 41


─ Quer um pedaço? É de chocolate...

─ Não, obrigado.

─ Poxa vida... Fui eu que fiz...

─ E daí? Você é light, diet, não-calórica?

(Zemaria Pinto)

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Lançamentos


Ainda que depois (a praxe é noticiar antes), aí vão os dois últimos lançamentos da editora Valer, por ocasião de mais um aniversário. A promoçao da livraria, com descontos nunca inferiores a 50%, válidos para todos os livros do estoque, vai até amanhã, 16/12.

O livro de Elson Farias é um estudo sobre a obra Amazônia, Formação Social e Cultural, de Samuel Benchimol. Elson joga luz em um dado novo, trazido pelo professor Samuel: a influência do povo judeu na formação da Amazônia. Lançado ontem, 14/12.


O livro do professor Luiz Almir cumpre o que promete, tornando palatável a burocrática metodologia científica. Lançado hoje, 15/12.
Meditação no Himalaia – pequeno diário de viagem IV

Marco Adolfs


Quando adentrei o salão, seguindo os cadenciados e decididos passos de Gyantzi, meu lama-guia particular, quase que me assustei com o mar de monges carecas e alaranjados que se estendia à minha frente e em todas as direções. Eu e os demais turistas espirituais em busca de iluminação ficamos ligeiramente abobalhados com tal impacto visual. De repente, para mim, e talvez alguns outros, aquilo ali parecia ser um bando de figurantes de algum filme sobre o Tibete, a ser rodado a qualquer momento. Mas era tudo verdade, e, pensei, aquela gente não estava ali para nenhuma brincadeira. Não demorou muito e o som do que parecia ser um pequeno sino ecoou no salão, fazendo aquele mar de monges com suas túnicas alaranjadas desaparecer como num passe de mágica. Quando todos saíram, ficamos apenas nós, os neófitos abobalhados e um lama idoso sentado em uma espécie de cadeira. Em um inglês compreensível, o lama idoso começou então a nos falar sobre como ativar os chakras silenciosos e misteriosos que existiam no interior de nossos corpos.

Dizia o idoso mestre de olhos puxados:

– ...Vocês tem que descobrir antes de tudo que, na base da coluna de todos vocês, existe uma fonte adormecida de poderosa energia... Essa fonte é conhecida como Muladhara Chakra... É o lugar de onde partem as Naadis, que vão até o cérebro... Esse é o caminho da...

Lhasa.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Valer: promoção de aniversário com lançamento


A Livraria Valer chega aos 20 anos de existência. O marco dessa data é o ano de 2010. Para comemorar esse acontecimento, uma série de eventos será promovida ao longo de 2010. Até o dia 16 de dezembro todo o acervo da Livraria estará à disposição dos leitores a preços promocionais, a partir de 50% de desconto. Na programação do dia 16, quarta-feira, será lançado às 19h o livro Sertões de Bárbaros: o mundo natural e as sociedades indígenas da Amazônia na visão dos cronistas ibéricos – séculos XVI e XVII, do escritor Auxiliomar Silva Ugarte.

Auxiliomar Silva Ugarte é hoje pesquisador consagrado, cujo renome é precedido por pesquisas pioneiras, conferências, palestras, artigos e livros. Pouco a pouco, ele construiu uma obra, se entendemos por obra um conjunto de textos atravessados por uma questão. No caso: o papel da região amazônica no contexto global da história do Brasil. O tema, embora amplo e complexo, pouco tem merecido do interesse de historiadores situados no Sudeste do país, ficando entre a memória e o esquecimento, que se vincula a tudo o que constitui a face escondida e desconhecida da história oficial, que foi deliberadamente colocada nas margens da história para que esta se desenrolasse, confortavelmente, a partir de um centro hegemônico. Centro que prefere fazer os brasileiros acreditarem que seu passado começa com os bandeirantes e termina na Revolução de 1932. Mas, sabemos que nossa história não se resume a esses episódios. E para conhecê-la em sua amplitude, na riqueza de espaços e temporalidades que nos escapam, precisamos de historiadores com o fôlego de Auxiliomar Ugarte e de livros como este seu Sertões de Bárbaros.

Nesta obra de precisão e competência, Auxiliomar Ugarte contribui de maneira esclarecedora e convincente para conhecermos melhor este território que é, ainda para muitos, apenas um “gabinete de curiosidades”. Ele se dá como objetivo compreender a Amazônia a partir das significações que o mundo natural nela mereceu ao longo dos séculos.

Apoiado na renovação dos métodos que estudam as mentalidades e sua relação com os contextos culturais, atento a escalas de análise que vão do econômico e político ao etnográfico, sensível aos atores individuais – no caso os cronistas –, Auxiliomar desenvolve uma narrativa agradável à leitura e rica de diálogos com a historiografia contemporânea e clássica. Ao acompanhar os mestres da historiografia internacional que postulam o estudo do mental e do social, ciente de que não existem explicações deterministas para a História, ele inaugura novos campos de estudos: o das sensibilidades e o das mentalidades na região amazônica.

Este livro de arquitetura impecável oferece ao leitor uma fonte rica de ensinamentos sobre um mundo que busca fervorosamente seu caminho. Auxiliomar Ugarte desenrola com lucidez, beleza e erudição um texto onde céu e inferno, anjos e demônios se deram, certo dia, as mãos. No passado, a Amazônia foi espoliada em nome de Deus. Hoje, continua sendo-o em nome do Progresso. Obras fundamentais, como esta, nos ajudam a refletir e a nos perguntar: até quando?!
Lembrar Gandhi
Tenório Telles

Mahatma Gandhi (1869-1948).
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A vida é uma tapeçaria tecida com os fios dos acontecimentos cotidianos. Alguns desses episódios marcam definitivamente a consciência da civilização: exemplo disso é o dia 30 de janeiro. No dia 30 de janeiro de 1948, o fanatismo e a estupidez puseram fim à vida de um dos homens mais generosos e justos que pisaram no chão deste planeta. Um homem feito de luz, sonho, carne e esperança, a quem Einstein chamou de “porta-voz da humanidade”.
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Este texto é para celebrar a memória deste ser humano especial. Que fez da sua vida um gesto a favor do bem, do nobre e da crença na construção de um mundo regido pela justiça, pela fé, tolerância e respeito pelo outro e suas crenças. Que acreditava que a regra de ouro da boa convivência “consiste em sermos amigos do mundo e em considerarmos como uma, toda a família humana”. Para afirmar a autenticidade de suas palavras, renunciou aos prazeres e ilusões mundanos, consagrando sua vida à santidade e à luta pela libertação de seu povo, e dignidade do gênero humano.
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Gandhi faz parte de um seleto grupo de homens que fizeram a diferença. Gandhi é verdadeiramente um homem. Sua história e grandeza são mais que um exemplo para o nosso tempo, especialmente para os jovens. A vida desse ser luminoso, que mereceu de seu povo o cognome de Mahatma (“grande alma”), é um sol aceso sobre este mundo dominado pelas sombras, pela arrogância e pelos fundamentalismos. A trajetória de Gandhi nos ensina que um ser humano não é o tesouro que acumula ou o poder que detém, mas a riqueza de seu coração e a fortaleza de seu caráter. Exemplo disso é que se vestia com uma rústica túnica, por ele mesmo tecida, e morava numa casa modesta.
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Sua religiosidade não estava dissociada das preocupações com o destino de seu país e da própria civilização. Sonhava um mundo diferente, fraterno e justo. Compromissado com a liberdade, fez-se líder de seu povo, colocando sua vida a serviço de sua libertação. Defensor da Não Violência, usou métodos pacíficos de luta contra a dominação inglesa na Índia. Vitorioso, firmou-se como uma das maiores lideranças políticas do século passado. Infelizmente sua mensagem e atitudes encontraram poucos seguidores: em nossos dias, reinam na política a intolerância, a mentira e a falta de compromisso com o bem comum. Diante de Gandhi, os líderes de nosso tempo são anões. Se considerarmos a realidade brasileira, temos uma legião de pulhas e degenerados. Esse é um tipo de gente que empobrece a existência.
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Não há nada mais inadequado do que falar desse homem nestes dias de festa, excessos e promiscuidade. Coisas que em nada contribuem para tornar o gênero humano melhor. Gandhi defendia que o ser humano deve cuidar cotidianamente de seu aprimoramento espiritual e “viver em santidade”. E para isso é indispensável combater o que chamou de os “sete pecados capitais” responsáveis pelas injustiças: “riqueza sem trabalho; / prazeres sem escrúpulos; / conhecimento sem sabedoria; / comércio sem moral; / política sem idealismo; / religião sem sacrifício / e ciência sem humanismo". Gandhi está vivo e sua voz ecoa no canto dos pássaros e brilha no colorido das manhãs. Pena que tantos estão surdos e cegos para perceber a sua presença.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Novo point


Clique sobre as imagens, para ampliá-las.
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A partir desta segunda-feira, 14/12, o Pina Chope, abre suas portas para o happy hour. O local, aconchegante e ventilado, promete ser o novo ponto de encontro de quem gosta de bebericar e conversar, ao som de música de alta qualidade.
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O Pina Chope fica nos altos do tradicional Pina Lanches, bem em frente ao SINE.
Sobre a matemática de Borboleta
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(conto infantil)

Allison Leão

I


Difícil saber exatamente o que uma mãe pretende ao matricular, dois anos antes do devido, seu filho na escola – certamente tem suas razões e talvez ótimas intenções. Do que vou contar, só é possível concluir que tal zeloso gesto tenha causado sérios problemas sociais ao menino de que agora saberemos. Senão vejamos:

Cá o temos na fila escolar, em seu primeiro dia de aula. Está com recém completados cinco anos de idade. A situação, apenas por estranha que seja, pode apequenar de receio estas já pequenas criaturas. Sendo este menino mais novo e menor que os demais, calculem... No fim das contas, estranhos todos eles são uns aos outros, e por isso, de pronto, dois caminhos se apresentam nesse importante dia: ou eles se entregam ao medo e choram, ou procuram se identificar logo com este ou aquele colega. Felizmente, como há urgência na situação, identificar-se com alguém não requer maiores argumentos. Pode acontecer por mochilas que se pareçam; por já se terem cruzado pelas ruas do bairro; quem sabe, por serem da mesma igreja; e, num caso de sorte, talvez haja entre os colegas do primeiro dia um primo de que se goste muito (ou de que não se goste nem um pouco – nessas circunstâncias, tanto faz).

Douglas chorou.

Naquele dia, além dele, apenas duas meninas choraram. Desde então, Douglas aprendeu que: meninas só andam com meninas; e meninos não andam com menininhos chorões.

Nos meses que se seguiram, não houve adaptação. Boa e perversa memória têm as crianças. E ainda que não a tivessem, o tamanho desprivilegiado de Douglas frente aos outros os fazia recordar: nós, meninos, ele, menininho. E chorão. Várias vezes pediu à mãe que o tirasse da escola. Mas ela dizia-lhe para deixar de ser frouxo. Ante a irredutibilidade da mãe, ele começava a chorar. Ela então o abraçava e o chamava de meu menininho. E entre a necessidade de deixar de ser frouxo e a condição de menininho – e pária –, Douglas atravessou o primário, chegou ao fim da 4a série.

Felizmente para Douglas, a escola não oferecia estudos da 5ª série em diante, e ele teve de ser transferido. Em geral, as crianças eram distribuídas entre as várias escolas da região. Para os propósitos de Douglas, isso era ótimo, pois, com um pouco de sorte, muitos dos conhecidos que sabiam do seu passado iriam para escolas diferentes da sua. Além disso, esses colégios eram maiores que a antiga escolinha e possuíam várias turmas de 5a série, de maneira que as possibilidades de encontrar com as marcas do primário eram bem remotas.

A 5a série chegou como um réveillon de promessas. A escola grande, os corredores repletos de garotos e garotas desconhecidos e desconhecedores. O infeliz detalhe de estar acompanhado da mãe neste novo primeiro dia não chegou a reprimir o comichão que assaltou Douglas, se bem que lhe tenha engasgado qualquer manifestação de alegria. No entanto, assim que soube em que turma o filho ficaria, ela foi embora. E já foi tarde, poderia ter pensado o menino, se a hora fosse para pensamentos.

Não era. Ele queria voar, andar pelos enormes corredores, ver os novos rostos, sentir o prazer de ser desconhecido. Ninguém que soubesse de sua idade, podia começar do zero. Ou melhor, dos 11: crescer dois anos em um dia! Podia inventar outro nome para si. E não seria difícil, afinal, nos primeiros dias de aula os professores não dispunham da lista de chamada. Cada um deles passava a classe em revista simplesmente perguntando a cada aluno seu nome. Tecnicamente, Douglas não iria mentir, já que este era seu segundo nome. Mas era necessário testá-lo, afinal nunca havia sido utilizado, a não ser para atrapalhá-lo enquanto era alfabetizado. O incomum tanto pode ser feio como belo, mas continua sendo incomum.

Em meio à azáfama inicial, antes da primeira aula, Douglas circulou pelo colégio. Ao passar pela cantina, notou um colega sozinho, recalcado num canto. Gordinho e como se acuado estivesse, o garoto devorava com ferocidade um pastel de queijo, talvez se apoiasse no pastel e se resguardasse atrás da garrafa de refrigerante – quando enfiava esta na boca, olhava ao redor através do líquido gelado e negro. A Douglas pareceu inseguro, o que lhe deu confiança: se meu novo nome gerar risadas nesse coitado, fico com meu primeiro e marcado nome, cogitou. Chegou perto e disse oi. Mas, de boca cheia, o garoto demorou a responder. Douglas repetiu a saudação e agora lhe perguntou o nome. Após um gole em que aproveitou para estudar a única figura que até ali lhe havia dirigido palavra, Felipe de Oliveira Borboleta falou.

E que alívio para Douglas: o outro tinha um nome pior que o seu. Um reparo e um quase isso: não era o nome, era o sobrenome; e não era pior, era mais esquisito, isto é, pior. Douglas achou curioso o menino dizer o nome completo. Felipe de Oliveira Borboleta disse que assim seu pai recomendara: que nunca tivesse vergonha do sobrenome, pois as pessoas é que ignoravam a verdadeira força que pode haver numa borboleta. Douglas assim se apresentou. O outro não riu. Voltou a se concentrar no pastel. Douglas ficou sem assunto, até pensou em explicar a origem do nome, que a mãe encontrara numa revista antiga a foto de um belo avião. Mas achou melhor se retirar, que o teste já estava feito, o nome estava aprovado.

A primeira aula foi de matemática. A professora pediu que cada um se apresentasse, que dissesse onde havia estudado, quantos anos tinha etc. Mentalmente Douglas preparava uma breve apresentação: meu nome é Douglas, tenho 11 anos. Douglas, viu? 11 anos, viu? Mas antes que chegasse sua vez ouviu o primeiro aluno que se apresentou dizer que ali na sala só conhecia o Antônio, aquele ali, e apontando para Douglas acabava com seu sonho de ser outra pessoa. Imerso na empolgação pela vida nova que dançava à sua frente, Douglas não percebera a presença de Aristóteles Cabeção, o maior fofoqueiro da antiga escolinha. Cabeção não sabia falar de si, e Douglas era, naquele momento, seu único conhecido. Ao menos Douglas não precisava mais se apresentar: Cabeção quase não deixou nada por ser dito, enfatizando o choro do colega no primeiro dia de aula, na 1a série. Mas felizmente esqueceu-se do importantíssimo detalhe da idade. Ainda assim, os poucos minutos na vida de Antônio como Douglas acabavam ali.

Naquela mesma aula, a professora avisou que toda semana haveria uma sessão de tabuada. E o desespero congelou-se na garganta de Antônio. Ele não era exatamente um mentecapto, mas a casa mais simples, segundo comumente se acredita, era com a qual tinha seus maiores problemas. Isto é, não era a casa toda, era uma só linha: 2+2. É inexplicável o que acontecia a Antônio, mas desde a 1a série ele sempre respondia automaticamente cinco à pergunta 2+2? Primeiramente se distraía com a beleza perfeita e reta dos números. Depois não resistia à tentação de espatifar essa retidão, e: cinco.

Ainda nesse dia, houve grandes gargalhadas quando Felipe de Oliveira Borboleta se apresentou. Por empatia, Antônio sentiu piedade do outro. Seu aspecto era mesmo deprimente: gordo e rosado, usava óculos, não falava direito, tinha assim como que a boca mole quando pronunciava Éfes, Pês, Vês e Bês, sons que abundavam em seu ridículo nome, que ele fazia questão de dizer por inteiro.

A solidão e o banimento de Antônio não demorariam a se encontrar com o banimento e a solidão de Felipe de Oliveira Borboleta.

Sem demora, descobriram que seus caminhos entre escola e casa coincidiam em grande parte. Começaram a fazê-lo juntos. Felipe de Oliveira Borboleta a princípio desconfiado. Mas, afinal – assim mesmo, de uma hora pra outra –, tornaram-se amigos, talvez porque ninguém mais na escola, durante aquela primeira semana e semanas vindouras, se interessaria em chegar perto de ambos.


Na 5a série, ninguém quer ser notado. Mas para não ser notado é preciso antes de qualquer coisa se fazer notar. O que não se quer, enfim, é ser apontado. Por isso cada qual como que se aponta a si mesmo. O Cabeção se apontava como fofoqueiro: uma cabeça enorme e cinqüenta bocas. Alguns garotos se apontavam pelos adereços que possuíam. O Jean foi o primeiro a ter uma mochila Company, enorme, sobrando em suas costas, como uma corcova: um sucesso! Kevin, o primeiro a aparecer de tênis Reebok. Por ter comprado o calçado dois números acima do seu (para usar por mais tempo), caminhava com dificuldade sobre os pranchões. Havia o Arley, que já trazia fama de outra escola porque tinha o nome muito parecido com o do cometa Halley, e de feio que era o Arley bem podia ter vindo do espaço. Mas nem tudo era grotesco. Havia também a beleza. Beleza porém copiada, pastiche de beleza: diziam que o William era a cara do Morten Harket, o vocalista do grupo A-ha. Logo William perderia espaço para o Jackson, que lembrava um pouco o Jordan Knight, do New Kids On The Block, grupo mais atual na preferência das meninas. Ah, sim, havia as meninas. Serena, linda que era, não falava com ninguém. Quem quisesse ouvir sua voz de pérola teria de ir à Igreja Metodista, onde aos domingos ela solava hinos protestantes. A Cindy, por sua vez, garantiu fama para um ano inteiro após ter chegado à escola de carona num Escort XR3 conversível. De pé no banco de couro, com os cabelos esvoaçando, ria e jogava a cabeça para trás. Parecia que voava. No meio dessa arena de esquisitices havia até espaço para um japonês que levantava a camisa e desafiava todo mundo a lhe dar um soco na barriga, que mais parecia uma calçada de pedras – seu nome era Shito Kano. O pessoal batia e Shito permanecia impassível, como um jacaré ao sol. Por algum pudor, Antônio não batia. Também havia os que não contavam, aqueles de cujo nome, nos longes da memória, ninguém lembrará – Antônio fazia parte desse grupo. E havia o Felipe de Oliveira Borboleta, o melhor na tabuada.

Na área da tabuada, a classe estava mais ou menos homogênea. O problema era que a professora fazia as perguntas muito rapidamente. Numa fração de. Pronto, já foi. De fila em fila, 6x7? 6x7? 6x7? 6x7? 6x7? 6x7? Antônio, abobalhado, ficava a olhar o modo ligeiro como ela perguntava aquilo, e não chegava a tomar consciência sequer da pergunta em si. Mas quando ela chegava ao Felipe de Oliveira Borboleta: 42.

A professora desenvolvera um método infalível de envergonhar os alunos, que consistia em aquele que acertasse a questão passar a palmatória em todos os que, sem êxito, o houvessem antecedido. Como requinte pedagógico, Felipe de Oliveira Borboleta foi posto no último lugar da última fila, e não foram poucas as vezes que ele deu bolo na classe inteira, sob o olhar deliciado da mestra. Mas compreendamos a professora: deve haver certa plasticidade nas mãos estendidas em seqüência e em seqüência retiradas, conforme Felipe de Oliveira Borboleta as coletava com a palmatória. Um balé.

Logo na primeira vez que Felipe de Oliveira Borboleta teve de dar bolo em seu amigo, Antônio notou que o outro ia fraquejar: bolo amargo para se dar ao único amigo! Mas o condenado olhou com firmeza para o carrasco, encorajando-o – os que fraquejavam tinham por castigo tomar bolo da turma inteira. Antônio estendeu a mão com todo o heroísmo que pode ter alguém de 9 anos, isto é, 11. Felipe de Oliveira Borboleta fez cara de mau, mas disfarçada e displicentemente aplicou o bolo mais forreca possível. Percebendo o cinismo de seu amigo, Antônio fingiu dor. E assim o foi todas as demais vezes em que aquele tinha de aplicar a este o castigo. Isso foi um grande passo na amizade dos dois. Antônio não demoraria muito a revelar seu maior segredo – a verdadeira idade. E perguntou ao amigo se ele também tinha algum. A resposta foi negativa. Era um menino sem segredos.
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(Conclui no próximo domingo, 20)