Amigos do Fingidor

terça-feira, 31 de agosto de 2021

Luar de agosto

Pedro Lucas Lindoso

 

A formosa Lua, nosso único satélite natural, sempre exerceu um enorme fascínio aos humanos. Desde que o homem começou a raciocinar e a observar a natureza e seus fenômenos.

Neste agosto ainda pandêmico de 2021, temos uma lua cheia especial que os românticos chamam de “blue moon” (lua azul). Trata-se de uma segunda lua cheia dentro de um mesmo mês do calendário.

O fato me fez recordar um clássico do cinema chamado Casa de Chá do Luar de Agosto. No elenco, Marlon Brando e Glenn Ford brilham em seus respectivos papéis, seguidos pelas ótimas atuações de Eddie Albert e Machiko Kyô.

 O filme retrata uma frustrada tentativa americana de introduzir costumes ocidentais no Japão, logo após o término da 2ª guerra mundial. Na pequena aldeia de Tobiki, em Okinawa, o capitão americano Fisby recebe a missão de construir uma escola. Todavia, os habitantes do local, auxiliados pelo tradutor Sakini, provam ser mais espertos e sábios do que os americanos. Acabam conseguindo construir o que eles mais queriam: uma casa de chá totalmente funcional. No final quando todos entram na casa fica expresso o desejo de que a lua de agosto traga belos sonhos, alegrias e felicidades para todos.

Essa alegria e felicidade expressa no final do filme é o que está sendo perseguida pela humanidade, pelos habitantes do planeta, desde que esse horrível vírus assolou o planeta terra. Alegria que ocorre sob um luar em agosto.  E neste agosto de 2021 temos dois. O segundo, chamado de “blue moon” não tem nenhum significado astronômico. O termo provavelmente vem de uma expressão idiomática do inglês “once in a blue moon” que significa algo incomum, que acontece poucas vezes, raramente.

“Blue moon” também é o título de uma bela e famosa canção muito conhecida pelos amantes do jazz. A letra é um pouco triste. Retrata a solidão. Sentimento que tem sido muito comum durante a pandemia. A solidão de alguém que não tem um amor, mas termina com a felicidade de ter encontrado o amor.

O que se deseja com esse luar especial de agosto é que ele traga a mágica do luar do filme. Naquele luar de agosto acabava o conflito militar entre Japão e os Estados Unidos. Veio um tempo de paz e reconstrução. É o que esperamos nesse luar de agosto de 2021. Paz e fim da pandemia.

 

domingo, 29 de agosto de 2021

Manaus, amor e memória DXXX


Anos 1970, montagem de Dessana, Dessana, pelo TESC. Da esquerda para a direita:
Márcio Souza (coautor), Feliciano Lana (coautor do argumento), Aldisio Filgueiras (coautor)
e Adelson Santos (compositor); em segundo plano, Casimiro Bekstá (consultor).

 

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

A poesia expressionista de Augusto dos Anjos - entrevista ao Literatura em Foco

 

Clique sobre a imagem, para conectar com o YouTube.

Manaus: Edição do autor, 2020.

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

A poesia é necessária?

                     Procura da poesia

 

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)


Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

Diante dela, a vida é um sol estático,

não aquece nem ilumina.

As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.

Não faças poesia com o corpo,

esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.


Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro

são indiferentes.

Não me reveles teus sentimentos,

que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.

O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.


Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.

O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.

Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza

nem os homens em sociedade.

Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.

A poesia (não tires poesia das coisas)

elide sujeito e objeto.

 

Não dramatizes, não invoques,

não indagues. Não percas tempo em mentir.

Não te aborreças.

Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,

vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família

desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

 

Não recomponhas

tua sepultada e merencória infância.

Não osciles entre o espelho e a

memória em dissipação.

Que se dissipou, não era poesia.

Que se partiu, cristal não era.

 

Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intacta.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.

Espera que cada um se realize e consume

com seu poder de palavra

e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceita-o

como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada

no espaço.

 

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível que lhe deres:

Trouxeste a chave?

 

Repara:

ermas de melodia e conceito,

elas se refugiaram na noite, as palavras.

Ainda úmidas e impregnadas de sono,

rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

 

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Escarlate, cor vermelha viva e rutilante

                                              

Pedro Lucas Lindoso


Um dos clássicos da literatura americana é o romance The Scarlet Letter, de Nathaniel Hawthorne. Traduzido no Brasil para A Letra Escarlate ou A Letra Encarnada.

A heroína de Hawthorne, Hester Prynne, é levada presa carregando um bebê no colo e com a letra escarlate “A” bordada no peito. Interrogada pelo clero puritano da cidade, Hester se recusa a dizer o nome do homem com quem ela teve a filha. A recusa de Hester a leva de volta à prisão. Após ser libertada vai morar numa cabana afastada da cidade. A longa história termina com Hester oferecendo apoio para mulheres na mesma situação discriminatória que ela.

O romance de Hawthorne nos remete à conhecida lenda amazônica do boto. Um rapaz bonito, usando um chapéu, e muita conversa, seduz as moças ribeirinhas, engravidando-as.

Foi o que aconteceu com uma cunhã do boi Garantido, o boi vermelho, coincidentemente chamada Scarlet.  A garota engravidou e resolveu ter a menina sem revelar o nome do pai. Alegou ter sido filha de um belo rapaz que retornou ao rio na figura de um boto encarnado.

Os botos encarnados, ou botos vermelhos, são inapropriadamente chamados de boto cor-de-rosa. Mas para os ribeirinhos de raiz, são botos vermelhos mesmo. Ou encarnados. Principalmente para os torcedores do Boi Garantido, o vermelhão vermelhusco, que vermelha sempre e sempre vermelhará.

A garota de Parintins recebeu esse nome em homenagem a falecida jornalista e escritora Scarlet Moon de Chevalier, filha do ilustre amazonense Ramayana de Chevalier que foi membro do IGHA – Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas e da Academia Amazonense de Letras.  Como seu pai e seus irmãos, Scarlet de Chevalier era uma pessoa vibrante, de personalidade forte. Rita Lee escreveu a canção “Scarlet Moon” em sua homenagem. Scarlet foi casada com Lulu Santos por muitos anos. Lulu Santos é cantor e autor de um clássico de nossa MBP – “Nada do que foi será”.

A Scarlet de Parintins casou-se com um dançarino de boi que adotou a sua filha. Scarlet e o marido fazem enorme sucesso em apresentações folclóricas, dançando toadas do boi Garantido. Scarlet apresenta-se sempre na cor vermelha, escarlate, a cor de seu boi.

A cor escarlate, cuja origem etimológica é do francês “écarlate” remete a um vermelho muito forte, rubro, vibrante. Cor vermelha viva e rutilante. Adjetivos perfeitos tanto para Hester, a heroína de Hawthorne, como para as Scarlets. A Chevalier e a poranga do Garantido.


segunda-feira, 23 de agosto de 2021

“Cabelos Arrepiados” e um novo Teatro em Manaus

 Jorge Bandeira

 

A sessão tão esperada neste período ainda de extremos cuidados em decorrência da pandemia de Covid-19. Eu já não aguentava esperar tanto tempo para assistir ao Teatro em sua única forma de autenticidade, o elemento da realidade, onde eu consigo realmente ter a visão e a emoção adequadas de um trabalho artístico nessa seara do Teatro.

O texto de Karen Acioly é o condutor desta possibilidade de sonho, carregado com um bom empenho pelos atuantes e técnicos desta narrativa cênica, no aconchegante Teatro Buia, a cobra que serpenteia este novo palco na cidade da cobra-grande.

É um musical carregado de elementos de um barroco enviesado pelo elemento de um certo goticismo, com referências ao trabalho de Tim Burton e incluo também o Edward Gorey para tornar este caldo de influências mais artístico ainda. É notório que o figurino assinado por Maria Hagge confere ao espetáculo um cromatismo de lúdico e sonho, onde os pesadelos também podem habitar. A lógica dos sonhos não é cartesiana, portanto, falar dos personagens de Cabelos Arrepiados nos tangencia para direções múltiplas, onde a circularidade do palco giratório em espiral, que gira sempre em sentido anti-horário ao espectador, seja o simbolismo mais direto de que estes sonhos atravessam a alma do público através da história de cada um dos personagens deste Teatro de sonhos. Alguém aí lembrou também de Neil Gaiman e de Sandman?

A direção de Tércio Silva é primorosa, concisa, econômica e possui um charme asséptico, o que torna o espetáculo agradável e dinâmico, apesar das mudanças de quadro serem simples, onde cada personagem é apresentado ao público de forma objetiva. A iluminação e o cenário seguem a linha da economia, sem excessos, e tudo se equilibra, inclusive os bonecos que são a extensão dos sonhos das personagens, suas almas altaneiras, seus pensamentos em expansão. A operação técnica e direção de palco de Ricardo Peixoto é feita com esmero, zelo necessário para que o espetáculo aconteça de forma a não criar nenhum ruído entre uma cena ou outra. Tudo de forma discreta, para que a trama e os sonhos sejam ofertados ao espectador da melhor maneira possível.

A execução musical é orgânica, sendo Jeferson Mariano um exímio tecladista, e é muito bom quando a música fica em equilíbrio com as cenas, onde o quebra-cabeças musical também é a cena,

Tico voa livre em seus sonhos, Hagge confere vida em sua manipulação solo do boneco. A meia se transmuta, tudo gira, as sombras se enaltecem. O passeio de Tico é vertiginoso. Davi Lopes é um ator que canta e representa com precisão, apesar de sua voz ficar em tom muito alto em alguns momentos, mas nada que prejudique a encenação.

Cora é da esfera do tédio, Maria Hagge toca guitarra num timbre minimalista, de poucos e eficientes acordes, e aqui destaco a primícia fundamental de todo musical e a qual Cabelos Arrepiados segue à risca: a música também é uma personagem, o personagem é moldado também pela música.

Flora e Dora, as gêmeas, num dilema de paixões com o Dr. X, o brilhante Davi Lopes, na passagem de humor da trama, Hagge e Magda Loiana conseguem prender a atenção do público de forma natural, sem exageros na interpretação, e isso faz o espetáculo não cansar o público, ao longo dos 55 minutos da encenação.

Clara é a emblemática personagem do momento mais delicado do trabalho, no qual a mão do diretor soube conduzir toda a gravidade da situação num diapasão de sutileza, extremamente necessária num tema que perpassa medo e horror. O espectro monstruoso entra em cena mas....

(Aqui entra um metatexto ou metacrítica.)

Nesta cena de bela execução, com 35 minutos já executados de Cabelos Arrepiados, quando o espectro feito com todo vigor e esmero por Wagner Farias entra em cena, eis que entram no Teatro duas espectadoras!!!! Fiquei sem entender... sentaram nas cadeiras à minha frente, mas infelizmente tiraram minha atenção da cena, belíssima cena com velas, alargamento do espectro, coreografia bem executada... enfim, foi uma entrada inoportuna, o que pode prejudicar o bom andamento de qualquer trama teatral, pois o público está concentrado na cena e qualquer ruído ou circunstância que tire o seu foco da cena pode fazer com que o sonho teatral se evapore automaticamente. Fica minha observação para que os atrasos do público sejam evitados.

Ciro fecha a trama com seu sonhar e experiências, o inventor em seu mundo de sonhos, onde o ladrão de sonhos JMB, sim, ele mesmo, o medo e maus pensamentos entram em cena e tornam Cabelos Arrepiados também um ato político. Aqui o panfleto é de necessidade urgente, pois a arte de forma geral tem sofrido com este governo, aliás, governos. A expulsão do mito considerei até tímida, mas valeu, pois ele foi expulso daquele sonho de Ciro, interpretado pelo ator Gabriel Anjos, de maneira eficaz. Aliás, o elenco está muito bem em cena.

Sonhar com a volta do Teatro Real já é possível em Manaus. Cabelos Arrepiados traz este sonho até você.


Texto de Karen Acioly e direção de Tércio Silva.
Último final de semana.
Dica: garanta seu ingresso, comprando antecipadamente, nos canais acima.


domingo, 22 de agosto de 2021

Manaus, amor e memória DXXIX

 

Praia da Ponta Negra, antes do Tropical.

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Relação de Carvajal: a história na confluência do mito

 

Zemaria Pinto

 

Há oito anos, por ocasião do XIII Congresso Internacional da ABRALIC, em Campina Grande–PB, apresentei a comunicação “Representações da Amazônia na relação de Carvajal: devaneio e mistificação”, tomando por base a edição de 1941, traduzida por Cândido de Melo-Leitão.[1] Eu concluía dizendo que o Brasil e o Amazonas, em particular, deviam à memória de Carvajal uma nova tradução, “cotejada com outras obras de vulto que mantiveram uma relação dialógica” com o texto do dominicano estremenho.[2]

Esta edição da Relação do famosíssimo e muito poderoso rio chamado Marañón, organizada, traduzida e anotada de forma magistral pelo professor Auxiliomar Silva Ugarte, vem atender àquele apelo, suprindo uma lacuna que já se estendia por 80 anos. Baseado na versão de Gonzalo de Oviedo y Valdés – enquanto Melo-Leitão baseara-se na versão de Toríbio de Medina –, passamos a ter uma visão mais ampla do relato de Gaspar de Carvajal, posto que o tradutor não se limitou a simplesmente verter do espanhol clássico do século XVI para o português contemporâneo; antes, fez com que as duas versões dialogassem, entre si e com outros textos afins, enriquecendo não somente este trabalho, mas também aquele, de Melo-Leitão – hoje, uma preciosidade de bibliófilos. Para além da história e da linguística, trata-se de uma tradução cultural, um conceito que metaforiza os encontros culturais, preservando suas alteridades, sem a prevalência de visões que naturalmente se antagonizam.[3]

No sentido clássico da palavra – ato de relatar –, a Relação de Carvajal pode ter sido escrita no desenrolar dos acontecimentos, ao longo de nove meses, entre dezembro de 1541 e setembro de 1542. Esta suposição, se aceita, é mais “romanesca”, uma vez que coloca Frei Gaspar, com todas as suas atribulações, ainda com a responsabilidade de atualizar diariamente seu texto em desenvolvimento. Por outro lado, devemos considerar que, se assim o fizesse, dificilmente o dominicano escaparia da tentação da forma “diário”. De qualquer modo – ou no calor da luta cotidiana ou recuperando a memória para sistematizar a narrativa –, já no ano seguinte, após a conclusão da viagem, há notícias de relatos ligados à aventura comandada por Orellana, que provavelmente se baseiam em Carvajal.

 

Fundamentos. Testemunha ocular dos fatos narrados, Carvajal pretendia com seu texto mostrar que Francisco de Orellana não traíra Gonzalo Pizarro, enumerando os incidentes que resultaram numa aventura diversa do que fora planejado. A ira de Pizarro, e de muitos historiadores depois, era com o fato de que o acaso reservou a glória histórica ao subalterno, enquanto o comandante – ele, Pizarro – voltava para casa humilhado.

O texto de Carvajal tem três camadas, intercambiáveis entre si:

1 – Histórica: onde se registram os fatos ocorridos, especialmente após a separação da expedição em dois grupos, relatando a descida pelo rio Marañón até o mar;

2 – Religiosa: onde se observa que o dominicano Carvajal pontua sua narrativa com palavras de agradecimento e louvor a sua fé;

3 – Ideológica: a camada mais complexa, onde Carvajal pretende demonstrar a bravura e a lealdade de seu capitão; para tal, lança mão de artifícios que hoje reconhecemos como literários. A mescla desses recursos com a história revelou-se, com o tempo, um processo de mistificação que, mesmo apontado desde o início por seus críticos, encontrou guarida no imaginário da região.

Misturando história e literatura, num exercício de realismo maravilhoso, o texto culmina com a transposição do mito grego das amazonas para a região que, de tão marcada pela narrativa do dominicano, herdou-lhe o nome. São as primeiras representações da Amazônia, sob forma de relato histórico, arquitetadas ora num simulacro de fantasia literária, ora em clara mistificação.

 

Hiperbólico e maravilhoso. Para atingir o âmago do maravilhoso, o maravilhoso puro, Todorov identifica vários tipos de narrativas onde o maravilhoso se sobressai. A narrativa de Carvajal encaixa-se com perfeição naquilo que o teórico chama de “maravilhoso hiperbólico”, onde “os fenômenos não são sobrenaturais, a não ser por suas dimensões, superiores a que nos são familiares.”[4] Por outro lado, a decisão de inflar a realidade pode ser apenas um reflexo linguístico do espanto, inconsciente, ou uma decisão consciente, que podemos atribuir a uma categoria de criação literária, o devaneio – a fantasia produzida em estado de vigília: “O devaneio é uma atividade onírica na qual subsiste uma clareza de consciência. O sonhador de devaneio está presente no seu devaneio.”[5]

 Não se trata de matéria de ficção, pois, mas sim de uma manipulação consciente da realidade; em nosso caso, histórica.

O maravilhoso hiperbólico aliado ao devaneio ocorre no texto inúmeras vezes, de sorte que vamos nos ater a um ponto que tem sido motivo de polêmica desde sempre: o superpovoamento de algumas áreas do rio Amazonas, apontado por Carvajal, mas jamais comprovado, embora alguns autores considerem que a presença do europeu na região foi o estopim de um autêntico genocídio. Comparada com a baixíssima densidade populacional que conhecemos hoje, as margens do Amazonas vistas por Carvajal parecem resultantes de um devaneio do autor. O surgimento dessa área de grande população associa-se às maiores dificuldades bélicas encontradas pela expedição, numa equação simples, mas perfeita, como justificativa: mais gente, maior a resistência.

As hipérboles são recorrentes, tanto na referência a fatos cotidianos como nas descrições de batalhas, de saques e de características geográficas e demográficas da região, e até à fome que assombrava regularmente a expedição. E não deixa de ser hiperbólica a facilidade que tem Orellana de conversar com os nativos, numa relação intertextual com o evangelista Marcos (16, 14-18).[6]

 

O mito renovado. O mito das Amazonas remonta a Heródoto, no século VI a.C. Nas margens do Thermodon, perto do mar Negro, viviam tribos de mulheres guerreiras, as Amazonas, que tinham invadido uma grande parte do Oriente Próximo, apoderando-se de Éfeso, Esmirna, Pafos e outras cidades. Virgílio, na Eneida, coloca Pentesileia, a rainha das Amazonas, lutando ao lado dos troianos. Um dos doze trabalhos de Hércules foi tomar o cinto de Hipólita, rainha das Amazonas. Alexandre Magno visita-as no Thermodon. Marco Polo, no século XIII de nossa era, dá testemunho do reino de Resmacoron, fronteira com a Índia, onde havia uma ilha habitada exclusivamente por mulheres e outra por homens. Colombo anota em seus Diários notícias sobre a existência de ilhas similares na América – que, então, ele pensava ser a Ásia. Na segunda viagem à América, a frota de Colombo chega a ser atacada por uma “nuvem de flechas” lançadas por “um grupo de mulheres”, nas Antilhas. Antonio Pigafetta, cronista da expedição de Magalhães, também escreve sobre uma ilha só de mulheres. Gonzalo de Oviedo, na sua Historia General y Natural de las Indias, que em seu terceiro tomo abrigou a narrativa de Carvajal que ora se traduz, menciona a existência, nas terras do Novo Mundo, de regiões onde as mulheres “são senhores absolutos (...) e praticam armas (...) como essa rainha chamada Orocomay”, senhora de vasta extensão na vizinha Venezuela.[7] A verdade é que nenhuma narrativa sobre as Amazonas é tão extraordinária quanto a de Carvajal – pois ele, somente ele, as viu.  

Mas as Amazonas, o Eldorado e o País da Canela são apenas alguns dos mitos transladados para o continente americano: o Paraíso Terrestre era um dos objetivos de Colombo, que acreditou estar muito próximo a ele; os índios da América foram tomados pelas tribos perdidas de Israel; a Fonte da Juventude foi em vão procurada; ilhas fabulosas e seres fantásticos também povoaram a imaginação de viajantes e cronistas. Para aqueles aventureiros, todas as fantasias poderiam se tornar realidade sob o encantamento do Novo Mundo. Adaptando-se a classificação de Vico relativa às três idades pelas quais passou a humanidade, inferimos que os europeus já estavam na idade dos homens, mas não se desvencilhavam da memória maravilhosa das aventuras vividas na idade dos heróis – para tanto, precisavam encontrar um lugar onde ainda se vivia na idade dos deuses.[8]

 

A narrativa de Carvajal é a semente da qual brotou o mito, envolto em polêmica e mistérios. Há gente séria que acredita poder achar, ainda hoje, as provas de que Carvajal não aumentou em muito a realidade que vivera. Ao longo do tempo, foram várias as tentativas de esclarecer o mito: Walter Raleigh, que no século XVI descreveu animais fantásticos na Amazônia e anunciou ter descoberto o Eldorado, situou com precisão as terras das Amazonas; um século depois de Orellana, Acuña fala das Amazonas com fé inabalável; La Condamine, no século XVIII, acreditando que uma mentira tantas vezes repetida torna-se verdade, admite que “todas essas informações tendem a confirmar que houve neste continente uma república de mulheres que viviam sozinhas, não havendo homens entre elas.”[9]

Devaneio ou verdade, mito ou mistificação, a relação de Carvajal é o texto fundador da literatura feita na Amazônia. Os seus possíveis excessos fazem parte da nossa história e da nossa memória. Se não é ficção, se não é história, como classificá-lo? – talvez seja um livro de amor: amor pela aventura; amor por seu Capitão; amor por seu Deus; amor pela sua Ordem, da qual ele foi líder influente.

Auxiliomar Silva Ugarte e Valer – tradutor e editora – nos entregam mais que uma obra marcante na trajetória de ambos. Nos consagram, nas frágeis folhas deste livro, um documento perene: a certidão de nascimento da Amazônia, forjada em fogo no bronze da memória – como o mito que ela fundamentou.


Prefácio a Relação do famosíssimo e muito poderoso rio chamado Marañon, de Frei Gaspar de Carvajal, com tradução, estudo introdutório e notas de Auxiliomar Silva Ugarte, Manaus: Valer, 2021.

 

 

 



[1] CARVAJAL, Gaspar de; ROJAS, Alonso de; ACUÑA, Cristobal de. Descobrimentos do Rio das Amazonas. Traduzidos e anotados por C. de Melo-Leitão. Col. Brasiliana, vol. 203. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941.

[2] “Representações da Amazônia na relação de Carvajal: devaneio e mistificação”. Além dos anais do referido Congresso, o texto, expandido, poderá ser lido in: PINTO, Zemaria. A história como metáfora e outros ensaios amorosos. Manaus: Reggo/AAL, 2018. p. 121-148. 

[3] BURKE, Peter. O que é história cultural? Tradução: Sérgio Goes de Paula. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 154-157.

[4] TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução: Maria Clara Correa Castello. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 60.

[5] BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Tradução: Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988. p. 144.

[6] (...) “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura. (...) Os sinais que acompanharão os que crerem serão estes: (...) falarão línguas novas (...).” In: BÍBLIA SAGRADA. Coordenador Geral: L. Garmus. Edição Vozes/Círculo do Livro, 1982. p. 1.234.

[7] MAGASICH-AIROLA, Jorge; DE BEER, Jean-Marc. América Mágica: quando a Europa da Renascença pensou estar conquistando o Paraíso. Tradução: Regina Vasconcellos. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 155-170.

[8] VICO, Giambattista. Princípios de uma ciência nova. Tradução: Antonio Lázaro de Almeida Prado. São Paulo: Abril, 1974. p. 24.

[9] Apud MAGASICH-AIROLA e DE BEER, obra citada, p. 185.


quinta-feira, 19 de agosto de 2021

A poesia é necessária?

                   Depois do último

Isaac Melo

 

depois do último

indígena sucumbir

pela bala envenenada

do capital

vão erguer

em plena capital

em bronze maciço

um grande memorial

para eternizar

e ensinar

às gerações futuras

o amor

e o valor

das culturas

 

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

O TESC acabou? Carta Aberta a Cleonice Alves

 

Jorge Bandeira*

 

Eu não costumo falar do passado com um saudosismo desproporcional, alavancado por sentimentos de revanchismo ou mágoas que voltam do nada, mas fiquei muito cabisbaixo de triste com algumas informações, vindas de fontes altaneiras, de que o TESC – Teatro Experimental do SESC, importante grupo de teatro de Manaus, depois de 14 anos ininterruptos, em sua chamada segunda fase, ACABOU. Simplesmente, assim, como se nada tivesse acontecido.

Um silencio sepulcral se instala agora, nada se noticia, e a gente fica sabendo das coisas assim, com um sobressalto. Considero, se isso realmente se comprovar, uma falta de respeito absoluto com o público e com todos que passaram pelo TESC, desde 1969, inclusive.

Após o retorno de Márcio Souza a Manaus, após sua passagem na presidência da Funarte, o TESC ressurgiu com forca total, com um repertorio espetacular e que inclusive voltou a agitar a cena teatral em Manaus, na companhia de outros grupos e artistas. Não consigo entender o que faz uma instituição como o Sesc interromper a trajetória de algo que se fazia com qualidade e regularidade, angariando sempre frutos positivos à instituição, inclusive com notável repercussão no exterior, quando o TESC chegou a Franca, recebendo aplausos entusiastas dos franceses. Um grupo como o TESC se esgotando desta forma é um retrocesso ao Sesc, e chega de colocar a culpa na crise, por favor, o TESC seria o último a ser sacrificado nessa conjuntura, Sr. Roberto Tadros.

O teatro é uma fonte inesgotável de transformações, e ao longo destes 14 anos vi muitos trabalhos e um público lindo e assíduo, seja no teatrinho, no ginásio ou em locais externos onde o TESC se apresentava. Li livros sobre o TESC, inclusive com destaques a esta nova geração de talentosxs interpretes, diretores, assistentes, enfim, esse povo todo ficou a ver navios?  Me impressiona a crueldade desta situação, realmente não esperava por isso, e fico pensando agora onde e quando escreverei minha próxima crítica a uma montagem do TESC, já que ele não existe mais? Escrevi vários textos sobre as montagens deste oportuno retorno do TESC, acompanhei desde o início essa grata aventura,  ri e me emocionei por diversas vezes ao longo destes 14 anos,  eu, que assisti em 1982 ou 1983, não lembro, A Resistível Ascensão do Boto Tucuxi, e depois disso tudo ver a coisa ir embora assim, se desvanecendo, me deixando na memória o Robson Ney, o Robson Medina, a Carla Alessandra Menezes, Dimas Mendonça, Emerson Nascimento, Dani Peinado, e todos que cederam seus talentos e trabalho ao longo de todos estes anos.

Ingratidão é a primeira palavra que me vem à mente neste término, que sinceramente seja somente um engano,  um lamentável engano, e que o Sesc perceba o grande erro que está cometendo,  e que volte atrás e traga o TESC de volta ao seu trabalho dos mais importantes para a nossa cultura, eu reflito aflito sobre isso agora, Sr. Tadros, pois podem erguer um prédio majestoso, podem construir um teatro maior que o teatrinho que foi demolido,  mas sem o TESC é como se faltasse uma letra na sigla do Sesc,  ou que ele passasse a se chamar Serviço de Saída de Comediantes. Que os antigos atores e colaboradores do TESC se inconformem e escrevam ou se manifestem de qualquer forma contra este ato de defenestração cultural que está em voga, que o querido público não dê as costas a esta gente tão linda e talentosa do TESC.

Façamos algo!

 

*Jorge Bandeira, patafísico de quase meio século

Manaus, 17/08/2016

Ilustram esta matéria as capas de pelo menos cinco livros 
paridos no TESC. Houve outros.
E dezenas de peças, claro.


O palco verde (1984) foi o primeiro livro sobre o TESC.


terça-feira, 17 de agosto de 2021

O silêncio no igapó

Pedro Lucas Lindoso

 

A primeira vez que visitei as Anavilhanas foi em viagem de estudo. Cursava pós-graduação em Direito Ambiental, promovido por convênio entre a Universidade Petrobras e a UEA – Universidade do Estado do Amazonas.

Era época da vazante. Havia praias. Os pássaros e outros animais endêmicos faziam festa nas diversas ilhas e ilhotas das Anavilhanas. Arquipélago fluvial dado de presente por Deus e pela mãe natureza aos amazonenses e ao planeta.

Visitei recentemente Novo Airão. O rio ainda está cheio e sem praias. Ir até o arquipélago é sempre um privilégio. Contratamos uma rabeta. Nosso piloteiro chama-se Dijalma. Cruzamos o rio e avistamos a primeira grande ilha. Nos aproximamos de um minúsculo paraná. Havia uma garrafa pet branca como indicativo de sinalização. Dijalma me disse que os técnicos do ICMBio as colocam estrategicamente para não se perderem. Incrível. Mas ainda há contrabando de madeiras nas barbas dos fiscais.  Na calada da noite.

Dijalma prescinde daquelas pequenas sinalizações. Conhece o arquipélago como ninguém. Desde muito jovem navega por lá. Para quem não conhece as Anavilhanas um descuido pode ser fatal. É um verdadeiro labirinto de ilhas. Mais de 400. E, claro, em muitos lugares não pega sinal de celular.

Eu tinha certeza de que estávamos em boas mãos e em segurança. Entramos no pequeno igapó. Na época da vazante só se entra por aqui a pé. É uma trilha. Na cheia fica esse lindo igapó.

Lindo é pouco. Conhecia outros igapós. Bem mais largos. Mas aquele que Dijalma nos apresentava era especial. O reflexo da natureza nas águas era um show à parte. Confundiam-se as imagens. O reflexo era tão perfeito que se misturava com o real.  Igapó é um termo oriundo do tupi e significa “raízes d'água”.  Rios como o Negro, que hospeda as Anavilhanas, tem águas escuras. Explicam os cientistas que é devido à presença de compostos orgânicos que se formam no interior dos igapós. Esse material se decompõe lenta e constantemente.

Nos igapós a vegetação, geralmente, é baixa. Há arbustos, cipós e musgos. Mas esse igapó que visitávamos, como disse, só existe na cheia. E tem muitas árvores. Tauaris e bacabas. Buritis e angicos. Arbustos, como bromélias e begônias.

Nosso guia desligou a rabeta. E foi aí que pudemos ouvir o silêncio daquele igapó. Silêncio tão conhecido do poeta Thiago de Mello, que nos convida sempre: “vem escutar os cânticos noturnos / no mágico silêncio do igapó / coberto por estrelas de esmeralda”.

Não era noite. O sol refletia a natureza. Mas, sim, aquele silêncio que escutávamos era tão mágico quanto o descrito pelo poeta. Quem ouve o silêncio de um igapó não precisa ouvir estrelas.

 

domingo, 15 de agosto de 2021

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

A poesia é necessária?

                   Meu pai, dá-me os teus velhos sapatos manchados de terra

Vinicius de Moraes (1913-1980)

 


Meu pai, dá-me os teus velhos sapatos manchados de terra

Dá-me o teu antigo paletó sujo de ventos e de chuvas

Dá-me o imemorial chapéu com que cobrias a tua paciência

E os misteriosos papéis em que teus versos inscreveste.

 

Meu pai, dá-me a tua pequena chave das grandes portas

Dá-me a tua lamparina de rolha, estranha bailarina das insônias

Meu pai, dá-me os teus velhos sapatos.