Zemaria Pinto
Há oito anos, por ocasião do XIII
Congresso Internacional da ABRALIC, em Campina Grande–PB, apresentei a
comunicação “Representações da Amazônia na relação de Carvajal: devaneio e
mistificação”, tomando por base a edição de 1941, traduzida por Cândido de
Melo-Leitão.
Eu concluía dizendo que o Brasil e o Amazonas, em particular, deviam à memória
de Carvajal uma nova tradução, “cotejada com outras obras de vulto que
mantiveram uma relação dialógica” com o texto do dominicano estremenho.
Esta edição da Relação do famosíssimo e
muito poderoso rio chamado Marañón, organizada, traduzida e anotada de
forma magistral pelo professor Auxiliomar Silva Ugarte, vem atender àquele
apelo, suprindo uma lacuna que já se estendia por 80 anos. Baseado na versão de
Gonzalo de Oviedo y Valdés – enquanto Melo-Leitão baseara-se na versão de
Toríbio de Medina –, passamos a ter uma visão mais ampla do relato de Gaspar de
Carvajal, posto que o tradutor não se limitou a simplesmente verter do espanhol
clássico do século XVI para o português contemporâneo; antes, fez com que as
duas versões dialogassem, entre si e com outros textos afins, enriquecendo não
somente este trabalho, mas também aquele, de Melo-Leitão – hoje, uma
preciosidade de bibliófilos. Para além da história e da linguística, trata-se
de uma tradução cultural, um conceito que metaforiza os encontros culturais,
preservando suas alteridades, sem a prevalência de visões que naturalmente se antagonizam.
No sentido clássico da palavra – ato de
relatar –, a Relação de Carvajal pode ter sido escrita no desenrolar dos
acontecimentos, ao longo de nove meses, entre dezembro de 1541 e setembro de
1542. Esta suposição, se aceita, é mais “romanesca”, uma vez que coloca Frei
Gaspar, com todas as suas atribulações, ainda com a responsabilidade de
atualizar diariamente seu texto em desenvolvimento. Por outro lado, devemos
considerar que, se assim o fizesse, dificilmente o dominicano escaparia da
tentação da forma “diário”. De qualquer modo – ou no calor da luta cotidiana ou
recuperando a memória para sistematizar a narrativa –, já no ano seguinte, após
a conclusão da viagem, há notícias de relatos ligados à aventura comandada por
Orellana, que provavelmente se baseiam em Carvajal.
Fundamentos. Testemunha ocular dos fatos narrados, Carvajal
pretendia com seu texto mostrar que Francisco de Orellana não traíra Gonzalo
Pizarro, enumerando os incidentes que resultaram numa aventura diversa do que
fora planejado. A ira de Pizarro, e de muitos historiadores depois, era com o
fato de que o acaso reservou a glória histórica ao subalterno, enquanto o
comandante – ele, Pizarro – voltava para casa humilhado.
O texto de Carvajal tem três camadas,
intercambiáveis entre si:
1 – Histórica: onde se registram os fatos
ocorridos, especialmente após a separação da expedição em dois grupos,
relatando a descida pelo rio Marañón até o mar;
2 – Religiosa: onde se observa que o
dominicano Carvajal pontua sua narrativa com palavras de agradecimento e louvor
a sua fé;
3 – Ideológica: a camada mais complexa, onde
Carvajal pretende demonstrar a bravura e a lealdade de seu capitão; para tal,
lança mão de artifícios que hoje reconhecemos como literários. A mescla desses
recursos com a história revelou-se, com o tempo, um processo de mistificação
que, mesmo apontado desde o início por seus críticos, encontrou guarida no
imaginário da região.
Misturando história e literatura, num
exercício de realismo maravilhoso, o texto culmina com a transposição do mito
grego das amazonas para a região que, de tão marcada pela narrativa do
dominicano, herdou-lhe o nome. São as primeiras representações da Amazônia, sob
forma de relato histórico, arquitetadas ora num simulacro de fantasia
literária, ora em clara mistificação.
Hiperbólico e maravilhoso. Para atingir o âmago do maravilhoso, o
maravilhoso puro, Todorov identifica vários tipos de narrativas onde o
maravilhoso se sobressai. A narrativa de Carvajal encaixa-se com perfeição
naquilo que o teórico chama de “maravilhoso hiperbólico”, onde “os fenômenos
não são sobrenaturais, a não ser por suas dimensões, superiores a que nos são
familiares.”
Por outro lado, a decisão de inflar a realidade pode ser apenas um reflexo
linguístico do espanto, inconsciente, ou uma decisão consciente, que podemos
atribuir a uma categoria de criação literária, o devaneio – a fantasia
produzida em estado de vigília: “O devaneio é uma atividade onírica na qual
subsiste uma clareza de consciência. O sonhador de devaneio está presente no
seu devaneio.”
Não se
trata de matéria de ficção, pois, mas sim de uma manipulação consciente da
realidade; em nosso caso, histórica.
O maravilhoso hiperbólico aliado ao devaneio
ocorre no texto inúmeras vezes, de sorte que vamos nos ater a um ponto que tem
sido motivo de polêmica desde sempre: o superpovoamento de algumas áreas do rio
Amazonas, apontado por Carvajal, mas jamais comprovado, embora alguns autores
considerem que a presença do europeu na região foi o estopim de um autêntico
genocídio. Comparada com a baixíssima densidade populacional que conhecemos
hoje, as margens do Amazonas vistas por Carvajal parecem resultantes de um devaneio
do autor. O surgimento dessa área de grande população associa-se às maiores
dificuldades bélicas encontradas pela expedição, numa equação simples, mas
perfeita, como justificativa: mais gente, maior a resistência.
As hipérboles são recorrentes, tanto na
referência a fatos cotidianos como nas descrições de batalhas, de saques e de
características geográficas e demográficas da região, e até à fome que assombrava
regularmente a expedição. E não deixa de ser hiperbólica a facilidade que tem
Orellana de conversar com os nativos, numa relação intertextual com o
evangelista Marcos (16, 14-18).
O mito renovado. O mito das Amazonas remonta a Heródoto, no
século VI a.C. Nas margens do Thermodon, perto do mar Negro, viviam tribos de
mulheres guerreiras, as Amazonas, que tinham invadido uma grande parte do
Oriente Próximo, apoderando-se de Éfeso, Esmirna, Pafos e outras cidades. Virgílio,
na Eneida, coloca Pentesileia, a
rainha das Amazonas, lutando ao lado dos troianos. Um dos doze trabalhos de
Hércules foi tomar o cinto de Hipólita, rainha das Amazonas. Alexandre Magno
visita-as no Thermodon. Marco Polo, no século XIII de nossa era, dá testemunho
do reino de Resmacoron, fronteira com a Índia, onde havia uma ilha habitada
exclusivamente por mulheres e outra por homens. Colombo anota em seus Diários
notícias sobre a existência de ilhas similares na América – que, então, ele
pensava ser a Ásia. Na segunda viagem à América, a frota de Colombo chega a ser
atacada por uma “nuvem de flechas” lançadas por “um grupo de mulheres”, nas
Antilhas. Antonio Pigafetta, cronista da expedição de Magalhães, também escreve
sobre uma ilha só de mulheres. Gonzalo de Oviedo, na sua Historia General y
Natural de las Indias, que em seu terceiro tomo abrigou a narrativa de
Carvajal que ora se traduz, menciona a existência, nas terras do Novo Mundo, de
regiões onde as mulheres “são senhores absolutos (...) e praticam armas (...)
como essa rainha chamada Orocomay”, senhora de vasta extensão na vizinha
Venezuela.
A verdade é que nenhuma narrativa sobre as Amazonas é tão extraordinária quanto
a de Carvajal – pois ele, somente ele, as viu.
Mas as Amazonas, o Eldorado e o País da Canela
são apenas alguns dos mitos transladados para o continente americano: o Paraíso
Terrestre era um dos objetivos de Colombo, que acreditou estar muito próximo a
ele; os índios da América foram tomados pelas tribos perdidas de Israel; a
Fonte da Juventude foi em vão procurada; ilhas fabulosas e seres fantásticos
também povoaram a imaginação de viajantes e cronistas. Para aqueles
aventureiros, todas as fantasias poderiam se tornar realidade sob o
encantamento do Novo Mundo. Adaptando-se a classificação de Vico relativa às
três idades pelas quais passou a humanidade, inferimos que os europeus já
estavam na idade dos homens, mas não se desvencilhavam da memória maravilhosa
das aventuras vividas na idade dos heróis – para tanto, precisavam encontrar um
lugar onde ainda se vivia na idade dos deuses.
A
narrativa de Carvajal é a semente da qual brotou o mito, envolto em polêmica e
mistérios. Há gente séria que acredita poder achar, ainda hoje, as provas de
que Carvajal não aumentou em muito a realidade que vivera. Ao longo do tempo,
foram várias as tentativas de esclarecer o mito: Walter Raleigh, que no século
XVI descreveu animais fantásticos na Amazônia e anunciou ter descoberto o Eldorado,
situou com precisão as terras das Amazonas; um século depois de Orellana, Acuña
fala das Amazonas com fé inabalável; La Condamine, no século XVIII, acreditando
que uma mentira tantas vezes repetida torna-se verdade, admite que “todas essas
informações tendem a confirmar que houve neste continente uma república de
mulheres que viviam sozinhas, não havendo homens entre elas.”
Devaneio ou verdade, mito ou mistificação,
a relação de Carvajal é o texto fundador da literatura feita na Amazônia. Os
seus possíveis excessos fazem parte da nossa história e da nossa memória. Se
não é ficção, se não é história, como classificá-lo? – talvez seja um livro de
amor: amor pela aventura; amor por seu Capitão; amor por seu Deus; amor pela
sua Ordem, da qual ele foi líder influente.
Auxiliomar Silva Ugarte e Valer – tradutor
e editora – nos entregam mais que uma obra marcante na trajetória de ambos. Nos
consagram, nas frágeis folhas deste livro, um documento perene: a certidão de
nascimento da Amazônia, forjada em fogo no bronze da memória – como o mito que
ela fundamentou.
Prefácio
a Relação do famosíssimo e muito poderoso rio chamado Marañon, de Frei
Gaspar de Carvajal, com tradução, estudo introdutório e notas de Auxiliomar
Silva Ugarte, Manaus: Valer, 2021.