Linda Bergkvist. |
sábado, 31 de dezembro de 2011
quinta-feira, 29 de dezembro de 2011
Uma análise do Eu – 7/13
Zemaria Pinto
3) Estilo
Definir o estilo de época no qual Augusto dos Anjos se enquadra é assunto controverso. A maioria dos historiadores prefere colocá-lo naquele vácuo chamado Pré-Modernismo, que vai de 1902 a 1922. A data inicial marca a publicação de dois livros que não se enquadravam dentro do Realismo-Naturalismo, que já dava sinais de esgotamento: Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Canaã, de Graça Aranha. Na poesia, entretanto, o Parnasianismo continuava fazendo sucesso, embora o melhor dessa escola tenha sido escrito nos últimos vinte anos do século XIX. Da mesma forma, O Simbolismo, embora mais timidamente, continuava a arrebanhar adeptos por todo o país, mas seu principal autor, Cruz e Sousa, falecera, aos 36 anos, em 1898.
Tendo produzido sua obra num período de transição, é natural que encontremos elementos herdados das escolas anteriores, mas, como veremos, é como antecipador do Modernismo que Augusto dos Anjos merece um lugar de destaque na história da literatura brasileira.
Ao datar a produção poética de Augusto dos Anjos, o professor Zenir Campos Reis tomou como base a época da publicação dos trabalhos em periódicos, ficando estabelecido que o que conhecemos do autor foi escrito entre 1900 e 1914. Assim, fica relativamente simples dividir a obra de Augusto dos Anjos em três fases: a primeira, de 1900 a 1905; a segunda, de 1906 a 1912; a terceira de 1913 a 1914.
Essa divisão leva em conta dois fatores: a temática dos poemas e a publicação do Eu. Os poemas da terceira fase foram produzidos após a publicação do Eu; logo, estão fora do escopo do nosso trabalho. Dos poemas da primeira fase, apenas 13 foram publicados na primeira edição: Vencedor, Vandalismo, Eterna Mágoa, A ilha de Cipango, Soneto I - A meu pai doente, Soneto II - A meu pai morto, Vozes de um túmulo, Barcarola, A árvore da serra, Mater, Insônia, Uma noite no Cairo, Solitário.
O que temos nessa lista, leitor? De tudo um pouco. Romantismo em A árvore da serra. Parnasianismo em Vencedor. Simbolismo em Vandalismo. O poeta procura caminhos. A estética da dor já se mostra afiada na melancolia com que ele se expressa e a degradação da humanidade mostra-se pela recorrência do motivo morte e pelos ambientes sombrios que ele retrata. Mas está longe ainda do poeta de Os doentes ou de Monólogo de uma sombra. Leia cada um dos poemas e constate o que dissemos. Como exercício, procure enquadrar os outros dez poemas dessa fase em um dos estilos citados, a partir do levantamento de suas características mais marcantes.
Na segunda fase, temos a produção dos outros 45 poemas do livro. Cronologicamente, o primeiro poema dessa fase é Queixas noturnas:
Quem foi que viu a minha Dor chorando?!
Saio. Minh’alma sai agoniada.
Andam monstros sombrios pela estrada
E pela estrada, entre estes monstros, ando!
A dicção mudou completamente. A estética da dor encontrou o seu tom:
Sobre histórias de amor o interrogar-me
É vão, é inútil, é improfícuo, em suma;
Não sou capaz de amar mulher alguma
Nem há mulher talvez capaz de amar-me.
O amor tem favos e tem caldos quentes
E ao mesmo tempo que faz bem, faz mal;
O coração do Poeta é um hospital
Onde morreram todos os doentes.
A escolha é clara. Não ao Romantismo, ao negar a possibilidade do amor. Não ao Parnasianismo, ao optar pelo sujo e pelo podre. Não também ao Simbolismo, ao optar por uma linguagem direta e objetiva, que parece criar imagens simbólicas, mas cuja apreensão é imediata.
O segundo trabalho dessa nova fase é o Poema negro, do qual transcrevemos a estrofe final:
Ao terminar este sentido poema
Onde vazei a minha dor suprema
Tenho os olhos em lágrimas imersos...
Rola-me na cabeça o cérebro oco.
Por ventura, meu Deus, estarei louco?!
Daqui por diante não farei mais versos.
Com certeza, ele não faria mais versos como os que fizera até então. Por isso, antes de entrarmos nas considerações sobre qual o estilo predominante nesta segunda fase, transcreveremos o poema que seria, do ponto de vista cronológico de publicação, o terceiro, e que é, sem dúvida, o mais popular entre os poemas de Augusto dos Anjos, Versos Íntimos:
Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Milênios de pessimismo estão diluídos nesse soneto, sobre o qual se criou a mística de ter sido escrito em 1901, quando o autor tinha apenas 17 anos de idade. Esse erro vem desde a primeira edição, mas é preciso que se diga que, pela temática, pelo tom e pelo domínio técnico, o mais provável é que seja mesmo de 1906, ano em que foi publicado pela primeira vez. Ou você acredita, leitor, que o poeta guardaria essa preciosidade na gaveta, por cinco longos anos?... Com ele, o poeta encontrava, definitivamente, o caminho para mostrar a degradação humana, pela estética da dor. A forma também se definia: nos poemas longos, como Queixas noturnas e o Poema negro, temos narrativas que misturam visões cotidianas com visões oníricas, prestando-se, de certa forma, à representação dramática; nos sonetos, o poeta concentraria reflexões mais imediatas, embora nem por isso menos contundentes.
quarta-feira, 28 de dezembro de 2011
segunda-feira, 26 de dezembro de 2011
Estelionato editorial
Zemaria Pinto
Precisando dar mais consistência a um texto, socorri-me do meu velho exemplar de A origem da tragédia (Lisboa: Guimarães, 1988), tradução de Álvaro Ribeiro. Mas assim como fiz há pouco tempo com o Zaratustra, resolvi que estava na hora de pegar uma edição mais nova, numa tradução mais “próxima” do original. Encontrei um volume numa velha livraria ali da 24 de maio. Uma edição brasileira, da Centauro, 2004. Olhei rapidamente o nome do tradutor na própria ficha bibliográfica, e, constatando que era outro, levei o livro.
A edição pirata, da Centauro. |
A 5a. edição, de 1988, original. |
Somente em casa percebi a fraude: os textos eram rigorosamente iguais. Um fenômeno borgeano, coisa de Pierre Menard.
Olhando com mais calma, vi que o livro novo tinha dois tradutores, um na ficha (Joaquim José de Faria) e outro logo acima (Peter Klaus Ivanov). O Faria aparece também como preparador de originais. E se na Ficha aparece como 5a. edição, mais acima registra-se 12a. edição.
A trapaça. Clique sobre a figura, para ampliá-la. |
O original. |
Pra não dizer que os textos eram iguais, algumas tônicas, que valiam para 2004, foram abrasileiradas e eventuais erros da tradução original (que remonta à década de 1950) foram corrigidos.
O capítulo 17: a palavra "absolvidos" não cabe no contexto |
O pirata corrigiu o erro original. |
Fala-se tanto em pirataria, mas o que rola no mundo das editoras é de estarrecer. O exemplo acima, depois soube, é um caso muito antigo. Tanto quanto as traduções da Martin Claret.
Quem quiser conhecer mais sobre os meandros escabrosos do mercado editorial brasileiro, leia o blog Não gosto de plágio da Denise Bottmann, tradutora e profunda conhecedora do assunto.
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Zemaria Pinto
domingo, 25 de dezembro de 2011
Manaus, amor e memória XXXVIII
sábado, 24 de dezembro de 2011
sexta-feira, 23 de dezembro de 2011
Uma análise do Eu – 6/13
Zemaria Pinto
O sexto quadro mostra-nos os distantes “bairros da luxúria”, numa alusão à prostituição, explorada, então, com a discrição possível, na periferia das cidades. A visão que se tem é cruel: mulheres doentes, física e moralmente, degradadas ao extremo. Mas elas são vítimas também, e isso não escapa à percepção do “eu lírico”:
Talvez tivésseis fome, e as mãos, embalde,
Estendestes ao mundo, até que, à-toa,
Fostes vender a virginal coroa
Ao primeiro bandido do arrabalde.
O tempo passa, mas os problemas sociais, as feridas sociais, para usarmos a linguagem do nosso autor, continuam as mesmas. Às prostitutas, ele só vê redenção na morte, aqui simbolizada pelos ciprestes:
Prometem-vos (quem sabe?!) entre os ciprestes
Longe da mancebia dos alcouces,
Nas quietudes nirvânicas mais doces,
O noivado que em vida não tivestes!
No sétimo quadro, o “eu lírico” vaga “atabalhoadamente pelos becos”, onde tudo lhe lembra morte, luto, ruína. Interrompe seus pensamentos o barulho produzido pelos bêbados da cidade, que, falando línguas estranhas, a língua enrolada dos bêbados, reúnem-se na “promiscuidade das adegas”:
E a ébria turba que escaras sujas masca,
À falta idiossincrásica de escrúpulo,
Absorvia com gáudio absinto, lúpulo
E outras substâncias tóxicas da tasca.
Contrastando com a falsa alegria produzida pelos bêbados, surge, no ambiente fechado da taberna, um leproso, um morfético, que a norma culta recomenda, hoje, denominar hanseniano. Novamente, a ferida social aqui exposta é atualíssima: uma doença bíblica, erradicada por completo nos países desenvolvidos, é, ainda hoje, um dos tormentos da saúde pública brasileira. Aliás, o Amazonas, não nos esqueçamos disso, tem o maior índice de incidência de hanseníase do Brasil.
Naquele corpo deformado pela doença, o “eu lírico” vê o reflexo de toda a humanidade. A imagem, terrivelmente bela, tangencia a blasfêmia; mas, observe o adjetivo “negra”, leitor, qualificando a eucaristia; ele inverte, ou melhor, subverte o sentido original da palavra sagrada. É, na verdade, se pensarmos nesses termos, uma manifestação demoníaca, para sensibilizar “aquele povo de demônios”, os bêbados.
O fácies do morfético assombrava!
- Aquilo era uma negra eucaristia,
Onde minh'alma inteira surpreendia
A Humanidade que se lamentava.
O sonho do “eu lírico” personificava-se na figura daquele doente: um sonho “inchado, / já podre”, “palpável, / como se fosse um corpo organizado”. Para ele, o sonho acabara.
O cemitério descrito no oitavo quadro é um pesadelo de imagens bizarras, dignas de um contemporâneo filme B:
Os defuntos então me ofereciam
Com as articulações das mãos inermes,
Num prato de hospital, cheio de vermes,
Todos os animais que apodreciam!
No seu delírio, “afundado nos sonhos mais nefastos”, o “eu lírico” não perde a consciência social, apontando a opressão à raça negra:
Eu maldizia o deus de mãos nefandas
Que, transgredindo a igualitária regra
Da Natureza, atira a raça negra
Ao contubérnio diário das quitandas!
A referência comercial, o leitor deve estar atento, não é mais à escravidão, capítulo vergonhoso, já ultrapassado, mas sim à opressão sexual que as mulheres negras pobres sofrem. Leia com atenção as duas estrofes que antecedem a estrofe citada acima.
Essa consciência social, leitor, é pouco apontada em Augusto dos Anjos, reconhecidamente um conservador, do ponto de vista ideológico. Mas observe que, assim como em relação aos índios, o que poderia ser considerado um resquício romântico, também com relação às prostitutas e aos negros sua posição é muito clara. Infelizmente, e é preciso repetir isso diariamente, os versos de Augusto dos Anjos continuam cruelmente atuais, inclusive nas alusões à tuberculose e à hanseníase.
Ainda no oitavo quadro, na sequência da visão dos “corpos nus das moças hotentotes”, amanhece o dia, trazendo o “eu lírico” de volta à realidade objetiva. Mas, após aquela experiência, a realidade jamais seria a mesma.
O último quadro reafirma o que já fora dito pela Sombra no poema analisado anteriormente. Lembre-se que ela representa o desconhecido, o inexplicado. Pois bem, Os doentes começa com uma afirmação do “eu lírico” de que “tentava compreender... as substâncias vivas” que a ciência não compreendia. Depois daquela experiência alucinante, ele reconhece-se vencido:
O inventário do que eu já tinha sido
Espantava. Restavam só de Augusto
A forma de um mamífero vetusto
E a cerebralidade de um vencido.
Observe como o “eu lírico” se nomeia como o próprio poeta. Mas não se engane: as experiências do poema foram “vividas” por um personagem, que nós, insistentemente, chamamos de “eu lírico”, e não de Augusto dos Anjos. Na sequência, ele entende que tudo aquilo que fora vivido com tanta intensidade à noite, como um sonho macabro, à luz do dia apresenta-se, sem quaisquer subterfúgios fantásticos, como a desagregação da humanidade como ele a via para o surgimento de uma outra, inteiramente renovada e sem vícios:
A ruína vinha horrenda e deletéria
Do subsolo infeliz, vinha de dentro
Da matéria em fusão que ainda há no centro,
Para alcançar depois a periféria!
(...)
A doença era geral, tudo a extenuar-se
Estava. O Espaço abstrato que não morre
Cansara... O ar que, em colônias fluidas, corre,
Parecia também desagregar-se!
“O gênio procriador da espécie eterna” falhara e falira. Mas o “eu lírico”, “uma sobrevivência de Sidarta”, o Buda, na “filogênese moderna”, isto é, na história da evolução das espécies, sente nascer-lhe n’alma, “o começo magnífico de um sonho”: uma “outra Humanidade”, composta pelos descendentes dos que não se deixam adoecer, dos que acreditam que “contra a Arte, oh! Morte, em vão teu ódio exerces!”
Entre as formas decrépitas do povo,
Já batiam por cima dos estragos
A sensação e os movimentos vagos
Da célula inicial de um Cosmos novo!
O letargo larvário da cidade
Crescia. Igual a um parto, numa furna,
Vinha da original treva noturna,
O vagido de uma outra Humanidade!
A conclusão a se tirar deste magnífico poema, depois que identificamos o tema principal a partir da leitura do Monólogo de uma Sombra (e constatamos que ele está aqui, por inteiro), beira a simplicidade: a evolução não tem limites e aplica-se a todos os campos da experiência humana, por isso os vencidos serão sempre substituídos pelos mais fortes. E essa força não é física: antes, é moral. São os que se deixam vencer pelos vícios e pelas próprias fraquezas, são os incapazes de lutar que fazem parte dessa humanidade doente. Mesmos os humilhados, os derrotados fisicamente (como os índios e os negros, na concepção de Augusto dos Anjos), podem redimir-se pela luta, mostrando que são, moralmente, eticamente, superiores aos seus algozes - estes, sim, doentes.
A partir da leitura de Os doentes, ilustramos o uso dos principais motivos ou recorrências da poesia de Augusto dos Anjos: vencidos, cidades, doenças, morte, cadáveres, cemitérios, vermes e micróbios. A leitura dos demais poemas poderá comprovar o que afirmamos. Para começar, são indispensáveis Psicologia de um vencido, Idealização da humanidade futura e O deus-verme.
quinta-feira, 22 de dezembro de 2011
TENÓRIO TELLES – VIDA, LIVROS E LEITURA
A vida se faz de momentos – e cada etapa da caminhada cumpre o seu ciclo. O que importa em tudo é desempenhar com entusiasmo e verdade as tarefas e responsabilidades que nos cabem na existência.
Cioso do papel que cumpri, nos últimos 15 anos, na coordenação editorial da Valer Editora, ajudando a promover a cultura do livro e o prazer da leitura no Amazonas, venho a público comunicar meu afastamento da função de editor responsável dessa importante casa de livros.
Motivado pelo desejo de contribuir com o processo de construção do conhecimento, dediquei-me ao desafio de popularizar o livro e sensibilizar a sociedade para a importância da leitura na formação das crianças e dos jovens. O resultado desse trabalho foi a publicação de mais de 700 títulos de autores principalmente regionais, além de várias iniciativas concebidas com o mesmo objetivo, como exemplo a Quarta Literária, o Flifloresta, Encontros de Escritores, a criação do Clube Literário do Amazonas – Clam e a idealização de várias coleções de livros publicadas pela Editora Valer.
Neste momento de despedida, não poderia deixar de agradecer à imprensa pelo apoio dado a essas iniciativas, aos escritores que confiaram seus trabalhos à Editora, à equipe de jovens do corpo editorial que tornou possível a realização desse sonho, aos amigos que nos apoiaram nos momentos difíceis e, muito especialmente, aos leitores – objetivo de nosso esforço e os grandes responsáveis por termos chegado até aqui.
Assim me despeço – com gratidão e o sentimento de que fiz a minha parte na luta pela construção de uma sociedade de seres humanos esclarecidos e de um mundo mais tolerante e civilizado.
Tenório Telles, uma revolução no mercado editorial do Amazonas. |
A vida se faz de momentos – e cada etapa da caminhada cumpre o seu ciclo. O que importa em tudo é desempenhar com entusiasmo e verdade as tarefas e responsabilidades que nos cabem na existência.
Cioso do papel que cumpri, nos últimos 15 anos, na coordenação editorial da Valer Editora, ajudando a promover a cultura do livro e o prazer da leitura no Amazonas, venho a público comunicar meu afastamento da função de editor responsável dessa importante casa de livros.
Motivado pelo desejo de contribuir com o processo de construção do conhecimento, dediquei-me ao desafio de popularizar o livro e sensibilizar a sociedade para a importância da leitura na formação das crianças e dos jovens. O resultado desse trabalho foi a publicação de mais de 700 títulos de autores principalmente regionais, além de várias iniciativas concebidas com o mesmo objetivo, como exemplo a Quarta Literária, o Flifloresta, Encontros de Escritores, a criação do Clube Literário do Amazonas – Clam e a idealização de várias coleções de livros publicadas pela Editora Valer.
Neste momento de despedida, não poderia deixar de agradecer à imprensa pelo apoio dado a essas iniciativas, aos escritores que confiaram seus trabalhos à Editora, à equipe de jovens do corpo editorial que tornou possível a realização desse sonho, aos amigos que nos apoiaram nos momentos difíceis e, muito especialmente, aos leitores – objetivo de nosso esforço e os grandes responsáveis por termos chegado até aqui.
Assim me despeço – com gratidão e o sentimento de que fiz a minha parte na luta pela construção de uma sociedade de seres humanos esclarecidos e de um mundo mais tolerante e civilizado.
Manaus, 22 de dezembro de 2011
Tenório Telles
A beleza é para ser roubada
Deus pôs a beleza no mundo para que fosse roubada. Afinal de contas, o roubo é um ato de admiração pelo objeto furtado e anda mais próximo do heroísmo que a civil e tranquila fruição ao amparo das leis.
(Ortega y Gasset, a propósito do roubo da Mona Lisa, em 1911.)
José Ortega y Gasset (1883-1955), por Ignacio Zuloaga. |
(Ortega y Gasset, a propósito do roubo da Mona Lisa, em 1911.)
Artistas e lideranças indígenas promovem marcha pela vida
Hoje, 22 de dezembro, será a vez do Estado do Amazonas fazer ecoar seu grito de guerra contra Belo Monte. Um grupo formado por artistas, professores, estudantes, intelectuais e lideranças indígenas estará realizando, a partir das 17 horas, a Marcha pela Vida, saindo do centro histórico de Manaus e percorrendo algumas ruas da cidade. A intenção é chamar a atenção da população sobre a construção da hidrelétrica no rio Xingu, nas proximidades da cidade de Altamira, no Pará.
“A hidrelétrica nos incomoda em tamanho, falta de transparência dos recursos empregados e perda da biodiversidade”, revela a jornalista e escritora Regina Melo, que considera a obra um acinte ao bom senso. “Não é apenas a questão de Belo Monte que nos incomoda, mas as medidas que vêm sendo tomadas com riscos ambientais irreversíveis. O Brasil está dando passos para trás”, disse a jornalista, que encampa o movimento.
Fazem coro a essa inquietação e insatisfação contra Belo Monte, o diretor Nonato Tavares e a atriz Koia Refkalefski, ambos da Companhia Vitória Régia. Eles enfatizam a importância de assumir uma postura de luta em defesa da vida, contra os que agridem a natureza. O artista plástico Zeca Nazaré também é um dos que se juntaram ao grupo para realizar o movimento em defesa da vida, pois considera importante apoiar esse tipo de manifestação.
“Não podemos aceitar passivos que decidam por nós os nossos destinos”, argumentou o ator e representante indígena, Fidélis Baniwa, que se posicionou contrário a essa forma de se conduzir o desenvolvimento do país. Sônia Guajajara, líder indígena e vice-coordenadora da COIAB, disse que “defender a floresta é defender os direitos da humanidade”. Para João Machado, Daniel Pìra-Tapuia e André Tukano, “todos serão afetados com a hidrelétrica, não apenas índios e caboclos”.
A concentração da marcha será no Paço Municipal (antiga prefeitura), de onde partirá em passeata em direção à Sete de Setembro, até o final da Eduardo Ribeiro, onde ocorrerá um show com a presença de vários artistas. Durante a passeata, diversas lideranças locais estarão se posicionando a respeito das situações que hoje movimentam o debate ambiental em Manaus e em todo o país.
quarta-feira, 21 de dezembro de 2011
segunda-feira, 19 de dezembro de 2011
Lançada a candidatura de Alfredo Nascimento à AAL
Em solenidade realizada no último sábado, o presidente da Academia Amazonense de Letras, desembargador José Braga, referiu-se aos três ex-ministros de estado e acadêmicos presentes – Almino Affonso, Bernardo Cabral e Arthur Virgílio – como o “orgulho da nossa Academia”. Para esse orgulho ser completo, digo eu, está faltando alguém: o inopinável, o inoxidável, o inchicanável, o inclassificável Alfredo Nascimento!
Está lançada a candidatura de Alfredo Nascimento à AAL. Ministro por ministro, ele ficou mais tempo no cargo: quase 7 anos, nos governos Lula e Dilma, contra os efêmeros 5 meses de Affonso (governo João Goulart), 7 meses de Cabral (governo Collor) e 6 meses de Virgílio (governo FHC).
Outro ponto a favor de Nascimento é no quesito oratória. Se Affonso, Cabral e Virgílio são capazes de sustentar um discurso por horas a fio, só no improviso, Nascimento faz o gênero vaptvupt: uma oração de mais de 10 palavras perde totalmente o sentido na sua fala cheia de objetividades subjetivas. Citações cultas – típicas do barroco Affonso – não são com ele: orador popular, diz 3 palavrões, dá um soco na mesa, e transmite o seu recado de forma clara e contundente. Escreveunumleu...
Aviso à praça: é o meu candidato para a próxima vaga a ser aberta na AAL (desde que não seja a minha, claro).
domingo, 18 de dezembro de 2011
Manaus, amor e memória XXXVII
sábado, 17 de dezembro de 2011
Academia Amazonense de Letras tem novo presidente
.
Arlindo Porto, 82, venceu com ampla vantagem a eleição para o biênio 2012-2013. Representante do grupo que domina a AAL desde 1996 – excetuando-se o intervalo 2004-2007, quando foi presidente Elson Farias –, Arlindo Porto deve manter a Academia voltada para si mesma, sem contato real com o público externo, que tende a vê-la como uma espaçonave oriunda de outra galáxia.
Resultado esperado, a surpresa ficou com o discurso contundente do Escritor (com maiúscula, um dos poucos entre os 38 membros atuais) Aldisio Filgueiras, fazendo ver ao grupo que se pretende hegemônico que há, sim, insatisfação entre os acadêmicos. Aldisio não titubeou em classificar como fascista essa hegemonia forçada.
Lembro o sábio Nelson Rodrigues: “toda unanimidade é burra!”
A posse ocorrerá nos primeiros dias de janeiro.
A posse ocorrerá nos primeiros dias de janeiro.
sexta-feira, 16 de dezembro de 2011
Uma análise do Eu – 5/13
Zemaria Pinto
Motivos: Os doentes – A tese anteriormente exposta deve ser provada; afinal, chegamos a ela através da leitura de um único poema. Observe, leitor, algumas recorrências, a que chamaremos de motivos, semeadas no Eu: doenças, morte, cadáveres, cemitérios, micróbios, vermes. Para você que já leu (releu?) o livro, nenhuma dessas palavras soa estranha; elas estão presentes a cada página do nosso objeto de estudo.
Observe a sequência lógica que vai das doenças até os vermes: é todo o processo de degradação física do ser humano. Ao homem são nenhuma daquelas palavras amedronta. Ao homem (nos referimos à espécie) degradado, entretanto, elas representam o caminho a percorrer. O caminho de um derrotado, de um vencido. Este é um outro motivo assaz explorado por Augusto dos Anjos. É nas cidades, mais outro motivo, que esses vencidos se aglomeram, constituindo a grande massa da degradação humana. E observe que, se uma situação leva a outra, numa sequência lógica, podemos também vê-las aos pares: vencidos/cidades, doenças/morte, cadáveres/cemitérios, micróbios/vermes. Assim, o homem, vencido, um habitante das cidades decadentes, acometido de uma doença, sofre até a morte; o cadáver, naturalmente, será levado para o cemitério, onde será pasto para micróbios e vermes.
Essa degradação física serve de metáfora para a degradação moral. Observe o poema Os doentes. Dividido em nove quadros, é o mais longo do livro, nos seus 438 versos. A “estética da dor”, a que nos referimos antes, é potencializada ao máximo. O “eu lírico” passeia pela cidade, e o que ele vê? Doença. Doentes físicos e morais. Mas ele é um vencido, “coberto de desgraças”, que procura entender in loco o que nem seus mestres, “nem Spencer, nem Haeckel compreenderam”:
Como uma cascavel que se enroscava
A cidade dos lázaros dormia...
Observe a plasticidade desses versos, leitor. A cidade (qualquer cidade) recebe dois atributos que determinam sua forma em nosso imaginário: cascavel e lázaros. O primeiro vocábulo é um símbolo de veneno, traição e morte. O segundo, na acepção primitiva significa leprosos, mas aqui ele se reporta ao personagem bíblico, simbolizando doenças incuráveis. A cidade dos doentes terminais dormia, como uma serpente, preparada para instilar sua peçonha nos incautos, contaminando-os, tornando-os lázaros também.
No segundo quadro do poema, o “eu lírico” contempla a paisagem noturna da “urbe natal do Desconsolo”. A noite apresenta-se calma, ainda que o vento, fantasmagórico e convulso, pareça entoar um “pseudosalmo”, uma falsa oração.
O terceiro quadro mostra o “eu lírico” entre os tuberculosos:
Falar somente uma linguagem rouca,
Um português cansado e incompreensível,
Vomitar o pulmão na noite horrível
Em que se deita sangue pela boca!
Expulsar, aos bocados, a existência
Numa bacia autômata de barro,
Alucinado, vendo em cada escarro
O retrato da própria consciência!
Permita-nos, leitor, um breve comentário extraliterário: a tuberculose é hoje uma doença absolutamente controlada, embora (estamos no Brasil...) ainda não erradicada. Mas durante muito tempo, foi uma doença terrível, que ceifou milhões de vidas. Observe as biografias dos nossos autores do período romântico em diante. Muitos deles morreram jovens, quase todos de tuberculose. Não nos furtemos a uma comparação terrível: a tuberculose representava para o tempo de Augusto dos Anjos o que a AIDS representa para o nosso tempo.
No quarto quadro, o “eu lírico” comenta o destino dos indígenas do continente americano. Note a atualidade desses versos, você, que deve estar saturado de ouvir falar em “descobrimento”:
Aturdia-me a tétrica miragem
De que, naquele instante, no Amazonas,
Fedia, entregue a vísceras glutonas,
A carcaça esquecida de um selvagem.
A civilização entrou na taba
Em que ele estava. O gênio de Colombo
Manchou de opróbrios a alma do mazombo,
Cuspiu na cova do morubixaba!
Falamos tanto em Cabral, enquanto Augusto dos Anjos põe o dedo na ferida: foi Colombo o primeiro a aportar nas terras americanas e a matar e a saquear e a humilhar. Os índios estão também doentes, porque não existem enquanto cidadãos. E Augusto dos Anjos escreveu isso há 80 anos, leitor!
E sentia-se pior que um vagabundo
Microcéfalo vil que a espécie encerra,
Desterrado na sua própria terra,
Diminuído na crônica do mundo!
A hereditariedade dessa pecha
Seguiria seus filhos. Dora em diante
Seu povo tombaria agonizante
Na luta da espingarda contra a flecha!
No quinto quadro, a angústia atinge um paroxismo tal que o “eu lírico” identifica-se com a podridão que o cerca e quer absorvê-la para, assim, tentar anulá-la:
Naquela angústia absurda e tragicômica
Eu chorava, rolando sobre o lixo,
Com a contorção neurótica de um bicho
Que ingeriu 30 gramas de noz-vômica.
E, como um homem doido que se enforca,
Tentava, na terráquea superfície,
Consubstanciar-me todo com a imundície,
Confundir-me com aquela coisa porca!
Paradoxalmente, entretanto, após o reencontro com “a saudade inconsciente da monera”, que havia sido sua “mãe antiga”, ele recobra a calma, mas não o equilíbrio, ao concluir:
Quando eu for misturar-me com as violetas,
Minha lira, maior que a Bíblia e a Fedra,
Reviverá, dando emoção à pedra,
Na acústica de todos os planetas!
No Monólogo de uma sombra, o “eu lírico” já dissera que somente a Arte “abranda as rochas rígidas”, por isso, em Os doentes, ele diz que, após sua morte, sua poesia “reviverá, dando emoção à pedra”, e será ouvida por todos. E ele acertou em cheio, tanto que estamos todos aqui, a nos ocupar dela. Quanto a ser maior que a Fedra (tragédia do francês Racine, escrita no século 17), tudo bem, parece até que ela entrou aí só para facilitar a rima com “pedra”. Agora, quanto à Bíblia, leitor, sem qualquer sectarismo de ordem religiosa, creditemos ao ambiente insano em que se encontrava o “eu lírico”. Não deixa de ser uma licença poética...
quinta-feira, 15 de dezembro de 2011
Frauta de Barro, a 9ª edição
Quando as noites voavam – 2ª edição
quarta-feira, 14 de dezembro de 2011
segunda-feira, 12 de dezembro de 2011
Amazonas: natureza e ficção
Como escrever a Amazônia? Como expressar literariamente esse espaço natural excessivo, gigantesco, sublime? Que natureza emerge da escrita de autores viajantes no Amazonas ou amazonenses no século XX, até a década de 1970? De que forma esses escritores se relacionam com seus precursores em âmbito regional, nacional e internacional? Como escrever sobre as margens, tendo-as como local de enunciação? São estas as questões centrais que este livro se empenha em responder a partir de uma perspectiva comparatista, contando com contribuições de áreas como a História e a Sociologia, bem como abordagens críticas contemporâneas, entre elas as teorias pós-coloniais e a ecocrítica. Esse embasamento teórico, aliado à capacidade crítica e ao estilo ensaístico primoroso de Allison Leão, torna esta análise da ficção de alguns “intérpretes da Amazônia” uma contribuição importante para os estudos literários e culturais sobre a região.
(Do prefácio de Eliana Lourenço de Lima Reis)
O professor Allison Leão convida para o lançamento do seu livro Amazonas: natureza e ficção. Trata-se do resultado maior de sua pesquisa de doutorado, realizada na UFMG entre 2004 e 2008, e agora coeditado por Annablume e Fapeam.
O lançamento acontecerá nos altos da Livraria Valer, na Rua Ramos Ferreira, 1195, Centro, Manaus, às 19h do dia 14 de dezembro, quarta-feira próxima.
Na ocasião, o livro será vendido ao preço de R$ 25,00. Depois disso, será comercializado pela Livraria Valer e pela LUA-UFAM. Em todo caso, já está disponível no catálogo da Editora Annablume, no seguinte link:
Sobre o autor
Allison Leão é professor de Literatura Brasileira, Teoria da Literatura e Literatura Comparada na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), professor do Programa de Pós-graduação em Letras e Artes na mesma instituição e do Programa de Pós-graduação em Letras na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Em 2002 concluiu o mestrado em Sociedade e Cultura pela UFAM, quando estudou representações da cidade na poesia de Aldisio Filgueiras. Em 2008 defendeu a tese Representações da natureza na ficção amazonense, no Poslit/FALE/UFMG, doutorando-se em Literatura Comparada.
É autor de Jardim de silêncios (2002) e O amor está noir (2004), contos.
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Lançamentos
Lavando o pão de cada dia
Candinho
Onde andam as lavadeiras da Pancada?
– Já não estão entre nós.
Feito cigarras, cantaram-se!
Não sobrou um fio de voz.
O dia acordava com as canções das lavadeiras.
As batidas das roupas despertavam as pedras adormecidas.
As lavadeiras cantavam...
Cantavam, lavando as manhãs nas suas roupas...
Cantavam, afinando a alegria nas suas melodias...
Cantavam, limpando o cansaço nas suas cantigas...
Conversavam alto,
Enxaguando as preocupações nas suas conversas.
Conversavam tanto...
Tanto, que até o tempo se acomodava entre as pedras
Pra esperá-las e conversar com elas.
Enquanto isso,
O sol e o vento, feito meninos, se embalavam nas cordas do varal,
Esperando as roupas para se vestirem com cada uma delas
E enfeitarem o dia com todas as cores.
Quando iam embora,
Saíam limpos e cheirosos.
Deixando, na tarde e no coração das lavadeiras,
A alegria.
– Estava lavado o pão de cada dia!
(Poema vencedor do 2º Concurso Manaus e Poesia, promovido pela Academia Amazonense de Letras.)
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domingo, 11 de dezembro de 2011
Manaus, amor e memória XXXVI
sábado, 10 de dezembro de 2011
malditas criaturas infernais 4
João Sebastião
Aí, diz-que o imperador ligou para o seu vitalício ministro da cultura e cuspiu:
– Puta que o pariu, Berinho, não me faz vergonha, porra! Até eu, que nunca li um livro, sei quem é o autor de Grande sertão: veredas: Jorge Amado!!! JOR-JA-MA-DO!!!
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sexta-feira, 9 de dezembro de 2011
Uma análise do Eu – 4/13
Zemaria Pinto
2) Tema e motivos a partir da análise de dois poemas
Escolhemos uma maneira diferente para trabalhar o tema (a idéia central) e os motivos (as recorrências que levam ao tema). Como este é um trabalho didático, partimos de uma situação pressuposta ou conhecida intuitivamente para uma comprovação. A análise de um poema para demonstrar algo que se espalha por toda a obra é temerária, mas ao leitor vai caber o prazer de comprovar nossas teses integralmente: não vamos lhe dar o peixe – vamos lhe mostrar como se pesca. E se tivéssemos que escolher os cinco melhores poemas de Augusto dos Anjos, com certeza os dois poemas analisados a seguir estariam entre eles.
Tema: Monólogo de uma sombra – Não seria muito pretensioso de nossa parte definir um tema central, agregador entre tantos outros, para uma compreensão mais imediata do Eu. A sua leitura nos deixa tão dentro de uma certa atmosfera, que parecemos envolvidos por um único assunto. Vamos procurá-lo, pois isso deverá facilitar a investigação dos diversos motivos, que se espraiam por todo o livro.
Observe, leitor, o poema Monólogo de uma sombra. Releia-o. Não era incomum, à época, iniciar um livro, especialmente o primeiro do poeta, com um poema que dissesse ao leitor do seu projeto poético. Antecedentes ilustres de Augusto dos Anjos fizeram isso: Olavo Bilac, com Profissão de Fé, Cruz e Sousa, com Antífona. Pois bem, Monólogo de uma sombra nos dá conta do que pretende Augusto dos Anjos em sua poesia. Se não, vejamos.
Como o poeta se sabe ínfimo diante do universo, o seu discurso é atribuído a uma Sombra, metáfora do desconhecido, do incognoscível, daquilo que não se pode compreender, porque está além do alcance das ciências:
“Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Polipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!
Veja que a fala da Sombra já traz todos os elementos que enformam a poesia de Augusto dos Anjos: a influência do evolucionismo monista de Haeckel e Spencer, o pessimismo derivado de Schopenhauer, as influências literárias de Baudelaire e Shakespeare e a plástica de Rembrandt:
Com um pouco de saliva quotidiana
Mostro meu nojo à Natureza Humana.
A podridão me serve de Evangelho...
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques
E o animal inferior que urra nos bosques
É com certeza meu irmão mais velho!
(...)
É o despertar de um povo subterrâneo
É a fauna cavernícola do crânio
- Macbeths da patológica vigília,
Mostrando, em rembrandtescas telas várias,
As incestuosidades sanguinárias
Que ele tem praticado na família.
Somente a arte pode redimir o fracasso humano. Somente a arte pode libertar o homem da rede de misérias em que ele se envolveu, moral e fisicamente. Mas poucos são os que têm o privilégio de percebê-lo. Poucos se dão à contemplação artística. Desta forma, cabe ao artista manifestar-se unicamente pela dor. A sua dor é a dor universal. Manifestando-a, ele denuncia a corrupção a que está submetida a humanidade. Essa é a sua alegria.
Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,
Abranda as rochas rígidas, torna água
Todo o fogo telúrico profundo
E reduz, sem que, entanto, a desintegre,
À condição de uma planície alegre,
A aspereza orográfica do mundo!
Provo desta maneira ao mundo odiento
Pelas grandes razões do sentimento,
Sem os métodos da abstrusa ciência fria
E os trovões gritadores da dialética,
Que a mais alta expressão da dor estética
Consiste essencialmente na alegria.
Percebeu, leitor, o que Fernando Pessoa queria dizer ao acusar o “fingimento” do poeta? Você notou que a Sombra admite que somente a “dor estética”, isto é, a dor forjada com arte, a dor “fingida” (não necessariamente sentida), pode proporcionar alegria a quem se entrega à contemplação artística? Este é o projeto de Augusto dos Anjos: mostrar-nos a degradação humana de maneira estética. Para isso, ele se serve das ciências e das artes. Para o “eu lírico”, que só se manifesta nas três últimas estrofes do poema (o que lhe dá características indiscutíveis de poema dramático), o que ele ouvira da Sombra era a manifestação da própria natureza divinizada:
Era a elegia panteísta do Universo,
Na podridão do sangue humano imerso,
Prostituído, talvez, em suas bases...
Era a canção da Natureza exausta,
Chorando e rindo na ironia infausta
Da incoerência infernal daquelas frases.
Durante muito tempo, leitor, a crítica mais apressada acusou a “incoerência”, a “falta de nexo” da poesia de Augusto dos Anjos. Pois ele não sabia disso?
O que podemos concluir? Monólogo de uma sombra engendra um postulado ético, denunciando a degradação moral e física a que o homem está submetido, e um postulado estético, ao propor uma nova maneira de fazer poesia a partir da “expressão da dor” calcada na realidade vivida, o que atropelava a sorridente poesia parnasiana, bem como a hermética poesia simbolista. Esses dois postulados estão presentes, quase sempre associados, em todos os demais poemas do Eu, compondo o seu tema: a degradação humana vista pela estética da dor. Isso mostra o quanto o autor tinha consciência do seu projeto de poesia, construindo uma obra pequena, mas consistente, sólida.
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