Praça da Mariz, anos 1970. |
domingo, 31 de outubro de 2021
sábado, 30 de outubro de 2021
Basta! A tribo está cansada 3/4
TERCEIRO ATO
O cacique está indignado. Furioso. Olha o
objeto estrategicamente depositado em cima da mesma mesa utilizada no primeiro
ato. Trata-se de uma garrafa pet toda encravada de flechas. A garrafa deverá
ser de bom tamanho com quantidade razoável de flechas, devendo ser facilmente
reconhecida pela plateia.
FOTÓGRAFO: Meu Deus, Cacique! O que é isso?
CACIQUE: Nem me diga. Uma coisa abominável. Um
escândalo. Total falta de respeito. Estou arrasado. Já chorei. Estou pasmado.
Não consigo acreditar.
FOTÓGRAFO: Onde encontraram essa garrafa,
Cacique?
CACIQUE: Um dos nossos guerreiros encontrou
esse objeto estranho dentro de um cacuri, em meio aos peixes. Trouxe essa
porcaria para cá. Foi um alvoroço.
FOTÓGRAFO: Imagino. Quando foi isso? Agora
cedo. Ainda estão alvoroçados. Ouça o barulho. (Música alta, vozes de pessoas
alteradas) Muita confusão.
CACIQUE: Ouça o que eles estão dizendo, aos
gritos:
VOZES: Alguém que que fez o matapi carregou
criança chorando. Quem foi esse parente? Não é possível.
CACIQUE: Provavelmente, alguém comeu pimenta
verde.
FOTÓGRAFO: Vai ver que quem fez o matapi bebeu
manicuera quente.
CACIQUE: Já averiguei. Ninguém desobedeceu às
regras de preparo das armadilhas.
FOTÓGRAFO: Tá aí, Chefe. As armadilhas são um
baita exemplo da tecnologia, da tecnologia indígena, da qual a gente conversava
ontem.
CACIQUE: A tecnologia de vocês é a tarrafa e a
malhadeira. Outro dia um parente nosso que veio de Manaus queria introduzir
isso por aqui. Não permiti. Não vou deixar o “nylon” entrar na aldeia. Na
floresta não tem “nylon”. Vamos continuar usando as armadilhas. Tanto as fixas
como as móveis.
FOTÓGRAFO: Era isso que eu queria perguntar
faz tempo. Quais são mesmo as armadilhas fixas?
CACIQUE: Temos o cacuri e o caiá. Para fazer
essas armadilhas temos que observar algumas regras. Alguns preceitos, como
disse o professor antropólogo que esteve por aqui. Cabra chato. Ficou
perguntando o porquê que tem que fazer jejum antes de construir as armadilhas.
Vocês brancos não fazem jejum? Perguntei a ele porque um pastor ficou aqui
jejuando e ninguém sabia o porquê. Tudo ele quer saber um motivo. Por isso que
eu minto para ele. Aí ele sai publicando um bocado de besteira sobre a gente.
Você não. Tira as fotos. Vende. Presta contas. Nos ajuda.
FOTÓGRAFO: Eu fotografei as cacuri e caiás.
Alta tecnologia, chefe. São muito bacanas. Estruturas grandes. Com cercas oblíquas.
CACIQUE: Tá falando agora igual o professor
antropólogo. O que é cercas oblíquas?
FOTÓGRAFO: Eu vi as armadilhas armadas na
beira dos igarapés, das corredeiras. Eu digo que as cercas são obliquas porque
elas tomam direções diferentes. As cercas são maliciosas. Como eu disse, alta
tecnologia. As fotos das armadilhas fixas ficaram uma beleza.
CACIQUE: Eu quero ver. E as armadilhas móveis?
Eu te disse que elas também exigem regras para serem feitas. Tem que fazer
benzedura para atrair bons peixes. Não essa porcaria aí. Isso é um mau
presságio. Um desrespeito.
(Nesse momento, o fotógrafo pega a pet cravada
de flechas)
CACIQUE: Não mexe nisso. Deixa quieto.
(O fotógrafo coloca a pet novamente em seu
lugar, em cima da mesinha)
FOTÓGRAFO: Sim, chefe. Tirei fotos
maravilhosas de matapis e jequis. Ah! Tirei fotos também de um cacuri portátil.
Vou mostrar todas para o senhor. Acho que vou produzir um livro só sobre as
armadilhas. O que o senhor acha?
CACIQUE: O matapi é feito com talas das
palmeiras. A gente amarra as talas com cipó. Na abertura a gente molda com um
cipó mais forte. Mais rígido, como diz o professor. Eu aconselho a usar o
matapi nos igapós, onde a correnteza é mais leve. E sempre lembro ao guerreiro
que armou o matapi para ele jejuar. Não pode se assustar. Também não pode ficar
fazendo algazarra, barulho.
FOTÓGRAFO: Eu gostei mesmo foi do jequi. A
foto ficou maravilhosa. Parece que o jequi é bem mais elaborado. Exige uma
perícia e muita tecnologia, o senhor não acha?
CACIQUE: Claro. O guerreiro tem que ser bom,
Precisa conhecer artesanato. A arte de fazer jequi não é para todos. Como você
viu, o jequi é um cilindro fundo em forma de cone.
FOTÓGRAFO: Eu vi. A abertura do jequi é feita
em forma de funil interno. Muito interessante.
CACIQUE: Pois é. Permite a passagem para
dentro, mas impede a saída dos peixes. A gente usa o jequi sempre contra a
corrente.
FOTÓGRAFO: Cacique, desculpe minha
insistência. O que o senhor vai fazer com essa garrafa pet toda encravada de
flechas.
CACIQUE: Não sei ainda. Se o professor
antropólogo estivesse por aqui, ia querer levar para a universidade dele. Como
se fosse um troféu. Provavelmente ia pedir uma bolsa de estudo para fazer um
pós-doutorado sobre essa coisa aí. Ia inventar tanta mentira. Mas os colegas
iam aprovar e ainda recomendar a publicação. Tu queres essa porcaria?
FOTÓGRAFO: Eu quero. Vou colocar na capa do
meu livro sobre as armadilhas de pescaria. Posso?
CACIQUE: Faz o que quiser. Mas se ganhar dinheiro com essa desgraça, não esqueça de nos indenizar.
FOTÓGRAFO: Pode deixar. Eu sempre prestei
contas dos meus trabalhos. Muito obrigado cacique. Obrigado mesmo.
(O fotógrafo pega a pet. Examina com
admiração. Sorri de felicidade)
Mais tarde mostrarei as fotos. Até mais chefe.
Essa história da pet é muito triste. É uma agressão não só à tribo. Mas
principalmente à natureza. O senhor tem razão em estar triste.
(O fotógrafo sai. O cacique abaixa a cabeça e
chora. Aos prantos. De repente, entra em cena o Professor Pascoal, o
antropólogo e pesquisador)
PROFESSOR: Bom dia, cacique! O que foi? O
senhor está chorando? O que houve?
CACIQUE: Ai meu Deus. Eu sabia que aquilo era
um agouro! Um mau presságio!
PROFESSOR: Não entendi. Do que o senhor está
falando?
CACIQUE: Nada não. Esquece. Como vai o senhor?
Por aqui de novo? Diga a que veio.
(o Cacique não é muito receptivo nem
simpático)
PROFESSOR: Desculpe incomodá-lo. O senhor já
me disse que não gosta muito de pesquisadores. Mas eu preciso só de umas
informações sobre saberes e tecnologias. Prometo que serei breve. Estou
partindo hoje mesmo.
CACIQUE: Pois é. Estou com uma visita por
aqui. Ele vai hoje também. Mas temos ainda que ver umas coisas.
PROFESSOR: Ele é da FUNAI?
CACIQUE: Que FUNAI o quê. Ele é gente fina. Da
melhor qualidade.
PROFESSOR: É técnico do IBAMA?
CACIQUE: Não. O senhor como sempre, muito
curioso.
PROFESSOR: Ah! Então é pesquisador. É
antropólogo, sociólogo ou geógrafo. Eu o conheço? De que universidade ele é?
CACIQUE: Não é pesquisador, não é professor,
não é nada disso. É meu amigo.
PROFESSOR: E o que faz aqui?
CACIQUE: O senhor é curioso e impertinente.
Meu amigo é fotógrafo.
PROFESSOR: Muito interessante. Mas, cacique.
Vai ser rápido. Tenho algumas perguntas aqui. Posso começar?
CACIQUE: Que jeito. Mas não venha com
pavulagem! Seja objetivo. Como você mesmo me disse. Respeito é a base da
confiança.
PROFESSOR: Preciso de algumas informações
sobre comida. Como é feito o beiju e o doce de abacaxi que eu comi aqui?
CACIQUE: Não sei. Você tem que observar as
mulheres no preparo. Vou autorizar.
PROFESSOR: Fiquei maravilhado também com o
artesanato. Vocês transformam a palha em coisas lindas. Vi que as mulheres
trabalham diariamente, fazendo paneiros, cestos, esteiras. E que grafismo
fantástico.
CACIQUE: O que é grafismo? Faz parte da nossa
epistemologia?
PROFESSOR: (rindo alto) O senhor gostou do
conceito de epistemologia, né? Grafismo é o modo fantástico que vocês têm na
elaboração dos traçados, nas cestarias, nas esteiras. A maneira peculiar e
linda dos desenhos.
CACIQUE: É conhecimento nosso. É epistemologia
nossa.
PROFESSOR: Vamos falar de pescaria. As
mulheres são responsáveis pelo preparo da comida durante a pesca. Fazem peixe moqueado,
que é uma delícia!
CACIQUE: Não quero falar de pescaria. Muda de
assunto.
PROFESSOR: Mas por que? Muitas tribos usam
arpão. Por que não é comum o uso do arpão por aqui?
CACIQUE: (em voz alta, quase gritando) Já
falei que não quero falar sobre pescaria, hoje. O senhor às vezes é muito
chato.
PROFESSOR: Desculpe. Não entendo. O senhor
adora falar sobre pescaria... Aconteceu alguma coisa?
CACIQUE: Aconteceu. Não quero falar sobre
isso.
PROFESSOR: O que foi? Algum acidente?
CACIQUE: Já disse que não vou falar. É coisa
séria.
PROFESSOR: Fiquei curioso.
CACIQUE: O senhor é muito curioso.
PROFESSOR: É inerente aos pesquisadores e
cientistas. Cadê o seu amigo? Gostaria de conhecê-lo.
CACIQUE: Está chegando. Lá vem ele. Mas
termina logo o seu questionário.
PROFESSOR: É sobre a pesca do pirarucu. Quando
visitei aqui a primeira vez, o senhor pescava muito pirarucu. Com arpão. Agora
não vi mais arpão por aqui. Nem pesca de pirarucu.
CACIQUE: Eu proibi. Vamos ficar cinco anos sem
pescar pirarucu. Já se passou três anos. Vamos fazer um planejamento. Um manejo
planejado. Foi ideia de um sobrinho que estudou em Manaus. Tá proibida a pesca
de pirarucu. Não vamos mais arrendar os nossos lagos. Tá tudo planejado. A
pesca será manejada, com autorização do IBAMA e com cotas.
PROFESSOR: Que maravilha de projeto. Parabéns
cacique. A pescaria vai ser onde? Só por aqui mesmo?
CACIQUE: Quando os homens e as mulheres de
nosso povo deixam o centro da comunidade para pescar, os homens para caçar ou
trabalhar nos roçados, e as mulheres vão à colheita de macaxeira, eles seguem
os caminhos terrestres da floresta ou da margem do rio.
PROFESSOR: algum objetivo específico?
CACIQUE: para alcançar outros lugares no
território. Para conhecer novos animais e coisas da floresta, também.
PROFESSOR: Muito interessante, chefe. Estou
anotando tudo.
(nesse momento entra o fotógrafo, portando um
notebook e sua máquina.)
FOTÓGRAFO: Bom dia. O senhor é o professor
Gonçalo, o antropólogo. Conheço muito o senhor de nome. Meu nome é Paulo André. Sou amigo do Cacique.
E sou fotógrafo. Estou aqui com as fotos para mostrar para o cacique e depois
parto para Manaus.
PROFESSOR:
Eu gostaria de ver as fotos.
CACIQUE: Não pode. Só depois que o Paulo André
publicar e trabalhar nelas. É um trato. Como vocês dizem é cláusula de
confidencialidade. Paulo, eu vou atender o professor, depois a gente analisa as
fotos.
FOTÓGRAFO: Desculpe professor. Mas vocês
falavam sobre pirarucu. Eu tenho uma foto antiga, essa eu posso mostrar. Né
chefe?
CACIQUE: Essas antigas, pode. O senhor pode
comprá-las professor.
FOTÓGRAFO: Veja essa. Que pirarucu mais lindo.
Observe as nervuras. Podem chegar até sete centímetros de largura. Observe
também a textura das escamas. Que peixão especial. Olha essa foto aqui. Uma
cabeça de pirarucu. Linda, né? Só que agora a pesca está proibida.
CACIQUE: Eu já disse para ele. O senhor ainda
tem alguma pergunta, professor?
PROFESSOR: Só queria alguma explicação sobre a
agricultura de vocês. Sobre os roçados.
FOTÓGRAFO: Vou deixar vocês à vontade, depois
eu volto. Vou arrumar minhas coisas para partir.
(O fotógrafo sai)
CACIQUE: Foi um espírito sagrado para nós que
nos ensinou a praticar a agricultura. Diz a lenda que um pajé subiu ao céu.
Então ele pediu a esse grande espírito que desse ao nosso povo todo tipo de
semente. Todo tipo de plantação. Foi assim que a tribo conheceu o milho, a
taioba e a macaxeira. Depois o grande espírito nos ensinou a plantar banana,
batata e cará. E o abacaxi, que fazemos
o suco que o senhor tanto gosta. E fazemos também uma bebida. O aluá.
PROFESSOR: Maravilha chefe. Mas desses, pelo
que vejo a mandioca, ou seja, a macaxeira, é um dos mais importantes.
CACIQUE: A macaxeira foi e é importante. Para
afazer o beiju que o senhor também já falou. Com relação à tecnologia, meu avô
iniciou a produção de farinha. Um povo aqui vizinho trouxe de presente para ele
o tipiti. Ele permitiu que o povo usasse
a peneira dos brancos para a produção de farinha. Essa incorporação de objetos
é complicada. Eu tenho celular, mas não permito “nylon” para pescaria. Usamos
cacuri e o caiá, matapi e jequi. Mas vamos mudar de assunto.
PROFESSOR: Aconteceu alguma coisa com pescaria
por aqui, não foi?
CACIQUE: Anote aí. Outra atividade importante
aqui do nosso povo é o artesanato. Usamos muito o cipó titica e talos de arumã.
São comercializados e nos dão lucro. Outra coisa que um parente me trouxe, e eu
vou começar a produção por aqui em breve, é do óleo de copaíba. Meu parente da
outra margem do rio me disse que o óleo de copaíba é excelente para tratamento
de saúde. Tem efeito cicatrizante e é um ótimo anti-inflamatório. O senhor vai
almoçar por aqui? vamos preparar peixe moqueado.
PROFESSOR: Muito obrigado pelo convite.
Gostaria de sugerir ao senhor que se dedicasse também ao açaí e à coleta de
castanha-do-Brasil, ou castanha-do-Pará.
CACIQUE:
Outros povos já se dedicam a isso. Aqui não temos assim muitas
castanheiras. A diversidade da floresta é muito grande. Temos frutas e
leguminosas que aposto que o senhor não conhece. Conhece biribá? Conhece
pequiá? Temos fartura e diversidade de alimentos. E também temperos, como
urucum. Que tem outras finalidades também.
PROFESSOR: Eu mencionei a castanha-do-Brasil
porque na última comunidade que visitei, as mulheres produziram uns paneiros
muito bonitos. Usados para carregar o ouriço da castanha. Muito interessante a
produção de paneiros desse povo. Com uma diversidade incrível. Produzem
diferentes tipos de paneiros com diferentes tipos de palha e taquara.
CACIQUE: Pois então. Nossa tecnologia e nossa
epistemologia hão que ser respeitadas. Mas não é o que acontece. Além, claro da
nossa enorme diversidade de tubérculos, frutas, castanhas e outros alimentos.
PROFESSOR: Uma outra preocupação minha é a
questão da extração do látex da seringueira.
CACIQUE:
O tão falado ciclo da borracha foi uma desgraça para o nosso povo. Não
gosto de falar no assunto. Foi um ciclo econômico permeado de relações
econômicas predatórias e totalmente desiguais. Os relatos orais que recebi de
meus pais, avós e bisavós são dramáticos. A tal economia do aviamento.
Estiveram submetidos a essa economia os seringueiros, brancos nordestinos,
mestiços e muitos caboclos não índios, ou descendentes de nossos povos, mas que
não se reconheciam mais como índios. E claro, sobrou para a nossa gente também.
PROFESSOR: Gostaria de saber o que o senhor
recebeu de informação de seus antepassados, sobre o ciclo da borracha. Como os
povos indígenas foram afetados pela economia gomífera?
CACIQUE: O que eu posso dizer é que os
seringais atraíram muita gente do nosso povo. Como acontece nos dias de hoje
com a extração da madeira e o garimpo. Aí acontece o que sempre aconteceu: a
desestruturação de nossas atividades tradicionais. Perturbam nossos rituais,
descaracterizando-os. As nossas festas ficam prejudicadas.
PROFESSOR: E no aspecto econômico?
CACIQUE: É o pior. Tanto na época da borracha,
com a extração do leite das seringueiras, quanto na época em que houve muita
caça para o comércio de peles de animais. Promoveu-se o endividamento dos
caboclos e também do nosso povo. Endividamento e dependência dos patrões.
Ficavam todos amarrados para a comercialização da produção da borracha.
PROFESSOR: Essa exploração predatória tanto da
força de trabalho dos caboclos como dos índios foi dramática. E essa epidemia
recente não foi a primeira. Houve muitos surtos epidêmicos. Tudo como
consequência do contato entre o seu povo e a sociedade dita civilizada.
CACIQUE: E nos fazendo cada vez mais
dependente. E certamente com vontade de ter acesso a itens básicos de consumo.
É por isso que tenho o cuidado de não deixar algumas coisas entrarem para ser
consumidas, como o “nylon” das tarrafas.
PROFESSOR:
O senhor tem implicância com o “nylon”.
CACIQUE: É uma coisa emblemática. Mas nós
vamos continuar como sempre, para pescar usando as armadilhas. Tanto as fixas
como as móveis. Mas hoje não quero falar sobre nossas armadilhas e pescaria.
(nesse momento entra o fotógrafo)
FOTÓGRAFO: Foi realmente chocante o que os
guerreiros acharam dentro da armadilha pesqueira. Um acinte. Uma agressão. Um
desrespeito.
CACIQUE: (sussurrando para o fotógrafo) Psiu.
Fica quieto. Ele vai querer ficar com aquele troço. Vai querer fazer uma tese
sobre aquilo.
FOTÓGRAFO: Mas agora é meu. O senhor me deu.
PROFESSOR: De que vocês estão falando?
(fotógrafo tira a pet cravada de flechas da
mochila e põe em cima da mesinha)
CACIQUE: Isso foi um erro. Você vai se
arrepender. Conheço o professor.
PROFESSOR: Nossa! Então foi isso! Realmente o
senhor tem razão de ficar tão abalado. Eu gostaria de ter esse objeto para
estudo. Você pode me ceder?
FOTÓGRAFO: De jeito nenhum. Esse troféu é meu.
PROFESSOR: Eu compro!
FOTÓGRAFO: Não vendo.
(o professor pega o objeto e sai correndo,
colocando-o na mochila. O fotógrafo dá uma pequena rasteira nele. Abre a
mochila e resgata a pet flechada)
FOTÓGRAFO: O cacique tem razão. O senhor é um
chato, um inconveniente, um troglodita.
PROFESSOR: Quem você pensa que é? Seu
fotógrafo de meia-tigela.
FOTÓGRAFO: O cacique não gosta do senhor por
causa disso. É inconveniente. Um chato. E agora queria roubar o meu presente. O
cacique me deu. O senhor queria me roubar, seu ladrão!
PROFESSOR: Me respeite, eu sou um doutor.
Professor universitário. Vou processá-lo.
FOTÓGRAFO: Pode processar. Eu também vou
processá-lo por tentativa de roubo, ou furto, sei lá. O senhor está com inveja
da minha amizade com o cacique. Ele detesta o senhor. Enquanto eu venho aqui,
faço meu trabalho, contribuindo com a economia da tribo, comercializando as
fotos, com toda a transparência possível, o senhor vem aqui encher o saco.
Sabia que ele mente para o senhor?
PROFESOR: Eu já sou um homem velho. Senão, te
enchia de porrada. Seu covarde.
FOTÓGRAFO: Covarde, eu? Nem conheço o senhor. Deveria ter ficado na
minha. Bem que o cacique falou. Não fala nada. Não mostra para ele. E eu fui fazer a besteira de mostrar. Sou
burro mesmo. Que mancada. Eu ainda tenho que mostrar as fotos para o cacique.
Ele vai opinar e vai escolher algumas. Senão iria embora.
PROFESSOR: Quem vai embora sou eu. Pega essa
pet encravada de flechas e enfia! Com todas as flechas. Seu babaca. Até logo
cacique. Desculpe qualquer coisa. Outro dia volto para conversar melhor com o
senhor. Até logo.
(O professor sai e vai embora)
FOTÓGRAFO: Vai. Se é por falta de adeus.
Tchau. Vai escrever suas lorotas. E olha: fotografias não fazem cócegas na alma
dos índios. Retifica teu artigo. A comunidade cientifica deve estar morrendo de
rir de tuas lorotas. Te cuida, papai!
(O Cacique e o fotógrafo ficam se olhando por
alguns segundos e depois caem em gargalhadas)
(Fim do terceiro ato.)
Conclui no próximo sábado...
quinta-feira, 28 de outubro de 2021
A poesia é necessária?
Fila para entrar na fila
David Ranciaro
Na fila do ônibus
João pensa
na fila do pão
e se lembra da fila do INSS
que começa
na fila do dia do pagamento
e termina na fila
do pagamento de água
que fica ao lado da fila
do pagamento da luz
que é próxima à fila
do banco pagador da aposentadoria
que por sua vez
fica defronte da fila
do portão do cemitério
terça-feira, 26 de outubro de 2021
Manaus nunca será Auckland
Pedro Lucas Lindoso
Ícone
da música amazonense – Porto de Lenha tu nunca serás Liverpool. O fato é
que Zeca Torres, o Torrinho, e Aldisio Filgueiras escreveram a música que se
tornou um símbolo para os habitantes de Manaus.
Durante
o ciclo da borracha, Manaus foi muito influenciada pelos ingleses. Eles
investiram muito por aqui. E havia linha direta entre nosso porto e Liverpool.
Instituiu-se até o chá das cinco enquanto as libras esterlinas serviam de
lastro para os negócios envolvendo a borracha natural vinda dos seringais da
floresta.
Meu avô
Phelippe e seus dois irmãos Daou vieram do Líbano para a Amazônia nessa época.
Com certeza, atraídos por este “boom” econômico. Manaus tinha o PIB mas alto do
Brasil, afirmam os historiadores em uníssono.
Os Daou
tinham uma irmã, Amine, que seguiu com o marido para a longínqua Nova Zelândia.
O cunhado dos Daou explicou que sua opção por um país de colonização
explicitamente inglesa com certeza teria um sistema Judiciário mais justo e
eficaz.
Os
descendentes de Amine Daou Francis estão estabelecidos principalmente na cidade
de Auckland em Nova Zelândia. Enquanto os descentes de seus irmãos estão em
grande parte aqui em Manaus.
Maior
cidade da Nova Zelândia, com quase 1,5 milhão de habitantes, Auckland está
entre os melhores lugares no mundo para se viver, de acordo com um ranking da
revista The Economist.
Entre
as razões apontadas pela publicação, está o trabalho de controle da pandemia
feito pelo governo neozelandês e a subsequente recuperação da vida em
comunidade. O país registrou apenas 26 mortes para cada 200 mil pessoas. Na
maior parte do ano, foram poucos casos de infecção.
Nessa
segunda quinzena de outubro, quando nossa Manaus faz aniversário, a Fundação de
Vigilância em Saúde do Amazonas, por meio do Boletim Covid-19 562, informa o
diagnóstico de 24 novos casos. Nesse boletim, o Amazonas registrava 427.188
casos da doença e 13.456 o total de mortes. Perdemos muitos amigos e
conhecidos. Meus primos de Auckland não sofreram perdas.
Auckland,
como Manaus, é um ambiente urbano. A maioria das pessoas está a menos de meia
hora de belas praias, de mar, naturalmente. Nós aqui também temos belas praias,
de rios.
Auckland
está inserida num ritmo cultural vibrante. Nós também. Enquanto os
neozelandeses vivenciam o ritmo da cultura polinésia nós vivenciamos a cultura
amazônica. Parece que eles, como nós, têm uma paixão por comidas marcantes.
Temos muitas coisas em comum. Mas, definitivamente, nosso Porto de Lenha nunca
será Liverpool e Manaus nunca será Auckland.
Feliz
aniversário, Manaus.
domingo, 24 de outubro de 2021
sábado, 23 de outubro de 2021
Basta! A tribo está cansada 2/4
Pedro Lucas Lindoso
SEGUNDO ATO
O fotógrafo está sentado numa esteira. Olha para sua máquina fotográfica e começa um
diálogo com ela.
FOTÓGRAFO: Olá minha amiga. Minha consciência.
Meu objeto de trabalho. Quisera eu que você falasse além de registrar as
pessoas, os objetos, a vida. Reza a lenda que Michelangelo teria ficado tão
impressionado com sua escultura de Moisés, que, ao terminá-la, teria exclamado:
Fala! Claro que a estátua não respondeu. E você, querida câmera fotográfica,
por que não me responde?
CÂMERA: Não tenho coragem. Câmeras como eu já
registraram muitas barbaridades contra indígenas. Nem é bom lembrar. O povo
Juma por exemplo. Sofreu um massacre em 1964. De que adiantou registros de
câmeras fotográficas como eu? Somente quinze anos mais tarde houve uma denúncia
e tomaram conhecimento.
FOTÓGRAFO: Então o povo Juma foi exterminado?
CÂMERA: Sobreviveram nove pessoas. Depois
foram levados para Roraima, contra sua vontade. Ficaram por lá por doze anos.
Retornaram ao Amazonas por decisão judicial.
FOTÓGRAFO: Eu sei. Nada disso me foi dada a
oportunidade de registrar. Eu soube que era um pequeno grupo. O cacique me
disse que Aruká foi o único homem Juma que sobreviveu. Ele teve filhas com
casamento de outra etnia. E eu, mais uma vez não pude registrar nada disso. Eu
não! Nós dois.
CÂMERA: Não é sua praia. Você sempre foi
assim. Fugindo das polêmicas.
FOTÓGRAFO: Você está me chamando de covarde?
CÂMERA: Não. Cada um tem sua missão. Você sabe
e também não temos fotos da morte de Aruká, ocorrida durante a pandemia de
covid. Você sabia que ele foi contaminado na própria aldeia? Não fizeram uma
barreira sanitária.
FOTÓGRAFO: Morreu o último homem Juma e nós
não tiramos foto dele.
CÂMERA: Nesse ponto lembre-se que a história
dos Juma não terminou. Essas tragédias se repetem. Você sabe que nós brancos
invadimos sempre a terra dos índios. Há invasão de garimpeiros, madeireiros e
pescadores esportivos. Os pescadores esportivos tiram belas fotos. De peixes,
da floresta. São bons em pescaria, fotos e conflitos. Com indígenas, claro.
FOTÓGRAFO: Mas a Polícia Federal tem atuado
contra violações de garimpeiros em terras indígenas.
CÂMERA: Tem sim. E depois vem a retaliação.
Muitos tiros contra os indígenas e incêndio criminoso nas malocas e casas
deles. Reza a lenda que os primeiros habitantes de Manaus, foram justamente os
Manaus e os Barés. Havia uma rivalidade entre essas duas tribos. Pois bem,
incentivados pelos colonizadores uma dessas tribos incendiou todas as malocas
da tribo rival. Tocar fogo em casa de índio sempre aconteceu. Aconteceu recentemente.
E você nem me levou para trabalhar lá, tirando fotos.
FOTÓGRAFO: Além da retaliação, os garimpeiros
fazem protestos. Soube de um caso em que manifestantes invadiram a base de
operação da Polícia Federal e da Funai. Houve depredação. Um amigo, piloto de
aeronave, teve seu avião todo depredado. Prejuízo para a União. E ainda pegaram
equipamentos e armas de policiais federais. E ficou por isso mesmo.
CÂMERA: O garimpo ilegal, o garimpo
clandestino, é muito danoso para o meio ambiente. Para a floresta e os rios da
região. São usados muitos produtos químicos. É uma desgraça para o meio
ambiente. Principalmente para os rios. A poluição que causam é lastimável. Os
rios e os lençóis freáticos ficam totalmente afetados por isso. Para alguns
indígenas isso ainda é muito pior do que ter suas casas incendiadas. O coletivo
para eles é mais importante. A floresta e os rios são mais importantes do que
qualquer outra coisa. Eles sofrem muito.
FOTÓGRAFO: Nem a presença das Forças Nacionais
inibem os garimpeiros. Eles continuam cometendo atos de violência. Ameaçam. A
lista de crimes é grande: incêndios criminosos, associação criminosa,
exploração ilegal de matéria-prima da União, crime contra o meio-ambiente e por
aí vai.
CÂMERA: E não é só a questão dos garimpeiros e
outros com nossos irmãos indígenas. Há invasão irregular de terras públicas. E
não é só pelo pessoal da agropecuária. Há outros negócios envolvidos. E isso
você não me usa. Não tira fotos.
FOTÓGRAFO: O que eu lamento é que essas
práticas podem prejudicar muito nosso país. Nos acordos internacionais, no
mercado internacional. Podem fechar mercado para nossos produtos. Aqui no
Amazonas temos áreas de reservas extrativistas e de desenvolvimento
sustentável. Isso garante a conservação da biodiversidade e do patrimônio
natural. Mas poucas pessoas parecem saber disso.
CÂMERA: Pois é, vocês precisam melhorar a
informação sobre a legislação que rege a questão do uso da terra e do uso de
recursos naturais. Você que é fotógrafo não deixa de ser um comunicador. A sociedade
precisa ser melhor informada sobre a questão ambiental. Isso é muito sério e
importante.
FOTÓGRAFO: Muito importante. A questão da
terra e seus recursos naturais. Mas há também os índios urbanos. Em Manaus há
muitos, inclusive ocupando áreas irregulares. Bem ou mal há políticas
programadas para os indígenas aldeados. Há as terras demarcadas. E os índios de
Manaus? Precisam implementar também processos demarcatórios para os índios
urbanos. Eles estão esquecidos. Isso também é preocupante. O cacique me
explicava que a questão da distinção entre indígenas aldeados e os que moram na
cidade é uma divisão criada pelo homem branco. O índio sempre esteve nas
cidades. Segundo o cacique, a presença de indígenas nos centros urbanos sempre
existiu. Ele explica que são as cidades que chegaram aos indígenas. Ele advoga
que os indígenas que moram nas cidades precisam ser reconhecidos como indígenas
na cidade.
CÂMERA: Claro. Como máquina que registra tudo
e todos, vejo como de primordial importância que esses índios urbanos mantenham
suas tradições e seus costumes. Quando as administrações do branco não
reconhecem a identidade dos indígenas, também não reconhecem o seu direito ao
território. E mais, os índios têm seu direito negado quanto a educação e saúde
diferenciadas. Até na hora da morte. Enterram indígenas como “pardos”. Não são
pardos. São indígenas. Tem etnia própria. Mudando de assunto, penso que o
artesanato é uma grande saída para eles. Adoro quando sou usada para tirar
fotos de artesanato. Sou fã de artesanato. Os produzidos pelos indígenas são
uma beleza. Precisam realizar eventos de apoio. Durante a pandemia de covid
ficou tudo suspenso. Tanto a venda de artesanato quanto a realização de
eventos.
FOTÓGRAFO: Sem esquecer que o artesanato
fomenta a indústria do turismo. A chamada indústria sem chaminé. O fomento a
esses eventos e ao turismo gera renda. E eles precisam disso para sobreviver
com dignidade. O tal sistema econômico não pode e não deve excluir os índios.
Nem os ribeirinhos também. Os índios não podem ser excluídos. Eles fazem parte
da cadeia. Além da produção de artesanato, os índios trabalham a piaçava, a
piscicultura.
CÂMERA: E o açaí. O açaí nativo, a castanha e
a farinha d’água fazem parte de uma cadeia produtiva que para eles é meio invisível.
Quando esses produtos chegam a Manaus ou a outros centros, quem acaba levando
vantagem é o atravessador. O produto fica onerado e os indígenas, com pouco
lucro. É tudo muito cruel e injusto.
FOTÓGRAFO: É preciso apoio para que eles se
organizem. O que não falta é mercado para esses produtos. Não só no Brasil como
no exterior. Se faz necessário e urgente a organização e potencialização dessas
atividades. Outra coisa importante é a certificação. Os produtos precisam ser
certificados como produtos da floresta. O índio prioriza a floresta. O índio
prioriza a relação com o meio ambiente. Nunca se deve esquecer que a terra é o
sagrado. A terra é o mais sagrado de tudo. Para eles a terra é o princípio de
tudo.
CÂMERA: É a eterna luta pela terra. Mas eles
lutam também por educação e saúde. Ficaram vulneráveis na pandemia. Muitos não
índios consideram os índios como um nativo não civilizado. Há muito
preconceito. Eles sofrem isso. Já registrei isso em fotos. Eles gostam de
aprender com os brancos. Mas os brancos têm muito o que aprender com os
indígenas. Suas histórias, suas tradições, seus costumes. Eles ficam
extremamente ofendidos, e com razão, quando são taxados como atraso para o
desenvolvimento. Geralmente são pessoas que não os conhecem. O respeito só existe
quando há conhecimento.
FOTÓGRAFO: Tem ainda a questão do isolamento.
Eu sempre quis fotografar por lá. Mas temos que respeitar o isolamento.
CÂMERA: Você tem consciência e não vai lá. Mas
os invasores – garimpeiros, madeireiros, caçadores já estão na área. Parece até
que são incentivados.
FOTÓGRAFO: Estou me referindo à terra do Vale
do Javari, na fronteira do Brasil com o Peru. É a região onde estão
concentrados. Trata-se da maior concentração de povos isolados do mundo.
CÂMERA: É de lá mesmo que estou falando. A
situação ficou mais grave durante a pandemia. Houve um total descaso com a
integridade territorial e a segurança sanitária desses povos em isolamento
durante a pandemia de covid-19. Uma lástima. Um crime.
FOTÓGRAFO: Outro dia li que uma tribo do Purus
sofreu forte queda populacional causada pelo sarampo. Isso ainda no século 19.
Veja você, no período áureo de extração da borracha. Muito triste tudo isso.
CÂMERA: Com o ciclo da borracha foram
intensificados os contatos com os europeus. Os indígenas foram atraídos para a
aquisição de ferramentas e outros itens. Nessa época, eles faziam saques nos
seringais, nas chamadas “colocações” e acampamentos de seringueiros.
FOTÓGRAFO: É, mas cada povo manteve uma
experiência particular de interação com os extrativistas, com os seringueiros e
seringalistas, assim como outros habitantes que se instalaram na região.
CÂMERA: Eu conversava com uma índia velha que
me contou uma história impressionante. A narração se inicia quando uma esposa
jovem tem relação com uma cobra sucuri. A moça levava caiçuma para o seu
marido. Se perdeu na floresta e foi abusada por uma cobra sucuri. Incrível essa
história. Daí nasceu uma criança-cobra. Foi um susto para todos. Então o avô da criança resolveu queimar o
bebê. Essa tragédia causou um grande dilúvio. E pasmem! Só sobreviveu a mãe e
sua irmã. Elas treparam num pé de árvore. Após o dilúvio, as irmãs desceram e
começaram a andar pelo mundo, procurando os seus parentes.
FOTÓGRAFO: Vamos descansar, amanhã tirarei as
últimas fotos e partiremos. Tenho muito o que fazer na cidade. Minha família
está reclamando das minhas ausências.
CÂMERA: Você é que sabe. Estou sempre com
você. Sou sua câmera, sua consciência, sua amiga. Vamos relaxar.
(Fim do segundo ato.)
Continua no próximo sábado...
sexta-feira, 22 de outubro de 2021
quinta-feira, 21 de outubro de 2021
terça-feira, 19 de outubro de 2021
Castanhas. De quem são mesmo?
Pedro Lucas
Lindoso
Desde
menino aprendi que a nossa castanha tão presente na culinária amazonense em
doces, tapiocas, bolos e outros que tais, se chama castanha do Pará.
No
estrangeiro são conhecidas e, portanto, exportadas como “Brazil nuts”.
Castanhas do Brasil. Adolescente intercambista nos Estados Unidos, fui chamado
de “Brazil nuts”. Aquilo foi só uma brincadeira. Não se tinha conceitos de
bullying na minha juventude. “Nuts” em Inglês, no plural, é usado para indicar
que alguém está louco, maluco, doido varrido.
Li que
o Amazonas tem produzido grande quantidade de castanha do Pará. Meu avô
paterno, que foi seringalista, com a crise da borracha, também comercializava
peles de animais e castanhas. Conhecidas como castanhas do Pará.
Uma
rivalidade boba instalou-se entre os amazonenses e paraenses que moram por
aqui. A grande maioria não é de Belém. São nossos irmãos da região do Baixo
Amazonas. Mais precisamente da Região de Santarém, a cidade do Alter do Chão.
Banhada pelo lindo rio Tapajós. Assim, são mais tapajoaras que paraenses. Estão
chamando, acho que por birra, a castanha do Pará, de castanha da Amazônia. Ou
do Brasil.
A
castanha do Pará é um fruto da família das oleaginosas, assim como as amêndoas
e as nozes. Segundo as nutricionistas da hora possuem diversos benefícios para
a saúde. Ricas em proteínas, fibras, selênio, magnésio, fósforo, zinco e
vitaminas do complexo B e vitamina E.
Por
conter antioxidantes, a castanha do Pará promove a diminuição do colesterol
total e melhora o sistema imunológico. Ajuda a prevenir alguns tipos de câncer,
como de mama, próstata e cólon. Como tudo, se ingerida em excesso, pode fazer
mal.
A
castanha do Pará é um fruto da árvore chamada Bertholletia excelsa. São as castanheiras. Árvores altas e de grande beleza. A coleta da
castanha é feita por extrativistas que vivem no interior das florestas e nas
margens dos rios. Passam dias e dias caminhando para coletar os ouriços que
caem da castanheira. As castanheiras chegam a viver 500 anos, e podem atingir
até 50 metros.
Mas,
para o caboclo extrativista a castanha é da mangavá (ou mamangava): uma abelha
muito grande, que lembra um besouro. Essa abelha é a única que tem força para
entrar na flor da castanheira e polinizá-la.
Portanto, a castanha não é nem do Pará, nem da Amazônia e nem do Brasil.
Pertence mesmo à mangavá!
domingo, 17 de outubro de 2021
sábado, 16 de outubro de 2021
Basta! A tribo está cansada 1/4
Pedro Lucas
Lindoso
Este trabalho é dedicado a todos os povos e
tribos indígenas, seus descendentes e àqueles que lutam pela preservação de
seus costumes e de sua existência.
Personagens
João Bosco, Cacique da tribo
Paulo André, fotógrafo
Máquina fotográfica – (voz feminina)
Professor Gonçalo, antropólogo e pesquisador
Sugestão de sonoplastia e som para a peça
De acordo com a publicação Sons que vêm da Amazônia – Jornal do Commercio de 8 de abril de 2021, com reportagem de Evaldo Ferreira, através do aplicativo The Roots, poderá ser escolhido kits com instrumentos indígenas.
Sugere-se a aquisição de dois kits. Um kit com
charango, gambá de Maués, nanhabé-inajá e mawako fêmea. Outro kit com cuatro
venezuelano, tambor de cuia, chuá-chuá e carriço.
As músicas a serem utilizadas podem ser
adquiridas no site www.therootsvr.com.br
Época: presente.
Lugar da cena: comunidade indígena do interior do Amazonas.
Nota do autor: Os posters para o cenário bem como fotografias da comunidade escolhida poderão ser comercializadas pela produção da peça. Entretanto, será necessário a autorização expressa da comunidade por meio de seu representante legal. Todos os direitos legais reservados à comunidade devem ser estritamente respeitados. Inclusive de participação em fotos que ilustrem folhetos, livros, camisetas, ou qualquer outro meio de divulgação.
PRIMEIRO ATO
Interior da oca. O cenário consiste em cinco
posters fotográficos. No centro há duas banquetas. O cacique está sentando em
uma delas. Está usando cocar. Nas mãos um tacape. Final de tarde.
O Cacique pensativo, observa a plateia. A cabeça se movimenta para um lado e outro.
(O fotógrafo entra e começa a tirar fotos.
Dirige-se à plateia com a máquina e continua fotografando, por, no mínimo, três
minutos.)
CACIQUE: (levanta-se e grita) Chega! Basta! A
tribo está cansada.
FOTÓGRAFO: (para de fotografar e vai sentar-se na banqueta ao lado do cacique). Sim, senhor. Eu também já estou satisfeito por hoje.
CACIQUE: Não quero que você me veja como uma pessoa que não é civilizada. Eu estudei. Eu fui forçado a estudar. Eu estive na cidade. As pessoas pensam que eu só conheço a floresta e as matas.
FOTÓGRAFO: Eu sei disso. O senhor toma conta da comunidade com muito zelo e eficiência. Inclusive na parte financeira. Por falar nisso, os direitos sobre as fotos do meu último trabalho já foram depositados ontem. Estão na conta.
CACIQUE: Você é honesto. Gosto do seu trabalho. E gosto de conversar com você. Diferente de uns pesquisadores que vêm por aqui. Uns chatos.
FOTÓGRAFO: Como assim?
CACIQUE: Só querem falar do “sagrado”. Só querem falar de Deus. Só se interessam pelo que é mágico. Isso chateia. Enche o saco!
FOTÓGRAFO: O senhor tem razão. Parece que o conhecimento que os brancos querem ter da comunidade é sempre a partir de algum preceito religioso. Isso deve ser cansativo mesmo.
CACIQUE: Totalmente. Eu sempre achei que nós indígenas que tivemos oportunidade de estudar e conhecer a cultura dos brancos deveríamos propor uma nova discussão. Que possa levar a conceitos além desses que os antropólogos, sociólogos e outros ólogos propõem. Estamos fartos disso. E da conversa deles também. Eu agora dei para mentir para alguns deles.
FOTÓGRAFO: o senhor mente para os pesquisadores?
CACIQUE (rindo alto) Outro dia eu disse numa entrevista que as fotografias faziam cócegas na alma dos parentes. (Rindo) O cabra achou o máximo.
FOTÓGRAFO: O fato é que cada um tem seu modo de explicar as coisas. Chefe, a tarefa de seus amigos antropólogos é formular princípios explicativos da formação e desenvolvimento das diversas culturas. Eles vêm conversar porque precisam explicar, formular teses. Já eu, venho fotografar e ajudo vocês compartilhando os lucros do meu trabalho.
CACIQUE: Mas são muito cansativos e às vezes até inconvenientes. Depois vocês têm que entender que nosso conhecimento é feito e transmitido oralmente. O de vocês, principalmente dos antropólogos e sociólogos que vivem aqui perturbando a gente, é transmitido através da escrita. Assim, são duas formas diferentes de falar e compreender a realidade. Você não acha?
FOTÓGRAFO: Acho que os dois modelos são sim diferentes, mas um não é melhor ou pior que o outro.
CACIQUE: Claro. Outro dia um professor veio me explicar o significado de epistemologia. Ensinou-me que é o estudo crítico dos princípios das diversas ciências. É a teoria do conhecimento. Aí eu disse: Pronto. Então nós temos a nossa epistemologia e vocês, os ditos brancos civilizados, têm a sua epistemologia. E fim de papo.
FOTÓGRAFO: O que o senhor acha disso? O senhor estudou com os brancos. Seu filho está na universidade dos brancos.
CACIQUE: Eu acho que nós precisamos conhecer os outros. Eu só posso conversar com você porque eu conheço o português. Eu só posso permitir que você tire as fotos porque eu conheço você. Conheço seu trabalho. Confio em você. Você tem sido honesto com o meu povo. Você tem nos ajudado. E sei que você também se ajuda. Já os antropólogos e sociólogos não nos ajudam em nada.
FOTÓGRAFO: Discordo chefe. Muitos estão comprometidos em lutar pela demarcação de terras. Em preservar seus direitos que são muitas vezes usurpados pelos brancos. Muitos têm um amor e uma dedicação incomensurável pela causa dos indígenas, a preservação de sua cultura. O senhor está sendo ingrato.
CACIQUE: Reconheço. Você tem razão. Mas os antropólogos e sociólogos tem que entender que os conceitos deles, não servem para falar de nossa cultura. Os conceitos de vocês, ditos conceitos “ocidentais”, não são nossos conceitos. Como eu lhe falei. Aprendi o que é a tal de epistemologia. E agora vou falar sempre isso. Nossa epistemologia é diferente da epistemologia de vocês.
FOTÓGRAFO: O senhor tem medo de descaracterizar esse conhecimento? Essa epistemologia própria de vocês?
CACIQUE: Claro que tenho. E muito medo. A gente vai continuar mandando nossos filhos para a universidade. Mas é muito perigoso. Vamos ter indígenas médicos, engenheiros e advogados que podem começar a falar de nossos conhecimentos, da nossa epistemologia (gostei de aprender esse conceito), com base somente no que eles aprenderem na universidade. Eu acho isso temerário para nossa cultura.
FOTÓGRAFO: Pois é. Muitos acham que os indígenas são um povo que só vive em aldeias.
CACIQUE: Interessante. O que é ser civilizado? É ter carro, é ter casa bacana, é ter celular e computador. Parece que ser civilizado é aquele que tem as coisas. Eu tenho celular. Então eu não sou mais indígena. É isso?
FOTÓGRAFO: Para muitas pessoas, o indígena que está na cidade e que tem celular, carro e roupas da moda não é mais índio.
CACIQUE: Isso é um absurdo. Então o que é ser índio? A aparência pouco importa. (Retira o cocar). Se eu ficar sem o meu cocar de chefe eu deixo de ser o cacique aqui? O problema é que muitos não nos conhecem e não nos respeitam. Por isso eu apoio o teu trabalho. Você nos divulga de forma honesta. Eu gosto das suas fotos. Quando vamos ver as novas fotos e escolher?
FOTÓGRAFO: A conversa está muito boa. Vamos deixar para amanhã pela manhã?
CACIQUE: Claro. Eu vi que você trouxe um notebook novo. Vocês estão sempre com novas tecnologias. Nós também temos nossas invenções. O professor que me ensinou o conceito de epistemologia me disse que nós estamos aqui há uns 14 mil anos. Olha só. É muito tempo. Os portugueses chegaram aqui em 1500. Nós já estamos aqui há muito mais tempo.
FOTÓGRAFO: Desculpe chefe. Mas sem querer ofender. Qual é a tecnologia de vocês?
CACIQUE: Nossa tecnologia no ramo da alimentação, por exemplo. No ramo dos medicamentos. Muitos de vocês se apropriaram dessa tecnologia e nem nos avisaram. Nem nos deram direito e lucros inerentes a elas. Veja essa oca. O que você acha dessa construção? Minha casa não é bonita? Não está adequada ao nosso clima? Não é bacana? Você não dormiu bem aqui? Isso não é tecnologia?
FOTÓGRAFO: Claro. Sempre é agradável ficar aqui.
CACIQUE: Você viu como fazemos farinha? Viu nossos utensílios? Nossos vasos e nossa cerâmica? Isso não é tecnologia?
FOTÓGRAFO: Sem dúvida. O conhecimento de vocês é tão importante quanto os dos ditos civilizados. A previsão do tempo é uma coisa que me encanta. O senhor sabe sempre quando vai fazer friagem. Da última vez que estive aqui o senhor me disse que o período da vazante estava no fim. A constelação de Escorpião, que o senhor chama de surucucu, havia desaparecido no horizonte oeste.
CACIQUE: Pois é. As estrelas nos ajudam a identificar o ciclo das águas e também quando teremos a piracema. Podemos ver o céu e saber das chuvas e dos dias de sol. Para nós isso é muito importante.
FOTÓGRAFO: O pessoal dá muita importância para a previsão do tempo. O tempo é sempre notícia na televisão.
CACIQUE: Para nós também. Temos nossos rituais. Precisamos também fazer planejamento. Precisamos também saber a previsão do tempo. E também observamos os animais. O céu e os animais nos informam se vamos ter fartura de frutas, peixes e caça. Nos dizem quando vamos ter flores.
FOTÓGRAFO: Uma beleza. Vocês são privilegiados. Podem comer tudo que a natureza oferece.
CACIQUE: Não senhor. Aqui não se come de tudo não. Somos proibidos de comer nambu-galinha, uru, também chamado de puturu, e alguns peixes também não se come.
FOTÓGRAFO: Eu sei. Li que alguns povos não comem caititu, miriti e quati.
CACIQUE: Com razão. Precisamos ficar atentos ao que se come para evitar doenças como aquela que dá dor forte no corpo. Tem comida que pode deixar a pessoa doida. Outras comidas podem matar. São venenosas. Mas a gente conhece. Os antepassados nos ensinaram tudo.
FOTÓGRAFO: Isso é uma beleza. É um privilégio conversar com o senhor.
CACIQUE: E outra coisa que muito me preocupa. O clima anda descontrolado. Às vezes acontece tudo errado. Mas olha lá. (apontando o dedo para o horizonte) Veja que lindo arco-íris! É uma cobra colorida. Protege os rios e a floresta, sabia? Protege os rios e a floresta dos desmandos e dos abusos que vocês andam cometendo. Quando os rios e a floresta estiverem completamente sujos, a vida ameaçada e por um fio, guerreiros valentes descerão pelo arco-íris para salvar a terra.
FOTÓGRAFO: Que beleza. Essa foi demais. Acho que vou precisar descansar agora.
CACIQUE: Você cansou a tribo com muitas fotos. E me cansou com muita conversa. Até amanhã. A tribo e o cacique estão cansados.
(Fim do primeiro ato.)
Continua no próximo sábado...