Zemaria
Pinto[*]
Talvez
me precipite, mas me parece que existe uma tradição de cultivo do haicai entre
nós; pelo menos, em Manaus. Quisera poder dizer na Amazônia, esse lugar mítico
que esconde tantos mistérios. E a linguagem do mistério é a mesma da poesia.
Mas, estaria sendo leviano, porque não conheço outros cultores fora da capital
do Amazonas, além dos amigos poetas Eliakin Rufino e Isaac Melo – representando
Roraima e Acre.
Essa
tradição aproxima-se dos setenta anos – ou, dependendo do ponto de vista, dos cem
anos. Mas, um retrospecto da prática do haicai não pode se restringir a um mero
“ouvi dizer”. Eu mesmo já fui acusado de afirmar que “tudo começou com o livro Crisântemo
de cem pétalas, de Luiz Bacellar e Roberto Evangelista, publicado em 1985”.
Essa falácia está registrada em um livro festejado, que eu não cito em detalhes
por delicadeza. Afinal, por que a guerra, que só beneficia a quem a provoca, se
a paz é um bem para todos?
Mas,
devo admitir que, assim como dezenas de meus pares, acreditei piamente, durante
muito tempo, que o introdutor do haicai no Amazonas fora mesmo o amigo Luiz
Bacellar, mas no livro Frauta de barro, de 1963, onde constam dez
haicais, que passaram a doze na segunda edição. E Bacellar jamais negou isso. A
partir da terceira edição, os haicais foram eliminados. Autocrítica?
O mar está bravo e bate
bate; e, levantando espuma
canta nos rochedos.
(p. 85)
Esse
pecado coletivo se desfez com o tempo. O livro As horas lentas, de 1930
(2002, 2ª ed.), de Raimundo Monteiro, traz seis tercetos aos quais o autor
chamou de “Utas” – uma forma chinesa, adotada no Japão como “waka”, que é
simplesmente “poema”. O primeiro waka foi escrito pelo kami
(deus) Susanoo, dedicado a sua noiva como presente de bodas. Raimundo
Monteiro escrevia como um haijin, mas pensava como um romântico:
Morre, em surdina, a toada
De uma viola magoada...
– Penso na minha Amada.
(p. 58)
Em
1957, Benjamin Sanches, que se consagraria contista seis anos depois, publicava
Argila, onde se destaca uma seção de três poemas, intitulada “Hai-kais”.
Sanches bebe na fonte guilhermina:
Banhando-se nua,
No rio treme de frio,
A pálida lua.
(p. 125)
Volto
no tempo, para desfazer mais uma falácia. Muita gente boa credita ao ensaísta
Samuel Benchimol, merecedor de toda a nossa consideração, como o introdutor do
haicai no Amazonas. No livro Nova Terra da Promissão – A Amazônia de Samuel
Benchimol (2010), o poeta, ficcionista e ensaísta Elson Farias afirma, com
clareza:
[Samuel Benchimol] deixou uma coletânea de
versos organizada em 1942 e intitulada Versos dos verdes anos, até hoje
inédita. (p. 38)
Uma
outra fonte, que defende ser esse o marco introdutório do haicai no Amazonas,
informa que, em livro de 2001, Benchimol assinala que o subtítulo da obra (que
seria futuramente citada por Farias) é “Poemas e haicais escritos no período de
1942-1945 (inédito)”. Desconsiderando-se as confusões com as datas, pergunta-se:
se era inédito até 2001 – quiçá, 2010 –, quem leu antes, além de uns
poucos ungidos por Benchimol? E leu um rascunho, talvez um manuscrito, não uma
publicação.
Raimundo
Monteiro ou Benjamin Sanches – isso ainda vai dar muita discussão, mas não
temos pressa –, o que sabemos com certeza é que não foi o professor Benchimol
nem tampouco o poeta Bacellar os introdutores do haicai no Amazonas.
Os
quarenta anos seguintes a Argila foram pródigos no aparecimento de
cultores do haicai, entre os quais, de memória, destaco Jorge Tufic, Anísio
Mello, Ronaldo Bonfim, Anibal Beça, Simão Pessoa e até o locutor que vos fala,
além dos já citados Bacellar e Evangelista. Na virada para o século 21 nasce o
Grêmio Sumaúma, que tem vida efêmera: apenas um ano de atividade. Mas, revelou
muitos autores, entre os quais, sempre correndo o risco de esquecer alguém,
cito Rosa Clement, Dedé Rodrigues, Grace Cordeiro, Urdapilleta Sanches, Sergio
Luiz Pereira e um pessoal que, quase 25 anos depois, ainda lavra a seara do
haicai: o grupo intitulado CLAM – Clube Literário do Amazonas, sob a liderança
de Nelson Castro. O grupo, aliás, lançou este ano o livro Kigo, com
poemas de quatro de seus componentes, e já prepara uma nova coletânea.
Em
paralelo, o trabalho realizado na UFAM, pelo professor Cacio José Ferreira e
outros, nos faz acreditar que aquela tradição referida no início segue “de
vento em popa”, para usar uma imagem bem nossa. Lembro Casulo de imagens: a poesia japonesa no Amazonas (2017), bela
coleção de análises de autores e haicais, organizada pelos professores Cacio
José e Rita Barbosa de Oliveira. Na orelha do livro, o professor Cacio reafirma
a ideia de que a Amazônia é especial para a prática do haicai.
O leitor compreenderá que o haicai amazonense
revela uma natureza peculiar, não deixando, porém, de portar a universalidade
da poesia. Ao contrário, intensifica, diante das variadas imagens amazonenses,
o desdobrável e tradicional gênero poético japonês.
Este
livro que o leitor tem em mãos faz parte desse trabalho, trazendo à luz
composições inéditas, onde encontramos nomes conhecidos, como dos professores
Cacio e Guedelha, e uma maioria de, imagino eu, iniciantes que demonstram
firmeza no uso da técnica e na execução da tarefa.
Para
finalizar, permito-me comentar um pouco sobre a forma haicai. Existem muitas
teorias para definir o que pode e o que não pode nas linhas e entrelinhas de um
haicai. Mas o que vale para nós, pobres mortais, não vale para Paulo Leminski
ou Millôr Fernandes, por exemplo. Feita essa constatação, pego a contramão: quanto mais à vontade, mais Milorinski ou
Leminslor, quanto mais libertário, mais você vai se aproximar da essência do
haicai.
O
rigor técnico vem com a elegância no domínio da linguagem. A técnica do
“empilhamento de versos”, por exemplo, deve ser usada com cuidado, pois
enrijece a composição. O poema deve fluir em uma frase ou duas. Veja este
exemplo tirado de U. Sanches, no livro Poesia minimal (2013):
Tarde
escondida
a
(p. 35)
Um
pântano, a tarde chuvosa, eram as informações do haijin. Que sensações ele
extrai de tão pouco? O
Acrescente-se que o poema de Sanches foi
construído em duas
Concluo,
agora sim, conclamando a todos para fazer do haicai um instrumento a serviço da
natureza, visando ensinar a paz e criar uma consciência de mudança
comportamental e não negacionista nos jovens e, principalmente, nas crianças: o
mundo está em perigo e a poesia pode ser usada para chamar a atenção disso. Vivemos
no âmago da maior floresta tropical do planeta, o que nos lembra a enigmática e
talvez profética sentença de Euclides da Cunha:
A Amazônia é a última página, ainda a
escrever-se, do Gênesis.[2]
Apresentação do livro Vento na folha de bananeira, que você pode obter, em PDF, à sua direita.
[*] Zemaria Pinto é escritor, com 28 livros
publicados em gêneros diversos, incluindo dois de haicais: Corpoenigma (1994) e Dabacuri
(2004). Membro da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Geográfico e
Histórico do Amazonas, é mestre em Estudos Literários, pela UFAM. Na década de
1990, foi professor, na UFAM, entre outras matérias, de Literatura Amazonense.
[2] CUNHA, Euclides. Prefácio de Inferno verde, de Alberto Rangel. In: Amazônia – Um paraíso perdido (seleção de textos amazônicos). Manaus: Valer, 2003, p. 354.