Amigos do Fingidor

domingo, 7 de dezembro de 2025

Manaus, amor e memória DCCLII

 

Segunda Ponte Romana, na antiga rua Municipal.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

A poesia é necessária?

 

Alma corsária

Claudia Roquette-Pinto

 

De tanto sono me baixa uma lucidez estranha

em que a amendoeira pousa, luminosa, rara,

sob o fundo escuro da noite meio baça

(cilíndrica, roliça, bizarra)

seu vulto verde acocorado sobre a água

da piscina que não tem um pensamento.

 

Eu sinto inveja dessas águas anuladas

tão plácidas, idênticas ao próprio contorno

enquanto eu mesma nem sei onde começo,

quando acabo

e sofro o assédio de tudo o que me toca.

 

O mundo ora me engole, ora me vara

e tudo o que aproxima me desterra.

Chorei, ao ver no chão da cela,

o botão arrancado na contenda,

os óculos pisados do escritor judeu.

 

Tenho um coração que estala

com o peteleco das palavras de Clarice.

Numa vila miserável na Bahia,

um negro lindo, lindo,

dança ao som do corisco

 e só me apaixono por casos perdidos,

homens com um quê de irremediável.

 

Mais de uma vez, imóvel, circunspecta,

vi abrir-se a máquina do mundo

sob a luz inclinada de Ipanema,

na Serra da Bocaina, no meio da floresta,

no alto da escada no topo do morro

por onde a moça sequestrada vinha subindo

debaixo das lágrimas do pai.

 

Mais de uma vez meu coração trincou feito vidro

diante da página impressa,

e sempre que a palavra justa vem tirar seu mel

de dentro da copa do desespero de amor.

 

Acredito, do fundo das minhas células,

que uma amizade sincera é o único modo de sair da solidão

que um espírito tem no corpo.

 

Sim, eu acredito no corpo.

 

Por tudo isso é que eu me perco

em coisas que, nos outros,

são migalhas.

Por isso navego, sóbria, de olho seco,

as madrugadas.

Por isso ando pisando em brasas

até sobre as folhas de relva,

na trilha mais incerta e mais sozinha.

 

Mas se me perguntarem o que é um poeta

(Eu daria tudo o que era meu por nada),

eu digo.

 

O poeta é uma deformidade.



terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Traje atípico

Pedro Lucas Lindoso

 

Tia Idalina, como sempre, adora bater um papo via Whatsapp.  Eu muitas vezes ligo para titia para saber as novidades. Ela sempre tem uma opinião sobre fatos, podcasts, notícias de jornal impresso, programas de TV e outras mídias.

Idalina assiste a concursos de miss. Disse-lhe que achava esses concursos um tanto démodé. O charme dos anos sessenta e setenta não existe mais. As moças de hoje ficam todas muito parecidas, com idade indefinida. Antigamente as misses eram garotas solteiras, com, no máximo, 24 anos. Hoje há mulheres casadas e algumas quase balzaquianas, sem querer ser incorreto ou misógino.

Ela concordou comigo. Mas assiste para ver até onde vai a falta de bom senso e a ousadia da produção. E o nível de despreparo e cafonice de algumas candidatas. Então o assunto foi o Concurso de Miss Universo 2025. De acordo com Idalina este é o mais prestigiado e possivelmente o mais antigo.

Foi no certame de 1954 que a baiana Martha Rocha ficou em segundo lugar por ter duas polegadas a mais. Como se sabe, nos Estados Unidos não se usa metro e centímetros. Ora, uma polegada equivale a 2,54 centímetros. Então Martha Rocha perdeu por pouco mais que cinco centímetros. Titia me disse que foi na cintura. O traje típico de Martha Rocha foi, evidentemente, de baiana. Fez sucesso.

O Amazonas não esquece a sua eterna miss Terezinha Morango. Também ficou em segundo lugar. O traje típico de Terezinha também foi de baiana. Hoje seria de cunhã-poranga. Mas naquele longínquo ano de 1957, o traje típico oficial das brasileiras era de baiana, graças a famosa Carmen Miranda.

Sobre o assunto traje típico, Idalina me disse que nesse ano a brasileira se superou na questão de falta de senso, desrespeito, cafonice e quiçá um ato de heresia. Como assim heresia, perguntei. E ela indignada, estupefata e até certo ponto nervosa, disparou:

– Aquela pequena nossa representante teve a audácia de se fantasiar de Nossa Senhora Aparecida. Quando vi aquilo quase tive um troço. Traje totalmente inapropriado. A moça errou feio. Em outros tempos poderia ser excomungada. Eu já vi de tudo nessa vida. Mas esse tipo de heresia é a primeira vez. Não se brinca nem se desrespeita Nossa Senhora. Vestir-se de Nossa Senhora Aparecida para desfilar no Miss Universo foi algo inadmissível. Perguntei-lhe onde havia sido o concurso. Ela me disse que foi em Bangkok na Tailândia. Quem venceu foi a mexicana. Ora, a brasileira poderia ter ido de baiana! Aquilo não é traje típico. É traje atípico.

 

domingo, 30 de novembro de 2025

Manaus, amor e memória DCCLI


O Relógio Municipal, em primeiro plano;
à direita, o muro do Aviaquário e a escadaria que leva à Matriz.

 

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

A poesia é necessária?

 

Poemas aos homens do nosso tempo

 

Hilda Hilst (1930-2004)

III

homenagem a

Natalia Gorbanievskaya

 

Sobre o vosso jazigo

— Homem político —

Nem compaixão, nem flores.

Apenas o escuro grito

Dos homens.

 

Sobre os vossos filhos

 — Homem político —

A desventura

Do vosso nome.

 

E enquanto estiverdes

À frente da Pátria

Sobre nós, a mordaça.

E sobre as vossas vidas

— Homem político —

Inexoravelmente, nossa morte.

 

terça-feira, 25 de novembro de 2025

Casamento, uma coisa!

Pedro Lucas Lindoso

 

Tive um papo muito engraçado com tia Idalina domingo passado. Uma pessoa, já concursada como funcionária pública federal, que foi ao México assistir à Copa de 70. Com esticada em Acapulco. Não pode ter só 70 anos. Aliás, por ter ido passear em Acapulco já denuncia que titia não é mais uma menina. Ninguém vai lá depois de Cancún.

Mas o assunto não é esse. No prolongado bate papo via Whatsapp, titia, horrorizada, descreveu o casamento do sábado anterior. Filha de uma amiga de praia. Riquíssima. O marido ficou milionário quando ganhou uma licitação para vender quentinhas para o estado, município e presídios federais. O noivo também ficou rico de uma hora para outra. Montou uma startup e fez sucesso imediato. Dinheiro não falta. Mas falta bom senso.

Na decoração da igreja havia tantas flores que dizer que estava extravagante é elogio. Um mural verde com flores à esquerda tampava a Imagem de Nossa Senhora. À direita não se via a imagem do santo padroeiro.

Havia 60 casais de padrinhos. 30 do noivo e 30 da noiva. Um exagero. O noivo entrou com o Hino do Flamengo. O vestido da noiva, levemente transparente e decotado. Segundo Idalina, inadequado para um ato religioso. Dois cachorros vestidos de Flamengo entraram para as alianças. Que na verdade chegou por um drone.

A recepção foi num enorme salão transformado em Maracanã. Com trave, juiz e tudo. No placar FLAMENGO 5 VISITANTE 0. Os convidados recebiam a última versão da camisa oficial do Flamengo. Alguns convidados substituíram o paletó pela camisa. Outros recebiam o mimo com um leve constrangimento.

Uma banda liderada por uma cantora habitué do Domingão animou a festa até altas horas. A única coisa elogiável, de acordo com tia Idalina, foi o buffet. Comida e bebida farta e gostosa.

 O bolo da noiva era tão gigantesco que os noivos sumiam nas fotos. Aliás. havia uma equipe fotografando e filmando para os noivos. Mas quatro casais de padrinhos também contrataram equipes de cinegrafistas.  A grande quantidade de profissionais atrapalhou a celebração e deixou o padre celebrante irritado. A homilia foi sobre humildade e temperança. Os noivos não entenderam o recado. Mas alguns convidados sentiram vergonha alheia.

No final, a cerimonialista desmaiou. Chamaram o SAMU. Como diria a saudosa Danuza Leão, uma coisa!


domingo, 23 de novembro de 2025

Manaus, amor e memória DCCL

 

A rua Fileto Pires teve vários nomes.
Desde 1922, chama-se avenida Sete de Setembro. 

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

A poesia é necessária?

 

Minha família

Solano Trindade (1908-1974)

 

À Dione Silva

 

Minha família é incontável

eu tenho irmãos em todas as partes do mundo

minha esposa vive em todos os continentes

minha mãe se encontra

no Oriente e no Ocidente

meus filhos são todas as crianças do universo

meu pai são todos os homens dignos de amor

 

Por que chorar pelo amor de uma mulher?

Por que estreitar o mundo de um lar

por que prender-me a uma rua

a uma cidade, a uma pátria?

Por que prender-me a mim mesmo?

 

Oh! Bandeiras,

Enfeitai os meus caminhos!

Oh! Músicas,

Ritmais os meus passos!

Oh! Pares, vinde para que eu baile

E possa conhecer todos os meus

Parentes.

 

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Merak, que tipo de chá?

 Pedro Lucas Lindoso

 

Marco Neves, linguista e filólogo português, ensina pela Internet que há palavras em outras línguas que não têm equivalência na nossa. E citou a palavra “merak”, do servo-croata. Significa o prazer em fazer coisas simples. Como reunir amigos para “petiscar”, tomar uns drinques e conversar.

O saudoso Armando de Menezes, sentindo um formidável “merak”, reunia académicos e amigos para encontros, sempre às sextas, na antessala da biblioteca da Academia Amazonense de Letras.

Certa vez, Max Carphentier lembrou aos confrades que na outra sexta seria feriado. Portanto não haveria o “chá do Armando”. Foi obviamente uma alusão sarcástica ao famoso chá das quintas entre os acadêmicos da ABL. Academia Brasileira de Letras. O chá da ABL teve início como um gesto de cordialidade do fundador Rodrigo Octavio. O chá das quintas-feiras se tornou um rito da ABL para confraternização exclusiva dos acadêmicos.

O nome “pegou”. O chá do Armando saiu dos muros da Academia Amazonense e democratizou-se. Patrocinado pelo inesquecível Armando de Menezes, o chá aconteceu na residência de Anísio Mello, no Sebão Antônio Diniz, no antigo conservatório de música da Joaquim Nabuco e no Ideal Clube. Além de outros locais menos cotados.

Participar do chá do Armando sempre foi um “merak” tanto para Armando quanto para os intelectuais, músicos, artistas, escritores, poetas e académicos que se agregaram a confraria. Democrática e aberta a todos e todas. Fábio Augusto, doutorando em História, frequenta o chá desde seus 16 anos. Dos membros da Academia Amazonense que efetivamente tornaram-se assíduos e “militantes chazistas”, além do próprio Armando, o Almir Diniz e o Zemaria Pinto.

O chá das cinco é uma instituição inglesa, como o Big Ben e a pontualidade britânica. No nosso país, chá ficou sinônimo de encontro entre senhoras da sociedade para coscuvilhice e planejamento de alguma ação para os mais necessitados. O da ABL é restrito aos membros da ABL.

Já aqui em Manaus o chá tornou-se sinônimo de reunião entre amigos e amigas que gostam de conversar sobre livros, música, cinema e artes em geral. Ou simplesmente exercer o “merak”, esse prazer simples e fundamental. Reunir-se com amigos para comer, beber e conversar. Um merak.

Com o falecimento de Armando de Menezes e do Almir Diniz alguns chazistas eméritos decretaram o fim do chá. Então foi criado o chá do Diniz. Outros criaram confrarias cujo patrono é o Armando. Há o chá do João Pinto. Há o chá que se tornou simplesmente “o chá”. Com objetivo e composição bem diversa do “chá de madames” do sudeste. E você, querido leitor ou leitora. Qual tipo de chá você exerce seu merak?

 

domingo, 16 de novembro de 2025

Manaus, amor e memória DCCXLIX

 

Foto panorâmica, dos anos 1970, da Ilha de São Vicente.
A rigor, uma península... 
(Obs: não liguem para os comentários da IA; ela está aprendendo.) 

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

A poesia é necessária?

 

Balada a favor das últimas manifestações

Fabrício Corsaletti

 

A favor dos sem partido

sem dinheiro pra passagem

a favor dos estudantes

emperrando as engrenagens

a favor de uma garota

que tinha um olhar selvagem

e carregava um cartaz

escrito apenas “CORAGEM”

vou às ruas e hoje escrevo

uma balada-homenagem

 

vi um velho de muletas —

velhice = jardinagem —

caminhar cinco quilômetros

na maior camaradagem

vi uma mulher dançando

com seus cabelos na aragem

do alto de um edifício

incentivando a passagem

da passeata — e por isso

rendo aqui minha homenagem

 

que o governo não ignore —

nem se esconda na folhagem

da retórica política —

essa universal mensagem

pra que a esperança não morra

depois de nadar, na margem

nem a justiça se torne

piada, rancor, miragem

ao eventual ouvinte

do poder, presto homenagem

 

dói o dia, dói a vida

dói em cada cartilagem

à dor, que nunca termina

me doo nesta homenagem

 

 

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Atenção, COP30!

Pedro Lucas Lindoso

 

A cultura surge, segundo alguns antropólogos, quando o homem começa a cozinhar. Já se comia jaraqui moqueado aqui há muito tempo. Estudos arqueológicos nos mostram evidências de uso controlado do fogo, incluindo cozimento e manipulação de calor, por volta de 8.000 a 6.000 anos atrás. Há ainda sítios com indícios de cozimento em cerâmica, em ambientes de cozinha primitiva, entre 4.000 e 2.500 anos atrás.

Alguns antropólogos dizem que a cultura começa quando o incesto é reconhecido. O homem aprende quais mulheres pode e as que não pode acasalar. Esses fatos, como me ensinaram na disciplina Introdução à Antropologia, tornaram os humanos diferentes dos animais.  Também é ensinado como surgimento da cultura.

Eu entendo, na minha concepção de leigo em Antropologia, que a cultura nasce quando o homem começa a cozinhar. Mesmo porque muitos comportamentos de acasalamento são influenciados por instintos, sinais químicos, visuais e pelo ambiente. O incesto pode ocorrer, mas várias espécies possuem mecanismos que reduzem a chance de acasalamentos entre parentes próximos.

Na minha opinião a culinária deve ser o ponto chave do início da civilização humana. Até hoje, grupos étnicos, regiões, cidades, países e até continentes tem culinária, ou mesmo determinada comida ou prato que os caracteriza.

Quem disse que a cultura dos povos originários é inferior a cultura dos colonizadores europeus? Há quem acredite.  Mas é obrigação de todos nós respeitar e preservar. Há pelos menos 8.000 anos, repita-se, se come jaraqui moqueado ou cozido por aqui. Começaram a substituir pirarucu por bacalhau tem pouco tempo.

É preciso respeitar e preservar a cultura daqueles que cozinharam antes de nós. Muitas evidências são indiretas como microrresíduos alimentares, carvão vegetal, padrões de acidentes de fogo.  E as datas costumam ter margens de erro de algumas centenas de anos. Mas isso não importa.

Por outro lado, os indígenas sabem muito bem com quem casar para evitar degeneração. Cientes de que a consanguinidade pode aumentar a frequência de mutação genética e doenças recessivas. Muitas tribos planejam os casamentos com mais expertise do que “europeus civilizados e seus descendentes”.

É importante preservar a cultura de quem chegou e cozinhou há milênios atrás. Mas nem todos pensam assim. Eles vivem até hoje protegendo e respeitando a natureza. Fazendo extrativismo sustentável baseado em conhecimentos ancestrais. É essencial respeitar os indígenas. Sempre. Atenção, COP 30.

 

domingo, 9 de novembro de 2025

Manaus, amor e memória DCCXLVIII

Localizado na rua Guilherme Moreira.

 


quinta-feira, 6 de novembro de 2025

A poesia é necessária?

 

O Assinalado

Cruz e Sousa (1861-1898)

 

Tu és o louco da imortal loucura,
O louco da loucura mais suprema.
A terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a extrema Desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma Desventura extrema
Faz que tua alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura.

Tu és o Poeta, o grande Assinalado
Que povoas o mundo despovoado
De belezas eternas, pouco a pouco...

Na Natureza prodigiosa e rica,
Toda a audácia dos nervos justifica
Os teus espasmos imortais de louco!

 

terça-feira, 4 de novembro de 2025

Aconteceu na embocadura do Madeira

 Pedro Lucas Lindoso

 

Entre Borba e Itacoatiara, a foz do rio Madeira não é apenas um curso d’água. Carrega histórias que o mapa não ousa registrar. Bento Pedro Fadoul estabeleceu-se por lá. O libanês que aprendeu o peso do mundo pelo peso das cargas do regatão. Muitos turcos, sírios e libaneses vieram para a Amazônia após o advento da República. Era o auge do ciclo da borracha. A foz do Madeira prometia riqueza. Ali ficava a porta do rio que levaria as riquezas até a Bolívia, quiçá ao Pacífico e ao sul do Brasil.

Em Borba, sob as bênçãos de Santo Antônio, Bento Pedro casou-se com Isabel Coutinho, cuja família mandaria na cidade e até no Estado do Amazonas por anos. Por meio do poderoso Monsenhor Coutinho. Pois em Borba quem não era Coutinho era coitadinho. Isabel era viúva de um judeu chamado Baumann, com quem teve uma filha chamada Antonietta, adotada por Bento Pedro. Isabel enfrentava o cotidiano com a coragem e os desafios que cada dia oferece.

Em Borba, Bento Pedro e Isabel tiveram a filha Brigitta, que viria a ser minha avó.

Helmosa e Bianor nasceram sob o burburinho das marés amazônicas, em Itacoatiara, enquanto o fluxo do látex ainda desenhava bons ventos. O novo século 20 despontava com promessas de mais vida e riqueza. A família de Bento Pedro e Isabel trazia a continuidade de uma ponte invisível que liga culturas na margem dos rios da Amazônia. A ponte entre o comércio que se faz com o perder e o ganhar, entre a hospitalidade e o cuidado com o próximo.

O regatão não é apenas mercadoria que atravessa a curva do Madeira. É memória que se desloca, famílias que se movimentam e lares que respiram em várias línguas, inclusive as dos povos originários.

Bento, com a calma de quem conhece as coisas bem pesadas, negociava não só o preço do látex, mas o tempo em que cada casa pode existir entre a espera e o retorno. Isabel, guardiã de casa e de rotinas, tece redes de cuidados: cozinhas que aquecem, roupas secando ao sol, olhos que reconhecem o rosto do vizinho.

Antonietta, Brigitta, Helmosa e Bianor, a cada passo, carregam o presságio de uma geração que aprenderá a ler o rio não apenas como caminho, mas como memória viva.

Borba e Itacoatiara, o fluxo do látex, a força do trabalho.  Tudo se encontra na curva do Madeira. Bento Pedro Fadoul não é apenas personagem de uma crônica: é a voz que abriu passagem entre continentes, entre casas que vão ficando para trás e destinos que se desenham na margem seguinte.

Antonietta, Brigitta, Helmosa e Bianor, filhos do encontro e testemunhas de uma história que não cabe em uma única página, mas que cabe na cadência do rio que continua a correr, lembrando a todos que a vida é uma travessia que exige coragem, fé e a capacidade de sonhar em várias línguas.

Bento Pedro enriqueceu com o regatão. Navegava entre cidades vilas e povoados. O regatão vendia principalmente secos e molhados. Eram verdadeiras lojas flutuantes, vendendo e comprando ou trocando todo tipo de coisa e objetos de comércio.

Brigitta e Helmosa foram estudar na próspera cidade de Belém. Bianor foi para Paris e tornou-se aviador. Antonietta casou-se e mudou-se para o Rio de Janeiro. Brigitta casou-se com Phelippe Daou, em Manaus. Helmosa tornou-se uma “diceuse”. Declamava poesia nos salões de Manaus com a beleza e o vigor do rio Madeira, que, ao unir-se ao Amazonas, corre para o mar.

 

domingo, 2 de novembro de 2025

Manaus, amor e memória DCCXLVII

 

Palácio da Justiça.

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

A poesia é necessária?

 

Soneto II

Mario Faustino (1930-1962)

 

Necessito de um ser, um ser humano

Que me envolva de ser

Contra o não ser universal, arcano

Impossível de ler

 

À luz da lua que ressarce o dano

Cruel de adormecer

A sós, à noite, ao pé do desumano

Desejo de morrer.

 

Necessito de um ser, de seu abraço

Escuro e palpitante

Necessito de um ser dormente e lasso

 

Contra meu ser arfante:

Necessito de um ser sendo ao meu lado

Um ser profundo e aberto, um ser amado.