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terça-feira, 30 de novembro de 2010
A fragmentação das torres – 8
Marco Adolfs
Ricardinho, após a prova
“Para quê esse negócio de estudar se o que nós queremos é apenas ficar livre, brincando? Mamãe e papai nem se falam mais direito? Tem diplomas e estudaram, mas não se falam direito. Prefiro ficar sem fazer nada. Andar com meus amigos por aí. Pegar o Pitomba e levar para passear. Afinal o mundo vai acabar mesmo. Os Estados Unidos e esses árabes, que explodem tudo por aí, vão acabar o mundo. Então eu não estou nem aí para o resultado da prova. Queria mesmo era experimentar aquele bagulho que o Zeca vende pra todo mundo. Deve ser bom, pois todos os meus amigos fumam. Depois ficam rindo de tudo e de todos. É melhor do que brigar ou ficar com medo desses professores idiotas. “Bando de idiotas!” Hoje eu experimento esse bagulho do Zeca antes de chegar em casa. Papai ainda deve estar no escritório e mamãe dormindo com aquela máscara facial. Se não sentem sequer o cheiro do meu sovaco, vão sentir outro. Vou logo lá com o Zeca, aquele traficante que todo mundo conhece, e compro um com o dinheiro da merenda. Pronto. Tem aí?... Me dá um... Quanto é?... Tá certo.... Toma. Me dá. Aí vou lá para a praça fumar com a turma.”
...(Fumando o bagulho)...
“Assim? Hum. Hahahaha. Maneiro! Maneiro! Mamãe e papai deveriam dar uma experimentada também. Talvez ficassem maneiros. Muito maneiro, meu amigo. Claro que gostei. A gente fica numa alegria! O tempo é como uma onda no mar. Legal, mesmo. Vou fazer isso todo o dia. É bom. O mundo que se exploda! Um dia vou oferecer para ela experimentar. Coitada. Sempre naquela cadeira olhando o Cristo Redentor vir buscá-la. Vai ficar alegrinha que nem eu. O tio Otávio fuma, que eu sei. E ela não pode? Claro que pode. Está morrendo.”
segunda-feira, 29 de novembro de 2010
O melhor amigo de Cora Coralina
Pedro Lindoso*
Luis Augusto é um coroa inteligente, bonachão, daqueles que contam a piada na hora certa, sem nunca ser inconveniente ou desagradável. É um sujeito pai-d’égua, como se diz aqui em Manaus. Aliás, Luis Augusto é amazonense. Morou muitos anos em Brasília. Voltou para Manaus porque só aqui tem pimenta murupi e farinha de uarini. Ambas, ótimas coisas para se comer com peixes da Amazônia. Luis Augusto é formado em Letras pela Universidade de Brasília–UnB. Foi servidor público e está aposentado, curtindo os netos e a vida.
Um dia, convidou-me para um concerto de jazz no Teatro Amazonas. Era grátis e quem tocava era o Hermeto Paschoal. Manaus tem dessas coisas e o resto do Brasil nem desconfia. Depois fomos tomar uma cervejinha no Bar do Armando, ícone da boemia manauara que fica no Largo São Sebastião, bem perto do Teatro Amazonas.
O bar estava cheio de jovens. Ele olhou bem e me disse: “Esses rapazes e moças são agressivamente jovens”. E continuou: “Na idade deles eu sempre procurava a companhia dos mais velhos. Hoje gosto de estar entre eles e as crianças. Mas um velhinho bem vivido e conversador é o máximo”. Eu que o diga, pensei. Apesar de Luis não ser ainda um velhinho.
Foi aí que Luis Augusto me contou sobre o dia em que, no final dos anos setenta, morando em Brasília, pegou seu fusquinha branco e foi bater em Goiás Velho, só para conhecer a Cora Coralina.
Chegou lá num sábado pela manhã. Visitou a cadeia pública, a igreja e por fim foi até a casa velha da ponte, onde morava Cora Coralina. Hoje a casa é um museu. A porta estava sempre aberta. Cora recebia todos, sem cerimônia: turistas, estudantes, gente da cidade. Luis entrou devagarzinho no santuário de Cora Coralina e viu que havia pessoas lá. Uma equipe da revista Manchete entrevistava Cora, que começava a ficar conhecida como uma pitoresca doceira octogenária, que escrevia poesia e morava em Goiás Velho. Mas ela já não era novidade para a rapaziada antenada da UnB.
“Eu fiquei sentado ouvindo a entrevista”. Disse-me Luis com os olhos brilhando, como se me contasse um segredo. “Tiraram umas fotos e eu saí na Manchete junto com a Cora Coralina“.
Perguntei ao Luis se ele se lembrava de algo importante que Cora Coralina havia revelado à jornalista que a entrevistara. Ele me disse que ouviu de Cora uma lição inesquecível. A jornalista argumentou que muitas pessoas a visitavam ultimamente: políticos, gente da imprensa, estudantes como o Luis que ali estava. E finalmente quem era seu melhor amigo? Teria Cora Coralina um melhor amigo àquela altura da vida?
Cora sorriu e pegou um dicionário Aurélio de cima da mesa de centro e disse; “Este é o meu melhor amigo – o dicionário. Eu trabalho com palavras. Sou doceira também, mas o meu melhor amigo é o dicionário.”
Eu disse ao Luis Augusto que o Brasil e o mundo deveriam saber disso. E ele sem qualquer modéstia perguntou: “que eu saí na Manchete com Cora Coralina?”
E eu lhe disse: você é um Zé Ninguém, cara. O que todo mundo precisava saber é que o melhor amigo de Cora Coralina era o dicionário!
(*) Pedro Lindoso é autor de O boto cor-de-rosa e o jacaré do rabo cotó,
melhor livro infantil, em 2008, no Prêmio Literário Cidade de Manaus.
domingo, 28 de novembro de 2010
A nudez infantil em Led Zeppelin
Jorge Bandeira
Houses of the Holly, a capa.
Vale lembrar que essa capa foi censurada em alguns países, como, por exemplo, a região Sul dos Estados Unidos, a Espanha e até mesmo no Brasil da época da ditadura a capa foi sutilmente censurada, onde em algumas edições um selo ridículo cobria o quadril da garotinha nua do primeiro plano, e no lugar de seu bumbum o selo trazia o nome do grupo Led Zeppelin e o nome do álbum, Houses of the Holy, assassinando, assim, a bela imagem integral do fotógrafo e do ilustrador, acabando com a aura de mistério que a capa determinava, especialmente pela visão mística de Jimmy Page, o maior interessado em ciências ocultas da importante banda.
As crianças que aparecem multiplicadas na capa de referência à nudez e ao sagrado do Led são os irmãos Stefan e Sam Gates, hoje Stefan é apresentador de um programa de variedades sensacionalista, tem 40 anos, e sua irmã Sam, que aparece nua na capa com ele, escalando a montanha sagrada, tem hoje 42 anos. Na época Stefan tinha 5 anos e Sam, 7 anos.
O local das fotos foi o monumento holístico Giant’s Causeway, na Irlanda do Norte. As fotos iniciais foram feitas pelo fotógrafo Aubrey Powell, da empresa artística Hipgnosis, que fazia também algumas capas de disco para o Pink Floyd. Trata-se, artisticamente, de uma fotomontagem, onde as fotos das crianças nuas foram multiplicas sob diversos ângulos, aplicadas em seguida numa foto de plano geral do monumento sagrado arqueológico, trabalho feito minuciosamente pelo artista gráfico Phil Crenwell, bem antes dos fantásticos recursos oriundos da era da informática, como o photoshop, por exemplo. Foi um trabalho de certa forma artesanal, de difícil execução e acabamento.
O resultado final, que você comprova acima, é de enebriar os olhos. É arte pura e delicada, como as imagens das crianças nuas, que sobem as encostas sagradas, numa pureza natural e ao mesmo tempo misteriosa. A nudez, aqui, é a representação deste rito iniciático, onde a nudez infantil é tida como usufruto natural e espontâneo, onde a imagem da pureza confunde-se com as do monumento, crianças nuas e pedras permanecem assim, lisas e nuas, até o infinito de nossas mentes.
Por trás dessa escalada de religar o ser humano ao cosmos, eis o Sol, nosso símbolo maior do Naturismo. A ligação perfeita entre a natureza, o mistério da existência e as crianças em toda a espontaneidade e deslumbramento. A inspiração para essa capa foi o conto de Arthur C. Clarke, o gênio literário da ficção científica; o conto chama-se “Childhood’s End”, onde uma família nua (naturista) escala um monumento sagrado.
Arte e nudez irmanados, que hoje são verdadeiros clássicos da produção gráfica e fotográfica. As músicas do Led Zeppelin merecem outros estudos, mas essa capa, singela, bela e que insere a nudez infantil de forma tão mágica e elegante, nos permitem considerar a possibilidade de avistar um mundo melhor, pela opção pela nudez verdadeira e transcendente, feita a das crianças nuas que se verticalizam até o infinito, numa viagem e peregrinação em busca de algo que se perdeu ao longo do avanço civilizatório, e do qual a nudez, em certo sentido, ajudaria ao ser humano encontrar, por trás das montanhas sagradas das sensações.
sábado, 27 de novembro de 2010
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
A miragem elaborada – 12
Zemaria Pinto
O homem ocupa o espaço
XI
O tema do retorno, aliás, está sempre presente na poética de Alcides Werk. Voltar para casa, mesmo que de uma simples pescaria ou de uma aventura de vulto, como a conquista da cidade grande. “Êxodo”, publicado na antologia Marupiara, retoma a ideia de “O tempo entre duas águas”, ou seja, traça um paralelo entre a vida na capital e no interior. Sem a mesma força simbólica deste, “ Êxodo” fala da angústia do homem distante de tudo aquilo que por bom tempo representou todo o seu universo:
pouco mais que uma criança,
as luzes da Zona Franca
me trouxeram para aqui.
Desta vez, a consciência crítica deixa para trás as estradas infindáveis, as promessas impossíveis e situa o homem no centro da multidão. No seu imenso universo interiorano, o homem é um caso à parte. Na capital, ele é um anónimo, um rosto amorfo, de mãos que trabalham no mesmo ritmo que milhares de outras mãos. O homem do interior enumera seres ao seu redor. Na capital, as máquinas, os instrumentos frios, os componentes eletrônicos são sua referência. E o homem consciente ri de si mesmo:
Será que soltas risadas
com mais graça e harmonia
que todos os transistores
de qualquer televisor?
Lá, mesmo vestido de trapos, ele tinha um nome. Ainda que se chamasse José, havia esperança. Ainda que vivesse na miséria, tinha fé na aurora que viria. Aqui, não lhe resta alternativa:
ou será que te vestiste
da farda gris dos escravos?
Sobreviver é a palavra. Mas ao poeta cabe o sonho, a fé, a esperança, que ele constrói dentro de si mesmo. “Êxodo”, o último dos poemas publicados em livro por Alcides Werk, encerra como um sibilo entre dentes:
Quero voltar pro meu lago,
quero enganar a mentira,
assar um peixe na praia
e saudar o sol nascente,
fazer uns versos pro dia
mas nos teus braços, Jupira.
Voltar para “O lago das 7 ilhas” (Poemas da água e da terra), talvez, onde
há 7 ilhas plantadas
e um mundo verde ao redor.
Em cada ilha uma casa
em cada casa uma virgem
em cada virgem um amor.
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quinta-feira, 25 de novembro de 2010
Linguagens-culturas: doenças além do social – 1/2
João Bosco Botelho
A teoria dos Quatro Humores, construída no século 4 a.C. por Políbio, médico da Escola de Cós e genro de Hipócrates, e a proposição de Galeno, no século 2 d.C., associando o perfil social como fator nato preexistente ao apa-recimento das doenças — teoria dos Quatro Temperamentos —, se tornaram dogmas quase religiosos, certamente influenciado pelo fato de Galeno ter se declarado cristão, e ampliaram os limites da cura além do social, durante quase vinte séculos.
Por outro lado, a inovação de Galeno não modificou a essência da pratica médica de Cós, liderada por Hipócrates: o exame do doente por meio da anamnese, assim descrita em homenagem à deusa da recordação Mnemis. Assim, o médico próximo do doente o interrogava na busca dos fatores pessoais, familiares e sociais que poderiam estar relacionados com aos sinais e sintomas da doença.
Com absoluto predomínio das teorias hipocrático-galênicas, a Medicina atravessou a baixa Idade Média. Com pouca resistência se adaptou às intole-râncias cristãs e assim chegou às primeiras universidades, sob forte influência do poder romano. No período mais tenebroso na Inquisição, entre os séculos 14 e 15, alguns médicos ensaiaram teorias para identificar mais facilmente as bruxas.
O avanço seguinte ocorreu com a micrologia genialmente descrita por Marcelo Malpighi, no século 17, que pouco a pouco, na medida no aperfeiçoamento do pensamento micrológico celular, obrigou a revisão da ordem hipocrático-galênica.
A partir da segunda metade do século passado, a Medicina oficial continuou transmitindo, como verdade final, a morfologia das doenças, desprezando como e por que as pessoas se relacionam com as dores e os prazeres.
Apesar da associação saúde-sociedade não ser recente na história da Medicina, nunca se tornou tão obrigatória nos trabalhos acadêmicos, quanto nos últimos cinquenta anos. Notadamente nos países do Terceiro Mundo, onde a exclusão social é mais gritante, escrever ou orientar teses médicas desprovida do suporte metodológico em torno da doença como fruto do social acabou sendo proibido.
Admitir como pressuposto que a doença só depende da ordem social, remete o raciocínio, de maneira obrigatória, à falsa premissa da ausência de vetores pessoais que interferem com a etiologia das doenças. A herança genética que molda os corpos dos animais multicelulares foi estruturada, em milhões de anos, para fugir das dores de todos os tipos, física e mental, e buscar o prazer como resposta inata contra o sofrimento. A vida é impossível sem a distensão entre a dor e o prazer.
Ao contrário, os sentimentos pessoais e coletivos determinados pelas dores sentidas por cada uma das pessoas, podem induzir ao juízo de valor do tipo da organização social, ou seja, os circuitos biológicos identificadores da dor e do prazer pessoais e coletivos, estão embutidos em processos muito mais densos e pouco compreendidos.
Apesar de a Medicina oficial ter feito progresso no trato da saúde coletiva, retirando-a do espaço fechado da classificação nosológica, é saudável insistir que prevalecem, nas academias, as correntes que colocam a doença como um produto exclusivo da organização social.
Nesse sentido, a principal proposta teórica, na modernidade, que associou a doença à desordem social e à dor (por corruptela ao capitalismo, como o agente do caos) e o normal à ordem social como agente do prazer (por corruptela ao não-capitalismo), se fortaleceu a partir da descrição das condições de trabalho e da saúde dos operários ingleses (ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Rio de Janeiro. Global, 1986).
A tendência de associar a doença à desorganização das sociedades é bem mais antiga. Na Grécia, nos tempos de Sólon, estava estabelecida (JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo. Martins Fontes. 1986):
A função da justiça na sociedade corresponde para o corpo à da Medicina, que Platão ironicamente denomina pedagogia das doenças. Todavia, o momento da doença é muito tardio como ponto de partida para uma verdadeira influência educacional. Sendo o médico o conhecedor da doença, ele pode intervir politicamente para evitá-la.
As sementes intelectuais da estranha concepção linear da dor e do prazer se reconstruíram, no século 16, interligando nos meios acadêmicos, e trazendo a máquina como o modelo ideal para ser comparado ao corpo humano. Nesse caso, os corpos, como num passe de mágica, passaram a ser comparados aos relógios e as doenças, desajustes na engrenagem.
A leitura mecanicista dos corpos serviu para fundamentar uma das mais conhecidas tentativas para explicar a diferença entre o homem, possuidor de alma, e os outros animais, feita pelo médico espanhol Gomes Pereira, em 1554, ao afirmar que os animais são máquinas, incapazes de falar e raciocinar. O peso decisivo para alavancar essas idéias recaiu no filósofo francês René Descartes (1596-1650), ao reforçar a corrente mecanicista, defendendo o corpo como o domínio da física e a alma, da religião.
quarta-feira, 24 de novembro de 2010
terça-feira, 23 de novembro de 2010
A fragmentação das torres – 7
Marco Adolfs
Tio Otávio raciocina e tem lembranças
Doenças são relativas. E podem ainda mais se tornarem assim, com uma atitude, que muitos diriam irresponsável, como esta minha. Mas se nós, no momento em que nascemos já estamos a morrer, qual o problema então? Aproveite, e, de passagem, escreva as suas memórias, é o conselho que eu dou. Em uma viagem de dez horas, atravessando o Atlântico, dá para pensar em muita coisa, principalmente navegar. Quando aquele veículo mais pesado que o ar levanta voo e fica pairando acima das nuvens, a melhor descrição que se pode fazer disso aproxima-se do fato de o compararmos a uma nave em pleno mar. Quando meus cabelos repletos de sal e meus pés descalços saiam daquele mar da praia de Copacabana, vivia a plenitude de uma juventude que haveria de passar em pouco tempo e sem a perceber devidamente. Envolvido com o rock e alheio à chamada ditadura. Para mim, escutando os Novos Baianos, só existiam os acordes musicais. Papai ainda ladrava seus impropérios devidamente canalizados contra os militares. Mamãe tentava contê-lo, dizendo para ter cuidado com os vizinhos, que bem podiam escutar tudo aquilo. Nesse tempo lembro apenas que o Caetano Veloso e mais alguns outros estavam exilados em Paris. Foi quando eu deixei a praia um pouco de lado e comecei a descobrir a maconha também. Mal sabia eu que daquele gesto tão idiota de fumar ao pôr-do-sol, levaria à existência de uma leva de traficantes armados ocupando os morros, vendendo “bagulhos” anos depois. Mas eu comecei a ler também o Pasquim, o que me levaria a ler livros mais intelectualizados. Foi quando conheci Netinha, uma menina da Serra. “Que é que cê tá lendo, menino?” “O Pasquim”. Daquele dia em diante passamos a ler as mesmas aquela tiras cômicas, os artigos sarcásticos do Pasquim e a namorar nos intervalos. A praia de Copacabana, na altura do posto seis, era o nosso divã.
segunda-feira, 22 de novembro de 2010
As águas negras da morte
Rogel Samuel*
Era noite de natal.
No natal, a Edilene tomou o barco no Paraná da Eva, em Itacoatiara, a 270 km de Manaus, com seus dois filhos, Heloisa, de 4 anos, e Kelvin, de sete.
Era noite escura de natal, naquele último natal.
No meio da viagem, durante a travessia do rio, o barqueiro, um jovem de 16 anos, resolve matar Edilene, jogando-a na água, para apropriar-se de sua bolsa, onde havia R$ 90,00.
Empurra-a na água.
Na luta que se segue, a bolsa também cai. Perde-se. O barqueiro volta para Itacoatiara.
Como as crianças gritam e choram, ele as joga no rio.
“Eu os joguei no rio porque eles estavam gritando muito, chamando pela mãe, e isso me deixou irritado”.
Entretanto, Edilene, a mãe, conseguiu salvar-se a nado.
Deu com um banco de areia, e foi achada naquela mesma noite por outros dois meninos que brincavam.
Eram outros dois meninos, mas não eram os seus.
Os seus desapareceram.
Era noite de natal.
Sim, era.
(A notícia estava nos jornais de Manaus).
domingo, 21 de novembro de 2010
A nudez na arte e na vida
A nossa existência tem sido condicionada por normas e regras, e desde nossa formação elementar nos deparamos com situações que nos colocam à prova, em especial quando nossa nudez é posta em circulação além das quatro paredes em nossas casas e seus aposentos. Quebrar essa regra é a tarefa de um ser humano além de seu limite, um ser naturista, um solitário nesta sociedade têxtil.
A visão deste cognominado naturista é feita de um recurso capaz de inocentar o paradigma do pecado que é perpetrado de maneira capciosa por uma sociedade que insiste na culpabilidade dos que estão nus, inevitavelmente vítimas de chacotas e outras aleivosias, calúnias e adjetivos pejorativos, como, por exemplo, exibicionistas, tarados, recalcados, amorais etc. A nudez, que fique claro, é nesta visão simplista e preconceituosa, uma ação de tresloucados, afeminados, machões tarados e uma fauna indescritível de psicopatas que deveriam ser banidos da face da terra. Não é um exagero; infelizmente, não.
O critério de normalidade nesta sociedade é feito um mundo de ponta-cabeça, tal qual um teatro do absurdo repetido diversas vezes, com cenas de incoerência e com mazelas disfarçadas de atos legais. O atentado ao pudor é um crime tipificado, mas a dança erotizada de crianças e jovens em roupas minúsculas, balançando as nádegas e simulando sexo, nas coreografias de axé ou pagode universitário, pode ser apreciada por todos, sem nenhuma recriminação. O importante nesta hipocrisia é que a nudez não seja projetada aos olhos “puros” e imaculados dos espectadores, inocentes totais nesta vida tão normal e pacata.
Aos naturistas restou o medo, a dissimulação, e talvez por isso a maioria dos naturistas estão na “melhor idade”, gozando de seu naturismo em estado de aposentadoria, quando as perseguições e calúnias estão anuladas ou minimizadas pela situação de estar livre de sansões da legalidade jurídica e outras variantes de um contrato ainda vigente entre o trabalhador e o seu patrão. Esta é a situação, e não adianta mudar de uma hora para outra este panorama triste em que nosso movimento naturista se encontra ao longo de sua história de avanços e recuos históricos.
Assisti hoje, em frente ao famoso Teatro Amazonas a um exemplo disso que relatei acima: diante de um público atento, durante um festival de dança local, jovens na faixa etária de 12 a 15 anos dançavam provocativamente, com esfregações de genitálias, bundas, seios, o que era, a despeito da dança com vertente de axé music, uma esculhambação mesmo. Isso pode, pois todos estavam vestidos com aqueles figurinos ridículos, com a bunda balançando de um lado a outro, sem escrúpulos. Isso pode, sem problemas, ainda mais com as letras de um teor malicioso e os cabelos no estilo consagrado pelos jogadores de futebol, o moicano. Isso pode. A nós, pobres naturistas, resta a clandestinidade ou o medo, e enquanto a Lei do Naturismo fica na gaveta, nossa nudez será refém dessa situação humilhante.
sábado, 20 de novembro de 2010
sexta-feira, 19 de novembro de 2010
A miragem elaborada – 11
Zemaria Pinto
O homem ocupa o espaço
X
E a morte faz-se presente também na natureza: “O ouro do rio Amana”, publicado na terceira edição de Trilha Dágua, é um réquiem apaixonado, um canto patético pela impotência com que o observador constata a destruição ao seu redor. O espaço transforma-se. O selvagem e primitivo – o rio Amana é afluente do rio Parauari, no médio Amazonas – dá lugar a um outro tipo de selvageria. O ritmo é frenético:
Chegaram dragas, pontões,
canoas, motores, balsas
escafandros, pás, bateias,
mecanismos de sucção
A paisagem devastada é revelada pela interrogação:
Cadê tuas ariranhas,
tuas antas e capivaras,
teus tambaquis, tuas piranhas
pretas, teus pirarucus
teus surubins, teus pacus,
araris e pirararas?
A lista é extensa: patos selvagens, inambus, tanguruparás, japiins, ciganas, uirapurus, guaribas, caititus, socós-boi, jacarés-pedra, tracajás. A resposta à indagação é dada pelo próprio observador, no mesmo frenesi registrado na invasão:
as vilas vão-se formando
nas margens, e em cada tenda
há muitas coisas à venda
e mulheres de aluguel
há muito cabra-da-peste,
e cenas de faroeste,
cachaça, carne-de-lata,
cigarro, pilha, sardinha,
leite-moça, mosquiteiro,
lanterna, charque do Sul.
No seu lamento, contudo, o poeta-observador prevê que, esgotado o ouro, o velho rio voltará a ser dos seus, deixando entrever um sonho antigo quando registrara em “Das Fronteiras”, de Da Noite Do Rio:
Quando se esgotar o meu tempo de luta,
construirei minha morada entre árvores sadias e simples
Em “O ouro do rio Amana”, não é outra sua intenção:
Depois do caso passado,
mesmo sabendo que és triste,
quero fazer um roçado,
levantar um tapiri,
deixar o mundo de lado
e morar perto de ti.
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quinta-feira, 18 de novembro de 2010
Academia Amazonense de Letras elege dois novos membros
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Sem surpresas, ao final da tarde de hoje, a AAL elegeu dois novos membros: para a cadeira 26, de Rui Barbosa, antes ocupada pelo desembargador Oyama Ituassu, foi eleito o empresário José Roberto Tadros; para a cadeira 28, de Anibal Teófilo, que teve como último ocupante o poeta Anibal Beça, foi eleita a jornalista Mazé Mourão.
Sem surpresas, ao final da tarde de hoje, a AAL elegeu dois novos membros: para a cadeira 26, de Rui Barbosa, antes ocupada pelo desembargador Oyama Ituassu, foi eleito o empresário José Roberto Tadros; para a cadeira 28, de Anibal Teófilo, que teve como último ocupante o poeta Anibal Beça, foi eleita a jornalista Mazé Mourão.
Linguagens-culturas construindo e desconstruindo ritos de curas e práticas médicas – 11/11
João Bosco Botelho
Vírus e imunologia
Se no século 19 já era muito intrincado dominar os saberes médicos acumulados, no século 20 tornou-se inimaginável. Sob a égide do movimento cada vez mais rápido das novas informações, dominando a vida de todos, é conveniente conceber a Medicina atual distribuída em áreas específicas de conhecimentos, onde as mudanças e os progressos ocorreram em magnitude tão grande que se torna difícil citá-los todos. Dessa forma, entre os muitos, é possível destacar o que segue.
É um dos resultados diretos do pensamento molecular dominando o histórico desvendar da doença escondida atrás da pele, materializando a doença:
A. Dimitri Ivanovsky (1864-1920): primeiro vírus, em 1892, conhecido como o vírus do mosaico do tabaco;
B. Martinus Beijerinck (1851-1971): vírus da febre amarela em 1898;
C. Sanarelli, em 1903: vírus da raiva;
D. Vacinação conta a poliomielite em 1909;
E. Wendell Stanley, em 1935, classificou os vírus como seres vivos;
F. John Enders, em 1949, demonstra ser possível entender melhor o crescimento virótico quando estudado dentro da célula.
A imunologia é essencialmente ligada à molécula, essa especialidade também é uma decorrência do pensamento molecular. Entre as premiações médicas consagradas nessa área:
A. Elie Metchnikoff (1845-1916) descreveu a fagocitose, mecanismo no qual algumas células sanguíneas englobam no seu citoplasma certas bactérias;
B. Richter (1850-1935) e Paul Portier (1866-1962) escreveram sobre a anafilaxia;
C. George Snel, Jean Dausset e Baruj Benacerraf, em 1980, são premiados com o Nobel pelos trabalhos sobre histocompatibilidade;
D. Cesar Milstein, em 1984, ganhou o prêmio Nobel pela demonstração dos anticorpos monoclonais;
E. Susumu Tonegawa, em 1987, recebeu o prêmio Nobel pela extraordinário trabalho demonstrando que os genes das imunoglobinas podem adquirir nova estrutura durante a vida, significando a existência de processo adaptativo durante a vida e que os genes não estão engessados.
Sem dúvida que o terceiro corte epistemológico da Medicina, iniciado com os estudos de Mendel, pensamento molecular, marcou a prática médica dominante no século 20, gerando o aparecimento da biogenética. Porém, entre os fatos que interferiram, direta ou indiretamente, destacam-se: transportes, dos automóveis aos foguetes; comunicação, do rádio à Internet – e o desvendar do átomo.
Parece claro supor que a melhor compreensão do átomo, nos próximos anos, impulsionará a Medicina do futuro na direção do quarto corte epistemológico, o pensamento atômico, quando as buscas pela materialidade da saúde e da doença serão dominadas pelas mudanças na estrutura do átomo. Nesse tempo, no futuro, talvez seja possível desvendar em qual dimensão da matéria o normal se transforma em patológico, se é que existe o normal e o patológico nos sentidos compreendidos na atualidade.
A descoberta de Tenegawa, que constitui uma das bases da minha teoria das
memórias-sócio-genéticas, na qual ao longo do processo de evolução a estrutura ontogenética foi adaptada ao social para fugir da dor e buscar o prazer utilizando, além dos mecanismos biológicos atávicos, as religiões e as Medicinas como elos da proteção plena.
Perseguindo o trem da história, acoplando novos vagões para aumentar a materialidade de saúde e da doença, incontáveis progressos chegaram à Medicina, aumentando a credibilidade coletiva. Porém, em nenhum momento, diminuindo a fé que guarda e mantém as crenças e idéias religiosas como instrumentos competentes para apaziguar a dor fora de controle e a morte rejeitada, notadamente, no curso das doenças ainda pouco compreendidas e quando o tratamento preconizado pelas práticas médicas oficiais causam mais malefício do que benefício.
Da mesma forma que a imunologia, a genética diz respeito, exclusivamente, ao gradativo domínio do pensamento molecular que passou a buscar a causa e o tratamento das doenças na estrutura da molécula a partir dos trabalhos dos pesquisadores:
A. James Watson e Francis Crick, em 1953, propuseram o modelo da dupla hélice do ADN;
B. Raymond Turpin e Jérôme Lejeune, em 1959, comunicaram a presença do cromossomo anômalo no 21.º par cromossômico, doença genética que ficou conhecida como trissomia;
C. Diversos autores, nos Estados Unidos da América e em países da Europa Central, publicaram artigos sobre a recombinação genética, isto é, o isolamento de fragmento de ADN de um cromossomo, em seguida modificar a sua estrutura e reintroduzir em outro organismo;
D. Em 1999, termina o estudo morfológico do mapa genético do homem levado a cabo por meio de consórcio internacional de laboratórios e cientistas dos países industrializados.
Desde os anos 1950, os temas discursivos sobre o papel social da Medicina e do médico surgiram em torno de conjuntos hierarquizados, aparentemente em contraste, até polares, dos tipos: tradicional-moderno, ciência-magia e conhecimento-superstição, impondo fortes barreiras entre as Medicina-divina, Medicina-empírica e Medicina-oficial.
A indústria médico-hospitalar do pós-guerra forçou essa separação entre os conhecimentos médicos populares historicamente acumulados e as novas concepções da Medicina, em especial, as do pensamento micrológico. Com este objetivo, nos anos 1960, os meios de comunicação de massa ofereceram mensagens de competência de médicos e dos hospitais tecnológicos como o Dr. Kildare e o Dr. Cannon, produzidos nos países detentores da tecnologia industrial médico-hospitalar que necessitavam de convencimento público. Mais recente, os seriados que buscam solução de crimes utilizando a tecnologia médica em dimensão ainda menor, as moléculas dos genomas, utilizam aparelhos sofisticados inexistentes nos países pobres e se tornaram, na administração pública, os mais novos objetos de desejo.
Essa estratégia bem sucedida para substituir, completa e definitivamente, as Medicina-divina e a Medicina-empírica pela Medicina-oficial pode ser compreendida a partir de cenas comuns no cotidiano nos ambulatórios como a da mãe que chega com um filho dizendo que ele recusa todos os alimentos. O médico, com boa formação humanística e conhecedor da realidade sócio-cultural, argumenta que não há necessidade de remédios e que a mãe deve buscar alternativa na apresentação do alimento. Depois de ouvir todas as argumentações a mãe fulmina: "Doutor, se não vai receitar as vitaminas, a minha vinda aqui foi inútil!".
quarta-feira, 17 de novembro de 2010
terça-feira, 16 de novembro de 2010
Tela de Marco Adolfs no Museu do Vaticano
D. Luiz Soares Vieira, arcebispo de Manaus, faz a entrega da tela de Marco Adolfs ao papa Bento XVI.
Uma das telas da exposição “Faces de Cristo”, do artista visual amazonense Marco Adolfs, chegou às mãos do papa Bento XVI.
A divulgação da obra foi tão bem aceita que rendeu ao artista um convite para a realização de uma exposição na Europa.
Além de uma das telas de “Faces de Cristo”, o papa recebeu também um exemplar de “Fé e fogo”, livro do artista que conta a história da reconstrução da catedral de Manaus.
A tela destinada ao Papa, pintada em acrílica, no formato 70x50, ficará em exposição no acervo do Museu do Vaticano.
A fragmentação das torres – 6
Marco Adolfs
Vera, amiga da Ana Maria
“Se pelo menos aquele Cristo ali em cima resolvesse se movimentar e descer para nos salvar de toda essa desgraça aqui embaixo...” Ana Maria vai se arriscar, se tiver um amante. Ah!... Eu que gostaria de arranjar um também. Mas não tenho coragem. Também, esse meu militar que só sabe bater continência e ir para o clube jogar baralho, seguro de si, sempre me impôs um certo respeito referencial. Mas estou cansada disso tudo. Uma filha que fugiu com um vagabundo e um filho todo certinho seguindo os passos do pai. Zezinho e Fernando não fazem nada que não esteja roteirizado. Deveriam fazer cinema. Não, são péssimos atores. Eu que deveria ter entrado pro cinema. Ser igual a Marília Pêra. Agora estou aqui, fazendo pasteizinhos para o idiota do meu marido comer com cerveja, enquanto vê televisão. Depois ainda tem coragem de vir para cima de mim e me babar toda com aquela sua língua acostumada a dar ordens militares. Detesto militares. Não sei onde estava com a cabeça quando olhei para ele. Bom, eu havia bebido muito e ele tinha um papo bom. Mas também, logo nasceu a Débora. Tão fofinha e gorduchinha que parecia um algodão doce de morango. Agora fugiu com aquele malandro do morro e sabe-se lá onde está. Mulher é bicho besta mesmo. O Zezinho é que me exaspera, com aquela sua mania de tudo explicar nos mínimos detalhes e pormenores como se fosse um robô programado pela existência. Programado pelo Fernando. Um machão e um machinho. Eles me dão na telha. Ai! Malditos pastéis de sábado. A gente se sacrifica como uma condenada passando calças, trocando fraldas e fritando pastéis em troca desse abandono. Se eu também arranjar um amante talvez o meu sorriso na direção do Fernando se torne mais sincero e alegre. Talvez os filhos me respeitem mais. E se o Fernando arranjasse uma amante? Uma daquelas enfermeiras boazinhas do Hospital Militar? Eu saberia logo pelas fofoqueiras do Circulo Militar. “Seu coronel de uma figa!” Encurralaria ele como um cachorrinho entre as paredes. Não, o Fernando é uma mosca morta para fazer isso. “Se pelo menos aquele Cristo ali em cima resolvesse se movimentar e descer para nos salvar de toda essa desgraça aqui embaixo?” Meu Deus, acho que estou ficando louca igual a dona Helena, que não para de olhar para o Cristo do Corcovado. Que será que ela pensa? E ainda tem essas balas perdidas para nos preocupar. Por que – Fernando – os militares não sobem o morro e matam todos esses bandidos? O Fernando nunca me respondeu essa pergunta. Um dia uma bala dessas entra aqui, varando o vidro da janela que nem balão e espocando em cima da gente. Onde será que a Débora está a essa hora? “Quantos pastéis o senhor vai querer comer hoje à noite, coronel?”
segunda-feira, 15 de novembro de 2010
C'est La Vie!
Anne Lucy
Querida Isabel,
Desde que você foi para a belíssima Paris, cursar seu tão sonhado intercâmbio, tanta coisa aconteceu. Tenho tanto pra te contar... Mas vou ater-me ao que está mais presente em meus pensamentos. Como ainda sou à moda antiga, resolvi te escrever esta carta. E-mails são abstratos e frios demais para mim. Tu sabes que escrevo pra acalentar meus demônios, não para espantá-los. Eles são meu termômetro. Quando as coisas estão frias demais, eles vêm me atormentar e me trazem um pouco de calor. Também mostram, que estou viva, e consequentemente as emoções, sejam elas boas ou ruins, sempre farão parte de mim... Eu preciso delas, e a escrita é vital para minha saúde mental e emocional. Como sou um pouco retraída, através das palavras posso me libertar um pouco, e é maravilhoso poder compartilhar isso com você!
Ando triste, pensativa, preocupada, apreensiva e seus demais sinônimos... Minha vida tem girado em torno de cuidar de quem sempre cuidou de mim. Isso não é a parte ruim. O que mais me dói é ver como somos frágeis e passageiros. É ver como a rosa mais bela do meu jardim, que era tão viva e forte, está murchando aos poucos bem diante dos meus olhos, sem que eu possa fazer muita coisa pra reverter isso, afinal, é o sentido natural da vida. Somos mortais.
A velhice pode ser cruel. Não só para o idoso, mas também para quem está diariamente ao seu lado. Os males que vão aparecendo por causa da idade são quase todos impossíveis de ser revertidos e olha que não poupamos esforços para melhorá-los, querida Bel... Foram tempos difíceis. Juro que perdi a conta de a quantos médicos, tanto convencionais como espirituais, levei minha Avó, aquela Dona Carmem, que você ainda chegou a ver cheia de vitalidade. Quase todos foram por indicação de alguém que dizia: Esse médico curou fulana, tenho certeza que ela vai ficar boa com ele. E até agora nada...
Eu tento entender o quão difícil é para os parentes que vêm, uma vez ou outra, visitá-la, aceitarem sua condição. Como é difícil verem, o estado debilitado em que ela se encontra. E minha batalha mais dura tem sido justamente com eles. De procurar entendê-los, querida amiga. Porque é tão mais fácil que eles me julguem e apontem o dedo na minha cara, enquanto uma mão amiga, uma ajuda poderia resolver muita coisa? É... Vai ver eu ainda seja aquela garotinha ingênua de quando nos conhecemos, para aceitar como as relações humanas, muitas vezes, são cruéis.
Mas o que eu gostaria de poder falar para cada um deles, é que ninguém sente dor maior do que eu, por ver aquela mulher forte, guerreira e independente, estar tão frágil como uma criança e eu agora estar parecendo sua mãe. Até posso dizer que meu amor de neta, que também é amor de filha, agora tem um ‘Q’ de amor materno. Eu só gostaria que eles também me entendessem e que ao invés de me criticarem, por também querer viver, que se colocassem em meu lugar. Quando se é jovem, queremos tudo para ontem, e eles já passaram por isso, mas parece que não querem lembrar. Nenhum deles abriu mão de seus projetos, planos e tarefas para se dedicar exclusivamente a alguém. Eles não sabem o que é isso.
Querida Isabel, você não sabe como tem sido difícil fazê-los entender que eu também preciso construir minha vida, afinal não posso, não tenho e principalmente não quero ter que depender de alguém para sempre. Quero ter minhas coisas e fazer, eu mesma, meu próprio caminho. É muito fácil, que eles me digam, o que tenho e devo fazer, mas em algum momento eles pararam pra ouvir o que eu quero? Em algum momento ofereceram ajuda concreta, para que juntos pudéssemos melhorar a vida dela? Não, não e não! Eles só pensam em si e em seus interesses.
Adorada Bel, quero que fique bem claro que minha Avó, não é, e nunca será um fardo na minha vida. Se fosse preciso ficar mais tempo vivendo como estou, só para cuidar dela, eu ficaria. Mesmo que isso custasse meu futuro e minha alegria. Acontece que não dá pra aceitar ouvir tantos absurdos de quem a vê pouquíssimas vezes. Só quem convive sabe como é difícil lidar com todas as situações específicas que ela exige. E por favor, Isabel, entenda e me ajude a fazê-los entender: que eu não sou de ferro! Ao contrário, me considero frágil demais...
Fora a escrita, minhas lágrimas estão sendo minha válvula de escape. Dor só sabe quem sente. Ânsia por liberdade só tem, quem se sente preso. E amor, só é amor quando você se doa. Não era pra ser assim, mas é só esse amor que todos conhecem.
Eu, como sempre, tagarelando somente sobre minhas coisas. Fale-me de você! Já leu os originais em francês de Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus? Nossa, você deve estar tendo experiências incríveis. Vou aguardar sua carta resposta. Nada de e-mails, ouviu?!
Amiga de todas as crises e alegrias, desculpa o desabafo tão acalorado. Minha intenção não é te dar preocupação, mas eu precisava disso. Talvez por sentir que você me lendo daí, pudesse me transmitir essa sua ótima energia e diminuir minha dor. Seja como for, vou internalizar isso pra me sentir mais forte e aguentar as várias e várias provações que a vida ainda me reserva. E como você costuma dizer: C'est La Vie!
Com um enorme carinho e uma gigantesca saudade, sua sempre amiga, Bárbara.
domingo, 14 de novembro de 2010
A nudez iluminada de William Blake
Jorge Bandeira
No século da Revolução Francesa, no ápice do movimento Iluminista, no Século da Razão, um bardo inglês, poeta, escritor, gravurista, inovador das artes plásticas, praticamente um “iluminado”, forjou com sua mente além daquele tempo um olhar paradigmático sobre a FORÇA DA NUDEZ, com sua obra de intenso vigor, que transbordava verdades por todas as direções.
Blake optou por retratar o corpo nu, de homens, mulheres, jovens e crianças de forma natural, mas com um movimento de musculatura em estado de contração, mesmo na imobilidade destes corpos. Uma visão vanguardista que foi repensada mais tarde por outro gênio da gravura, Gustave Doré, o homem que ilustrou A Divina Comédia, de Dante Alighieri. Aqui nosso foco é a forma poderosa desses nus de Blake, as cores vibrantes e a opulência de um traço e de uma profundidade de desenho que transbordava de um barroco, de um excesso, mas que via a nudez dentro de uma normalidade verdadeiramente humana.
Os corpos nus de Blake são colocados em primeiríssimos planos na composição, e os detalhes desta maneira singular de retratar a nudez passamos a analisar, à luz da historiografia das artes plásticas e da História. A força que encontramos nas obras de Blake são retratos de um artista que via na nudez uma maneira capaz de alcançar o absoluto, tal qual diz em um de seus mais famosos poemas: “Se as portas da percepção fossem abertas, o homem veria o que é e o que sempre foi: infinito!” Este infinito do que trato aqui é a nudez, e de como estamos irmanados por esta premissa alquímica de William Blake.
A gravura ao lado, "Glad Day or The Dance of Albion", é uma das milhares feitas por Blake para a série que deu origem à seu álbum sobre O Paraíso Perdido, de John Milton, e as cores usadas molduram a nudez deste ser mortal em toda sua esplendorosa nudez, seu corpo nu é retratado de forma estendida, livre, desimpedida, sem amarras, e o seu semblante nos transmite a tranquilidade de quem tem em sua nudez uma companhia segura, singela, vital. Raios em forma de auras espectrais emanam de seu corpo transbordante de energia, e a posição um tanto quanto inclinada de suas pernas, em um ângulo obtuso, fazem valer o plano elevado em que está nosso personagem ao natural. Uma perfeita geometria de um corpo que se revigora em sua nudez cintilante.
Blake, ao que consta em seus biógrafos, pouco usava de modelos-vivos, e quando fazia uso deste meio para seus trabalhos, os modelos passavam por uma jornada em completa nudez, que durava dias, até se acostumarem ao estado despido de seus corpos, quando então o grande bardo os considerava livres das amarras condicionantes de suas roupas. As marcas das roupas deveriam sumir de seus corpos. Era uma exigência deste gênio das letras e da pintura.
Acima, temos uma de suas obras-primas: "Isaac Newton", em todo o seu contorno corporal e com uma das mais clássicas figuras que já foi pensada, enquanto pose de um modelo, rivalizando com “O Pensador”, de Rodin. Esta obra merece uma atenção redobrada, porque alguns modelos de iconografia são necessários para esta análise. Ficamos, então, para não alongar o estudo, com o jogo de luz e sombras, e o excelente superobjetivo geométrico triangular que este corpo NU nos demonstra.
Vejam que a figura do compasso é replicada na posição da mão esquerda, da direita, do ângulo das pernas torneadas deste Newton, e atentemos também ao triângulo formado pela posição dos pés, o que coloca o espectador em um jogo infinito de possibilidades geométricas a partir das figuras. Os talhes musculares do corpo é outra ideia genial, pois as carcaças musculares se sobrepõem, levando a um estado de NUDEZ totalizante. O triunfal triângulo também está nos contornos do desenho, feito de forma pioneira, com elementos de chumbo em sua composição, dando um ar de esfumaçado e sépia às cores do artista. Blake experimentava como um alquimista as composições e jogos cromáticos. Vejam, com atenção, que o desenho se bifurca em dois triângulos, um de matiz azul escuro e outro, inferior, de cor cobre. É uma delícia aos olhos vislumbrar esta nudez!
Ao lado, temos mais um magnífico exemplar da perícia e técnicas inovadoras de William Blake, com cores vibrantes os corpos nus, agora de uma espécie de família angelical, remetem à tradição greco-romana, onde a nudez foi tida como uma aliada nas transformações mais essenciais daquelas antigas civilizações.
A nudez é um eterno movimento, é uma constante busca pelo infinito do corpo, a nudez transcende ao próprio corpo, parece nos dizer esta gravura portentosa. Blake continua seu traçado, e a nudez adentra no núcleo familiar, dos infantes aos adultos, a partir da célula mater da sociedade, a mãe, esplendorosa em sua nudez, inclusive como a protetora destes corpos nus, jovens que necessitam de eterna proteção.
A nudez é um forte componente da mensagem artística de Blake, ela garante a irmandade, a fraternidade, eis a mensagem messiânica que insere esta nudez numa tradição da pureza corporal pelo despojamento das vestes. Blake, visto como um místico e visionário, aqui tem na nudez sua companheira segura, seu porto atraente e de um dinamismo onde um corpo nu é visto em todo o seu clamor de liberdade e espontaneidade.
A nudez, em William Blake, é sua companheira de todas as horas, de todos os matizes, em todas as suas qualidades de desmascaramentos de preconceitos e de avanço civilizatório, da convivência entre os corpos, sem as imposições mantidas pelos séculos têxteis que tradicional e conservadoramente amarram as conquistas da humanidade. Se a nudez não é uma solução, sem dúvida ela é uma alternativa. Blake, o poeta naturista, enxergava além.
Canções da Inocência e Experiência, livro totalmente ilustrado por Blake, e mais uma vez ele coloca no mais alto degrau estético a NUDEZ, a nudez que ele semeou em nossos corações e nos de seus contemporâneos, num Iluminismo revigorado pelas imagens onde o ser humano é resgatado em sua essência, a nudez, capaz de tornar este homem um dinâmo em eterno movimento, e seu corpo nu, torná-lo-ia em arauto de uma aurora em estado de fogo, fogo que incinera as vestes e libertaria o homem de suas amarras.
William Blake (1757-1827), por Thomas Phillips (1770-1845).
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sábado, 13 de novembro de 2010
sexta-feira, 12 de novembro de 2010
A miragem elaborada – 10
Zemaria Pinto
O homem ocupa o espaço
IX
Mas, voltando às imagens em movimento de Trilha Dágua, o soneto “Vista do paraná da Eva” faz um pequeno levantamento, nos limites infinitos da composição, da vida naquela comunidade
Paraná de água branca corre lento.
Bodós, garça-morena, acarás, jejus, o casco, o timbó-titica, a sapopema, o tijuco.
Sabão de caraipé e pequiá
limpando o corpo lindo da cabocla.
Canarana, garera, terra preta, cebolinha, cheiro-verde, o caminho da casa, o cacaueiro
e os curumins brincando no terreno.
O registro frequente de termos amazônicos levou Alcides Werk a preocupar-se com a montagem de um glossário, a partir da 2a edição de Trilha Dágua, que, na edição seguinte, registra 116 verbetes. Tal recurso, se num primeiro momento interrompe a leitura, causando ruídos à música do poema, por outro lado, facilita-lhe o entendimento, estabelecendo uma relação mais próxima entre o leitor e autor.
Outra composição muito popular de Alcides Werk é o “Soneto aberto sobre a morte”, onde o olho-câmera percorre o interior da casa e registra:
Beatas, terço, cafezinho, estórias,
o choro inútil da mulher sozinha
Com duas versões musicais – Roberto Dito e Armando de Paula – o “Soneto aberto” circulou também em folha esparsa, homenageando o líder ecológico Chico Mendes:
Brasileiro, do norte, agricultor.
Semeou, semeou a vida inteira,
fez o campo florir por tantas vezes,
alimentou mil pássaros vadios
Neste poema, Alcides Werk revela uma outra face do amazônida interiorano: a resignação diante da morte transforma o ritual fúnebre em acontecimento de uma discrição não nefasta:
Hoje é dia de festa nesta casa:
festa dos círios e das lamparinas.
(...)
foi sempre bom, mas nunca teve sorte,
e se vestiu de trapos para a morte.
Ao agricultor do norte está reservada a ironia da relação com a morte em sua labuta diária. O poema “Roçado”, de Trilha Dágua, lista os cuidados no preparo da terra e arremata:
Aguardarei a chuva de Finados,
e plantarei.
A chuva, que traz a vida fertilizadora da terra, vem, segundo creem, no dia consagrado à Morte. E o poeta não deixa de registrar o júbilo:
E a semente escolhida da maniva
vai ressurgir votiva em cada cova,
como uma dádiva.
OBS: amanhã, 13 de novembro, completam-se sete anos da morte de Alcides Werk.
Acendam-se os círios e as lamparinas...
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Zemaria Pinto
quinta-feira, 11 de novembro de 2010
Bella Jozef (29/01/1926-11/11/2010)
Morreu hoje, no Rio de Janeiro, aos 84 anos, a professora Bella Jozef, especialista em literatura hispano-americana.
Quando Cantavam as Cigarras
.
A Livraria Valer convida para o lançamento do documentário Quando Cantavam as Cigarras, do professor Manuel Callado, que acontecerá na manhã do dia 13 de novembro de 2010, a partir das 9h30, no Espaço Cultural da Livraria Valer. A entrada é franca.
O documentário Quando Cantavam as Cigarras”retrata essencialmente a Manaus dos anos 1950 e 1960. Apresenta aspectos importantes da ecologia, cinema, teatro, Clube da Madrugada, novelas de rádio, fotonovelas, concursos de Miss Amazonas, futebol e especialmente a música e o rádio com suas múltiplas funções.
O documentário mostra imagens de Manaus em 1965 e 1966, incluindo o Teatro Amazonas, o primeiro Festival Norte do cinema Brasileiro, no qual Silvino Santos foi homenageado, o jogo da Seleção Brasileira e Seleção do Amazonas em 1970 na pré-inauguração do Estádio Vivaldo Lima e interpretações musicais marcantes de Lili Andrade, Kátia Maria, Manoel Passos, Inês e Candinho, além da música tema, composta e interpretada por Roberto Dibo.
Participam do filme: Lili Andrade, Kátia Maria, Joaquim Marinho, Valdir Correia, Arnaldo Santos, Baby Rizzato, Oscar Ramos, Ednelza Sahdo, entre outros. A Direção do Documentário é de Manuel Callado.
Serão exibidas duas sessões do documentário, a primeira às 9h30 e a segunda às 11h. Após a exibição haverá um debate sobre a arte e a cultura do Amazonas. O DVD estará à venda pelo valor de R$ 20.
Ficha Técnica
Diretor: Manuel Callado
Produtor: Hamilton Salgado
Roteiristas: Manuel Callado, Francisco Callado Filho e José Wellington Ferreira
Música: Roberto Dibo
Imagens: João de Deus e Luiz Carlos Rodrigues
Edição: Edson Egas
Narração: Ivo Aguiar
A Livraria Valer convida para o lançamento do documentário Quando Cantavam as Cigarras, do professor Manuel Callado, que acontecerá na manhã do dia 13 de novembro de 2010, a partir das 9h30, no Espaço Cultural da Livraria Valer. A entrada é franca.
O documentário Quando Cantavam as Cigarras”retrata essencialmente a Manaus dos anos 1950 e 1960. Apresenta aspectos importantes da ecologia, cinema, teatro, Clube da Madrugada, novelas de rádio, fotonovelas, concursos de Miss Amazonas, futebol e especialmente a música e o rádio com suas múltiplas funções.
O documentário mostra imagens de Manaus em 1965 e 1966, incluindo o Teatro Amazonas, o primeiro Festival Norte do cinema Brasileiro, no qual Silvino Santos foi homenageado, o jogo da Seleção Brasileira e Seleção do Amazonas em 1970 na pré-inauguração do Estádio Vivaldo Lima e interpretações musicais marcantes de Lili Andrade, Kátia Maria, Manoel Passos, Inês e Candinho, além da música tema, composta e interpretada por Roberto Dibo.
Participam do filme: Lili Andrade, Kátia Maria, Joaquim Marinho, Valdir Correia, Arnaldo Santos, Baby Rizzato, Oscar Ramos, Ednelza Sahdo, entre outros. A Direção do Documentário é de Manuel Callado.
Serão exibidas duas sessões do documentário, a primeira às 9h30 e a segunda às 11h. Após a exibição haverá um debate sobre a arte e a cultura do Amazonas. O DVD estará à venda pelo valor de R$ 20.
Ficha Técnica
Diretor: Manuel Callado
Produtor: Hamilton Salgado
Roteiristas: Manuel Callado, Francisco Callado Filho e José Wellington Ferreira
Música: Roberto Dibo
Imagens: João de Deus e Luiz Carlos Rodrigues
Edição: Edson Egas
Narração: Ivo Aguiar
Linguagens-culturas construindo e desconstruindo ritos de curas e práticas médicas – 10/11
João Bosco Botelho
Pensamento genético
Quando o abade agostiniano Gregor Mendel (1822-1883) apresentou, no dia 8 de fevereiro de 1865, perante a União dos Naturalistas de Brunn, o resultado das suas longas pesquisas sobre o cruzamento de ervilhas, os confrades presentes não entenderam a exposição, mas, em respeito ao religioso, nada perguntaram. Parece certo que o próprio Mendel também não avaliara que estava introduzindo o terceiro corte no conhecimento da Medicina – o pensamento molecular, numa dimensão muitíssimo menor. A célula e a bactéria são formadas por milhares de moléculas.
O abade, doutor em teologia, estudou matemática, física e ciências naturais em Viena. Sofreu a influência do darwinismo, em plena ascensão na Europa, e das teorias mecanicistas dos séculos precedentes. Durante quinze anos, pacientemente, no intervalo das suas obrigações litúrgicas, efetuou cruzamentos entre espécies diferentes de ervilhas e anotou os resultados. Só no primeiro ano, o cientista selecionou 5.527 sementes de ervilhas. A conclusão, que gerou as leis de Mendel, baseada no trabalho metódico, foi formulada quando percebeu que, cruzando ervilhas de semente amarela com ervilhas de semente verde, a primeira geração era toda de semente amarela. Em termos genéticos, isto significava que o amarelo dominava o verde, constituindo o caráter-dominante. Enquanto o verde tinha caráter recessivo, porque não aparecia na presença do amarelo.
A genialidade do botânico religioso foi ter unido os pontos do quebra-cabeça e ter anunciado as leis da genética que, até hoje, com todos os recursos tecnológicos, continuam tendo valor. Ficou estabelecida a existência concreta do componente genótipo (caracteres da herança genética) e do fenótipo (a aparência externa do indivíduo).
A consequência dos estudos de Mendel ainda esperaria algum tempo para que a busca da materialidade da doença passasse a ser procurada na dimensão menor da célula. As pesquisas pularam da microestrutura (a célula) para dentro da célula (no núcleo celular onde se localiza o componente genético). Foi aberto um formidável universo para outras explicações da saúde e da doença.
Esse ponto delimitou a nova esperança de resolver a principal contradição da Medicina durante a sua existência como especialidade social: em qual dimensão da matéria o normal se transforma em patológico?
Para melhor entender a importância da genética mendelina é necessário reconstruir algumas características do pensamento da segunda metade do século 19. Em 1859, Charles Darwin (1809-1882) publicou a sua obra fundamental A origem das Espécies, resultado de vinte anos de estudos e cinco de viagens, a bordo do navio Beagle, quando recolheu grande parte do material que utilizou de suporte para a sua teoria. Imediatamente o livro se tornou um sucesso de venda e foi traduzido, nos meses seguintes, em várias línguas.
As ideias de Darwin deram início à verdadeira revolução do pensamento que dominava naquele tempo: os questionamentos não ficaram restritos à biologia, atingiram fundamentalmente a religião. Sem dúvida que o naturalista Alfred Russel Wallace (1823-1913) também teve importante parcela na evolução dos acontecimentos. Independente de Darwin, ele formulou conceitos semelhantes sobre a evolução das espécies. Entretanto, reconheceu a prioridade do seu colega inglês, que tinha feito estudos mais detalhados e completos.
Em carta a outro naturalista amigo, Charles Darwin escreveu: “Nunca vi tamanha coincidência; se Wallace tivesse o esboço do meu manuscrito de 1842, ele não poderia ter feito um melhor resumo do mesmo. Seus termos, ainda agora, permanecem como títulos de meus capítulos”. Wallace fez longa viagem, no Amazonas, em 1848. Publicou em 1853, o livro Narrativa de viagens no Amazonas e no rio Negro. Foi após esse período, conhecendo a multiplicidade da natureza amazônica, que ele consolidou o seu pensamento revolucionário. Durante a viagem, Wallace tomou conhecimento de perto das observações do seu companheiro Henry Walter Bates (1825-1892). Nesse livro, ele descreveu a incrível capacidade de algumas borboletas, para mudar a aparência, com o objetivo de evitar o ataque de certas aves. É possível que essa constatação de Bates tenha servido para ajudar Wallace na sua teoria evolucionista. A união dos conceitos de Mendel e Darwin originou outra corrente teórica – neodarwinista. Essa inter-relação assumiu importante lugar nas novas discussões filosóficas, encabeçada principalmente pelo filósofo positivista Herbert Spencer (1820-1903). O entusiasmo de Spencer pelas teorias neodarwinistas chegou a tal ponto que, mesmo não sendo biologista, publicou em Londres, em 1864, o volumoso tratado Princípio de Biologia, onde expôs suas conclusões.
Esse conjunto de informações motivou particular interesse nos teóricos da escola positivista, liderada pelo francês Augusto Comte, sendo aplicado em alguns ensaios também com o objetivo de estruturar novo controle social.
A Igreja Católica defendendo o criacionismo iniciou forte oposição às teorias evolucionistas. A disputa ideológica persiste até a atualidade. Esse fato – a contenda entre criacionistas e evolucionistas – é responsável pelas pressões eclesiásticas junto aos Estados, para conter o ensino do evolucionismo sob o prisma neodarwinista. O caso mais conhecido ocorreu no sul dos Estados Unidos, conhecido como “o cinturão da Bíblia”, a região politicamente mais conservadora daquele país. Em 1982, uma lei obrigou que as escolas cumprissem o mesmo número de horas de aulas tanto para a teoria criacionista quanto para a evolucionista. A decisão gerou protesto formal de setenta e dois cientistas premiados pelo Nobel. Chegaram a afirmar, em documento conjunto, que o fato poderia ter consequências nefastas ao desenvolvimento científico dos Estados Unidos.
Mais representativo e polêmico foi o julgamento e condenação do professor John Scopes, do Tennesse, em 1925, somente revogada em 1967. O seu crime foi desobedecer uma lei do Estado que proibia o ensino do evolucionismo: “É ilegal ensinar qualquer teoria que negue a história da Criação Divina do homem como ensinada na Bíblia, e ensinar em seu lugar que o homem descende de uma ordem inferior de animal”.
Em pesquisa realizada pelo jornal Folha de São Paulo, no dia 3 de maio de 1987, é possível ter noção da grandeza do resultado conseguido pela igreja na luta contra o evolucionismo. Segundo os dados, 68% da população entrevistada acredita que o homem é criação de Deus, 19% valorizava o evolucionismo e 5% acreditava que os homens e as mulheres evoluíram de outros animais, mas foram criados por Deus.
De certo modo, resistindo aos contrários, acreditando ou não no evolucionismo, as propostas teóricas de Mendel e Darwin foram incorporadas à Medicina e proporcionaram que o século 20 persistisse na busca da saúde e da doença em dimensões cada vez menores da matéria viva.
O século 20 foi marcado por transformações geopolíticas tão grandes e profundas que é, de certa forma, difícil de compreender como foi possível, em tão pouco tempo, aumentar trinta anos na perspectiva de vida das pessoas. Esse extraordinário período, também reconhecido pelos horrores perpetrados dos homens contra homens, de máquinas contra homens e homens contra o meio ambiente.
Sem dúvida que o terceiro corte epistemológico da Medicina, pensamento molecular iniciado com os estudos de Mendel, marcou a prática médica dominante no século 20, gerando o aparecimento da biogenética.
Porém, entre os fatos que interferiram, direta ou indiretamente, destacam-se: transportes, dos automóveis aos foguetes; comunicação, do rádio à Internet; e o desvendar do átomo.
Parece claro supor que a melhor compreensão do átomo, nos próximos anos, impulsionará a Medicina do futuro na direção do quarto corte epistemológico, o pensamento atômico, quando as buscas pela materialidade da saúde e da doença serão dominadas pelas mudanças na estrutura do átomo. Nesse tempo, no futuro, talvez será possível desvendar em qual parte da matéria o normal se transforma em patológico, se é que existe o normal e o patológico nos sentidos compreendidos na atualidade.
quarta-feira, 10 de novembro de 2010
terça-feira, 9 de novembro de 2010
A fragmentação das torres – 5
Marco Adolfs
Tio Otávio vai viajar
“Tchau, Cristo... logo atingiremos as nuvens e não verei mais nada”.
Sigo os passos do sonho. Para mim, agora, viver é isso. Entrar em aviões, vagões e quartos de hotel em um tour ao redor do mundo. No embalo disparado das turbinas metálicas dos aeroportos; no sopro subterrâneo dos metrôs. Sendo levado a descobrir os cantos de inúmeras ruas de inúmeras cidades do mundo. Sabendo que tudo é passageiro. Que você também é passageiro nisso tudo. Que o prazer está, única e exclusivamente, na descoberta. Em um quadro de Van Gogh vislumbrado no museu D`Orsay, em Paris. Ou em uma pizza, comida, despretensiosamente, em um restaurante de Nápoles. Claro que tudo são sensações que qualquer pessoa com o mínimo de conhecimento também pode desejar viver. Todos nós já lemos alguma coisa algum dia e vimos algum programa de televisão que nos abriu a vontade de conhecer in loco um Cristo de braços abertos encarapitado no alto de um morro, ou as ruínas misteriosas de Machu Pichu, no Peru. Quem não quer? Mas a minha vida tomou esse rumo de viagens e hotéis, quando o meu médico deu o diagnóstico: “você tem câncer”. Aí só tive duas opções: ou me entregava a uma cama de hospital e à quimioterapia, esperando a morte chegar desse jeito; ou então viajaria até o fim do mundo, antes de morrer, quem sabe onde. Estava aposentado ainda novo, bem alimentado e aparentemente não tinha câncer nenhum. O médico havia me dado um ano de vida, talvez dois. “Ótimo doutor, muito obrigado – pensei –, vou morrer em algum lugar do mundo, menos em um leito cheirando a éter de hospital”. Nem me despedi dos amigos, nem dos parentes. Sempre gostei muito de fugir, sabe. Desde criança, quando pulava a janela da casa grande e, sob os gritos de minha mãe, corria para abrir a porteira do mundo. Corria para os campos de fora, onde um riacho translúcido estava sempre a esperar e ainda havia as estradas das frutas dos terrenos vizinhos. Quando papai vendeu a fazenda e disse que todos iriam morar em um apartamento pequeno na capital – “pois ele já estava cansado daquela vida et coetera e tal” – pensei que fosse perder todo aquele espaço da liberdade. Não só não perdi, como passei a descobrir que cada rua de uma cidade sempre leva a outra rua, em um labirinto sem fim. E além disso, havia aquela praia de Copacabana a meus pés. Era só sair do tal condomínio e ela estava lá, com o seu gosto salgado de ser e suas ondas sensualmente envolventes. Sempre fui meio vagabundo. E no Rio de Janeiro, capital da “boa vida”, segundo meu pai, isso se consubstanciou de forma mais categórica. Eram os anos sessenta, e eu, sem perceber, crescia junto com a garota de Ipanema, enquanto Tom Jobim e Vinicius de Morais tomavam seus porres homéricos nos intervalos de suas composições.
Quando o avião decolou, rumo a Portugal eu recitava baixinho aqueles versos, que diziam: “...navegar é preciso, viver não é preciso...”. Um doente, aparentemente terminal, viajando aparentemente despreocupado com o que carregava no interior do corpo, é no mínimo uma situação de dar pena. Mas, se eu pudesse aconselhar a muitos na mesma situação que a minha, que deixassem os hospitais e as lamentações e, se fosse possível, morressem voando ou em algum quarto de hotel, eu aconselharia pessoalmente.
Estava indo então para a Europa e de lá até o Tibete... Para uma série de meditações programadas... Antes de morrer.
segunda-feira, 8 de novembro de 2010
Encontro das águas: triunfo do bom senso
Tenório Telles
A histórica decisão do Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (Iphan), que tombou o Encontro das Águas, é uma vitória do bom senso, da responsabilidade e compromisso com as riquezas naturais do país. A deliberação do Iphan foi mais que isso: foi um ato de coragem e independência, pois contrariou interesses poderosos de empresas e pessoas que não costumam considerar as aspirações coletivas.
A preservação do espaço natural mais conhecido do Amazonas e um dos mais importantes do Brasil é uma evidência de que nem tudo está perdido em nossa sociedade e de que existem pessoas capazes de agir com isenção, de forma técnica e responsável.
Surpreso e emocionado com o êxito da luta de um punhado de homens e mulheres que se colocou a serviço dessa causa, lembrei-me do poeta Alcides Werk e de sua poesia entranhada das águas, da terra, das cores, magia e cheiros amazônicos.
Alcides foi um dos homens, que conheci, mais apaixonados pela Amazônia. Sua relação com esse universo era tão intensa que o transformou em fundamento de sua poesia e razão de ser de sua vida.
Leitor de sua obra, veio-me à memória seu delicado poema “Da opção”, que expressa seu fascínio e encantamento com a pátria das águas: “Um belo mundo/ de muitos lagos/ de muitos rios.// Um belo mundo de muitas matas/ de muitas vidas/ elementares.// Um belo mundo/ de muitas lendas/ de muitas mortes/ antecipadas.// Velhas estórias/ de água e florestas.// O homem e a terra.// – Eu canto para o homem”.
A batalha pelo Encontro das águas encerra várias lições: a mais significativa é que a resistência social é o caminho para a sociedade fazer valer seus interesses. O outro aprendizado evidencia a importância da união dos que combatem por uma causa. Os defensores da Ponta das Lajes se mantiveram unidos e firmes, apesar das pressões e da indiferença de muitos que poderiam ter ajudado, mas que se esquivaram com receio de se comprometer.
O comportamento do Iphan regional, de algumas lideranças políticas e de inúmeras entidades ambientais figurará na história como exemplo de oportunismo e negligência com suas atribuições legais e sociais. Essa experiência fortaleceu em mim a certeza de que para triunfarmos na vida é imperativo acreditar, persistir e ter convicção.
O tombamento do Encontro das Águas é resultado de uma aliança entre intelectuais, cientistas, escritores e lideranças comunitárias. A população da Colônia Antonio Aleixo deu a esta cidade uma lição de resistência e dignidade. Foram os verdadeiros responsáveis por esse feito. Essa gente simples teve no seu Barretinho, Marisa Lima e dona Maria do Carmo os melhores exemplos de coragem, compromisso social e cidadania.
O apoio dos romancistas Márcio Souza e Milton Hatoum ajudou a repercutir o movimento a favor da preservação. O jornalista Washington Novaes foi uma voz particular nessa luta. A vitória, entretanto, não teria sido possível sem a liderança e a persistência do antropólogo Ademir Ramos, sobretudo sem a poesia e a capacidade de articulação do poeta Thiago de Mello, que se tornou o grande patrono dessa causa.
A luta, entretanto, não terminou. O próximo passo é trabalharmos para que o entorno do Encontro das Águas seja transformado numa área de preservação, com um grande parque público para que as pessoas possam usufruir da beleza e encanto desse lugar mágico, que é um presente de Deus.
Numa cidade que vive de costas para o rio, a Ponta das Lajes é o porto onde o povo desta terra pode se encontrar com seus rios sagrados, afirmativos de sua identidade. Sem o Negro, o Solimões e o Amazonas não seríamos o que somos.
domingo, 7 de novembro de 2010
A nudez na berlinda em Fernanda Lima
Jorge Bandeira
A Televisão brasileira é pródiga em criar mitos, em abafar casos e em “desinformar” ao cidadão, que tem na telinha um vício em seu cotidiano. Recentemente estreou na TV Globo o programa AMOR&SEXO que em princípio visa esclarecer dúvidas sobre o tema SEXO, suas variantes e adjetivações, contando para tal com especialistas e desavisados de plantão.
Se a questão é audiência e patrocinadores, tudo é permitido. Não há limites para a burrice humana (com todo respeito aos asnos do reino animal!). A nudez está na pauta no tal programa: o quadro intitulado “......................................” leva à audiência e aos telespectadores um duelo patético entre famosos onde a competição se dá da seguinte maneira: a cada pergunta “instigante” sobre sexo o competidor(a) responde o que acha, ou seja, subjetivamente, sua opinião e resposta é colocada para ser analisada ao calor da “neutralidade” do público, os “macacos e macacas de auditório”.
Detalhe: se este mesmo público não ficar convencido da naturalidade da resposta, da sinceridade de intenção dos competidores, começa o ritual artificial de “desnudamento” do competidor que pisou na bola, vacilou, não convenceu. A cada questão não resolvida com precisão, uma peça de roupa é tirada dele(a). A nudez neste caso é castigada duas vezes: é uma falsa nudez, pois o competidor(a) fica atrás de um painel pintado, e somente sua cabeça, verdadeiramente, é que se mostra na telinha.
UMA NUDEZ FALSA, onde uma pintura representa o que se esconde. A segunda penalidade para a pobre nudez é que esta ação representa, também, uma marginalização do ato da nudez, que já é tão vilipendiado por estas terras tupiniquins. A impressão que fica à audiência e ao telespectador é que ficar NU ou NUA é o pior dos castigos, um vexame e humilhação, e que os artistas e famosos são castigados por terem seus “corpos” mostrados a uma massa sedenta de “olheiros”.
Aqui, a nudez é alvo de gracinhas, de pudores irresponsáveis, de usurpação, pois as roupas artificiais são tiradas como punição por algo que não se conseguiu (convencer o outro). A nudez fica desprotegida e temos mais uma vez de engolir a programação pobre de espírito de nossa televisão. O ato de tirar a roupa, banalizado, só coloca a nudez numa vitrine de atrocidades do corpo, marginalizando este ato tão nobre ao espírito do Naturismo: a nobreza do ser humano frente à nudez alheia. Se a assessoria de Fernanda Lima pudesse compreender que este quadro tão sem graça, sem criatividade alguma, que deve ser uma outra “franchising” como os Big Brother, as pegadinhas, as olimpíadas do Faustão, a dança dos famosos, CQC, enfim, que falta faz um Chacrinha, saudoso Velho Guerreiro, com sua autêntica Arte brasileira na Televisão! Se estes senhores que vivem do rebaixamento da qualidade da televisão entendessem, repito, que este quadro poderia ser muito melhor aproveitado, com uma Nudez autêntica levada às telas, aos lares brasileiros, pois o horário do programa já permitia tal “afronta” aos “valores da família brasileira”. Esqueçam o que escrevi antes, já seria demais para um Naturista a possibilidade desta NUDEZ REAL destes astros e famosos, que só ficam nus e nuas nas revistas masculinas e outras, onde o corpo é somente um objeto de consumo, de imagem repleta de subterfúgios de photoshops e outros “reguladores” da estética escravocrata da mídia e da moda. Tempos cruéis estes, em que a nudez é escamoteada, onde volto a lembrar do Velho Guerreiro, pois ao menos o bacalhau que o “Russo” jogava à platéia tinha cheiro de bacalhau, era VERDADEIRO. Não existe corpo de papelão!
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