Zemaria Pinto
O
ciclo de leituras dramáticas Teatro e
Resistência, promovido pela Cia Vitória Régia em janeiro e fevereiro de
2019, no palco do Sinttel-AM, nasceu da necessidade que o grupo, dirigido por
Nonato Tavares, sentiu de mostrar, especialmente aos mais jovens, que houve,
sim, uma ditadura no Brasil, que se estendeu por 21 anos – período em que se
prendeu, torturou e matou muita gente. Há um movimento do
mais deslavado cinismo negando esses fatos que já pertencem à História e
procurando transformar notórios torturadores e assassinos em heróis.
Como o grupo lida com o
teatro, era elementar trabalhar com a leitura dramática – uma por semana, de
modo a produzir uma amostra abrangente – de peças que retratassem a época.
Partimos de quinze títulos iniciais, que foram sendo filtrados no decorrer do
processo, até chegarmos aos sete títulos trabalhados – todos eles relacionados
ao intervalo de tempo que vai de 1964, ano do golpe militar, até 1979 – ano da
anistia e início efetivo da “distensão” ou “abertura”, que só se concretizaria
em 1985, com a saída dos militares do poder. A exceção foi o emblemático Eles não usam black-tie, encenado pela
primeira vez em 1958, mas ainda hoje atualíssimo.
Teatro de
Resistência
O termo designa peças
e/ou autores que se posicionaram francamente contra o regime instaurado em
1964, denunciando-o e criticando-o. Não foi, a rigor, um movimento, como querem
alguns apressados, até porque reunia tendências opostas e inconciliáveis, tanto
do ponto de vista político como do estético. Olhando pelo ângulo dos detentores
do poder no exercício da censura, eram textos e autores a serviço da
“conspiração comunista internacional” contra os “valores da civilização cristã
ocidental”, conforme atesta Yan Michalski, no seu clássico O palco amordaçado. Para quem pensa que os donos do poder no Brasil
de 2019 estão sendo originais, eles apenas repetem a mesma ladainha de 55 anos
atrás, usada para justificar o estrangulamento da democracia.
Além dos autores com os
quais trabalhamos, vistos adiante, destacaram-se como “resistentes” Chico
Buarque, Millôr Fernandes, Maria Adelaide do Amaral, Consuelo de Castro,
Augusto Boal, João das Neves, Jorge Andrade, Paulo Pontes, entre outros.
Teatro
e Resistência
Trabalhamos três noites
por sete semanas: na segunda-feira, fazíamos a primeira leitura, com o “elenco”
disponível; na quarta, fechávamos o elenco e fazíamos uma segunda leitura,
pensando nas marcações de palco; na quinta-feira, era feita a leitura para o público.
A dificuldade oferecida pela arquitetura dramática de Patética, a segunda peça lida, nos permitiu um salto de qualidade
em relação à leitura de O abajur lilás,
que foi extremamente convencional, com as rubricas sendo lidas quase
integralmente. A Patética nos fez
inventar a figura do “narrador”, que, baseado nas rubricas, situava o público
no tempo e no espaço, método utilizado nas três peças seguintes, até que, nas
peças finais – Zona Franca, meu amor
e Papa Highirte – abolimos também a
figura do narrador, fazendo pequenas inserções no próprio texto da peça, de
modo a situar o espectador, uma vez que não dispúnhamos dos recursos mais
elementares como cenário, figurino e luz. Foi um aprendizado. Deu certo.
Trabalhamos com os
seguintes textos:
O
abajur lilás (Plínio Marcos) – partindo de uma base
alegórica, uma representação realista do Brasil pós AI-5, três prostitutas, um
explorador do lenocínio e seu segurança mostram o absurdo das relações entre o
poder e os que a ele são submetidos, levando à tortura, à delação e ao
assassinato.
Patética
(João Ribeiro Chaves Neto) – A trajetória do jornalista Vladimir Herzog – até
seu assassinato, sob tortura, em outubro de 1975 – recriada com engenho e arte.
Eles
não usam black-tie (Gianfrancesco Guarnieri) – retrata, em
primeiro plano, o movimento sindical-trabalhista da era JK; mas a grande tensão
da peça está fundamentada no relacionamento entre o pai Otávio e o filho Tião,
muito além de um conflito de gerações: um conflito ideológico, discussão muito
atual.
Campeões
do mundo (Dias Gomes) – o sequestro de um embaixador, contado
em flashback por dois sobreviventes
anistiados, é o mote para mostrar os conflitos da guerrilha urbana, a tortura e
o assassinato, num período que cobre de 1963 a 1979, discutindo também a
condição feminina e o exílio a que muitos foram forçados.
Vejo
um vulto na janela, me acudam que sou donzela (Leilah
Assumpção) – passa-se entre o final de 1963 e os primeiros dias do golpe
militar. Uma comédia de costumes espicaçando o extremo conservadorismo da
época; um libelo feminista que escancara e ridiculariza esse conservadorismo.
Zona
Franca, meu amor (Márcio Souza) – escrita dez anos antes
de ser encenada pela primeira vez, manteve-se, e mantém-se, muito atual, na
crítica ácida ao modelo Zona Franca de Manaus.
Papa
Highirte (Oduvaldo Vianna Filho) – alegoria sobre a solidão de
um ditador latino-americano no exílio, em algum momento entre os anos 1940 e
1960. Personagens infames, caricaturas sub-humanas, humor áspero. Vianinha
constrói suas personagens como um demiurgo, cheias de sutilezas, para em
seguida destruí-las, furioso, sem nenhuma delicadeza.
Teatro,
território livre
Território do livre
pensamento, o teatro é de natureza rebelde, mas não inconsequente: ensina
criticando e critica ensinando. Mas não ensina verdades – ensina a vida:
questionando as verdades estabelecidas, colocando a dúvida acima de qualquer
dogma. Isto é a arte. É provocando abalos que ela se renova. Isto é o teatro,
há dois mil e seiscentos anos.
Em síntese, a Cia Vitória
Régia escolheu o Teatro para iluminar o passado e denunciar as semelhanças com
o presente – uma forma de resistência.