Zemaria Pinto
Marañon, o rio de Orellana. Ali se iniciava a etapa mais importante da
aventura. Eram os últimos dias de 1541. Dez meses já se passavam desde que
saíram de casa. Após nove dias de viagem, e apesar dos esforços do Capitão em
animar a tropa, o que Carvajal observa amiúde, a situação chega a um ponto
crítico:
Estávamos em grande perigo de morrer da
grande fome que padecíamos e assim, buscando o conselho do que se devia fazer,
comentando a nossa aflição e trabalhos, resolveu-se que escolhêssemos de dois
males aquele que ao Capitão e a todos nós parecia o menor, e foi ir por diante,
seguindo o rio: ou morrer ou ver o que nele havia, confiando em Nosso Senhor
que se serviria por bem conservar as nossas vidas até ver o nosso remédio. À
falta de outros mantimentos, entretanto, chegamos a tal extremo que só comíamos
couros, cintas e solas de sapatos cozidos com algumas ervas, de maneira que era
tal a nossa fraqueza, que não nos podíamos ter em pé. (p. 19)
Observe-se
neste fragmento o espírito solidário do Capitão, que, sem abrir mão de sua autoridade,
discute com seus comandados qual a melhor decisão para todos. Em paralelo, o
discurso religioso pontua a narrativa. É importante assinalar uma recorrência
do relato: a fome. Não caçavam; não pescavam; esperavam encontrar povoações que
pudessem saquear. No dia 08 de janeiro ocorre o primeiro contato com os
nativos, de índole pacífica. Neste ponto, tomamos conhecimento de uma
habilidade de Orellana, ainda insuspeita, que será muito útil em toda a viagem:
sua extraordinária capacidade de comunicar-se nas línguas nativas. A formação
discursiva é repetida diversas vezes, com pouca variação. Alguns exemplos:
Avistando-os o Capitão, pôs-se na barranca do rio e, na sua língua,
pois um pouco os entendia, começou a falar com eles e a dizer que não tivessem
temor e que se chegassem, que lhes queria falar. (p. 22)
Agradeceu-lhes o Capitão e lhes deu aquilo que tinha, e depois de o
ter dado, ficaram os índios muito contentes em ver o bom tratamento que se lhes
fazia, assim como em ver que o Capitão lhes entendia a língua, que não foi
pouco para que saíssemos a porto de salvamento, pois se os não entendesse
teríamos por muito difícil a nossa saída. (p. 28)
O entender o Capitão a sua língua foi,
depois de Deus, o que nos ajudou a não ficarmos no rio. (p. 29)
Essa
virtude fora concedida aos discípulos de Cristo, conforme Marcos (16, 14-18).[1] Não
podemos ignorar o possível intertexto, até porque Carvajal não perde
oportunidade de aproximar o Capitão da divindade:
E a não ser ele tão sábio nas coisas da guerra, que parecia que Nosso
Senhor lhe ensinava o que devia fazer, muitas vezes nos teriam morto. (p. 54)
Reunindo
os treze chefes locais, o Capitão “lhes falou longamente da parte de Sua
Majestade, e em seu nome tomou posse da terra” (p. 23). Duas observações:
“falou longamente” e “tomou posse da terra”. Para Greenblatt, a tomada de posse
é a “execução de um conjunto de atos linguísticos: declarar, testemunhar,
registrar” (GREENBLATT, p. 81). Qual o nível de entendimento dos nativos?
Continuariam pacíficos se entendessem o palavreado do Capitão? Com que direito
Orellana, com sua mera presença, tomava posse de áreas ocupadas há centenas,
quiçá milhares, de anos? É claro que,
para o narrador, aquele era sobretudo um ato simbólico, representando o
estender o manto real sobre aquela terra agreste, habitada por gente bárbara,
dando início ao processo civilizatório. Poderia acrescentar, como Colombo, em
situação semelhante: “y no me fué contradicho” (GREENBLATT, p. 75).
Logo nesse
primeiro contato com os nativos, Carvajal começa a preparar o espírito do
leitor, para o que será o ponto mais alto de sua narrativa:
Aqui nos deram notícia das amazonas e das riquezas que há mais abaixo,
e quem o fez foi um índio chamado Aparia, velho que dizia ter estado naquela terra,
e também nos deu notícia de outro senhor que estava apartado do rio, metido
terra adentro, e que ele dizia possuir enorme riqueza de ouro. (p. 24)
Amazonas à
parte, a “enorme riqueza de ouro” era o argumento definitivo para que seguissem
em frente, pois era um indício do El Dorado. O capitão ordena então que se dê
início à construção de um novo bergantim. A propósito destes – os dois
completariam a viagem –, Carvajal os nomeia apenas como bergantim pequeno e
bergantim grande, mas, por outras relações, sabe-se que se chamavam San Pedro e Victoria (p. 74, em nota do tradutor).
Após a
decisão de seguir em frente, até o mar, Orellana intenta mandar um grupo dar
notícias a Pizarro. Consegue apenas três voluntários, “porque todos temiam a
morte que lhes parecia certa” (p. 26). Carvajal não fala mais desse
empreendimento que tanto destaca a lealdade de seu Capitão. Teriam os
emissários logrado êxito ou perderam-se no caminho?
Naquela
primeira parada, da qual saíram somente a 02 de fevereiro (“dia de Nossa
Senhora da Candelária”, segundo Carvajal), a expedição ainda estava no rio
Napo. Oviedo, cuja narrativa – construída a partir do texto de Carvajal e das
oitivas do próprio Orellana e de outros participantes da aventura – complementa
alguns lapsos do dominicano, informa, dando voz a um narrador implícito, que a
12 de fevereiro
Se juntaron dos ríos con el río de nuestra navegación y eran grandes,
em especial el que entro a la mano diestra, como veníamos el água abajo: el
cual deshacía e señoreaba todo el outro río e parecía que le consumía en sí;
porque venía tan furioso e con tan grand avenida, que era cosa de mucha grima y
espanto ver tanta palicada de árboles e madera seca como traía, que pusiera
grandísimo temor mirarle desde la tierra, cuanto más andando por él. (BARLETTI,
p. 8)
Era o rio
Marañon, que, na região peruana, já havia sido assim nominado. A única
referência que Carvajal faz a esse nome é no antepenúltimo parágrafo de seu
texto, mas não deixa nenhuma dúvida quanto a ser o mesmo rio aquele que deságua
no Atlântico, que ele, a partir do título de sua relação, intenta mudar de nome
para rio de Orellana.
No segundo
contato com nativos ainda pacíficos, Carvajal narra uma passagem que precisa
ser observada com mais detalhes, pelo que guarda de inverossímil:
Vendo o Capitão o bom comedimento do senhor, fez-lhe um discurso,
dando-lhe a entender como éramos cristãos e adorávamos um só Deus, que era
criador de todas as coisas criadas, e que não éramos como eles, que andavam
errados, adorando pedras e ídolos feitos. Disse-lhes sobre este assunto muitas
outras coisas e também lhes disse como éramos criados e vassalos do Imperador
dos cristãos, grande rei de Espanha, chamado D. Carlos, nosso senhor, de quem
era o império de todas as Índias e outros muitos senhorios e reinos que há pelo
mundo e que por ordem sua íamos àquelas terras, devendo dar contas do que aí
tínhamos visto. (p. 29-30)
O discurso
de Orellana é repleto de conceitos que certamente não fazem parte do repertório
linguístico-ideológico dos seus interlocutores. Pensemos no esquema clássico da
comunicação, o mais simples de todos:
emissor => mensagem => receptor
A
possibilidade das ideias veiculadas por Orellana se perderem ou se desvirtuarem
antes de chegarem aos receptores – ainda que tivesse fluência na língua – é
imensa, porque falta a estes o aparato linguístico para a compreensão de
conceitos como cristãos, deus, criador, erro, ídolo, vassalos, imperador,
Espanha, Índias, reino.
A
expedição segue rio abaixo, alternando momentos de paz e fartura com batalhas
encarniçadas e muita fome, até chegar ao Atlântico no dia 26 de agosto de 1542,
e a Nova Cádiz, na ilha de Cubágua, Venezuela, a 11 de setembro.
Como nosso
propósito não é parafrasear o texto de Carvajal, mas apontar-lhe as camadas
discursivas, especialmente a religiosa e a ideológica, com ênfase nesta última,
redirecionemos o trabalho para essas camadas, alertando que, entretanto, o
contexto histórico estará imbricado, com maior ou menor valor, nas passagens
comentadas a seguir.