Carnaval na Eduardo Ribeiro. Início do século passado. |
domingo, 27 de fevereiro de 2022
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022
A poesia é necessária?
Hildeberto
Barbosa Filho
Nada sei dos
homens nem dos deuses,
seus truques, sonhos, armadilhas e destinos,
nem nada sei
da vida, cardume que se reinventa.
Nem nada sei
do que na guerra existe,
do que na
morte existe, do que na cor existe.
Sei que os
homens sofrem porque lembram.
Sei que a
cada manhã o tempo passa,
repartindo os
filhos, as estórias, as mulheres
e que à noite
restará um verso sem luz.
Nada sei,
nada sei, nada sei,
mas quero
guardar a alegria de cantar o amor.
Nada, nada,
nada como o amor que vem,
invadindo as
cidades, as catedrais, os ermos,
em louvor do
grão da vida.
O resto é
silêncio, como disse Shakespeare
e morrer
também não é remédio.
Os livros não
dizem tudo,
nem os astros
nem as crenças.
As lições de
partir
ficam aquém
das estações e dos cais.
Só além do
mar e dos teus olhos
eu vejo a
ilha dos amores,
seus
arrecifes de espinhas, seu gosto de sono,
a ressaca, o
nunca mais.
Nada sei que
me diga do definitivo pouso,
se há o ponto
de apoio que procurava Konoválov,
se é possível
o dantesco paraíso no meio do caminho,
ou tudo é
selva escura, solidão, inferno?
Nada sei que
me diga das estrelas,
nem do amor
que tu me tinhas, seus topázios,
seus cabelos
de silêncio.
Sei que os
homens sofrem porque lembram.
Sei que o
amor, o amor, o amor só é possível
reinventado...
E nada sei
dos homens nem dos deuses,
se há o verso
maior, o poeta maior, o amor maior,
se nesses
dias brancos algum dia eu serei feliz.
|
terça-feira, 22 de fevereiro de 2022
Amor amigo
Como
todos sabem, o dia dos namorados no Brasil é celebrado no dia 12 de junho,
véspera de Santo Antônio. Em muitos países ocidentais foi comemorado dia 14 de
fevereiro, segunda-feira passada. É o Valentine’s Day, que vem se incorporando
às nossas tradições por influência da Europa e dos Estados Unidos. Não é de
hoje que importamos datas, festejos e tradições advindas da cultura europeia e
americana.
Mas as
redes sociais informavam que dia 14 foi também o dia do amigo. Dia da amizade.
São Valentim teria sido um padre que desobedeceu às ordens do imperador.
Resolver casar as pessoas em segredo. Não interessavam ao Império Romano os
casamentos. Homens solteiros eram melhores para guerrear. A atitude de São
Valentim foi de compaixão e, consequentemente, também de amizade para com os
nubentes. Sim, a palavra compaixão está ligada a ternura, caridade, empatia,
humanidade. E não é isso que se espera de um verdadeiro amigo?
Achei
muito oportuno celebrar-se a amizade no mesmo dia em que se comemora o amor, os
enamorados. Ter bons amigos é um privilégio. Roberto Carlos encontra forças
para cantar, em seus amigos: “Eu quero ter um milhão de amigos e bem mais forte
poder cantar”. Já Milton Nascimento aconselha com propriedade: “amigo é coisa pra
se guardar, debaixo de sete chaves, dentro do coração”.
No
Valentine’s Day comemora-se o amor não necessariamente romântico, como no nosso
dia dos namorados. Diferente do Dia dos Namorados, em que o foco está nos
casais, o Valentine’s Day é uma data para celebrar todos os tipos de amor,
independente de relacionamento entre casal. Pode ser compartilhado entre pais,
filhos, amigos. O importante é celebrar com quem você ama.
É muito
importante a pessoa que é dona de seu coração ser sua amiga. As paixões devem
ser precedidas de uma grande amizade. É importantíssimo que os amantes sejam
amigos. Que gostem de estar juntos. Que possam compartilhar os mesmos
interesses. E principalmente que gostem de conversar.
Dr.
Chaguinhas, que é um sábio, me disse que quando jovem deixou muitas namoradas
magoadas com ele. Até que se apaixonou por uma grande amiga. Casou-se com ela e
diz para todo mundo: “É minha esposa, mãe dos meus filhos, minha eterna
namorada. Mas antes de tudo é minha melhor amiga.”
Que são
Valentim, Santo Antônio e toda a milícia celeste abençoe os enamorados. E que
sejam, antes de tudo, amigos. Porque amizade é uma relação de afeto, de
carinho, de estima e de dedicação entre duas pessoas. E, principalmente, de
respeito. Para os enamorados que não comemoram São Valentim, é só aguardar 12
de junho. Dia de Santo Antônio. E viva o amor amigo!
segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022
Oficina de Escrita Coletiva
Turma da Manhã. |
Turma da tarde. |
Sábado rodamos mais uma oficina do
Projeto MURAL – Jornalzine do Monte, contemplado no edital Manaus Faz Cultura,
promovido pelo @conculturamao, por meio da @manauscult, com apoio da
@prefeiturademanaus. Com a presença do escritor e membro da
@academiadeletras.am Zemaria Pinto, que compartilhou um pouco do seu vasto
conhecimento com a molecada aqui da minha quebrada, e o que posso afirmar é o
seguinte, estamos com uma turminha com a palavra afiada, atenta aos problemas
da comunidade, e disposta a aprender. O Monte das Oliveiras nunca mais será o
mesmo, podem anotar isso.
(Rojefferson Moraes)
Rojefferson Moraes e Zemaria Pinto. |
Agradecer ao apoio do poeta Zemaria
Pinto que durante os últimos anos tem me acompanhado em inúmeras maluquices
literárias e culturais, por também ser um representante da luta nossa de cada
dia, e por compreender que a literatura tem uma função social importantíssima,
e que arte não se faz apenas nas universidades, nas academias, no Centro da
cidade. Mais do que nunca o conhecimento acadêmico precisa furar a bolha da
boçalidade no intuito de alcançar as pessoas periféricas. Gratidão!
(Rojefferson Moraes)
A Oficina de Escrita Criativa faz parte de um
projeto do Coletivo Soul do Monte, visando a produção de um Jornalzine, no bairro do Monte das Oliveiras, na Zona Norte de Manaus.
domingo, 20 de fevereiro de 2022
sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022
Os cem anos da SAM 3
quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022
A poesia é necessária?
Eu sou trezentos...
Mário de Andrade (1893-1945)
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pireneus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!
Abraço no meu leito as melhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus
próprios beijos!
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022
Os cem anos da SAM 2
terça-feira, 15 de fevereiro de 2022
Beiradão, beirada, beira de rio
Pedro Lucas Lindoso
Recebo
e-mail do meu amigo e irmão Dr. Antônio Loureiro, nos lembrando que os meninos
e meninas de nosso tempo ouviram muitas vezes, como cantiga de ninar:
“Murucututu
da beira do rio. / Murucututu da beira do rio. /Quando sapo canta, ô maninha /
É porque tem frio.” Ou ainda: “Murucututu de cima do telhado. / Murucututu de
cima do telhado. / Vem pegar este menino, / Que ainda está acordado.” Esta
versão, possivelmente mais urbana e diversificada, é de fazer qualquer curumim morrer de medo e pegar logo no sono.
De
acordo com Dr. Loureiro, as crianças do alto Rio Negro ainda ouvem e cantam
assim. Não é mágico?
Murucututu
é o nome de uma coruja bem pequena. Para alguns ela traz sorte. Reza a
lenda, de origem indígena, que
Murucututu seria a mãe do sono. Seu papel é fazer adormecer as crianças que
demoram a dormir. A lenda diz ainda que Murucututu “empresta” o sono para as
crianças.
Muito
conhecida também é a música da Cuca: “Nana neném que a Cuca vem pegar / Papai
foi para roça / Mamãe foi trabalhar.” Mas não é tão amazônica como a nossa
Murucututu. É mais do Sul/Sudeste. Mesmo porque temos poucas “roças” por aqui.
Planta-se nas várzeas e igapós.
Ah!
Sim! Temos a beira do rio. A beirada, os beiradões. Um dos clássicos de nossa
literatura amazonense é o livro Beiradão, de Álvaro Maia, poeta e
escritor. Álvaro Maia foi governador e senador por nosso Amazonas. Nessa obra,
relata fatos e personagens das beiradas do Rio Madeira, onde nasceu. O beiradão,
a beirada, a beira do rio é onde habitam as murucututus.
O
beiradão é tão marcante, tão importante, que virou gênero musical. Virou um
ritmo típico das beiradas, das beiras dos rios. O beiradão é expressão cultural
diversificada. Envolve também dança e festas às margens dos rios. Onde moram as
murucututus, claro.
Ah! Mas
as coisas mudam! Há uma nova versão para a música do murucututu. Substituíram o
mucucututu pelo Sapo Cururu. Que também mora na beira do rio e tem até mulher.
“Sapo
cururu da beira do rio / Quando o sapo canta, ô maninha / É porque faz frio. /
A mulher do sapo / Deve estar lá dentro, / Fazendo rendinha, ô maninha, / Para
o casamento.”
Não é
só isso. Agora chamam os beiradões, as beiradas, a beira do rio de orla! Eu até
concordo que o sapo cururu possa morar na beira do rio, como a murucututu.
Agora, chamar beira de rio de orla!... É muita pavulagem!
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022
Os cem anos da SAM 1
domingo, 13 de fevereiro de 2022
sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022
O imaginário amazônico em três romances improváveis – 2/2
Zemaria Pinto
A
jangada – 800 léguas pelo Amazonas. O francês Julio Verne (1828-1905) é um dos mais
notáveis autores de ficção do século 19. Tudo que se diga dele hoje será apenas
o eco do que já foi dito antes – em algum tempo, em algum lugar. A jangada[1]
foi publicado em 1881, descrevendo a jornada de uma família de Iquitos, no
Peru, até a cidade de “Santa Maria de Belém do Pará”, em uma jangada de
dimensões amazônicas, durante quatro meses e meio. Mas a parte mais rocambolesca
da trama se passa em Manaus, “capital da província das Amazonas”.
Para
dar verossimilhança à extraordinária aventura, Verne pontua a narrativa com
enfadonhas informações enciclopédicas, como “a cidade de Manaus se situa a
exatamente 3°8’4” de latitude austral e 67°27’ de longitude a oeste do meridiano
de Paris” (p. 187). A referência a Paris, em vez de Greenwich, tem finalidade
óbvia: Paris era o umbigo do mundo. Qualquer cidadão que entendesse de
latitudes e longitudes faria ideia de quão longe a inóspita e selvagem Manaus
estava da civilizada capital francesa. Por justiça ao autor, entretanto, é
preciso dizer que a padronização com o meridiano britânico só ocorreria três
anos após a publicação do livro.
Mas, o
entrecho literário de A jangada, situado em 1852, faz jus ao melhor de
Julio Verne. João Garral, um brasileiro bem sucedido no Peru, resolve
empreender uma viagem pelo rio Amazonas, até Belém, onde sua filha se casaria
com um jovem médico. Seria uma viagem de quase-despedida, uma vez que,
retornando ao sítio de origem, não saberiam quando a família voltaria a se
reunir. Sucede que Garral tem um segredo em seu passado, o que é confrontado
por Torres, um capitão do mato, caçador de escravos, que atravessa o caminho da
família, disposto a destruir a felicidade conquistada com duro trabalho e muita
renúncia.
Nestes
tempos de obscurantismos cancelatórios nas artes e na cultura, é bem provável
que algum grupelho condene o livro de Verne ao “index librorum proibithorum”
das redes socialites. Para construir a monumental jangada – “como se uma parte
da fazenda de Iquitos se desprendesse das margens e descesse o Amazonas” (p.
53) – é dedicado um capítulo inteiro, onde se declara no título uma incontida
alegria: “Uma floresta inteira devastada”. E conclui, com um cinismo
involuntário:
João Garral nem precisava se preocupar com a
recuperação de uma floresta que vinte ou trinta anos bastariam para reerguer.
(p. 56)
A
lógica de Verne era de uma simplicidade atroz:
É a lei do progresso. Os índios estão fadados ao
desaparecimento, Com a chegada da raça anglo-saxã, aborígenes australianos e
tasmanianos se extinguiram. Depois dos conquistadores do Velho Oeste, os índios
da América do Norte sumiram. É possível que no futuro os árabes sejam
aniquilados pela colonização francesa. (p. 50)
Diante
do genocídio inevitável, esta última frase guarda até um certo orgulho
colonizador...
Essa
jangada faz parte do meu imaginário pessoal: um bairro inteiro chamado Cidade
Flutuante, que eu conheci criança e desapareceu nos meus dez anos. Não à toa, a
lembrança que me resta está envolta em uma bruma que dá à paisagem um tom de
cinza, como um filme expressionista. Era uma imensidão, que tomava centenas de
metros da frente de Manaus. Dentro d’água. Uma jangada ancorada à cidade, com
ruas, becos e quintais, gente e bicho de todo tipo, e toda a infraestrutura
básica de uma aglomeração urbana – de igrejas a prostíbulos, mas sem escolas,
postos de saúde ou o mínimo resquício de saneamento. A Cidade Flutuante foi
destruída com violência por rapazes vestidos de verde ou azul, em nome de uma
limpeza que dispensava adjetivos, e seus moradores, expulsos para as muitas
favelas criadas pela Zona Franca de Manaus. Menines, eu vi!
O
mundo perdido. O
escocês Arthur Conan Doyle (1859-1930) também brincou de Amazonas. E, na
cola de Verne, que encontrou dinossauros em sua Viagem ao centro da terra
(1864), Doyle fez de O mundo perdido[2]
(1912) uma franquia que espalha dinossauros por diversas partes do mundo, há cento
e dez anos. A trama tangencia o singelo: uma expedição britânica vem à Amazônia
conhecer um local que, inexplicavelmente, preserva elementos da pré-história,
uma alegoria que excede a qualquer classificação, especialmente quanto à tribo
de homens-macacos. Elementar, meus caros.
Brincadeiras
à parte, a verdade é que Conan Doyle era um excepcional criador de tramas e de
personagens. Malone e Challenger são antagonistas apenas na aparência. Na
prática eles se complementam: Malone, o narrador, encontra em Challenger o
parceiro perfeito para viver a grande aventura de sua vida. Eu só me pergunto
por que Conan Doyle escolheu a Amazônia, se sua história poderia ser situada em
qualquer lugar inóspito do planeta.
Depois
de passar por Belém e Manaus, a pequena expedição londrina cresce com a entrada
em cena de trabalhadores nativos. Eles navegam ainda por seis dias em um barco
a vapor, até chegarem a uma aldeia indígena onde desembarcam e o “Esmeralda”
retorna a Manaus. Challenger, o único que sabia as coordenadas exatas do vale
dos dinossauros – pois estivera lá antes e fora desacreditado, por não ter
provas –, exigira sigilo absoluto.
É por essa razão que sou compelido a ser vago em minha
narrativa e gostaria de advertir aos meus leitores de que qualquer mapa ou
diagrama, em que eu possa dar a relação dos lugares de um para o outro, pode
estar correto, mas os pontos da bússola estarão cuidadosamente confundidos, de
modo que não possam ser tomados como guia real da região. (p. 81-82)
Aliás,
essa solitária viagem anterior é a conexão de Challenger com o mundo real: “o
objetivo da minha jornada foi verificar algumas conclusões de Wallace e Bates”
(p. 35). Trata-se de uma referência aos teóricos evolucionistas Alfred Russel
Wallace e Henry Walter Bates, que trabalharam juntos na Amazônia, de 1848 a
1852.
A
criatividade narrativa começa com a forma dos capítulos, escritos pelo
jornalista Malone como cartas mal disfarçadas, a serem publicadas pelo jornal
patrocinador de sua participação na aventura, que segue num crescendo, onde
além de dinossauros e outros animais pré-históricos, são coadjuvantes plantas
exóticas, índios selvagens e até uma tribo de homens-macacos – um estágio
anterior da espécie humana, que comprovaria a tese evolucionista de Darwin.
Não foi
apenas Michael Crichton que se encantou com O mundo perdido. O
amazonense Márcio Souza escreveu O fim do terceiro mundo, um exercício
metalinguístico, onde Virginia Challenger, neta do insigne pesquisador,
descobre, em Manaus, em pleno século 20, incríveis fósseis capitalistas...
Este
trabalho se encerraria com comentários ligeiros sobre A árvore que chora
(1944), de Vicki Baum (1888-1960). Infelizmente, não encontrei o livro, que,
pelo que apurei, teve apenas uma edição em português, da editora Globo, em
1946. Isto a despeito da popularidade da autora, austríaca de nascimento,
romancista e roteirista consagrada em Hollywood: seu romance Grande Hotel
(1929), com roteiro de sua própria autoria, ganhou o Oscar de melhor filme, em
1932. Seu livro foi analisado pela professora Neide Gondim:
A árvore que chora fala da metamorfose do homem em
mercadoria enquanto vendedor de sua força de trabalho a alguma coisa que sente
na pele mas não vê; é subjetiva e se objetiva em seu próprio descrédito
enquanto homem; sente a força vampiresca e poderosa que lhe extrai do corpo a
alma e o sangue, num constante movimento autofágico.[3]
O “ouro
negro” – referência à cor das pelas de borracha, após um processo químico – foi
protagonista de um dos mais selvagens ciclos econômicos promovidos pela sanha
capitalista, desde que La Condamine o descreveu em meados do século 18. Tenório
Telles e Antônio Paulo Graça, que comparam os seringueiros de Baum aos mineiros
de carvão do Germinal, de Zola, não têm dúvidas sobre a gênese da obra.
O centro do romance, em torno do qual gira a dinâmica
das ações das personagens e dos interesses econômicos em disputa, é a borracha
e o sistema de produção arquitetado para viabilizar a sua exploração mercantil.
O fluxo da narrativa se desenrola em paralelo com o processo de exploração do
látex, seu comércio e novas formas de produção e usos.[4]
Parece-me
que – assim como para Pompeia, Verne e Doyle – não haver conhecido a Amazônia
de perto não fez falta à criatividade da Sra. Baum. Não se pode dizer o mesmo,
entretanto, de uma personagem que passou alguns anos enfronhada em um seringal,
retornando de lá com um romance que o tempo vai aos poucos apagando. Refiro-me
a A selva (1930), do português Ferreira de Castro, um romance frouxo,
falsamente realista, assentado em bases fora da realidade da época, cujo maior
mérito foi o de ecoar a denúncia de Euclides da Cunha, da exploração dos
seringueiros, fora de qualquer padrão de humanidade – com mais de 20 anos de
atraso.[5]
Uma
tragédia no Amazonas,
A jangada e O mundo perdido passam por literatura de entretenimento.
E o são, pois esta é uma das funções da literatura: divertir. Mas, não teriam
perdurado no tempo se não tivessem uma outra qualidade: a de fazer pensar. Seja
na violência de que é vítima a família de Eustáquio; seja na injustiça de que é
vítima o patriarca da família Garral; seja na tenacidade de Challenger, que
acredita, às raias do egoísmo, sobretudo em si mesmo. O imaginário amazônico
foi o pano de fundo – entre inverossímil e absurdo – para essas tramas. Para
nós, amazônidas, o imaginário em nada mudou a partir dessas tramas – mas elas,
sem dúvida, cresceram muito com ele.
[1]
VERNE, Júlio. A jangada – 800 léguas pelo Amazonas. Tradução: Elisa
Rodrigues e Julia Fervenza. Porto Alegre: L&PM, 2020.
[2]
DOYLE, Arthur Conan. O mundo perdido. Tradução: Silvio Antunha. Jandira:
Ciranda Cultural, 2019.
[3]
GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994. p.
250.
[4]
TELLES, Tenório; GRAÇA, Antônio Paulo. Estudos de literatura do Amazonas.
Manaus: Valer, 2021. p. 174.
[5]
Para mais informações, consultar PINTO, Zemaria. A selva: a verdade da
ficção e a ficção da verdade. Manaus: Valer, 2021.
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022
A poesia é necessária?
5ª Sinfonia de Beethoven
Solano Trindade (1908-1974)
5ª
Sinfonia de Beethoven
Os
dois tímbalos
parecem
o mundo
partido
ao meio
Eu
gosto da barbaria dos tímbalos
como
de todas as melodias
como
de todos os sons
como
de todas as cores
como
todas as formas
Detesto
limitações
eu
gosto da barbaria dos tímbalos
5ª
Sinfonia de Beethoven
Estou
sofrendo
como
as mulheres de parto
Eu
gosto da barbaria dos tímbalos
Chove
lá fora
e
Garcia Lorca passeia na chuva
Barbusse
está cheio de amor pela vida
e
Beethoven escuta a própria Sinfonia
Não
sei onde está o fim
nem
o princípio das cousas
sei
que gosto da barbaria dos tímbalos
Eu
sou como a semente
que
espera a terra
Eu
serei plantado
e
meus irmãos repousarão sobre mim
quando
eu for uma árvore frondosa
Minha
amada está despida para me receber
Seu
corpo é como a 5ª Sinfonia
Seus
olhos são como a 5ª Sinfonia
Seus
seios
são
como a 5ª Sinfonia
A
minha amada é universal.
Oh!
se eu pudesse pintar a 5ª Sinfonia
Chove
lá fora
Van
Gogh passa em passos largos
Gauguin
está pintando as mulheres das ruas
e
eu estou perdido
dentro
de mim mesmo
porque
não sei pintar
a
5ª Sinfonia de Beethoven
Onde
estão os bárbaros?
Onde
estão os civilizados?
Onde
está o amor?
Onde
está o ódio?
Estão
na 5ª Sinfonia
As
crianças marcham à minha frente
cantando
uma canção de esperança
Ouçam
todos os que me entendem
eu
amo a 5ª Sinfonia de Beethoven
e
não quero limites para viver.
terça-feira, 8 de fevereiro de 2022
Repristinação
Pedro Lucas Lindoso
Em geral tenho evitado falar de política
nas minhas crônicas. O país já está muito dividido. Todavia, me chamou atenção
o fato de a Presidência da República rever sua posição e revogar os decretos
que revogavam decretos de luto oficial editados por governos antecessores.
Isso é
muito raro no mundo Jurídico. Mas pode acontecer e o instituto tem nome.
Chama-se de repristinação. Ocorre quando volta a ter vigência uma Lei revogada
em virtude da revogação da Lei que a revogou em um primeiro momento. Em outras
palavras, é o fenômeno jurídico pelo qual uma Lei volta a vigorar após a
revogação da Lei que a revogou.
Foram
revogados os decretos que instituíram luto oficial quando da morte de dom
Helder Câmara, arcebispo Emérito de Olinda e Recife, do ex-governador do Rio de
Janeiro Leonel Brizola, do sociólogo Darcy Ribeiro, do economista Celso
furtado, dentre outros.
Em de
julho de 1980, o Papa João Paulo II, o Papa que ajudou a derrubar a cortina de
ferro, visitava Pernambuco. Foi recebido no aeroporto por dom Hélder Câmara, a
quem deu um caloroso abraço. Dom Hélder Câmara tinha uma opção preferencial
pelos pobres e sua memória há de ser respeitada por todos os brasileiros.
Independentemente de qualquer posição política.
Pode-se
discordar da visão política de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro. Mas toda a
intelectualidade brasileira, de qualquer matiz ideológico, reconhece que ambos
foram brasileiros que se preocuparam com a Educação.
Brizola,
quando governador dos gaúchos, saiu construindo escolas por todo o estado.
Quando governador do Rio de Janeiro, implantou diversas escolas. Inclusive, de
forma pioneira, implantou escolas de tempo integral. Sempre teve ajuda de Darcy
Ribeiro em suas políticas educacionais, que além de sociólogo foi também um
grande educador. Juscelino Kubistchek já o havia designado para criar a UnB –
Universidade de Brasília, hoje uma das melhores do país.
Quem
cria escolas, quem se preocupa com a Educação, evita a abertura de presídios e
hospitais. O homem que tem educação é consciente de seus direitos e deveres e
cuida da sua saúde.
Em boa
hora o presidente anulou os atos em que revogava decretos de luto oficial
desses brasileiros. Há quem diga que repristinação não é possível em nosso
ordenamento jurídico. Somente se for expressa. É raro, mas acontece. O
presidente retirou esse malsinado e inconveniente “revogaço”. O “imbróglio” foi
uma medida desnecessária. Temos agora os decretos com nova vigência por efeito
repristinatório.
domingo, 6 de fevereiro de 2022
sábado, 5 de fevereiro de 2022
Maria Prestes (2/2/1930 – 4/2/2022)
sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022
O imaginário amazônico em três romances improváveis – 1/2
Zemaria
Pinto
Desde
que os primeiros europeus invadiram a selva amazônica, em 1541, vindos do Peru,
a literatura feita na Amazônia (e sobre ela) foi, durante mais de 300 anos,
tarefa de estrangeiros – é o que chamamos de “literatura dos viajantes”. Mas,
estes continuaram produzindo – continuam, aliás, o que é muito bom. Neste breve
artigo, quero chamar a atenção para obras de três autores notáveis, que elegeram
a Amazônia como cenário, sem nunca passarem por aqui, servindo-se unicamente do
imaginário, retroalimentando-o e contribuindo para a expansão do mesmo.
Para o
escritor viajante, a paisagem representa o primeiro choque com a realidade
amazônica, e, a partir desse choque, a paisagem assume o primeiro plano no
imaginário, se sobrepondo a todos os outros elementos. É desse uso exacerbado
da paisagem que nasce o clichê “edenismo x infernismo”: para alguns autores, é
o “paraíso perdido”; para outros, apenas um “inferno verde”.
A
paisagem é a selva. E a selva é um enigma. Como definir a selva para quem nunca
a viu? Podemos começar dando uma ideia de suas dimensões, usando a mesma
expressão que serviria para dar as dimensões do mar, do deserto ou do espaço:
imensidão. Mas isso seria uma incoerência, porque a selva, plantada a céu
aberto, é fechada. E se é fechada, é limitada. Por outro lado, é muito fácil de
entrar, mas é complicado sair de sua estrutura labiríntica. Sob o sol, seu
interior é escuro, sombrio. Mas, há de ter os sentidos aguçados para vê-la,
tocá-la, sentir o seu cheiro, o seu gosto – e, sobretudo, ouvi-la. Porque este
é o sentido mais exigido: o silêncio da floresta é algo entre uma
desconcertante reunião de instrumentos desafinados tocados ao mesmo tempo e a
suavidade quase silenciosa de uma peça de câmara.
A selva
se associa à água – dos rios, dos lagos, das corredeiras, das cachoeiras, da
pororoca, das enchentes, das vazantes, das chuvas intermináveis e das
tempestades devastadoras. Para o viajante, a água é caminho, a selva é
mistério. Nada mais natural, portanto, que o escritor estranho à região, e
distante dela, eleja a paisagem, item essencial do imaginário, como elemento de
maior destaque.
Não
fugiram à regra os três escritores estrangeiros, que, conhecendo a Amazônia só
a partir da literatura, aventuraram-se a escrever sobre a região, sem jamais
colocarem os pés (ou os olhos) na selva. Sua contribuição ao imaginário local é
próxima a zero, quando pensada sob a perspectiva da região. Mas, para quem os
lê a distância, sempre haverá algo a somar, pois o imaginário não exige
verossimilhança.
Uma
tragédia no Amazonas.
Raul Pompeia (1863-1895) é um dos mais notáveis romancistas da língua
portuguesa no século 19, assim considerado unicamente por O ateneu
(1888). Aos dezessete anos, publicou seu primeiro romance, Uma tragédia no
Amazonas. Não era pouca coisa: Capistrano de Abreu, o mais importante
crítico literário da época, escreveu, um ano depois do lançamento, que Pompeia
e Aluísio Azevedo – que lançara O mulato (1881), eram “os dois maiores
romancistas da nova geração”.[1]
O resto é história: Azevedo ficou com a glória de fundar o Naturalismo no
Brasil, caindo a obra de Pompeia no esquecimento. A partir de meados dos anos
1960, quando o texto caiu em domínio público, apareceram algumas edições, como
mera curiosidade em torno do autor de O ateneu. Em 2020, a Editora
Reggo, de Manaus, compreendendo o papel histórico do livro, preparou uma edição
primorosa, conservando, entre parêntesis, uma humilde confissão, que fizera
parte do título original: “ensaio literário”. Ensaio, claro, no sentido de
teste, experimento – pois essa era intenção do adolescente Pompeia.
Uma
tragédia no Amazonas[2]
conta cerca de dois anos da vida do subdelegado de polícia Eustáquio,
pernambucano, e sua esposa Branca, amazonense, em um sítio próximo à localidade
de São João do Príncipe, no rio Iapurá. Outras personagens agregam-se à trama,
como o padre Jorge, a órfã Rosalina, os franceses Henrique e Octavio, além de
um filho do casal, recém-nascido, ainda não batizado. Pela sua função policial,
Eustáquio atrai inimigos – representados por saqueadores espanhóis e escravos
fugidos –, que preparam uma vingança contra ele. Anísio Jobim, tratando dos
“descimentos” no século 18, refere-se a uma localidade chamada São João do
Príncipe, às margens do rio Japurá[3]
– uma evidência de que o autor servia-se de mapas reais para estruturar seu
enredo, construído meticulosamente: Pompeia vai aos poucos fornecendo, em flashbacks,
informações essenciais à trama, até que, no capítulo final – “A tragédia”
anunciada – todo o arcabouço narrativo encontra-se montado, permitindo os
encaixes das minúcias.
Usando
as técnicas legitimadas pelo folhetim, Pompeia mantém a tensão narrativa, de
modo a prender o interesse e a atenção do leitor, eventualmente até conversando
com este – expediente metalinguístico consagrado por Machado de Assis. As
descrições da natureza tangenciam a poesia, lembrando as póstumas Canções
sem metro (1900), poemas em prosa, de clara extração simbolista. Observe-se
este trecho, do capítulo “Quem persegue. Quem defende”, em que o impossível
silêncio é valorizado acima de qualquer outra percepção:
Por sobre os
píncaros arredondados das montanhas resvalavam massas de nevoeiro até se
deixarem cair lento a lento pelas quebradas. Por toda a parte reinava o
silêncio. (p. 119)
Do
capítulo “A volta”, um trecho em que o realismo da narrativa se deixa envolver
em um halo de irrealidade:
A lua, vermelha
como a lanterna sangrenta de algum gênio das trevas, avançava tristonha pelos
céus além. A atmosfera, tristemente nublada, mal coava uma frouxa claridade que
dava a tudo uma feição fantástica. (p. 88)
Era o
que o autor chamava de “poesia selvática”.
A par
da violência que permeia a narrativa, o naturalista Raul Pompeia defende teses
hoje consideradas racistas – como o de que o comportamento humano é uma herança
genética, racial. Como atenuante, diga-se que ele herda mais de 300 anos de
escravidão, promovida por uma elite branca e cristã, com laivos civilizatórios europeus.
(Conclui na próxima sexta-feira, 11/02)
[1]
Apud MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, vol.
IV (1877-1896). 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1979. p. 85-86.
[2]
POMPEIA, Raul. Uma tragédia no Amazonas (ensaio literário). Manaus:
Reggo, 2020.
[3]
JOBIM, Anísio. O Amazonas: sua história (ensaio antropogeográfico
e político). Col. Brasiliana, vol. 292. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1957. p. 52.