Amigos do Fingidor

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Manaus, amor e memória DLVI


Carnaval na Eduardo Ribeiro. Início do século passado.

 

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

A poesia é necessária?

                 O Livro da Agonia I

Hildeberto Barbosa Filho

 

 

Nada sei dos homens nem dos deuses,
seus truques, sonhos, armadilhas e destinos,

nem nada sei da vida, cardume que se reinventa.

Nem nada sei do que na guerra existe,

do que na morte existe, do que na cor existe.

Sei que os homens sofrem porque lembram.

Sei que a cada manhã o tempo passa,

repartindo os filhos, as estórias, as mulheres

e que à noite restará um verso sem luz.

Nada sei, nada sei, nada sei,

mas quero guardar a alegria de cantar o amor.

Nada, nada, nada como o amor que vem,

invadindo as cidades, as catedrais, os ermos,

em louvor do grão da vida.

O resto é silêncio, como disse Shakespeare

e morrer também não é remédio.

Os livros não dizem tudo,

nem os astros nem as crenças.

As lições de partir

ficam aquém das estações e dos cais.

Só além do mar e dos teus olhos

eu vejo a ilha dos amores,

seus arrecifes de espinhas, seu gosto de sono,

a ressaca, o nunca mais.

Nada sei que me diga do definitivo pouso,

se há o ponto de apoio que procurava Konoválov,

se é possível o dantesco paraíso no meio do caminho,

ou tudo é selva escura, solidão, inferno?

Nada sei que me diga das estrelas,

nem do amor que tu me tinhas, seus topázios,

seus cabelos de silêncio.

Sei que os homens sofrem porque lembram.

Sei que o amor, o amor, o amor só é possível

reinventado...

E nada sei dos homens nem dos deuses,

se há o verso maior, o poeta maior, o amor maior,

se nesses dias brancos algum dia eu serei feliz.

 


terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Amor amigo

Pedro Lucas Lindoso

 

Como todos sabem, o dia dos namorados no Brasil é celebrado no dia 12 de junho, véspera de Santo Antônio. Em muitos países ocidentais foi comemorado dia 14 de fevereiro, segunda-feira passada. É o Valentine’s Day, que vem se incorporando às nossas tradições por influência da Europa e dos Estados Unidos. Não é de hoje que importamos datas, festejos e tradições advindas da cultura europeia e americana.

Mas as redes sociais informavam que dia 14 foi também o dia do amigo. Dia da amizade. São Valentim teria sido um padre que desobedeceu às ordens do imperador. Resolver casar as pessoas em segredo. Não interessavam ao Império Romano os casamentos. Homens solteiros eram melhores para guerrear. A atitude de São Valentim foi de compaixão e, consequentemente, também de amizade para com os nubentes. Sim, a palavra compaixão está ligada a ternura, caridade, empatia, humanidade. E não é isso que se espera de um verdadeiro amigo?

Achei muito oportuno celebrar-se a amizade no mesmo dia em que se comemora o amor, os enamorados. Ter bons amigos é um privilégio. Roberto Carlos encontra forças para cantar, em seus amigos: “Eu quero ter um milhão de amigos e bem mais forte poder cantar”. Já Milton Nascimento aconselha com propriedade: “amigo é coisa pra se guardar, debaixo de sete chaves, dentro do coração”.

No Valentine’s Day comemora-se o amor não necessariamente romântico, como no nosso dia dos namorados. Diferente do Dia dos Namorados, em que o foco está nos casais, o Valentine’s Day é uma data para celebrar todos os tipos de amor, independente de relacionamento entre casal. Pode ser compartilhado entre pais, filhos, amigos. O importante é celebrar com quem você ama.

É muito importante a pessoa que é dona de seu coração ser sua amiga. As paixões devem ser precedidas de uma grande amizade. É importantíssimo que os amantes sejam amigos. Que gostem de estar juntos. Que possam compartilhar os mesmos interesses. E principalmente que gostem de conversar.

Dr. Chaguinhas, que é um sábio, me disse que quando jovem deixou muitas namoradas magoadas com ele. Até que se apaixonou por uma grande amiga. Casou-se com ela e diz para todo mundo: “É minha esposa, mãe dos meus filhos, minha eterna namorada. Mas antes de tudo é minha melhor amiga.”

Que são Valentim, Santo Antônio e toda a milícia celeste abençoe os enamorados. E que sejam, antes de tudo, amigos. Porque amizade é uma relação de afeto, de carinho, de estima e de dedicação entre duas pessoas. E, principalmente, de respeito. Para os enamorados que não comemoram São Valentim, é só aguardar 12 de junho. Dia de Santo Antônio. E viva o amor amigo!

 

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Oficina de Escrita Coletiva


Turma da Manhã.

Turma da tarde.

 

Sábado rodamos mais uma oficina do Projeto MURAL – Jornalzine do Monte, contemplado no edital Manaus Faz Cultura, promovido pelo @conculturamao, por meio da @manauscult, com apoio da @prefeiturademanaus. Com a presença do escritor e membro da @academiadeletras.am Zemaria Pinto, que compartilhou um pouco do seu vasto conhecimento com a molecada aqui da minha quebrada, e o que posso afirmar é o seguinte, estamos com uma turminha com a palavra afiada, atenta aos problemas da comunidade, e disposta a aprender. O Monte das Oliveiras nunca mais será o mesmo, podem anotar isso. 

(Rojefferson Moraes)

Rojefferson Moraes e Zemaria Pinto.

Agradecer ao apoio do poeta Zemaria Pinto que durante os últimos anos tem me acompanhado em inúmeras maluquices literárias e culturais, por também ser um representante da luta nossa de cada dia, e por compreender que a literatura tem uma função social importantíssima, e que arte não se faz apenas nas universidades, nas academias, no Centro da cidade. Mais do que nunca o conhecimento acadêmico precisa furar a bolha da boçalidade no intuito de alcançar as pessoas periféricas. Gratidão!

(Rojefferson Moraes)


A Oficina de Escrita Criativa faz parte de um projeto do Coletivo Soul do Monte, visando a produção de um Jornalzine, no bairro do Monte das Oliveiras, na Zona Norte de Manaus.


domingo, 20 de fevereiro de 2022

Manaus, amor e memória DLV


Bairro dos Educandos, visto do rio Negro.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Os cem anos da SAM 3


Esta foto histórica é sempre identificada como “os fundadores do Modernismo”.
Não. Foi um almoço-homenagem dos escritores ao verdadeiro fundador do Modernismo,
o cara mais destacado na foto.
Não me refiro ao palhaço sentado no chão (quanta ousadia!),
mas ao senhor ao centro, de bigodes: Paulo Prado, que, inclusive, pagou a conta.
O bigode ao lado é de Graça Aranha, especialista em política literária.
Ah, se você só reconhece os Andrade e o Bandeira, não se preocupe:
os demais não têm nenhuma importância na história confusa da literatura brasileira.

 

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Escrita Criativa



 

A poesia é necessária?

Eu sou trezentos...

Mário de Andrade (1893-1945)

 

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,

As sensações renascem de si mesmas sem repouso,

Ôh espelhos, ôh! Pireneus! ôh caiçaras!

Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

 

Abraço no meu leito as melhores palavras,

E os suspiros que dou são violinos alheios;

Eu piso a terra como quem descobre a furto

Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

 

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,

Mas um dia afinal toparei comigo...

Tenhamos paciência, andorinhas curtas,

Só o esquecimento é que condensa,

E então minha alma servirá de abrigo. 



quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Os cem anos da SAM 2

 

Paulo da Silva Prado (1869-1943), empresário e bon vivant,
financiou a SAM, além de exposições, edições de livros e até viagens
dos antiburgueses modernistas.
Retrato (acadêmico) de Ruth Prado Guimarães. 

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

O CANTO DO POETA – a vida e a obra de Alencar e Silva



 

Beiradão, beirada, beira de rio

 Pedro Lucas Lindoso

 

Recebo e-mail do meu amigo e irmão Dr. Antônio Loureiro, nos lembrando que os meninos e meninas de nosso tempo ouviram muitas vezes, como cantiga de ninar:

“Murucututu da beira do rio. / Murucututu da beira do rio. /Quando sapo canta, ô maninha / É porque tem frio.” Ou ainda: “Murucututu de cima do telhado. / Murucututu de cima do telhado. / Vem pegar este menino, / Que ainda está acordado.” Esta versão, possivelmente mais urbana e diversificada,  é de fazer qualquer curumim  morrer de medo e pegar logo no sono.

De acordo com Dr. Loureiro, as crianças do alto Rio Negro ainda ouvem e cantam assim. Não é mágico?

Murucututu é o nome de uma coruja bem pequena. Para alguns ela traz sorte.  Reza  a lenda, de  origem indígena, que Murucututu seria a mãe do sono. Seu papel é fazer adormecer as crianças que demoram a dormir. A lenda diz ainda que Murucututu “empresta” o sono para as crianças.

Muito conhecida também é a música da Cuca: “Nana neném que a Cuca vem pegar / Papai foi para roça / Mamãe foi trabalhar.” Mas não é tão amazônica como a nossa Murucututu. É mais do Sul/Sudeste. Mesmo porque temos poucas “roças” por aqui. Planta-se nas várzeas e igapós.

Ah! Sim! Temos a beira do rio. A beirada, os beiradões. Um dos clássicos de nossa literatura amazonense é o livro Beiradão, de Álvaro Maia, poeta e escritor. Álvaro Maia foi governador e senador por nosso Amazonas. Nessa obra, relata fatos e personagens das beiradas do Rio Madeira, onde nasceu. O beiradão, a beirada, a beira do rio é onde habitam as murucututus.

O beiradão é tão marcante, tão importante, que virou gênero musical. Virou um ritmo típico das beiradas, das beiras dos rios. O beiradão é expressão cultural diversificada. Envolve também dança e festas às margens dos rios. Onde moram as murucututus, claro.

Ah! Mas as coisas mudam! Há uma nova versão para a música do murucututu. Substituíram o mucucututu pelo Sapo Cururu. Que também mora na beira do rio e tem até mulher.

“Sapo cururu da beira do rio / Quando o sapo canta, ô maninha / É porque faz frio. / A mulher do sapo / Deve estar lá dentro, / Fazendo rendinha, ô maninha, / Para o casamento.”

Não é só isso. Agora chamam os beiradões, as beiradas, a beira do rio de orla! Eu até concordo que o sapo cururu possa morar na beira do rio, como a murucututu. Agora, chamar beira de rio de orla!... É muita pavulagem!



segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Os cem anos da SAM 1

 

Anita Malfatti (1889-1964) e sua obra A Boba (1917):
a fundação do Modernismo 5 anos antes.
Ousadia e lirismo.

domingo, 13 de fevereiro de 2022

Manaus, amor e memória DLIV


Cidade Flutuante, em 1962.

 

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

O imaginário amazônico em três romances improváveis – 2/2

 Zemaria Pinto

 

A jangada – 800 léguas pelo Amazonas. O francês Julio Verne (1828-1905) é um dos mais notáveis autores de ficção do século 19. Tudo que se diga dele hoje será apenas o eco do que já foi dito antes – em algum tempo, em algum lugar. A jangada[1] foi publicado em 1881, descrevendo a jornada de uma família de Iquitos, no Peru, até a cidade de “Santa Maria de Belém do Pará”, em uma jangada de dimensões amazônicas, durante quatro meses e meio. Mas a parte mais rocambolesca da trama se passa em Manaus, “capital da província das Amazonas”.

Para dar verossimilhança à extraordinária aventura, Verne pontua a narrativa com enfadonhas informações enciclopédicas, como “a cidade de Manaus se situa a exatamente 3°8’4” de latitude austral e 67°27’ de longitude a oeste do meridiano de Paris” (p. 187). A referência a Paris, em vez de Greenwich, tem finalidade óbvia: Paris era o umbigo do mundo. Qualquer cidadão que entendesse de latitudes e longitudes faria ideia de quão longe a inóspita e selvagem Manaus estava da civilizada capital francesa. Por justiça ao autor, entretanto, é preciso dizer que a padronização com o meridiano britânico só ocorreria três anos após a publicação do livro.

Mas, o entrecho literário de A jangada, situado em 1852, faz jus ao melhor de Julio Verne. João Garral, um brasileiro bem sucedido no Peru, resolve empreender uma viagem pelo rio Amazonas, até Belém, onde sua filha se casaria com um jovem médico. Seria uma viagem de quase-despedida, uma vez que, retornando ao sítio de origem, não saberiam quando a família voltaria a se reunir. Sucede que Garral tem um segredo em seu passado, o que é confrontado por Torres, um capitão do mato, caçador de escravos, que atravessa o caminho da família, disposto a destruir a felicidade conquistada com duro trabalho e muita renúncia.

Nestes tempos de obscurantismos cancelatórios nas artes e na cultura, é bem provável que algum grupelho condene o livro de Verne ao “index librorum proibithorum” das redes socialites. Para construir a monumental jangada – “como se uma parte da fazenda de Iquitos se desprendesse das margens e descesse o Amazonas” (p. 53) – é dedicado um capítulo inteiro, onde se declara no título uma incontida alegria: “Uma floresta inteira devastada”. E conclui, com um cinismo involuntário:

 

João Garral nem precisava se preocupar com a recuperação de uma floresta que vinte ou trinta anos bastariam para reerguer. (p. 56)

 

A lógica de Verne era de uma simplicidade atroz:

 

É a lei do progresso. Os índios estão fadados ao desaparecimento, Com a chegada da raça anglo-saxã, aborígenes australianos e tasmanianos se extinguiram. Depois dos conquistadores do Velho Oeste, os índios da América do Norte sumiram. É possível que no futuro os árabes sejam aniquilados pela colonização francesa. (p. 50)

 

Diante do genocídio inevitável, esta última frase guarda até um certo orgulho colonizador...

Essa jangada faz parte do meu imaginário pessoal: um bairro inteiro chamado Cidade Flutuante, que eu conheci criança e desapareceu nos meus dez anos. Não à toa, a lembrança que me resta está envolta em uma bruma que dá à paisagem um tom de cinza, como um filme expressionista. Era uma imensidão, que tomava centenas de metros da frente de Manaus. Dentro d’água. Uma jangada ancorada à cidade, com ruas, becos e quintais, gente e bicho de todo tipo, e toda a infraestrutura básica de uma aglomeração urbana – de igrejas a prostíbulos, mas sem escolas, postos de saúde ou o mínimo resquício de saneamento. A Cidade Flutuante foi destruída com violência por rapazes vestidos de verde ou azul, em nome de uma limpeza que dispensava adjetivos, e seus moradores, expulsos para as muitas favelas criadas pela Zona Franca de Manaus. Menines, eu vi!

 

O mundo perdido. O escocês Arthur Conan Doyle (1859-1930) também brincou de Amazonas. E, na cola de Verne, que encontrou dinossauros em sua Viagem ao centro da terra (1864), Doyle fez de O mundo perdido[2] (1912) uma franquia que espalha dinossauros por diversas partes do mundo, há cento e dez anos. A trama tangencia o singelo: uma expedição britânica vem à Amazônia conhecer um local que, inexplicavelmente, preserva elementos da pré-história, uma alegoria que excede a qualquer classificação, especialmente quanto à tribo de homens-macacos. Elementar, meus caros.


Brincadeiras à parte, a verdade é que Conan Doyle era um excepcional criador de tramas e de personagens. Malone e Challenger são antagonistas apenas na aparência. Na prática eles se complementam: Malone, o narrador, encontra em Challenger o parceiro perfeito para viver a grande aventura de sua vida. Eu só me pergunto por que Conan Doyle escolheu a Amazônia, se sua história poderia ser situada em qualquer lugar inóspito do planeta.

Depois de passar por Belém e Manaus, a pequena expedição londrina cresce com a entrada em cena de trabalhadores nativos. Eles navegam ainda por seis dias em um barco a vapor, até chegarem a uma aldeia indígena onde desembarcam e o “Esmeralda” retorna a Manaus. Challenger, o único que sabia as coordenadas exatas do vale dos dinossauros – pois estivera lá antes e fora desacreditado, por não ter provas –, exigira sigilo absoluto.

 

É por essa razão que sou compelido a ser vago em minha narrativa e gostaria de advertir aos meus leitores de que qualquer mapa ou diagrama, em que eu possa dar a relação dos lugares de um para o outro, pode estar correto, mas os pontos da bússola estarão cuidadosamente confundidos, de modo que não possam ser tomados como guia real da região. (p. 81-82)

 

Aliás, essa solitária viagem anterior é a conexão de Challenger com o mundo real: “o objetivo da minha jornada foi verificar algumas conclusões de Wallace e Bates” (p. 35). Trata-se de uma referência aos teóricos evolucionistas Alfred Russel Wallace e Henry Walter Bates, que trabalharam juntos na Amazônia, de 1848 a 1852.  

A criatividade narrativa começa com a forma dos capítulos, escritos pelo jornalista Malone como cartas mal disfarçadas, a serem publicadas pelo jornal patrocinador de sua participação na aventura, que segue num crescendo, onde além de dinossauros e outros animais pré-históricos, são coadjuvantes plantas exóticas, índios selvagens e até uma tribo de homens-macacos – um estágio anterior da espécie humana, que comprovaria a tese evolucionista de Darwin.

Não foi apenas Michael Crichton que se encantou com O mundo perdido. O amazonense Márcio Souza escreveu O fim do terceiro mundo, um exercício metalinguístico, onde Virginia Challenger, neta do insigne pesquisador, descobre, em Manaus, em pleno século 20, incríveis fósseis capitalistas...    

 

Este trabalho se encerraria com comentários ligeiros sobre A árvore que chora (1944), de Vicki Baum (1888-1960). Infelizmente, não encontrei o livro, que, pelo que apurei, teve apenas uma edição em português, da editora Globo, em 1946. Isto a despeito da popularidade da autora, austríaca de nascimento, romancista e roteirista consagrada em Hollywood: seu romance Grande Hotel (1929), com roteiro de sua própria autoria, ganhou o Oscar de melhor filme, em 1932. Seu livro foi analisado pela professora Neide Gondim:

 

A árvore que chora fala da metamorfose do homem em mercadoria enquanto vendedor de sua força de trabalho a alguma coisa que sente na pele mas não vê; é subjetiva e se objetiva em seu próprio descrédito enquanto homem; sente a força vampiresca e poderosa que lhe extrai do corpo a alma e o sangue, num constante movimento autofágico.[3]

 

O “ouro negro” – referência à cor das pelas de borracha, após um processo químico – foi protagonista de um dos mais selvagens ciclos econômicos promovidos pela sanha capitalista, desde que La Condamine o descreveu em meados do século 18. Tenório Telles e Antônio Paulo Graça, que comparam os seringueiros de Baum aos mineiros de carvão do Germinal, de Zola, não têm dúvidas sobre a gênese da obra.

 

O centro do romance, em torno do qual gira a dinâmica das ações das personagens e dos interesses econômicos em disputa, é a borracha e o sistema de produção arquitetado para viabilizar a sua exploração mercantil. O fluxo da narrativa se desenrola em paralelo com o processo de exploração do látex, seu comércio e novas formas de produção e usos.[4]

 

Parece-me que – assim como para Pompeia, Verne e Doyle – não haver conhecido a Amazônia de perto não fez falta à criatividade da Sra. Baum. Não se pode dizer o mesmo, entretanto, de uma personagem que passou alguns anos enfronhada em um seringal, retornando de lá com um romance que o tempo vai aos poucos apagando. Refiro-me a A selva (1930), do português Ferreira de Castro, um romance frouxo, falsamente realista, assentado em bases fora da realidade da época, cujo maior mérito foi o de ecoar a denúncia de Euclides da Cunha, da exploração dos seringueiros, fora de qualquer padrão de humanidade – com mais de 20 anos de atraso.[5]

 

Uma tragédia no Amazonas, A jangada e O mundo perdido passam por literatura de entretenimento. E o são, pois esta é uma das funções da literatura: divertir. Mas, não teriam perdurado no tempo se não tivessem uma outra qualidade: a de fazer pensar. Seja na violência de que é vítima a família de Eustáquio; seja na injustiça de que é vítima o patriarca da família Garral; seja na tenacidade de Challenger, que acredita, às raias do egoísmo, sobretudo em si mesmo. O imaginário amazônico foi o pano de fundo – entre inverossímil e absurdo – para essas tramas. Para nós, amazônidas, o imaginário em nada mudou a partir dessas tramas – mas elas, sem dúvida, cresceram muito com ele.

 



[1] VERNE, Júlio. A jangada – 800 léguas pelo Amazonas. Tradução: Elisa Rodrigues e Julia Fervenza. Porto Alegre: L&PM, 2020.

[2] DOYLE, Arthur Conan. O mundo perdido. Tradução: Silvio Antunha. Jandira: Ciranda Cultural, 2019.

[3] GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994. p. 250.

[4] TELLES, Tenório; GRAÇA, Antônio Paulo. Estudos de literatura do Amazonas. Manaus: Valer, 2021. p. 174.

[5] Para mais informações, consultar PINTO, Zemaria. A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade. Manaus: Valer, 2021.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

A poesia é necessária?

 

5ª Sinfonia de Beethoven

Solano Trindade (1908-1974)

 

5ª Sinfonia de Beethoven

Os dois tímbalos

parecem o mundo

partido ao meio

 

Eu gosto da barbaria dos tímbalos

como de todas as melodias

como de todos os sons

como de todas as cores

como todas as formas

Detesto limitações

eu gosto da barbaria dos tímbalos

 

5ª Sinfonia de Beethoven

Estou sofrendo

como as mulheres de parto

Eu gosto da barbaria dos tímbalos

Chove lá fora

e Garcia Lorca passeia na chuva

 

Barbusse está cheio de amor pela vida

e Beethoven escuta a própria Sinfonia

Não sei onde está o fim

nem o princípio das cousas

sei que gosto da barbaria dos tímbalos

 

Eu sou como a semente

que espera a terra

Eu serei plantado

e meus irmãos repousarão sobre mim

quando eu for uma árvore frondosa

Minha amada está despida para me receber

Seu corpo é como a 5ª Sinfonia

Seus olhos são como a 5ª Sinfonia

Seus seios

são como a 5ª Sinfonia

A minha amada é universal.

 

Oh! se eu pudesse pintar a 5ª Sinfonia

Chove lá fora

Van Gogh passa em passos largos

Gauguin está pintando as mulheres das ruas

e eu estou perdido

dentro de mim mesmo

porque não sei pintar

a 5ª Sinfonia de Beethoven

 

Onde estão os bárbaros?

Onde estão os civilizados?

Onde está o amor?

Onde está o ódio?

Estão na 5ª Sinfonia

As crianças marcham à minha frente

cantando uma canção de esperança

 

Ouçam todos os que me entendem

eu amo a 5ª Sinfonia de Beethoven

e não quero limites para viver.


terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Repristinação

 Pedro Lucas Lindoso

    

Em geral tenho evitado falar de política nas minhas crônicas. O país já está muito dividido. Todavia, me chamou atenção o fato de a Presidência da República rever sua posição e revogar os decretos que revogavam decretos de luto oficial editados por governos antecessores.

Isso é muito raro no mundo Jurídico. Mas pode acontecer e o instituto tem nome. Chama-se de repristinação. Ocorre quando volta a ter vigência uma Lei revogada em virtude da revogação da Lei que a revogou em um primeiro momento. Em outras palavras, é o fenômeno jurídico pelo qual uma Lei volta a vigorar após a revogação da Lei que a revogou.

Foram revogados os decretos que instituíram luto oficial quando da morte de dom Helder Câmara, arcebispo Emérito de Olinda e Recife, do ex-governador do Rio de Janeiro Leonel Brizola, do sociólogo Darcy Ribeiro, do economista Celso furtado, dentre outros.

Em de julho de 1980, o Papa João Paulo II, o Papa que ajudou a derrubar a cortina de ferro, visitava Pernambuco. Foi recebido no aeroporto por dom Hélder Câmara, a quem deu um caloroso abraço. Dom Hélder Câmara tinha uma opção preferencial pelos pobres e sua memória há de ser respeitada por todos os brasileiros. Independentemente de qualquer posição política.

Pode-se discordar da visão política de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro. Mas toda a intelectualidade brasileira, de qualquer matiz ideológico, reconhece que ambos foram brasileiros que se preocuparam com a Educação.

Brizola, quando governador dos gaúchos, saiu construindo escolas por todo o estado. Quando governador do Rio de Janeiro, implantou diversas escolas. Inclusive, de forma pioneira, implantou escolas de tempo integral. Sempre teve ajuda de Darcy Ribeiro em suas políticas educacionais, que além de sociólogo foi também um grande educador. Juscelino Kubistchek já o havia designado para criar a UnB – Universidade de Brasília, hoje uma das melhores do país.

Quem cria escolas, quem se preocupa com a Educação, evita a abertura de presídios e hospitais. O homem que tem educação é consciente de seus direitos e deveres e cuida da sua saúde.

Em boa hora o presidente anulou os atos em que revogava decretos de luto oficial desses brasileiros. Há quem diga que repristinação não é possível em nosso ordenamento jurídico. Somente se for expressa. É raro, mas acontece. O presidente retirou esse malsinado e inconveniente “revogaço”. O “imbróglio” foi uma medida desnecessária. Temos agora os decretos com nova vigência por efeito repristinatório.

 

domingo, 6 de fevereiro de 2022

sábado, 5 de fevereiro de 2022

Maria Prestes (2/2/1930 – 4/2/2022)

 

Maria era o codinome de Altamira, mulher de Luiz Carlos Prestes, o maior revolucionário brasileiro. Ela, um nome de relevância na luta contra a reação. 



sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

O imaginário amazônico em três romances improváveis – 1/2

Zemaria Pinto

 

Desde que os primeiros europeus invadiram a selva amazônica, em 1541, vindos do Peru, a literatura feita na Amazônia (e sobre ela) foi, durante mais de 300 anos, tarefa de estrangeiros – é o que chamamos de “literatura dos viajantes”. Mas, estes continuaram produzindo – continuam, aliás, o que é muito bom. Neste breve artigo, quero chamar a atenção para obras de três autores notáveis, que elegeram a Amazônia como cenário, sem nunca passarem por aqui, servindo-se unicamente do imaginário, retroalimentando-o e contribuindo para a expansão do mesmo.

Para o escritor viajante, a paisagem representa o primeiro choque com a realidade amazônica, e, a partir desse choque, a paisagem assume o primeiro plano no imaginário, se sobrepondo a todos os outros elementos. É desse uso exacerbado da paisagem que nasce o clichê “edenismo x infernismo”: para alguns autores, é o “paraíso perdido”; para outros, apenas um “inferno verde”.

A paisagem é a selva. E a selva é um enigma. Como definir a selva para quem nunca a viu? Podemos começar dando uma ideia de suas dimensões, usando a mesma expressão que serviria para dar as dimensões do mar, do deserto ou do espaço: imensidão. Mas isso seria uma incoerência, porque a selva, plantada a céu aberto, é fechada. E se é fechada, é limitada. Por outro lado, é muito fácil de entrar, mas é complicado sair de sua estrutura labiríntica. Sob o sol, seu interior é escuro, sombrio. Mas, há de ter os sentidos aguçados para vê-la, tocá-la, sentir o seu cheiro, o seu gosto – e, sobretudo, ouvi-la. Porque este é o sentido mais exigido: o silêncio da floresta é algo entre uma desconcertante reunião de instrumentos desafinados tocados ao mesmo tempo e a suavidade quase silenciosa de uma peça de câmara.   

A selva se associa à água – dos rios, dos lagos, das corredeiras, das cachoeiras, da pororoca, das enchentes, das vazantes, das chuvas intermináveis e das tempestades devastadoras. Para o viajante, a água é caminho, a selva é mistério. Nada mais natural, portanto, que o escritor estranho à região, e distante dela, eleja a paisagem, item essencial do imaginário, como elemento de maior destaque.

Não fugiram à regra os três escritores estrangeiros, que, conhecendo a Amazônia só a partir da literatura, aventuraram-se a escrever sobre a região, sem jamais colocarem os pés (ou os olhos) na selva. Sua contribuição ao imaginário local é próxima a zero, quando pensada sob a perspectiva da região. Mas, para quem os lê a distância, sempre haverá algo a somar, pois o imaginário não exige verossimilhança.

 

Uma tragédia no Amazonas. Raul Pompeia (1863-1895) é um dos mais notáveis romancistas da língua portuguesa no século 19, assim considerado unicamente por O ateneu (1888). Aos dezessete anos, publicou seu primeiro romance, Uma tragédia no Amazonas. Não era pouca coisa: Capistrano de Abreu, o mais importante crítico literário da época, escreveu, um ano depois do lançamento, que Pompeia e Aluísio Azevedo – que lançara O mulato (1881), eram “os dois maiores romancistas da nova geração”.[1] O resto é história: Azevedo ficou com a glória de fundar o Naturalismo no Brasil, caindo a obra de Pompeia no esquecimento. A partir de meados dos anos 1960, quando o texto caiu em domínio público, apareceram algumas edições, como mera curiosidade em torno do autor de O ateneu. Em 2020, a Editora Reggo, de Manaus, compreendendo o papel histórico do livro, preparou uma edição primorosa, conservando, entre parêntesis, uma humilde confissão, que fizera parte do título original: “ensaio literário”. Ensaio, claro, no sentido de teste, experimento – pois essa era intenção do adolescente Pompeia.



    Uma tragédia no Amazonas[2] conta cerca de dois anos da vida do subdelegado de polícia Eustáquio, pernambucano, e sua esposa Branca, amazonense, em um sítio próximo à localidade de São João do Príncipe, no rio Iapurá. Outras personagens agregam-se à trama, como o padre Jorge, a órfã Rosalina, os franceses Henrique e Octavio, além de um filho do casal, recém-nascido, ainda não batizado. Pela sua função policial, Eustáquio atrai inimigos – representados por saqueadores espanhóis e escravos fugidos –, que preparam uma vingança contra ele. Anísio Jobim, tratando dos “descimentos” no século 18, refere-se a uma localidade chamada São João do Príncipe, às margens do rio Japurá[3] – uma evidência de que o autor servia-se de mapas reais para estruturar seu enredo, construído meticulosamente: Pompeia vai aos poucos fornecendo, em flashbacks, informações essenciais à trama, até que, no capítulo final – “A tragédia” anunciada – todo o arcabouço narrativo encontra-se montado, permitindo os encaixes das minúcias.

Usando as técnicas legitimadas pelo folhetim, Pompeia mantém a tensão narrativa, de modo a prender o interesse e a atenção do leitor, eventualmente até conversando com este – expediente metalinguístico consagrado por Machado de Assis. As descrições da natureza tangenciam a poesia, lembrando as póstumas Canções sem metro (1900), poemas em prosa, de clara extração simbolista. Observe-se este trecho, do capítulo “Quem persegue. Quem defende”, em que o impossível silêncio é valorizado acima de qualquer outra percepção:

 

Por sobre os píncaros arredondados das montanhas resvalavam massas de nevoeiro até se deixarem cair lento a lento pelas quebradas. Por toda a parte reinava o silêncio. (p. 119)

 

Do capítulo “A volta”, um trecho em que o realismo da narrativa se deixa envolver em um halo de irrealidade:

 

A lua, vermelha como a lanterna sangrenta de algum gênio das trevas, avançava tristonha pelos céus além. A atmosfera, tristemente nublada, mal coava uma frouxa claridade que dava a tudo uma feição fantástica. (p. 88)

 

Era o que o autor chamava de “poesia selvática”.

A par da violência que permeia a narrativa, o naturalista Raul Pompeia defende teses hoje consideradas racistas – como o de que o comportamento humano é uma herança genética, racial. Como atenuante, diga-se que ele herda mais de 300 anos de escravidão, promovida por uma elite branca e cristã, com laivos civilizatórios europeus.

(Conclui na próxima sexta-feira, 11/02)



[1] Apud MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, vol. IV (1877-1896). 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1979. p. 85-86.

[2] POMPEIA, Raul. Uma tragédia no Amazonas (ensaio literário). Manaus: Reggo, 2020.

[3] JOBIM, Anísio. O Amazonas: sua história (ensaio antropogeográfico e político). Col. Brasiliana, vol. 292. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957. p. 52.