João Bosco Botelho
Com a
ajuda da minha prática profissional acumulada durante quarenta anos, hoje,
ainda mais consciente da imensa falibilidade da medicina, é possível refletir
que as atitudes moduladoras nas crenças das curas, tanto as do médico quanto as
do doente, em algumas situações, comportam componentes além dos muros da
universidade, infelizmente, ainda sem explicações razoáveis.
É
possível teorizar alguns elos que ligam as expressões coletivas e pessoais de
cura com o social, tanto na ciência quanto no espaço sagrado. Com esse
pressuposto, é válido o argumento de existirem estruturas moleculares, no
genoma, suficientemente coerentes com os mecanismos da sobrevivência, inatos e
adquiridos, provenientes da filogenia e da ontogenia, capazes de sustentar a fé
na cura, desde tempos imemoriais, com harmonia suficiente para moldar a ordem
social. Nesse complexo conjunto entrelaçado nas culturas-linguagens se destacam
os curadores de todos os matizes.
Os
homens e mulheres, portadores do dom de curar, ambos rejeitando a morte e
empurrando os limites da vida, tem acompanhado todas as sociedades, desde a
pré-história, ricos e pobres, numa dimensão e repetição que não podem ser
atribuídas somente ao ordenamento social.
O
interesse em estabelecer um sistema teórico, capaz de buscar explicações de
sustentabilidade das crenças nos limites da cura, amadureceu em etapas e como
fruto das indagações nascidas nas atividades profissionais como médico e
professor. Em três diferentes momentos presenciamos práticas de curas fora dos
muros universitários, envolvendo pessoas e lugares absolutamente diversos entre
si, assumiram papéis decisivos no processo:
1. Nas
enfermarias do Hospital Getúlio Vargas, em Manaus, durante trinta anos
assistimos à angústia de incontáveis doentes que suplicaram a cura aos santos
das suas devoções e os rituais das dádivas depositadas no altar da capela, como
agradecimentos pela saúde recuperada;
2.
Entre 1979 e 1981, durante o Doutoramento, na Universidade de Paris VI. O
doente emagrecido, com a pele apergaminhada sobre os ossos, inerte no leito,
sussurrando os suspiros da longa agonia, resistente a todos os tipos de
analgésicos, olhava esbugalhado na direção do rezador. O homem bem vestido
segurou a mão seca do enfermo e o confortou com palavras de generosa bondade. Ao
final da reza, colocou as suas mãos sobre a cabeça do canceroso e iniciou um
murmúrio incompreensível. Minutos após o início do rito, o doente calou-se e
dormiu profundamente. Os familiares presentes choravam, ao afirmarem ter sido a
primeira vez, em várias semanas, que o moribundo conseguia descansar sem a
injeção de morfina na veia. É claro que, naquele momento, o juízo crítico das
pessoas presentes discernia que não se tratava, absolutamente, de qualquer tipo
de cura do câncer. O cerne da questão era o profundo elo de confiança ligando o
rezador e o doente, capaz de provocar a resposta objetiva frente à dor.
3.
Entre os anos de 1985 a 1986, no projeto EDEN, financiado pela Universidade do
Amazonas, com o objetivo de estudar, comparativamente, os dados sociais e
nosológicos do Município de Coari, e os do bairro Novo Paraíso, na periferia
urbana de Manaus. Durante o desenvolvimento dos trabalhos de campo, comprovamos
que a maior parte da medicina praticada no Hospital Universitário estava muito
distante da compreensão de saúde e doença das três mil pessoas entrevistadas.
Na cabeceira do rio Copeá, nós vimos os leprosos, com as faces desfiguradas,
portando a imagem de São Lázaro, pedirem a bênção do padre para curar as
chagas. Também admiramos a idosa curadora desenhar, com a borda do polegar
direito, repetidas vezes, a cruz na testa da criança sonolenta e desidratada
pela violenta diarreia nos braços da mãe aflita, enquanto rezava algo
ininteligível para tratar a espinhela caída.
Nas
três circunstâncias, nos parece estarem claros os profundos elos de confiança
entre os curadores e os doentes, formando um conjunto coerente de ações e
respostas, em nada diferente dos descritos nas tradições da história da
medicina.