Ciruelo Cabral. |
sábado, 28 de fevereiro de 2015
sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015
quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015
Miniconto, microconto, nanoconto, contos são? 5/7
Zemaria Pinto
5.
MICROCONTO
Neste ponto, volto a me
perguntar qual a diferença entre mini e microconto e, sinceramente, não
encontro resposta. Num paralelo com o cinema, as denominações curta, média e
longa-metragem são definidas pela duração do filme: até 15 minutos; acima de 15
até 70 minutos e acima de 70 minutos. Nos Estados Unidos, não existe o conceito
de média-metragem: até 40 minutos é curta; acima, é longa-metragem. Vou me
permitir usar um texto meu, “Maria”, para ilustrar o que quero demonstrar.
Maria era pequena
de estatura e grande de lábios. Os lábios de Maria eram maiores que seu corpo.
Quando andávamos de mãos dadas pelo centro da velha cidade, era como se tivesse
em minhas mãos aquela boca, que me atormentava as madrugadas. Mas eu era apenas
um brinquedo de Maria, o seu menino, a sua inocente companhia nas missões
interestelares nos arredores da Matriz. Um dia, encontrei Maria feita mulher, o
corpo pequenino cheio de sutis reentrâncias – e a boca. Pedi-lhe um beijo. Ela
negaceou com graça, girando em semicírculo sobre o eixo de suas pernas curtas e
grossas. Naquela noite sonhei-me sendo devorado por Maria. Não, pela boca de
Maria. A boca mais linda que eu jamais beijei.
(Lábios
que beijei 14)
A
narrativa está centrada em uma recordação – Maria – que puxa outras lembranças
episódicas, com traços entre expressionistas e surrealistas, mas com uma
conclusão carregada de melancolia e saudosismo, sem punch. É um conto, sem dúvida, e se quisermos adotar uma categoria
intermédia, seria um microconto – não pela sua extensão, mas, pela sua
concisão, pelo seu jogo de elipses.
E se eu pensar no Kafka
de “Diante da lei”, com suas duas pagininhas? É um conto, com princípio, meio e
fim – estrutura clássica. Conclusão: não há lugar para o miniconto – a menos
que adotemos o critério da extensão, número de linhas etc., o que está fora de
cogitação.
Definamos o microconto: narrativa
densa, concisa, elíptica, mas com uma conclusão convencional, não impactante.
Para ler outros microcontos de Lábios que beijei, clique aqui.
Marcadores:
Contos são?,
Ensaios,
Franz Kafka,
Microcontos,
Nanocontos,
Zemaria Pinto
Corporações na Idade Média: melhoria do atendimento médico
João Bosco Botelho
Desde a
baixa Idade Média, existiam organizações dedicadas à guarda e proteção dos
interesses de grupo de trabalhadores especializados.
Em
Valenciennes, que floresceu entre 1050-1070, a característica era predominantemente
laica, enquanto que a de Saint-Omer, ativa entre 1072-1080, era de natureza
eclesiástica. Algumas delas já apresentavam estrutura administrativa: o órgão
de decisão (capitulum), o líder (decani) e a sede (Guildhus).
As
corporações, confrarias e irmandades ofereciam um novo tipo de proteção aos
membros, sob a presença dos santos mais importantes ou ligados à tradição
religiosa da região. A próspera corporação de lanifício de Florença, com cerca
de vinte mil operários e duzentas oficinas, pode representar muito bem esse
interesse eclesiástico: a sede dessa rica corporação, o Palácio da Lã, se
ligava por meio de uma ponte com a Igreja Orsanmichele.
A inserção
das corporações, confrarias e irmandades surgiram fortalecidas em regras
protecionistas de solidariedade mútua econômica e social articulada à hierarquia
religiosa e laica. A Igreja se manteve muito próxima dessa nova construção social
e estimulou novas alianças; especialmente, com a Confraria dos Cirurgiões, já que
o êxito do projeto de melhorar a assistência médica dependia dos
cirurgiões-barbeiros.
É importante
relembrar que o aparecimento desse personagem complexo, o cirurgião-barbeiro,
ocorreu como consequência da resposta social à interdição intolerante da Igreja
à dissecção do corpo morto, obrigando o fim do estudo da anatomia e o fechamento
das escolas de Medicina. Como resultado, os cirurgiões ficaram cada vez mais
escassos até o completo desaparecimento na primeira metade do século 9.
O aumento da
circulação de moeda e do comércio pode ter contribuído para forçar, por parte
da população mais organizada, o preenchimento do espaço vazio, antes dos
antigos cirurgiões desaparecidos. Pode ter sido por aí que as normas das corporações,
confrarias e irmandades, respeitando-se as diferenças estruturantes, buscaram
outras formas de amparo aos membros e às famílias.
A maior
parte daquelas instituições possuía hospital próprio, como o da rica Confraria
de São Leonardo, em Viterbo, Itália, no século 12, capaz de prestar vários
tipos de atendimento e amparo à viuvez e aos órfãos.
A ética
cristã baseada na caridade, que valorizou à exaustão a recompensa pessoal após
a morte, e na obediência aos dogmas eclesiásticos, abandonou os cuidados com a
saúde pública, a higiene pessoal, redes de abastecimento de água potável,
escoamento dos esgotos e o pagamento pelo serviço profissional médico.
Por essas
razões, a maior parte das populações da Europa medieval sofreu na pele o
descaso pelas normas essenciais para preservar a saúde coletiva: as cidades eram
aglomerações humanas desordenadas, em torno de suntuosas catedrais góticas, sem
água potável e esgotos sanitários, em habitações inadequadas, onde, de tempos
em tempos, grassavam epidemias de várias doenças infecto-contagiosas, que matavam
frequentemente milhares de pessoas em poucas semanas.
Também como
resistência ao descaso com a saúde pública e à corrupção tanto laica quanto
religiosa, as regras das corporações, confrarias e irmandades reforçavam ajudas
mútuas entre os membros e as famílias. Um dos exemplos marcantes foi o estatuto
da corporação dos curtidores de couro branco, em Londres, em 1346, rezando no primeiro
artigo: o bem-estar de membros era o objetivo maior.
quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015
terça-feira, 24 de fevereiro de 2015
Super-heróis em Manaus
Pedro Lindoso
Há
coisas que só conseguimos comprar ou fazer no Centro. É bom que o inefável shopping center possa ser considerado
totalmente prescindível. Assim, uma visita ao Centro, sábado pela manhã, pode
ser um bom programa. Em termos, porque além de constatar as inúmeras
“teratologias arquitetônicas”, no dizer de Adalberto Carim Antônio, pode-se
encontrar pessoas não tão teratológicas, mas sem dúvida, bastante pitorescas e
até hilárias.
Ao procurar uma pulseira de couro para um
velho relógio de estimação, eis que vejo montado numa moto, circulando entre as
ruas da outrora Paris dos trópicos, nada mais nada menos do que o IRON MAN. Vi
que um rapaz tirava foto do IRON MAN caboclo e que, não só a mim, mas as
pessoas próximas estavam entre chocadas e divertidas com a visita daquele
inusitado super-herói ao centro histórico de Manaus. Perguntei ao relojoeiro se
o conhecia. Ele me disse que achava que era o Maycon Jackysson Wyllys da Silva,
que com todas as letras kwy que tem direito, tornava-se agora o mais autêntico
caboclo alienígena, ao incorporar o IRON MAN.
Naquele
mesmo sábado, um colega de trabalho teve menos sorte do que eu. O seu filhote
de seis anos soube que o HOMEM ARANHA vendia picolé em algum lugar da Cidade
Nova. Como o colega é divorciado e dedica-se, quinzenalmente, a agradar seu
rebento, fazendo-lhe as vontades, dentro de limites, é claro, houve por bem
percorrer a cidade Nova I, II, III e V, além dos Núcleos 4, 11 e 13 indo até os
Núcleos 15 e 16, e por fim ao Núcleo 23. Nada do homem-aranha picolezeiro.
Devia estar de folga ou em outra missão.
Corre à boca pequena que uma cabocla,
ex-dançarina de boi, estaria pleiteando tornar-se MULHER MARAVILHA e montar uma
banca de tacacá no Largo de São Sebastião. Dizem, ainda, que ficou com medo da
reação do secretário Robério Braga e desistiu de fazer concorrência ao tacacá
da Gizela. Graças ao bom Deus!
O
último boato é de que duplas de BATMAN e ROBIN seriam convocadas para fazer
segurança na Praia da Ponta Negra. Como seria uma vergonha para a Polícia
Militar, a segurança seria privada e precisaria de licitação. Nesse caso, seria
melhor convocar o ACQUAMAN para afugentar os jacarés e outros bichos que possam
comprometer o lazer dos banhistas. Bem, vamos aguardar a visita do FANTASMA. Ou
do LANTERNA VERDE.
Ah,
como houve arrastão na virada cultural em São Paulo , seria prudente convocar o Quarteto Fantástico
para a nossa virada. Vamos esperar a vinda do TOCHA, do ROCHA, do ELÁSTICO e,
claro, da MULHER INVISÍVEL, que sem dúvida fariam muito sucesso na virada
cultural de Manaus. Além de obviamente, evitar arrastões, furtos e outros
delitos.
segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015
Cachorros marinheiros
David
Almeida
Um dia desses, estava eu andando com
minha câmera fotográfica, à procura de algo; uma cena; uma imagem que pudesse
gerar uma matéria e ser noticia, quando, de repente, na minha frente, vi
cachorros feitos marinheiros, tomando conta de barcos ancorados às margens do
Rio Negro, na Manaus Moderna – aquela avenida que começa bem em frente ao mercado
Adolpho Lisboa e adentra o Igarapé de Educandos. Os cachorros pareciam estar
cumprindo obrigações. Sempre atentos, andavam de um lado para o outro na proa
de seus barcos, parecia que suas atitudes eram de extrema preocupação com seus
afezeres. Achei aquilo interessante: “Cachorros Marinheiros”. Nunca tinha visto
uma cena assim tão perfeita, e por um momento pensei que, sem querer, tinha
entrado no mundo de “cachorro gente”, e eu era do mundo de “gente cachorro”. O
que me salvou dessa viagem surreal foi a câmera fotográfica que segurava em uma
das mãos, me fazendo voltar ao normal, lembrando que o cachorro, além de ser
considerado, desde os tempos mais remotos, o melhor amigo do homem, prova
também que é bom marinheiro.
Um parecia que inspecionava se o barco
do seu dono estava bem amarrado, olhando firmemente para a corda, que enlaçava
um toco e prendia a embarcação, enquanto os outros descansavam, após o serviço
prestado, mas sempre rosnando a qualquer atitude suspeita. Nenhum desconhecido
podia se aproximar da área do seu domínio. Isso sem ter carteira assinada e
plano de saúde, tudo só pela amizade, carinho, comida e respeito de seus donos,
que é o mais importante.
Em outras instâncias, a vida de cachorro
não é de cachorro, pois uns até gozam de um “lar doce lar”, num espaço especial
da casa; em cima de almofadas; de tapetes de luxo, comidas de primeira e até salão
de beleza; muita mordomia. “Eita”, cachorrada de sorte! Esses são cachorros
gente.
Outros, nem tanto assim, ficam numa
casinha de nada, nos fundos de um quintal, as vezes, até amarrados, comendo o
que sobra da casa, ou o pão que o diabo amassou. Esses vivem, literalmente, a
vida de cachorro. Outros, nunca tiveram donos, ou foram abandonados à própria
sorte; pirentos, cheios de sarnas, carrapatos, vivendo, por aí, vagando pelos
umbrais da vida à procura de carinho e amizade, correndo atrás de carros, latindo
nas noites, se algo diferente lhes parece, e, quando a fome aperta, vão
procurar comida em terrenos baldios, nos lixões, onde for fonte para matar sua
fome. É uma vida de cão.
Parece absurdo e vergonhoso, mas, às
vezes, os comparo com a maioria do povo brasileiro, que não tem dono, nem casa,
mas pertence a currais eleitorais de onde elege seus representantes pelo voto
da irracionalidade de sua fome e vivem à margem da sociedade: abandonados,
despejados, dormindo nas calçadas, procurando comida no lixo, pedindo esmolas
nas ruas, sem ter, pelo menos, uma casinha no fundo de um quintal para
descansar. É vida de “gente cachorro”.
No caso dos cachorros marinheiros, um
espaçozinho na popa ou na proa de um barco, já lhes é o bastante: dormem
embalados pelas ondas.
domingo, 22 de fevereiro de 2015
sábado, 21 de fevereiro de 2015
quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015
Miniconto, microconto, nanoconto, contos são? 4/7
Zemaria Pinto
4.
O MÁXIMO DE INTENSIDADE, NO MÍNIMO DE ÁREA
Se na subida desta
montanha estivéssemos sendo guiados por Ariel, era chegada a hora de “o outro”
nos dar a mão, pois começamos a descida. O conto literário, artefato de
intenções estéticas, tem, ao longo dos tempos, a ele atreladas, três espécies
bem definidas: o apólogo, a fábula e a parábola. De caráter didático ou moralizante,
elas se distinguem entre si pela natureza das personagens: no apólogo, objetos
inanimados; na fábula, animais irracionais; e na parábola, seres humanos
(PINTO, 2011b, p. 82). O que, então, distinguiria o miniconto do microconto e
estes do nanoconto?
Livres dos grilhões da
extensão, vamos insistir na ideia de maior e menor intensidade. Tomemos dois
exemplos extraídos do livro Caderno do
escritor, do amazonense Adrino Aragão.
Há uma dor ácida
de profunda solidão por toda a quitinete, desde que ela me deixou. Acordo
(acordo?) no meio da noite, não sei que rumo tomar: você não sabe o que é o
amor de um velho apaixonado. (p. 18)
Aragão é hoje destacado
cultor do microconto, como ele prefere nomear, tendo merecido sóbrio estudo do
Prof. Joaquim Branco – sua tese de pós-doutorado apresentada à UFRJ, em 2010 –
que o classifica, com certo pudor acadêmico, como minimalista. Como regra geral
em todo o Caderno do escritor, os
títulos são as palavras iniciais dos contos, não ajudando em nada na elucidação
do conteúdo. E o que temos no conto acima? Um texto onde a tensão é explicitada
em algumas palavras combinadas: “dor ácida”, “profunda solidão”, “desde que ela
me deixou”, “não sei que rumo tomar”, até o remate em anticlímax, próximo ao
cômico, de onde concluímos que a intensidade não foi suficiente para causar
desconforto no leitor. Aqui cabe, com perfeição, a nomenclatura microconto. Mas
por que não miniconto? Qual a diferença entre um e outro? Voltamos ao assunto
mais adiante. Vejamos agora um outro conto de Aragão, do mesmo livro:
Espelho
meu, dizei-me: qual desses dois sou eu?
(p.
56)
Uma frase em uma linha,
duas orações e nove palavras. Em cada uma das orações, Adrino recupera alguns
séculos de tradições literárias. “Espelho meu” é a clássica fala da madrasta de
Branca de Neve, narrativa originária da tradição oral alemã, provavelmente da
Idade Média, e compilada pelos irmãos Grimm na primeira metade do século XIX. A
segunda frase – “qual desses dois sou eu?” – é a expressão profunda da figura
literária chamada “duplo”, expressa, para melhor entendimento, pela fórmula “eu
= outro”. Ao defrontar-se com o espelho e fazer a pergunta, o
narrador-personagem remete-nos a Jorge Luis Borges, uma influência confessa na
obra de Adrino Aragão. Mas isso é pouco. Há mais de dois mil e duzentos anos, o
romano Plauto já brincava com essa figura em Anfitrião (PINTO, 2013, p. 197-198).
Quanta informação, quanto
tensionamento, quanta energia colocada em uma única frase! Isso é o nanoconto:
o máximo de intensidade, no mínimo de área, provocando uma deformação desta: o
texto adquire um sentido muito mais amplo que a primeira leitura – literal,
denotativa – faz crer. Isso me lembra Octavio Paz e uma aproximação que eu
queria evitar: a do nanoconto com o haicai. Nada de “o nanoconto está para o
conto como o haicai está para a poesia”, por favor! Sobre o haicai, Paz
escreveu: “é uma pequena cápsula carregada de poesia capaz de fazer saltar a realidade
aparente” (1980, p. 16-17). O nanoconto é uma cápsula carregada de energia – em
forma de ideias, informações, críticas, reflexões e até poesia – capaz de fazer
saltar leituras e significados múltiplos.
Para saber mais sobre a obra de Adrino Aragão, clique aqui.
Marcadores:
Adrino Aragão,
Contos,
Contos são?,
Ensaios,
Microcontos,
Nanocontos,
Octavio Paz,
Zemaria Pinto
Caridade cristã e a prática médica
João Bosco Botelho
A laicidade da caridade, reafirmando as diretrizes neotestamentárias,
compondo Deus que perdoa e sublima o confronto e o contrário, diferente Daquele
do Velho Testamento, tem sido reconhecida como um dos mais importantes
instrumentos teóricos da cristianização, identificado na afirmação de
François-René Chateaubriand: “A caridade, virtude absolutamente cristã e
desconhecida dos antigos, nasceu com Jesus Cristo; é essa a virtude que
distingue o homem dos outros mortais e foi o selo de renovação da natureza
humana”.
Próximo desse conjunto teórico-sacro se destacam as
corporações, confrarias e irmandades que ofereciam cuidados médicos
diferenciados e amparavam setores específicos de trabalhadoras e as famílias,
em várias cidades do medievo europeu, entre os séculos 14 e 15. Outra vez, a plasticidade
da Igreja conseguiu manter a presença nessa reconstrução das práticas médicas e
das profissões mais rentáveis e com clara importância social no medievo europeu.
As decisões do Concílio de Trento, entre 1545 e 1563,
colocando a Igreja em sintonia com os Estados fortes, para superar o avanço das
idéias luteranas, estão amalgamadas nessa ética médica cristianizada que
motivou os primeiros hospitais também sob a guarda da caridade. Os poderosos
das cortes doavam somas vultosas para facilitar o acesso ao perdão dos pecados,
sendo uma das opções essas construções insalubres para receberem doentes de
todas as naturezas, levados pelas famílias que não os desejavam por perto, e, sob
a assistência dos abnegados religiosos sem preparo médico, morriam rapidamente.
De certa forma, o Concílio de Trento moldou as bases na
caridade laicizada, como a unção dos enfermos, sacramento e o reconhecimento de
leigos na graça santificante. Graças a esse concílio, a autorização
eclesiástica foi formalizada para os que exercitassem a caridade cristã, teriam
a garantia do acesso ao Reino de Deus. Os homens e as mulheres ricas
encontraram na abertura conciliar a argumentação para justificar a postura de
amparo aos enfermos e necessitados com a recompensa da ida para o paraíso após
a morte.
Esse pressuposto
oferecia a quem fizesse caridade a plácida sensação de estar garantindo a
entrada no Reino, sem falar no agradecimento recebido pelo poder temporal,
interessado em repassar as tensões sociais agravadas pela peste, a fome e a miséria,
que flagelavam a vida dos pobres, a maior parte da população.
A intensificação da caridade como instrumento de controle
social conseguiu atenuar o brutal contraste entre os poucos com muito dinheiro
com a maioria esmagadora sem nada. Essa última parcela, homens e mulheres sem
senhor, constituíam as hordas de mendigos migrantes entre os burgos, que
assaltavam e matavam os que viajavam sem a proteção dos cavaleiros dos senhores
feudais.
As corporações, confrarias e irmandades, inclusive a Confraria
dos Cirurgiões, sob a proteção de São Cosme e São Damião, fundada pelo
cirurgião-barbeiro Jean Pitart, representou parte da resistência dos que
continuavam na miséria absoluta na alta Idade Média.
O aperfeiçoamento desse processo de resistência contribuiu
para o surgimento dos grupos de proteção mútua, nos moldes da “compagnia”,
fundada em Gênova em 1099, financiada pelos marítimos. As corporações, confrarias
e irmandades amparavam as famílias, construíram estruturas arejadas para tratar
os doentes, financiavam os enterramentos dos mortos e protegiam as viúvas e os
órfãos.
quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015
terça-feira, 17 de fevereiro de 2015
Teatro no interior
Pedro
Lucas Lindoso
Da
última vez que estive em Brasília conheci dona Lazinha, esposa do meu amigo
Onofre que é funcionário aposentado do Banco do Brasil.
Há
muitos anos Onofre e Lazinha moraram num longínquo município do interior do
Amazonas. Onofre era gerente do banco por lá.
Na
década de 50 havia um movimento da Igreja denominado Ação Católica. Lazinha
entrou para o grupo e tornou-se-amiga do vigário.
Como
não havia muitas atividades culturais no lugarejo, Lazinha resolveu montar um
grupo de teatro amador comunitário.
As
peças eram escritas por ela e tinham o objetivo de conscientizar a população
para seus problemas, além de diversão.
Claro,
aquilo era uma maneira de Lazinha manter-se ocupada. Carioca e acostumada a
viver em cidade grande, Lazinha estava lá para acompanhar o marido e ser feliz
nos primeiros anos de casada.
Ela
mesma redigia os textos. O teatro tornou-se um sucesso. Não só de público.
Todos queriam participar. Os menos letrados eram usados como figuração.
Um
dos mais empolgados participantes do grupo era o João, conhecido pelo inusitado
apelido de João Deixa-que-eu-chuto. Não se sabe bem o motivo da alcunha. Mas ele
nunca se importou e acabou sendo conhecido como João Deixa.
Era
um sujeito boníssimo. Prestativo. Ajudava Lazinha a fazer os cenários. Era pau
para toda obra. Totalmente analfabeto, João Deixa, era um homem bom, mas muito
tacanho em conhecimento e linguagem, coitado.
João
insistia em participar do teatro. Implorou a Lazinha por um papel em uma peça.
Nem que fosse bem pequenino. Uma frase seria o bastante, Era um sonho a ser
realizado.
Conhecendo
bem o João Deixa, Lazinha sabia que ele não seria capaz de decorar nada. Seria
com certeza um desastre. Mas tanto João Deixa insistiu que Lazinha houve por
bem realizar o sonho do João.
Lazinha
então escreveu um texto em que havia um incêndio.
João
Deixa sairia esbaforido do local e diria:
–
Escapei,
milagrosamente.
Lazinha
ensaiou o texto com João Deixa, várias vezes. Ele em casa repetia sem descanso,
para a esposa e filhos: – Escapei, milagrosamente.
Nos
dias de ensaio, era o primeiro a chegar e esperava sua fala com grande
ansiedade. E dizia glorioso: – Escapei, milagrosamente.
Todos
ajudavam o João a memorizar seu texto e diziam, fala João. E ele: Escapei
milagrosamente. Escapei milagrosamente.
No
dia da estréia, todos foram ver a peça e principalmente ver como o bondoso João
iria se sair como ator. Então chegou a hora em que houve o incêndio. Todos na
expectativa e lá vem o João Deixa que grita:
– Milagrei, escaposamente!
Foi
o começo e o fim de uma nem tão promissora carreira de ator.
segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015
Lábios que beijei 41
Zemaria Pinto
Conceição
Dona de uma beleza,
digamos, pouco convencional – branca, sardenta, lábios grossos, altura acima da
média, as carnes fartas e rijas –, Conceição era o sonho de consumo dos
moleques. Mas não me comovia. Sua conversa era boba, como haveria de ser boba a
conversa de uma menina de 14 anos em plena Segunda Guerra, que a nós todos
parecia tão distante. Aceitava os amassos, os toques, os carinhos mais ousados
– e de repente começava a falar em filhos, casa, casamento, essas coisas. Não
passei dos amassos e toques delicados. Ao afastar-me, entretanto, Conceição
passou a me seguir, me vigiar e a insinuar aos amigos em comum que teria havido
algo a mais entre nós, tentando forçar um comprometimento. Não lembro mais como
tudo terminou: é como uma luz intensa que vai esmaecendo rapidamente até a
escuridão total – de onde eu espero surgir Conceição, nua como nunca a vi,
resplendente, bela e tola.
domingo, 15 de fevereiro de 2015
sábado, 14 de fevereiro de 2015
sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015
Tomie Ohtake (21/11/1913 – 12/02/2015)
Tomie Ohtake, vista por Glen. |
Cansei de pintar o que via, quis pintar o que vinha de dentro.
(Tomie Ohtake)
Tomie Ohtake, vista por Wal Alves. |
Marcadores:
Caricaturas,
Glen,
Lapidares,
Tomie Ohtake,
Wal Alves
quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015
Miniconto, microconto, nanoconto, contos são? 3/7
Zemaria Pinto
3.
QUANDO A INTENSÃO SE SOBREPÕE À EXTENSÃO
Tenho em mãos um
daqueles caça-níqueis, sempre questionáveis, pois guardam a maldita mania das
listas, algo tão pessoal quanto o sabonete de uso diário: Os cem melhores contos brasileiros do século. Na primeira década,
os textos têm, no mínimo 6 páginas. Esse padrão vai encolhendo com o passar do
tempo: a partir dos anos 1970, passam a ser parte da paisagem os contos de duas
páginas. Não temos ainda, entretanto, nada que chegue perto do nosso objeto,
mas é um indicativo de que a quantidade de páginas deixava de ser um padrão
determinante da qualidade. A história convencional, com princípio, meio e fim –
do qual “Viagem aos seios de Duília”, de Aníbal Machado, situado num vago “anos
40/50”, nas suas 18 páginas, é exemplar – passa por um processo de aceleração:
a nova forma de narrar é construída de várias elipses sobre uma grande elipse,
que é a fábula principal. Ao leitor, cabe montar, se do seu interesse, uma
trama que faça sentido – ou não, pois as informações de que ele dispõe devem
ser suficientes para ter em mãos uma trama completa.
Vejamos um exemplar de
conto onde a intensão se sobrepõe à extensão:
O doente com
leucemia:
– Sabe, doutor,
o que dói mais? Não é a doença. Não é a dor. Não é a morte em dois meses.
– ...
– É a saudade
que desde já sinto da minha putinha.
(2000,
p. 103)
Outro, da mesma fonte:
– Nunca tomei um
copo d’água sem dar metade pra ela, que no fim me traiu.
(2000,
p. 116)
Mais um,
metalinguístico:
Dia das mães!
Quantos crimes literários, ai, mãe, são cometidos em teu nome!
(2002,
p. 51)
Os três textos são de
Dalton Trevisan. No primeiro, temos uma love
story, com direito a leucemia e tudo. O tratamento aparentemente degradante
é, na verdade, carinhoso, padrão Trevisan. O segundo texto deve ter um bolero
ou um tango como fundo musical: trata-se de uma história passional, com um
possível fim trágico – e aquela frase pode ser a explicação da tragédia. Não
precisamos saber mais nada para fazer essas inferências, com a vantagem de que
a releitura não nos toma tempo.
O terceiro texto é uma
reflexão sobre a enxurrada de bobagens escritas – e publicadas – por ocasião do
dia das mães. Todos os anos. E aqui entramos numa outra possibilidade de
expressão dessa espécie de conto: a reflexão – mordaz, ferina, esculhambativa.
Trevisan, o Vampiro de Curitiba, por William. |
Marcadores:
Caricaturas,
Contos são?,
Dalton Trevisan,
Ensaios,
Microcontos,
Nanocontos,
William,
Zemaria Pinto
Assine RASCUNHO e ganhe dois livros
Assine o melhor jornalismo literário do Brasil e ganhe dois livros de entrevistas: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/assinatura-do-jornal-impresso-2/ |
O cirurgião-barbeiro como símbolo de resistência
João
Bosco Botelho
Após
o fechamento das escolas de Medicina, a partir do final do século 6, as práticas
médicas se aproximaram das abadias e mosteiros, onde padres e freiras prestaram
assistência aos doentes sob a égide da ética, da moral e da caridade cristãs.
Sob
a guarda das proibições eclesiásticas impondo nova ordem à ética médica,
impedindo as práticas cirúrgicas, mais duramente a partir do século 9,
certamente motivadas pelos maus resultados, as necessidades sociais buscaram
caminhos alternativos para sanar as dificuldades.
Desde
o século 10, na Europa cristianizada, existem muitas referências sobre um
personagem estranho e temido, que preencheu os espaços vazios deixados pela
proibição eclesiástica da prática cirúrgica: o cirurgião-barbeiro.
Esse
personagem, sem formação médica, vínculo institucional ou obrigação ética, como
andarilhos percorriam os caminhos entre as cidades medievais, cortando cabelos,
barbas e unhas, e amputando membros
gangrenados. Em determinas situações, as práticas agressivas nas pernas e
braços infectados, sem nenhum cuidado adicional, causavam mortes, que, no
passar dos séculos, salvo exceções, associaram os cirurgiões-barbeiros aos maus
resultados, gerando intensos conflitos com a família dos mortos ou com a
administração das cidades. Em certas comunidades, quando eles provocavam a
morte de alguém com importância social, para evitar o linchamento, eram
obrigados a fugir rapidamente da população enfurecida.
Parte
significativa do conjunto da Medicina no medievo europeu, regida pela ética
atada aos dogmas cristãos, sem hospitais e escolas médicas, migrou para o
interior ou proximidades das abadias e conventos, com pouca ligação com a ética
e recomendações hipocráticas. Semelhantes aos cirurgiões barbeiros, os padres
despreparados provocaram tantos conflitos pela má prática, causando sequelas e
mortes, gerando revoltas populares seguidas de destruições de igrejas e
monastérios, que motivaram as autoridades cristãs, nos Concílios de Rems (1131)
e de Roma (1139), a proibirem os religiosos de exercer a Medicina fora dos
muros das instituições religiosas.
Por
outro lado, os grandes teóricos do cristianismo como Abelardo, em Paris,
Bernard, em Chartre, e Tomas de Aquino, iniciavam o processo de resgate
doutrinário das obras de Platão e Aristóteles, que também alcançariam a ética
da Medicina.
–
Pedro Abelardo, filósofo e teólogo escolástico, como professor da Universidade
de Paris, que funcionava junto à catedral Notre Damme, na época, em construção.
Esse notável sacerdote defendeu de forma enfática, junto aos seus alunos,
filhos de burguesas abastados ou religiosos importantes, outra leitura crítica
da Bíblia, renovando a Escolástica na problemática da relação entre a fé e a
razão.
–
Bernardo de Chartres, reconstruiu segmentos neo-platônicos e aristotélicos. Como
Reitor da Escola de Chartres, reforçou os conceitos universais em torno de três
categorias da realidade: Deus, matéria e ideia.
–
Tomás de Aquino, filósofo e teólogo, também professor da Universidade de Paris,
fundou a síntese do cristianismo sob a visão aristotélica, firmada na
revelação, baseada no exercício da razão humana, fundindo a fé e a razão no
rumo de Deus.
A
partir da primeira metade do século 14, alguns cirurgiões-barbeiros mais
esclarecidos, em aliança com a Igreja, adotaram São Cosme e São Damião como
protetores e iniciaram ajustes das práticas médicas cirúrgicas para obter
melhores resultados junto aos doentes.
quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015
terça-feira, 10 de fevereiro de 2015
Despojos virtuais
Pedro
Lucas Lindoso
O
assunto é muito triste. Mas quem ainda não enfrentou tal situação vai
enfrentá-la.
O
que fazer com o endereço de e-mails de um amigo ou parente querido falecido?
Manter na lista de contatos? Deletá-lo? E a página do facebook? O contato no
whatsapp? Pior: o número do telefone identificado nos seus contatos do celular.
O
que fazer com o e-mail de um grande amigo, lido somente no dia do velório, em
que ele indicava a compra da recente antologia de poemas elaborada pelo
Ferreira Gullar? E ainda, constatar que o e-mail, equivocadamente enviado ao
falecido, retornou com o aviso de “mailbox full” (caixa de correio lotada). De
quê, meu Deus? Não seria de pêsames, com certeza. Será lida pela mulher ou por
seus filhos? Saberiam eles as senhas?
“Quando
a indesejada das gentes chegar”, disse Manuel Bandeira cantando a morte.
Um
conhecido, a quem chamaremos de Raul, passou por um sofrido constrangimento no
velório de seu pai. Um inesperado e violento infarto ceifou a vida do pai de
Raul e coube a ele administrar chamadas vindas do celular de seu pai. Foi
dolorido informar as pessoas, que telefonavam para seu pai, do acontecido.
Mais
inadequada foi a triste ideia de comunicar a um contato do mesmo celular a
morte do proprietário. Quem atendeu foi logo saudando o morto identificado na
tela do aparelho. Sentiu-se culpado da besteira que fez, mas estava totalmente
atordoado, o que é plenamente desculpável.
Mas
o pior ainda estava por vir. Um drama familiar. Durante o velório, Raul começou
a receber mensagens do banco, enviadas para o celular do falecido, dando conta
da utilização indevida, obviamente, do cartão de crédito/débito do defunto.
Imediatamente
entrou em contato com o banco e o cartão de crédito, para sustar todos os
cartões em nome do de cujus. Mas o estrago estava feito. O filho mais novo de
seu irmão subtraiu o cartão do avô. As senhas estavam todas escritas num
papelzinho dentro da mesma carteira dos cartões. Muito fácil para o neto,
usuário de drogas e delinquente, fazer a festa.
O
mundo muda, as circunstâncias advindas da modernidade estão aí para serem
administradas. O que não muda é a dor e a saudade dos que partem, quando a
indesejada das gentes chega, como disse o poeta.
O
mundo virtual dos banknets, internets, celulares e que tais podem ser bem
macabros. Agora, além das terríveis burocracias de um funeral, questões
familiares e heranças a serem resolvidas, ainda temos que administrar os
despojos virtuais.
domingo, 8 de fevereiro de 2015
sábado, 7 de fevereiro de 2015
quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015
Miniconto, microconto, nanoconto, contos são? 2/7
Zemaria Pinto
2.
EXPERIÊNCIAS, OBSERVAÇÕES
O meu primeiro
estranhamento com narrativas curtíssimas, foi com Kafka, num livrinho das Edições
de Ouro, de 45 anos atrás: Contos – A
colônia penal e outros, que trazia clássicos como “A metamorfose”, “A
sentença”, “Informações para uma academia”, “Um artista da fome” e “Na colônia
penal” – de fato, capa e miolo discordavam. Lá estava o magnífico “Diante da
lei”, com suas duas pagininhas, que eu encontraria anos depois como o centro
irradiador de O processo. Lá estavam
também textos de uma página e outros que podiam ser contados em linhas, como
este “O desejo de ser pele-vermelha”:
Se alguém
pudesse ser um pele-vermelha, sempre alerta, cavalgando sobre um cavalo veloz,
através do vento, constantemente sacudido sobre a terra estremecida, até atirar
as esporas, porque não fazem falta esporas, até atirar as rédeas, porque não
fazem falta rédeas, e apenas visse diante de si que o campo era uma pradaria
rasa, teriam desaparecido as crinas e a cabeça do cavalo.
(p.
76)
Falei de minha
experiência pessoal, não da história do conto curto. O que são as fábulas de
Esopo, se não contos curtíssimos? Há 2.600 anos, Esopo era capaz de relâmpagos
como este:
Uma gata, tendo
entrado na oficina de um ferreiro, pôs-se a lamber uma lima que ali se
encontrava. Aconteceu que, esfregando a língua, saiu muito sangue. Ficou feliz,
imaginando que tirava alguma coisa do ferro, até que, finalmente, perdeu a
língua.
(p.
51)
Em Kafka temos uma
imagem que vai se descontruindo na mesma velocidade do cavalo do pele-vermelha,
até se tornar mera paisagem, do ponto de vista do cavaleiro. Mas, sob a
perspectiva do leitor, o quadro que se apresentava antes é outro: cavalo e
cavaleiro se metamorfoseiam, tornando-se um só: sem esporas, sem rédeas e sem
poder ver a própria cabeça. As referências endógenas à obra de Kafka são
óbvias: A metamorfose e América – naquela, a transmutação do
indivíduo em algo aquém-humano; nesta, o pele-vermelha como alegoria da
liberdade de ir e vir. Naquela peça de pouco mais de 50 palavras estaria a
gênese desses trabalhos? Se não, pelo menos a manifestação de ideias em estado
de latência.
Esopo, imaginado por Velázquez. Século XVII. |
A fábula de Esopo não
deixa nenhuma dúvida quanto ao seu objetivo didático, mas nem por isso é menos
inventiva, tantos são os símbolos e paradoxos espalhados em tão pouca extensão:
gata, representando o estereótipo feminino; lima, um instrumento de desgaste
lento, de tortura, talvez; sangue proporcionando felicidade, como se fosse o
alimento desejado; e o improvável choque da perda total. Como estamos sob o
protocolo da fábula, entretanto, mesmo o improvável é verossimilhante.
Em ambos os casos, a
intensão se faz sentir a partir do tensionamento gradativo da narrativa, até a
culminância, que se dá na última imagem – desaparecidas as crinas e a cabeça do
cavalo, em um, e a perda da língua, no outro – quando a intensidade atinge o
seu limite máximo.
Marcadores:
Contos são?,
Ensaios,
Esopo,
Franz Kafka,
Microcontos,
Nanocontos,
Velazquez,
Zemaria Pinto
Ética da medicina no medievo europeu
João Bosco Botelho
O processo
da cristianização de Roma, durante o reinado do Constantino e após, fruto do
enfraquecimento das fronteiras romanas pelas invasões dos godos e visigodos,
introduziu mudanças no sistema mercantil escravista para o feudal e alcançou a
ética da Medicina.
Nesse
processo complexo, a Medicina se distanciou dos conceitos gregos jônicos da
físis e se aproximou da doença como mal gerando o castigo divino, como nas
culturas da Mesopotâmia, Egito, Índia e Grécia homérica, entre os séculos 7 e 5
a.C. Sem pretender simplificar muito, o tratamento mais importante para a
doença como mal, seria a força de Deus e de Jesus Cristo, intervindo para
promover a cura por meio do milagre.
É possível
compreender essa abordagem, que motivou outros conceitos teóricos à ética e à moral,
alcançando também as práticas médicas, como regressão às conquistas
greco-romanas. Essas mudanças também provocariam desconstrução urbana, no
medievo cristão europeu, com as administrações das cidades se descuidando da
higiene pessoal, ruas estreitas, casas abafadas e sem exposição solar, pouca
água potável, retorno do enterramento dos corpos nos limites urbanos e ausência
de esgoto sanitário.
Os banhos
públicos, usados simultaneamente por homens, mulheres e crianças, entendidos
como local de excessiva exposição dos corpos propiciando maior exacerbação da
sexualidade, foram precocemente combatidos pela nova ordem cristã que se
empenhou em fechar todos.
Esse fato
associado às outras importantes mudanças no urbanismo das cidades alcançou o
novo mundo cristão em ascensão, inclusive e especialmente a prática médica,
fechando as escolas de Medicina e interditando o manuseio do corpo morto para o
estudo da anatomia. Esse conjunto fulminou as práticas médicas greco-romanas,
sob a égide da ética hipocrática, e introduziu outro processo monolítico
ideológico, sob forte fiscalização eclesiástica, reconstruindo outra ética na
Medicina, que se estenderia até a baixa Idade Média.
Os serviços
profissionais dos agentes da Medicina-divina, Medicina-empírica e
Medicina-oficial, até então entendidas como trabalho profissional remunerado,
passam para a categoria dos trabalhos que deveriam seguir o exemplo de Jesus
Cristo e dos apóstolos, cujos sacerdócios incluíram muitas curas milagrosas. O
milagre cristão passou a ser a principal motivação da cura das doenças.
A ética da
Medicina absorveu, na Roma cristianizada, o entendimento da doença como
consequência da desobediência a Deus, Jesus Cristo e aos santos, e se
transformou em sinônimo de castigo. Com as escolas de Medicina fechadas e,
consequentemente, o ciclo da formação de médicos interrompido, deixando o povo
sem opções, se intensificaram:
–
Peregrinações aos santuários católicos, especialmente, Jerusalém e Santiago de
Compostela, na Espanha;
– Devoção
aos santos com poderes de curar determinadas doenças;
–
Edificações de ofertórios dedicados aos santos ou santas relacionados à doença
mais temida, nas principais ruas ou praças das cidades.
Com o
fechamento das escolas de Medicina, a partir do final do século 6, as práticas
médicas se aproximaram dos abadias e mosteiros, onde padres e freiras prestaram
assistência aos doentes sob a égide da ética, moral e caridade cristã.
Sob a guarda
das proibições eclesiásticas impondo nova ordem à ética médica, impedindo as
práticas cirúrgicas, mais duramente a partir do século 9, a cirurgia foi
excluída da Medicina e se tornou atividade não recomendada aos homens de bem.
quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015
terça-feira, 3 de fevereiro de 2015
Salvo pelo nome
Pedro Lucas Lindoso
O namoro dos pais de Waldisney
foi embalado pela trilha sonora do desenho da Branca de Neve. Compostas por
Frank Churchill, as belas músicas do primeiro desenho de longa metragem Disney,
de 1937, venceram, meritoriamente, o Oscar da categoria.
As músicas se tornaram clássicos
modernos. O filme foi reprisado nos anos oitenta, quando os apaixonados pais de
Waldisney se casaram.
O rebento foi homenagem ao
incrível Walt Disney. O pitoresco nome foi sempre motivo de polêmicas e bullying. Por causa disso e para
simplificar, Waldisney prefere ser chamado de Ney.
Colegas de trabalho de Ney
resolveram formar um grupo para ir a Miami.
Era a chance de conhecer a Disney posto que haviam recebido uma gorda e
inesperada PL – participação nos lucros, paga pela empresa onde trabalham,
instalada no PIM de Manaus.
A turma primeiramente foi a Brasília tirar o
visto na Embaixada Americana. Lawrence Augusto, líder do grupo, conta que o
visto do Waldisney teria sido negado. E que só lhe concederam o almejado visto
por causa de seu nome. A funcionária da embaixada teria ficado encantada e
carimbou o passaporte de Waldisney para que pudesse, finalmente, conhecer o
Mundo Encantado de seu, digamos, homônimo tão querido.
Waldisney não deveria ter
colocado no facebook que iria para
Miami. O bairro da Compensa todo ficou sabendo e as encomendas não
paravam.
Mary Kateryny, a namorada do Ney,
que não foi porque não tinha visto, só liberou se ele lhe trouxesse um celular 4 G , uma chapinha americana
nova, um tablet, mais de doze itens
de maquiagem, além de um tal aparelho baby
lis.
O dentista da fábrica pediu quatro water pics. Um irmão encomendou um jogo
eletrônico, o outro um celular e um notebook.
A irmã suspirava por cremes diversos e também o tal do baby lis. A lista da sogra é de arrepiar. Uma tia querida
entregou-lhe, constrangida, uma enorme lista de vitaminas e outra de cremes
para a pele.
O grupo se divertiu muito na Flórida.
Alugaram dois enormes carros. A viagem de Miami para Orlando só teve dois
pequenos incidentes: uma multa por excesso de velocidade e um erro estratégico
de pagamento de pedágio. Tudo sem maiores consequências.
Divertiram-se muito. Estragaram-se
em compras e voltaram felizes e contentes para Manaus.
O que preocupava Waldisney era a
vistoria na Alfândega. A turma avisou que cinco tablets e quatro celulares iria chamar muito a atenção.
Dizem que para quem chega durante
o dia, a vistoria é ainda mais rigorosa.
Waldisney, nervoso, cedia a vez
aos colegas na fila. Saiu e entrou da fila, empurrando e retirando o seu
carrinho com duas portentosas malas diversas vezes. Quando alguém era
solicitado a abrir a bagagem ele ia para o final da fila. Claro que aquilo
chamou a atenção do fiscal. Seria revistado com toda a certeza!
Quando chegou a vez do Waldisney
o fiscal, já pronto para a inspeção, viu o nome do Waldisney na declaração e
exclamou:
– Você é o Waldisney, colega do
meu filho no Colégio Militar?! Bem-vindo de volta a Manaus!
E foi assim que Waldisney escapou
das multas alfandegárias. Salvo pelo nome!...
segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015
Lábios que beijei 40
Zemaria Pinto
Nazaré
A magra palidez de
Nazaré incomodava. Um amigo com laivos
de poeta dizia que ela era diáfana. Morava em um quartinho onde mal
conseguíamos nos movimentar, tão pequeno e atulhado. Pouco mais velha que eu,
cuidava de mim e me dava presentes. Retribuía amando-a. Mas meu amor era apenas
físico. Chegava a contar quantas vezes ela atingira o orgasmo, talvez para
minimizar a culpa latente. Não demorou muito. Mas quando, tempos depois, soube
da morte de Nazaré, com pouco mais de 20 anos, tomou-me um sentimento de
autodesprezo, que ainda hoje me perturba.
Assinar:
Postagens (Atom)