Amigos do Fingidor

quarta-feira, 31 de março de 2021

7 dias cortando as pontas dos dedos - volume 4

 



Quando pensamos em produzir um fanzine cujo conteúdo fosse de oposição à instalação de um governo fascista no país, não imaginávamos que chegaríamos ao extremo de ver o extermínio em massa da população brasileira, em decorrência da incompetência governamental do presidente que faz da Esplanada dos Ministérios seu parque de diversão pessoal, onde só quem manda é ele, e onde tudo tem que ser feito conforme suas vontades. Isso somado a total falta de habilidade da sua equipe de militares paus-mandados, incapazes de criar uma estratégia eficaz de combate à pandemia, e cujas medalhas apenas comprovam que o alto escalão das forças armadas do Brasil não passa de um covil de cobras traiçoeiras e interesseiras.

Hoje estamos às vésperas da marca desesperadora de 300 mil mortes decorrentes de complicações do COVID-19. Com uma população completamente desnorteada. Nem mesmo os apoiadores do presidente sabem mais o que dizer pra defender o indefensável. Quanto a nós? Estamos aqui novamente, 30 participantes, de 11 estados, das 5 regiões do país, em um E-ZINE de RESISTÊNCIA, agora contando com o apoio da Editora Merda na Mão (RS), e da Na Tora Produções (AM), ecoando o grito de FORA GENOCIDA!



terça-feira, 30 de março de 2021

Olhos azuis


Pedro Lucas Lindoso

 

A canção “Porto de Lenha” é a música considerada a “cara” de Manaus.  Letra de Aldisio Filgueiras e composição de Torrinho, tornou-se um clássico de nossa música amazonense. A primeira estrofe é a mais emblemática e diz: Porto de lenha / Tu nunca serás Liverpool / Com uma cara sardenta / E olhos azuis.

As nossas lindas cunhantãs, as nossas cunhãs-porangas, não têm olhos azuis e nem faces sardentas. Algumas amazonenses de origem europeia têm esses olhos e até sardas. Mas são raras. E tão belas quanto as legítimas porangas, também nos representam. Como o fez Terezinha Morango, nossa eterna Miss Amazonas e Miss Brasil, recentemente falecida.

De acordo com pesquisadores de uma universidade da Dinamarca, uma mutação genética em um único indivíduo na Europa entre 6.000 e 10.000 anos atrás levou ao desenvolvimento dos olhos azuis. Esses cientistas acreditam que todos os indivíduos de olhos azuis estão ligados ao mesmo ancestral. Todos herdaram o mesmo desvio em seu DNA.

Falemos agora de bonecas. Brinquedo de toda menina. Bonecas de olhos azuis, cabelos loiros e pele rosada. É o que toda menina quer ter? Nossas cunhatãs com certeza não se reconhecem nessas bonecas. Geralmente com dentes perolados, nariz arrebitado, cabelos loiros e olhos de vidro azuis.

Bonecas que chegam em aviões ou mesmo por nosso porto de lenha e são distribuídas em lojas. São compradas para presente nos natais, dia das crianças e aniversários.  Ora, por mais que recebam essas bonecas de presente, as verdadeiras porangas não conseguem se identificar com elas.

E não precisam. As moças que se tornam cunhãs-porangas de boi bumbá acreditam que não existe uma parte do corpo mais ou menos importante. Para a verdadeira cunhã-raiz o corpo é uma totalidade. Os cabelos longos, negros e lisos, o gingado dos quadris, a agilidade ao requebrar, o compasso no andar.

As nossas cunhãs-porangas têm a sua beleza intrinsicamente relacionada ao seu papel de guerreira. Com origem nas mitológicas amazonas. Nelas, a beleza, a graça, o tom da pele e os lindos olhos amendoados não se desvinculam da garra, da coragem, da competência e da própria arte de ser mulher. Elas cuidam do corpo não só para exibi-lo. Ele é também instrumento de luta. Na defesa de seu povo, de seu território.

Voltando ao porto de lenha. As nossas cunhãs verdadeiramente nunca terão cara rosada nem olhos azuis. Como concluíram os cientistas dinamarqueses, os olhos azuis foram um desvio de DNA.  Elas não precisam disso. São lindas.

 

segunda-feira, 29 de março de 2021

Folia no seringal: alegoria e paródia em O amante das amazonas 8/9

Zemaria Pinto


Evolução: estrutura

A narrativa de O amante das amazonas é fragmentada, o que lhe empresta um ar de simpática anarquia. É que o narrador, Ribamar d’Aguirre de Sousa, anda ali pelos 80, 85 anos – o que se depreende do fato de que em 1897 ele era adolescente, e a história de estende até meados dos anos 1950. Como ele narra anos depois do fim dos acontecimentos, passamos facilmente dos 75 anos, o que justifica, ao concluir, ele dizer: “mas nesse ponto me falta o fôlego enquanto eu chego ao fim dessa minha história” (p. 163). Se lhe falta o fôlego, eventualmente, embaraça-se-lhe a memória. É compreensível.  Assim como em Riobaldo, seu solilóquio revela-se um diálogo: “é tempo de você partir, meu amigo, que eu fico aqui e tudo já vimos do que deveria ser visto” (p. 163). Mas esse amigo, claro, como em Riobaldo, pode ser apenas o caro leitor.

O primeiro capítulo – “Viagem” –, onde o narrador conta como chega à Amazônia, vindo de Pernambuco, prenuncia uma narrativa convencional. Não há como não lembrar da modorrenta viagem de Alberto, em A selva. Não por qualquer semelhança, mas exatamente pelas diferenças na dinâmica dos dois narradores.

No terceiro capítulo, o narrador introduz os Numas, uma tribo mítica, irreal, invisível: “eles não eram aparência, mas imanência” (p. 26). Assim como nos referimos aos caxinauás como representação das nações dizimadas, os Numas, seu contraponto, alegorizam a resistência idealizada. O Coronel Bataillon, com um paradoxal amálgama de desprezo e admiração, os chama de “novos Ajuricabas” (p. 81), numa referência ao guerreiro que preferiu a morte a submeter-se à coroa portuguesa. Ribamar, o narrador, é tão encantado com os Numas que os sublima sexualmente, no aparecimento de duas indiazinhas adolescentes: “aquelas meninas estavam ali excessivamente reais, muito mais reais e humanas do que os sediciosos machos seus irmãos (...) nus, de enormes falos escuros” (p. 31-32, p. 27). A explicação para esse contraste é metalinguística: “a poesia apronta um mundo, a prosa outro” (p. 32).

Mas os Numas habitavam para além da mente de Ribamar e no início da estação de chuvas de 1906, que começou, como todo ano, no ano anterior, promovem matança em larga escala, entulhando o Igarapé do Inferno com 300 corpos caxinauás e marcando a fogo o rosto de Maria.    

O capítulo oito – “Ratos” – ilustra a queda definitiva do seringal Manixi, invadido por milhares de ratos. A misteriosa índia Júlia os dizima de forma inusitada. Na sequência, ela envenena seu algoz, João Beleza, que matara sua mãe e a fizera amante. O seringal se finava ali. Júlia desaparece na floresta como “encantada” e o narrador tropeça nas próprias lembranças: “Ela estava uma moça, que isso aconteceu alguns anos depois não sei bem, não sei, não, não sei” (p. 92).

Até o décimo capítulo – “Perdida” –, a selva amazônica destaca-se, com o seringal Manixi e o palácio de mesmo nome ao centro. O capítulo seguinte, apropriadamente intitulado “Ribamar”, introduz o narrador como protagonista – o que ele anunciara ainda no início: “todo este livro é a confissão da minha vida” (p. 12); ou “pois que esta narrativa vai-lhe revelar a vida tão surpreendente de Ribamar de Sousa, aquele adolescente que eu era” (p. 16). Daquele ponto em diante, já o dissemos, Ribamar sai das sombras para o proscênio. A transição é representada pela debacle da borracha e a ida de Ribamar do Manixi para Manaus, onde se tornaria empresário e político influente e poderoso.

O capítulo dezessete – “Rua das Flores” – tem uma relevância especial no desenvolvimento da trama, representando quase uma digressão, e o quase vai por conta de um fio que une a rua ao seringal; mas vamos deixar esse fio para a descoberta do leitor. Importa é que Conchita del Carmen, a dona da rua, e Fernandinho de Bará, espécie de administrador da rua, são símbolos dos poderes instituídos: Conchita é uma imperatriz em miniatura, enquanto De Bará é nomeado como prefeito pelo narrador. E como já dissemos antes, esse poder emanava da atividade que eles exerciam: o comércio sexual.  

O fechamento da narrativa obedece à regra clássica das obras fechadas: nenhum ponto fica sem seu respectivo nó. Desvendam-se o misterioso desaparecimento de Zequinha, bem como o sumiço de uma fortuna em libras esterlinas, propriedade do patriarca Bataillon, pela qual a doce Maria fora torturada e quase morrera.

A simbologia com que o livro se estrutura é clara: os dez primeiros capítulos, passados na região do seringal, representam o apogeu econômico da borracha; nos treze capítulos seguintes, quando a narrativa redireciona-se para Manaus, têm-se a representação da decadência, que iria ensombrar a cidade pelos seguintes cinquenta anos.

 

Assista à palestra, no YouTube, clicando aqui.

 

domingo, 28 de março de 2021

Manaus, amor e memória DVIII


Beneficente Portuguesa.

 

sábado, 27 de março de 2021

Tiago de Mello, 95 anos


Poema de Thiago de Mello,
Estatutos do Homem, Art. XII, 
por Zemaria Pinto.


sexta-feira, 26 de março de 2021

quinta-feira, 25 de março de 2021

A poesia é necessária?

         Câmara de ecos

Wally Salomão (1943-2003)

 

Cresci sob um teto sossegado,

meu sonho era um pequenino sonho meu.

Na ciência dos cuidados fui treinado.

 

Agora, entre meu ser e o ser alheio

a linha de fronteira se rompeu.

 

terça-feira, 23 de março de 2021

Procuram-se pais para adoção


Pedro Lucas Lindoso

 

Em nossa cultura cristã chamamos Deus de Pai. E os católicos em particular chamam de Mãe à Nossa Senhora, a Mãe de Jesus, portanto, Mãe de Deus.

Em várias culturas primitivas deus é o sol, e a lua, quase sempre, é também uma deusa. A divindade fica materializada nesses astros. Fica desnecessário então trazer o divino corporificado como se fossem os pais.

A quem devemos então chamar de pais, além de nossos biológicos e os que nos criam e nos educam? Os vocativos são diversos: pai, papai, paizão, paizinho, painho. Mãe, mamãe, mãezona, mãezinha, mainha. Além de muitos outros da moda, como mamis e papis.

Não se pode esquecer da figura dos padrinhos e madrinhas. Aliás, a origem dos vocábulos é padre e madre. O que faz com que padrinhos e madrinhas, ao batizarem uma criança, se tornem pequenos pais e pequenas mães de seus afilhados. Ou seja, pais substitutos.

Em Inglês sogra é “mother-in-law” e sogro “father-in-law”. Pais pela lei. É comum que genros e noras americanos chamem seus sogros, afetivamente, de “Mom” e “Dad”. Quando fiz intercâmbio na minha juventude fui instruído, ainda no Brasil, a chamar os donos da casa em que ficaria de “Mom” e “Dad’. Isso criaria um laço de afeto importante para o sucesso de minha estadia por lá.

Ao retornar e me referindo a eles como “pais” levei uma bronca de dona Amine. Minha mãe era só ela e ponto final.

Na biografia de Jorge Amado, Joselia Aguiar relata que Jorge Amado e Zélia moraram em Paris em duas temporadas. Na última já era um escritor consagrado. Dentre os diversos restaurantes que o casal frequentava, havia o chinês Tai San Yuen, no Quartier Latin. Tan, o garçom que atendia o casal, surpreendeu-os ao pedir para ser seu filho. No Camboja, onde nascera, quando se fica órfão é possível eleger pais novos. Nenhuma burocracia lhes foi imposta. O casal topou e Tan passou a chamar Jorge e Zélia de pai e mãe. Considerava Paloma irmã. Tan se casou e foi morar no interior da França. Teve quatro filhos e o casal Jorge e Zélia Amado consideravam os filhos de Tan como seus netos.

Nesses tempos de pandemia parece que a orfandade ficou muito aflorada. Sinto muitas saudades de meus pais. Será que precisa ser órfão cambojano para eleger novos pais?

Procuram-se pais para adoção. De preferência, já vacinados.

 

segunda-feira, 22 de março de 2021

Folia no seringal: alegoria e paródia em O amante das amazonas 7/9


Zemaria Pinto

 

Bateria: paródia e metalinguagem

Em O amante das amazonas, a paródia se estrutura em uma narrativa sem precedentes na literatura sobre o período da borracha, quebrando paradigmas institucionalizados, especialmente em relação ao Realismo/Naturalismo. Citamos antes As folias do látex – assim como Márcio Souza, Rogel Samuel ousa rir do empolamento e seriedade como o período é visto enquanto tragédia. Porque este é o lado oposto da questão. Mas não é apenas a oposição cômico-trágico que está em tela: é um discurso dissonante do discurso oficial, mostrando que a história pode ser contada de outra forma. E essa outra forma escolhida por Samuel é a contramão do discurso consagrado.

O amante das amazonas contempla narrar as histórias de personagens que não nos enchem de cuidados, embora alguns nos causem repulsa – estes são exatamente aqueles que, literários, são intertextos de narrativas ditas sérias, como Paxiúba e João Beleza. Assim, a obra não é paródia de um ou de outro livro: é paródia de uma maneira de ver e de fazer literatura.

A fragmentação da narrativa é parte do procedimento paródico também, uma vez que contraria o padrão convencional da literatura sobre o período, cuja fábula, a despeito dos movimentos temporais, pode ser montada linearmente.

De outro lado, o inegável caráter metalinguístico da narrativa acentua a sua qualidade paródica, pois amiúde confronta o leitor com a própria carpintaria do trabalho.

 

E naqueles mesmos dias ocorreram grandes fatos em outros lugares e horas, históricos e decisivos para o sucesso desta ficção e que relatarei no momento oportuno, mas que para tanto ainda tenho de revelar surpresas de muitos outros ocorridos. (p. 46-47)

 

No teatro, chamaríamos a esse procedimento de distanciamento. Em outras ocasiões, o narrador olha nos olhos do leitor:

 

O leitor não dará crédito ao que que vou narrar, pois eu vi prodígios que ainda agora me surpreendem. (p. 86)

 

A metalinguagem serve-se também do humor, instaurando insólitos paradoxos:

 

Esta é apenas uma obra de ficção, e portanto mentirosa, dentre as várias que há na literatura amazonense (...) Todos os fatos, aqui expostos, foram realidades notáveis e aconteceram realmente para a minha imaginação. (p. 88)

 

Em um bom desfile, não pode faltar o recuo da bateria, momento em que a bateria literalmente estaciona, e alas que estavam atrás dela passam à frente. O recuo é mais que um preciosismo: é uma transição no desfile, marcando a passagem para a evolução final. Em O amante das amazonas, essa transição é marcada pelo capítulo doze – “Manaus” –, em que o narrador, caminhando por uma cidade arrasada, sente que a ama, e, por isso mesmo, pode reerguê-la. Trabalhando no icônico Armazém das Novidades, em troca de comida e alojamento em um úmido porão, Ribamar de Sousa inicia ali, 15 anos após o início dos fatos narrados, a sua trajetória vitoriosa.

Eliminando a distância entre realidade e imaginação, o autor esfarinha a muralha que separa história e ficção – e o faz com o uso cirúrgico da paródia e da metalinguagem ditando o ritmo e a cadência da narrativa.

 

Assista à palestra, no YouTube, clicando aqui.


domingo, 21 de março de 2021

sexta-feira, 19 de março de 2021

Bolero's Bar 30

Ronda 

Zemaria Pinto


Aqui é só uma estação da minha via sacra noturna. De bar em bar, de dancing em dancing, e o nível baixando... Já me conhecem. Riem de mim. A misericórdia me aconselha a desistir. É inútil. Parece que adivinhas meus passos. Covarde, foges. Quando não há mais ninguém nas ruas, os lugares já fecharam, volto para casa. E sonho – acordada, porque não consigo dormir. Mas é apenas sonho. A realidade será o dia em que te encontrar. Estarás com alguém? Bebendo, jogando, dançando? De uma coisa eu tenho certeza: a manchete escandalosa do matutino – CENA DE SANGUE NO BAR!!!

 

Ronda (1953), de Paulo Vanzolini (São Paulo, 1924-2013). Samba-canção.

No Spotify, ouça a playlist Bolero’s Bar.

quinta-feira, 18 de março de 2021

A poesia é necessária?

          Dá-me tua mão

Gabriela Mistral (1889-1957)

 

Dá-me tua mão e dançaremos;

dá-me tua mão e me amarás.

Uma flor única seremos,

uma só flor, e nada mais.

 

O mesmo verso cantaremos,

ao mesmo passo bailarás.

Como uma espiga ondularemos,

como uma espiga e nada mais.

 

Te chamas Rosa e eu Esperança;

porém teu nome esquecerás,

porque seremos uma dança

pela colina, e nada mais.

 

(Trad. Zemaria Pinto)


terça-feira, 16 de março de 2021

Racismo estrutural

Pedro Lucas Lindoso

 

A mídia nacional abriu espaço para depoimentos de lindas mulheres negras, ex-participantes de um reality show. As jovens estão comprometidas em questões de equidade racial no Brasil. Já a imprensa internacional explora as revelações de Meghan Markle sobre racismo na família real britânica.

O termo racismo estrutural foi desenvolvido em parte para ajudar essas pessoas a se manifestarem. A expressão nos dá a ideia de que o racismo na sociedade é um sistema. E eu concordo. Sistema com estrutura clara e com múltiplos componentes.

Aprendi ainda menino que esse racismo existe de fato. Um tio avô casou-se com uma negra. Tenho primos que descendem dessa união. Há muitos anos, fui pagar uma conta em determinado banco em Brasília. Estava acompanhado de um desses primos. Eu entrei na agência. Estava de bermudas e camiseta. Mas era um menino branco. João, bem vestido e de calças compridas, foi barrado. Era um menino negro.

Meu pai tinha afeição por sua prima, mãe de João. Abominava atitudes racistas. Aprendi com ele que não adianta só não ser racista. É preciso não compactuar com esses múltiplos componentes que compõe o que se chama de racismo estrutural. Não usava e não permitia que se usasse o termo denegrir. Ofensivo aos negros. Como não gostava da palavra judiar. Ofensiva aos israelitas.

Uma das boas recordações de meu pai era quando lia poesias para os filhos. Cecilia Meirelles, Drummond, Manuel Bandeira.

Havia uma que eu gostava muito. Pedia sempre ao meu pai que a lesse. É do poeta Jorge de Lima, chamada “Essa Negra Fulô”. Nas primeiras estrofes o poeta se refere à Negra Fulô de maneira bem simpática. O poema tem traços de surrealismo. Vejamos algumas estrofes:

 “Era um dia uma princesa / que vivia num castelo / que possuía um vestido / com os peixinhos do mar. / Entrou na perna dum pato / saiu na perna dum pinto / o Rei-Sinhô me mandou / que vos contasse mais cinco”. Essa negra Fulô! / Essa negra Fulô! / Ó Fulô? Ó Fulô? / Vai botar para dormir / esses meninos, Fulô! / “Minha mãe me penteou / minha madrasta me enterrou / pelos figos da figueira / que o Sabiá beliscou.” Essa negra Fulô! /Essa negra Fulô!

Eu pensava que o poema terminasse ali. Mas não! Na segunda parte do poema, Negra Fulô é acusada de roubar frascos de cheiro, lenços, cintos e broches. Meu pai, deliberadamente, omitia essa parte. Só quando já adulto, lendo o poema por conta própria, descobri o racismo estrutural contido nos últimos versos.

Chamávamos meu pai carinhosamente de Zecão. Ah! Esse pai Zecão!

 

segunda-feira, 15 de março de 2021

Folia no seringal: alegoria e paródia em O amante das amazonas 6/9

Zemaria Pinto

 

Alegorias: personagens

As personagens de O amante das amazonas são todas alegóricas, porém elaboradas com o senso da paródia. Como num vaudeville.

Tomemos como paradigma o próprio narrador, Ribamar de Sousa, que já identificamos como o protagonista. Sua trajetória é inversa à trajetória dos imigrantes nordestinos que vieram “fazer a Amazônia” na época da borracha. Estes, recrutados com promessas de enriquecimento fácil, vinham em condições miseráveis, e se tornavam escravos dos donos dos seringais, que lhes cobravam absolutamente todas as despesas, desde a passagem de vinda até o indefectível quinino para combater a malária. E como pagariam? Com o produto de seu trabalho, remunerado de acordo com a produção obtida, chovesse ou fizesse sol. Esse valor estava diretamente atrelado à cotação da borracha no mercado internacional. Euclides da Cunha e Samuel Benchimol deixaram páginas memoráveis sobre o que Euclides chamou de “a mais criminosa organização do trabalho”.[1]

Contrariando todas as expectativas, Ribamar galga o posto de administrador do seringal Manixi e, em Manaus, torna-se empresário de sucesso. Daí para a política é apenas uma questão de tempo, tornando-se nosso herói senador da república. Uma antialegoria ou, antes, uma alegoria paródica do imigrante nordestino que iria, sobrevivente do seringal, povoar as favelas das cidades amazônicas.

O mesmo se dá com Pierre Bataillon ou Coronel Bataillon – um título comprado. Cidadão francês, Bataillon representa não apenas o capital estrangeiro, mas também o domínio cultural da França à época. Antônio Ferreira, que o sucede como proprietário do Manixi é uma personagem menor, do ponto de vista moral, um testa de ferro, mas nem por isso menos representativo, pois é o símbolo do capital nacional arruinado pela debacle. Seu patrão e financiador, o Comendador Gabriel da Cunha, representa o poder do capital nacional, manipulando o jogo político, de acordo com seus interesses.

Na disputa política, Juca das Neves, inimigo do Comendador, é a representação do empresário urbano que ruiu sob os escombros da cidade destruída. Mas é de sua amizade com Bataillon, já falecido, que Ribamar se serve para aproximar-se dele e soerguer sua fortuna – em proveito próprio, claro.

Zequinha Batelão, como o chamavam à boca miúda, é uma alegoria da riqueza obtida sem maiores incômodos, o que o leva a uma vida de aventuras, culminando com o seu misterioso desaparecimento e todo o lendário construído em torno disso. Amante de Maria Caxinauá, uma das lendas sobre o seu desaparecimento é que Zequinha teria seguido uma índia Numa e, como os Numas, se tornado invisível. É ele, o venturoso e aventureiro José Bataillon, o amante das amazonas que dá título à narrativa.

É importante frisar a participação feminina na trama. Por enquanto, vamos falar das “brancas”: Ifigênia, Constança e Glorinha. Meramente decorativas, as três personagens representam a dimensão feminina de um mundo cruelmente masculino. Ifigênia, a soberba dama europeia. Constança, a louca matrona amazônica. E Glorinha, inexpressiva, quase idiota, impropriamente chamada de lambisgoia, o que para ela seria um elogio.  

As “índias” Maria, Ivete, Júlia, Eudócia e Diana têm participação muito mais acentuada, inclusive como alegorias. Maria Caxinauá é uma personagem sublime, representação de todo o povo Caxinauá, é a própria encarnação da tragédia que se abate sobre sua nação. Ivete Maacu é a representação da cabocla sedutora, tão explorada, especialmente nas festas juninas – não são à toa as tatuagens em vermelho e azul. Ribamar não economiza advérbios, verbos e adjetivos ao se referir a ela:

 

Bruscamente, incompreensivelmente, irrompendo com fúria e fulgor como Febo no horizonte – alta, forte, violenta, vigorosa, portentosa índia maacu, como uma deusa, surge, aparece, explode pela porta e tem os braços tatuados de vermelho e azul, e quase nua, envolta em um manto de seda prateada e em chamas brilhantes como o céu. (p. 55)  

 

Diante dessa visão, o indefeso Ferreira apaixona-se e, arriscando a ira do chefe, seu sogro, abandona a inútil Glorinha e casa-se com aquela visão, alimentando a lenda de que as caboclas amazônicas são insuperáveis no quesito sensualidade.

Júlia é representante dos míticos Numas, só que visível e palpável. E fazendo jus à fama de sua gente, cativa de guerra que era, armou vingança e encantou-se no invisível. 

Eudócia, tia de Benito Botelho, até por contraste com o próprio sobrinho, representa o conformismo do povo, que se resigna à condição de semiescravo.

Diana, por outro lado, ainda que pouco apareça, é a síntese da mulher moderna, que começa a surgir ainda na primeira metade do século 20, com intensa participação social e política e reivindicando um status de igualdade com o macho opressor.

Paxiúba, é o “emblema da Amazônia amontoada e brutal, sombria, desconhecida, nociva” (p. 39). Quem define o Mulo é o próprio narrador, que o conheceu de perto. Uma ameaça para os outros viventes, Paxiúba era um mero xerimbabo de Zequinha: “dormia a seus pés, como um cão” (p. 79). Paxiúba representa a violência tão presente nas relações amazônicas – sejam políticas, de trabalho ou de família.

Uma personagem com um simbolismo muito forte é Sebastiana Vintém, manicure e fofoqueira profissional. Barbadiana, representa a imigração estrangeira. A escolha tem um toque de humor paródico, porque portugueses, japoneses, turcos e árabes – o principal contingente migratório – acumularam, em um século de histórias, dezenas de casos de sucesso, contra nenhum caso de família negra. O narrador ironiza: Sabá Vintém “envelheceu próspera; almoçava e jantava na casa das madames” (p. 106).

Conchita del Carmen e Fernandinho de Bará quase ficam de fora da trama, mas, já que entraram, precisamos dizer que eles estão ligados pelos laços indissolúveis do comércio sexual, sucesso em qualquer parte do mundo, em qualquer época.  

Duas personagens, pelo que têm de fascinantes, só adquirem pleno sentido quando vistos juntos: Benito Botelho, filho de Isaura, cozinheira do Palácio Manixi, “o maior intelectual amazonense” (p. 58), é levado ainda criança por uma varíola para Manaus, o que o aproxima de Frei Lothar, uma espécie quixotesca – sensível e enlouquecido. Benito e Lothar são um desafio à história oficial, onde os intelectuais são cooptados – vide o “revolucionário” Álvaro Maia – e a Igreja, apenas um braço do poder instituído. Benito mantém-se bêbado e íntegro, um modelo de intelectual incorruptível, enquanto Frei Lothar segue fazendo sua obra: “lutar contra a miséria, contra as doenças, contra a ignorância amazonense...” (p. 163).

Neste ponto entra Abraão Gadelha, jornalista e político, o protótipo do oportunismo nas duas áreas. Uma personagem típica: o intelectual canalha. Gadelha “tinha sido Interventor Federal” (p. 150), mas “o prestígio de seu padrinho Vargas entrava em declínio” (p. 155). Álvaro Maia se enquadraria nesse perfil como uma luva, mas este não é um roman à clef, logo, apague Álvaro Maia da sua lista dos suspeitos de sempre.

Mas, numa narrativa sobre o ciclo econômico da borracha, está faltando um elemento, um mero coadjuvante, uma personagem chapada, sem nenhuma relevância: o seringueiro. Ora, esta é uma ficção paródica da história, construída para denunciar os delírios alucinatórios do capital e as alucinações delirantes proporcionadas pelo capitalismo. Fosse uma narrativa naturalista, teríamos uma daquelas personagens secundárias sonhando sonhos impossíveis, revoluções descabidas e improváveis. Não, nesta narrativa paródica pós-moderna triunfa o grande capital, como um eco da vida real. É por tudo isso que, representando milhares de seringueiros, o narrador vai buscar em sua própria família, seu tio Genaro e seu irmão Antônio, dois fracassados – ao encontro de quem ele viera viver a ilusão de enriquecer no seringal, um Eldorado de papel. A página é antológica:

 

Pois do lado de cá ficava como um sapo em sua poça, condenado ao que seria a família constituída, dois machos protagonistas do enigma do meu silêncio e angustiosa comunicação gestual, parentes quase mudos bichos, que salvavam a vida do deserto por resmungos monossilábicos, viventes sem mulheres e amizades, existindo na prisão geográfica onde só recordar era possível sob a pressão da materialidade selvagem e da solidariedade de guerra: que de madrugada partiam para a estrada como para a morte, impulsionados por uma ordem biológica. (p. 30)

 

Genaro e Antônio não são alegorias. São apenas recortes, feitos de papelão ordinário, no majestoso carro alegórico do seringal, onde se destaca uma enorme hévea – a árvore que sendo mártir é mãe –, rodeada pela floresta exuberante, flores extravagantes e animais exóticos. O distinto público leitor nem perceberá a presença deles.

 

Assista à palestra, no YouTube, clicando aqui.



[1] CUNHA, Euclides da. À margem da história. São Paulo: Unesp, 2019. p. 57. Além dos dois livros citados de Euclides da Cunha, que têm a Amazônia por tema, recomendo o infelizmente raro livro de Samuel Benchimol Amazônia: um pouco-antes e além-depois. Manaus: Calderaro, 1977.


domingo, 14 de março de 2021

Manaus, amor e memória DVI


Cheia de 1953.
Rua Marquês de Santa Cruz.

 

sexta-feira, 12 de março de 2021

Bolero's Bar 29

Vereda tropical 

Zemaria Pinto


Foi há muito tempo, nossas primeiras férias. Ela era pouco mais que uma adolescente. O hotel à beira-mar era um convite à contemplação: a brisa úmida queimava o sal em nossos lábios e sons de longes canções se mesclavam à suave música das ondas. Maré baixa, a extensão da praia era um jardim de caminhos entrelaçados – até hoje sinto o seu hálito quente e ouço suas palavras sem nexo, suas gargalhadas sem motivo. Mas tudo são lembranças, apenas. Já não há mais praia, não mais mar, não mais brisa, não mais canção. E não há nossos desejos explorando, cegos, aqueles caminhos tortuosos.     

 

Vereda tropical (1938), de Gonzalo Curiel (México, 1904-1958). Bolero.

No Spotify, ouça a playlist Bolero’s Bar (em construção).

quinta-feira, 11 de março de 2021

A poesia é necessária?

          Soneto 340 – Sintético

                                                 Glauco Mattoso

 

De como a poesia é definida

depende a trajetória do poeta.

Qual é, pergunto, a fórmula secreta

que traça em poucas linhas uma vida?

 

Segundo Rilke, a lira não duvida.

Mas Eliot é turrão, e tudo objeta.

Bashô quanto mais crê menos se aquieta.

Pessoa diz que é fé na dor fingida.

 

Divergem tantos mestres só no tom.

Não há por que dar tratos ao bestunto:

há química no verso, não um dom.

 

Qualquer opinião, qualquer assunto

será, verdade ou não, poema bom

se for densa a fração, breve o conjunto.

 


terça-feira, 9 de março de 2021

Liberdade de expressão

    Pedro Lucas Lindoso

 

Quando jovem fiz intercâmbio numa pequena cidade de Ohio, nos Estados Unidos. Levei comigo uma bandeira do Brasil. Ao mostrá-la aos “irmãos” americanos, ouvi um simpático elogio ao nosso pavilhão. Mas, de repente, uma enfática correção:

– Mas nossa bandeira é mais bonita!

Os americanos veneram a sua bandeira. Para eles é um símbolo que representa todos os americanos. Independente de raça, credo, status social ou religião. Todo o povo americano compartilha essa extrema devoção ao lábaro, que, como o nosso, é estrelado.

Certo dia, há muitos anos, um cidadão americano, em transloucado ato de raivoso protesto, queimou a bandeira dos Estados Unidos. O ato foi televisionado e houve comoção no país inteiro.

Assim como a bandeira é sagrada, os princípios constitucionais secularmente preservados também o são. Dentre eles, o “freedom of speech”. Ou seja, a liberdade de expressão.

A questão posta era a seguinte: é crime ou não um cidadão americano, nos Estados Unidos, queimar a bandeira?

O assunto foi judicializado e chegou à Suprema Corte dos Estados Unidos. O Congresso Americano se apressou em passar uma lei definindo como crime inafiançável aquele inadmissível ato de protesto. Como o assunto já estava na Suprema Corte, coube aos nove Ministros decidirem.

Os membros da Suprema Corte americana são chamados de Mr. Justice. Gozam de extremo respeito e consideração do povo. Tem status até maior que o presidente. Enquanto os presidentes ficam no cargo por no máximo oito anos, os Mr. Justice têm vitaliciedade, como aqui no Brasil.

Todos queriam ver o sujeito condenado e preso. A opinião pública era praticamente unânime. A imprensa toda era favorável à condenação. 

A Corte Maior americana, em apertada decisão, por cinco votos a quatro, decidiu que em nome do sagrado princípio da Liberdade de Expressão, aquilo não podia ser considerado crime.

No dia seguinte um outro maluco, em protesto similar, fez o mesmo: queimou a bandeira. Não teve televisão, não foi mais assunto e ficou, como o outro cidadão, com a pecha de maluco, antipatriota e merecedor de todo o desprezo da sociedade. E o princípio constitucional não foi maculado.

Pergunta-se: propor o fechamento do Supremo, do Congresso e o fim do estado democrático de direito é liberdade de expressão, maluquice ou crime de lesa-pátria? Bom lembrar que a Alemanha é uma grande democracia. Lá é proibido fazer apologia ao Nazismo.


segunda-feira, 8 de março de 2021

Folia no seringal: alegoria e paródia em O amante das amazonas 5/9

Zemaria Pinto

 

Harmonia: o uso do tempo

A fragmentária narrativa de O amante das amazonas é feita em flashback. Ribamar narra muitos anos depois dos acontecimentos.

 

Porque estou velho mas não estou louco. (...) Sou de outra época. Sou do tempo de um capitalismo primitivo, arcaico, luxuoso, feito tricotado em ouro e pedras preciosas. (p. 18-19)

 

Memória e não linearidade narrativa podem induzir o leitor a pensar em tempo psicológico, mas não é o caso, posto que o narrador, ainda que por vezes tenha as lembranças embaralhadas, sempre busca o tempo cronológico, a referência precisa, a exatidão fictícia, mas histórica. A não linearidade narrativa, entretanto, respeita os limites das duas partes identificadas: a primeira, que vai até 1912; e a segunda, daí em diante. Mas, ao apresentar a personagem Benito Botelho, o narrador permite-se uma licença poética, ao mostrar Benito, de 37 anos, que fora amigo de infância de Zequinha Bataillon, bebendo com os poetas do Clube da Madrugada. Pela descrição, infere-se que o ano dos acontecimentos seja 1927, um pouco mais, um pouco menos. O caso é que, por essa época, o pessoal do Clube, que viria a ser fundado em 1954, ainda não nascera. Mas Ribamar – o velho narrador – traz no próprio nome a explicação para esse paradoxo temporal. No filme Aguirre, a cólera dos deuses (1972), o diretor Werner Herzog funde duas expedições ao Rio Amazonas, separadas por 20 anos, em uma só, fazendo um filme extraordinário. Fosse um documentário, seria mistificação. Sendo uma ficção, esse paradoxo é um artifício que o autor lança mão para enriquecer seu universo. Em favor de Ribamar, diga-se que os copos de Manaus à época não eram muito interessantes: Maranhão Sobrinho e o Conde Stradelli estavam mortos; Nunes Pereira, vivia enfiado entre os índios, tomando caxiri. Era preciso buscar no futuro bebedores à altura, entre os poetas do Clube da Madrugada, a mais extraordinária explosão de talentos sobre a linha do equador, no século 20.

A fragmentação narrativa é um puzzle que o leitor vai encaixando aos poucos, posto que todos os fatos narrados levam, na primeira parte, à queda do seringal Manixi; e na segunda parte, à ascensão de Ribamar, o repositório das lembranças perdidas do seringal, o único a poder narrar O amante das amazonas, pois todas as outras personagens já eram finadas.  

 

Assista à palestra, no YouTube, clicando aqui.

 

domingo, 7 de março de 2021

sábado, 6 de março de 2021

sexta-feira, 5 de março de 2021

Bolero's Bar 28

 Lama 

Zemaria Pinto


Liberdade. Essa é a palavra. Liberdade de fazer o que quero, quando quero e com quem. É verdade que nem sempre vou poder fazer onde quero, mas... É por isso que calúnia e fofoca não colam em mim. Ainda mais, de quem já comeu na minha mão. É ignorar, simplesmente. Minha avó tinha um ditado: quem com porcos anda chafurda com eles. Para uns, a lama é um estágio; para outros, permanência e destino. O melhor é fazer de conta que o paspalho morreu. Foi atropelado pela manduquinha, pronto! Morto não fala, não difama, não mente. A morte do opressor é a libertação do oprimido.      

 

Lama (1952), de Ailce Chaves (?) e Paulo Marques (?). Samba-canção.

No Spotify, ouça a playlist Bolero’s Bar.

 

quinta-feira, 4 de março de 2021

A poesia é necessária?

         Cordelito

Alcides Werk (1934-2003)

 

 

Me responda, Zemaria:

O que eu farei ou faria

Ao constatar, de repente,

Que este meu corpo indecente

Não comporta minha mente?


 

Poema-autógrafo de Alcides Werk,
em data incerta e não sabida, 
provavelmente, na varanda de sua casa.


terça-feira, 2 de março de 2021

Saudades da Zona Franca

 Pedro Lucas Lindoso

 

Manaus celebra em 28 de fevereiro mais um ano da SUFRAMA – Superintendência da Zona Franca de Manaus. Recebo um WhatsApp de tia Idalina.

– Li que a Zona Franca faz aniversário. Pensei que tinha acabado.

Disse-lhe que o importante está vivo e produzindo muitas coisas. Apesar de constantes ataques de empresários do Sudeste. A zona franca hoje é o nosso PIM – Polo Industrial de Manaus.

Mas, para titia, a zona franca acabou faz tempo. Durante anos, quando vinha a Manaus, fazia compras e mais compras, naquela muvuca do Centro da cidade. Os mais velhos se recordam. Lojas e lojas apinhadas de gente. As famosas importadoras.

Tia Idalina ainda tem em sua casa, em Copacabana, um filtro inglês, à base de carvão, comprado naquela época. Outra coisa que conserva com carinho é um conjunto de porcelana chinesa. Ela tem o jogo completo. Inclusive, um enorme vaso, que decora sua casa já por décadas. Possui ainda dois conjuntos de faqueiros importados, que vinham num estojo de plástico, muito prático de guardar. Ela tem dois. Um prateado outro dourado.

Há ainda em sua casa dois leões azuis de porcelana chinesa, com formato de pequenas carrancas. Ela diz que são guardiões e exerceram função protetora contra energias negativas. Tudo isso comprado nas importadoras do Centro, que durante anos faziam a alegria de turistas consumidores como Idalina.

Outra mania de titia eram as batas indianas e os lenços de seda. Numa de suas viagens, chegou a levar mais de 50 lenços. Foram confiscados pela alfândega. Sim! Tínhamos alfândega para sair de Manaus. Ela disse que era para presentear amigas e para uso próprio. Não convenceu o fiscal. Ficou só com uma dúzia.

A sorte foi que o fiscal não notou que titia levava seis relógios Seiko importados, dentro de um pote com doce de cupuaçu. 

Outra coisa que titia sempre levava para as amigas de Copacabana eram uns famosos baralhos de plástico. O Brasil só produzia baralhos de papelão. Os de plástico aqui eram bem baratos e no Sudeste custavam o olho da cara.

Outra encomenda recorrente eram as famosas calças Lee. No Rio de Janeiro, chegavam a custar cinco vezes mais caro. Os sobrinhos e amigos cariocas encomendavam também máquinas fotográficas Canon, aparelhos de som e videocassetes. Titia também fazia a festa com os tecidos importados. Uma variedade enorme de panos oriundos de diversos países do mundo.

Disse-lhe que isso tudo é coisa do passado. No que ela me respondeu.

– Morro de saudades. Dessa Zona Franca e dos voos da Varig.