Tenório Telles
Platão
– crítica e imitação
A crítica nasceu com a
Filosofia. Uma das primeiras reflexões sobre a poesia e a função do poeta na
sociedade foi empreendida por Platão na sua obra mais expressiva, A República, escrita no século IV a.C. O
julgamento do filósofo foi desfavorável aos artífices da palavra: considerados
como meros “imitadores de imagens da virtude e também de tudo o mais sobre o
que versam seus poemas e que não atingem a verdade” (PLATÃO, 2014, p. 389).
O foco da apreciação de
Platão foi o autor da Odisseia que, sendo um imitador “por meio de palavras e
frases” seria incapaz de colaborar para educar os homens e, assim, torná-los
melhores. Outro pecado a justificar seu ponto de vista sobre a poesia, expressa
na figura de Homero, deve-se ao fato de despertar, nos interlocutores dos
textos poéticos, emoções capazes de ofuscar-lhes a razão:
Do
mesmo modo, diremos que o poeta imitador cria uma constituição má dentro da
alma de cada um, porque favorece o que ela tem de irracional e não discerne nem
o maior nem o menor, mas ora julga grandes, ora pequenas as mesmas coisas,
criando imagens vazias, mantendo-se, porém, bem afastado da verdade (PLATÃO,
2014, p. 396).
A severidade de Platão,
motivada pela sua perspectiva utilitária da arte, resultou num posicionamento
radical em relação ao poeta: o qual não deveria ser acolhido na cidade que
imaginava (“governada por boas leis”), “pois ele desperta e nutre essa parte da
alma e, tornando-a forte, destrói a razão” (PLATÃO, 2014, p. 396).
Evidentemente, os critérios suscitados pelo autor de A República não eram
estéticos, mas de caráter moral e político.
Essas primeiras reflexões
já trazem os fundamentos que embasarão os debates sobre a natureza da arte, o
sentido da criação – compreendendo o criador e a obra – e o seu papel social. E
perpassando esses elementos, os critérios de julgamento e recepção dos objetos
artísticos.
Arte
e labor criativo
O texto em epígrafe, do
poeta e crítico T. S. Eliot, retoma o discurso sobre o processo artístico em
outros termos: entende a arte em seu sentido histórico e como labor criativo,
que demanda dedicação e trabalho para ser apreendido. Isso significa que o
artista é um sujeito que se constrói pelo esforço individual e como parte de
uma tradição. Conhecê-la e apropriar-se de seu vasto repertório técnico e
estético é imprescindível no processo criador e na renovação das expressões
artísticas. Eliot (1989, p. 39) considerava que
nenhum
poeta, nenhum artista tem sua significação completa sozinho. Seu significado e
a apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os
poetas e os artistas mortos. Não se pode estimá-lo em si...
A perspectiva de Eliot
sobre a cultura é diacrônica – em que passado e presente se imbricam como num
jogo de espelhos em que um se reflete no outro, engendrando, assim, as
possibilidades do futuro. Funde-se no outro, gerando um calidoscópio de formas
e cores difusas, ambíguas e inapreensíveis – metáfora viva da arte. Esse ponto
de vista do autor de A terra desolada faz parte de sua visão do fenômeno
histórico e do fundamento estético que enforma sua produção poética (uma vez
que a entendia como “princípio de estética”). A leitura da primeira parte do
poema Quatro quartetos, intitulada “Burnt Norton”, é evocativa desse olhar
sobre o tempo – compreendido como grandes fluxos superpostos que se
autodeterminam:
O
tempo presente e o tempo passado
Estão
ambos talvez presentes no tempo futuro
E
o tempo futuro contido no tempo passado.
Se
todo tempo é eternamente presente
Todo
tempo é irredimível.
O
que poderia ter sido é uma abstração
Que
permanece, perpetua possibilidade,
Num
mundo apenas de especulação.
O
que poderia ter sido e o que foi
Convergem
para um só fim, que é sempre presente.
(ELIOT,
1981, p. 199)
A cultura, a arte e a
história constituem uma “totalidade” em movimento, em continuidade permanente –
em que os fluxos temporais se imbricam, se amalgamam e fluem, assumindo formas
e sentidos novos. Essa relação com a tradição, portanto com o passado,
tensionada com o presente, desperta no escritor a consciência de que não é um
astro desgarrado e nem é uma subjetividade fechada em si mesma, mas
compreende-se situado na constelação dos criadores e “ferrageiro” do verbo:
assim, situa-se, “para contraste e comparação, entre os mortos” (ELIOT, 1989,
p. 39). O novo se funda sobre os alicerces do ontem – em que o hoje logo será
ultrapassado pelo devir da grande máquina do mundo que torna tudo inapreensível
e crepuscular.
Essa consciência não é um
atributo imperativo apenas para o poeta, mas para todos os que se dedicam à
palavra – seja o crítico, o professor, o autor: todos são chamados a refletir
sobre as implicações estéticas e históricas de seus ofícios – sobretudo a
“responsabilidade” como criadores e formadores, pois é inegável, sem descurar o
aspecto estético, o caráter pedagógico das artes. O interesse pelo objeto
artístico, como experiência de fruição da beleza, decorre da necessidade e do
prazer experimentado pelos homens. Para Aristóteles (2011, p. 42), “A razão
disto é também que aprender não sé só agradável para os filósofos, mas é-o
igualmente para os outros homens, embora estes participem dessa aprendizagem em
menor escala”.
O crítico, em particular,
para levar a termo seu ofício, não pode prescindir do histórico, compreendido
como o espaço das vivências, do aprendizado e repositório dos avanços técnicos,
estéticos e dos conhecimentos. Inquisidor de seu tempo, portanto um
contemporâneo, o crítico estende suas pontes entre as margens do grande
oceanotempo da cultura, propiciando, como destaca Agamben (2002, p. 71): “um
encontro entre os tempos e as gerações”.
A atividade crítica
pressupõe uma atitude profissional e uma formação adequada para o seu
exercício. Em se tratando de crítica literária, exige-se, como nos lembra Leyla
Perrone-Moisés (2016, p. 68), “bagagem cultural e argumentos, e estes
necessitam de um mínimo de fundamentação teórica, que só se adquire na prática
de muita leitura ‘de’ e ‘sobre’ literatura... (e) requer formação e
profissionalismo”.
O pacto da criação
literária se estabelece por meio da relação do escritor com o leitor. O ponto
de convergência entre os dois é o objeto artístico. O crítico literário, com
seu conhecimento da tradição e domínio dos critérios estéticos e de legitimação
da obra criativa, pode ajudar de forma construtiva na aproximação dos leitores
dos textos literários e, assim, contribuir com sua formação. Isso esclarece a
afirmativa de Eliot quando ressalta que o conhecimento do antigo e do novo é
uma consciência que se exige do crítico e, ao mesmo tempo, é uma grande
responsabilidade.
Crítico dos mais
qualificados, Umberto Eco (2016, p. 272) considera que na definição da obra de
arte “os valores (o ‘antes’ que está na origem da obra e o ‘depois’ ao qual se
dirige a obra) só se resolvem em estrutura”. Como um corpus tecido com
palavras, ideias e imagens, o objeto artístico pode expressar princípios
contrastantes com a opinião do crítico ou ser afirmativo de posicionamentos
preconceituosos. Nesse aspecto, é imperativa a capacidade de julgar do
analista, que deve agir com distanciamento, honestidade e instrumentalizado de
critérios estéticos claros. Eco problematiza a possibilidade de discordância em
relação aos valores que enformam uma obra de arte, podendo contestá-la e
apontar-lhe as fraquezas. A validade do objeto analisado é outra possibilidade
e, por isso, conclui que
A
tarefa do crítico pode ser também e especialmente esta: um convite a escolher e
a discernir. Cada um de nós, lendo uma obra literária, ainda que professe os
critérios técnico-estruturais aqui expostos, deve e pode encontrar uma relação
emocional e intelectual, descobrir uma visão de mundo e do homem. É justo que
existam pessoas com a sensibilidade mais apurada que nos comuniquem as
experiências de leitura para que possam se tornar nossas também (ECO, 2016, p.
272).