Amigos do Fingidor

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

A poesia é necessária?

 Última jornada

Machado de Assis (1839-1908)

 

I

E ela se foi nesse clarão primeiro,

Aquela esposa mísera e ditosa;

E ele se foi o pérfido guerreiro.

 

Ela serena ia subindo e airosa,

Ele à força de incógnitos pesares

Dobra a cerviz rebelde e lutuosa.

 

Iam assim, iam cortando os ares,

Deixando em baixo as fértiles campinas,

E as florestas, e os rios e os palmares.

 

Oh! cândidas lembranças infantinas!

Oh! vida alegre da primeira taba!

Que aurora vos tomou, aves divinas?

 

Como um tronco do mato que desaba,

Tudo caiu; lei bárbara e funesta:

O mesmo instante cria e o mesmo acaba.

 

De esperanças tamanhas o que resta?

Uma história, uma lágrima chorada

Sobre as últimas ramas da floresta.

 

A flor do ipê a viu brotar magoada,

E talvez a guardou no seio amigo,

Como lembrança da estação passada.

 

Agora os dois, deixando o bosque antigo,

E as campinas, e os rios e os palmares,

Para subir ao derradeiro abrigo,

 

Iam cortando lentamente os ares.

 

 

II 

E ele clamava à moça que ascendia:

“Oh! tu que a doce luz eterna levas,

E vais viver na região do dia,

 

Vê como rasgam bárbaras e sevas

As tristezas mortais ao que se afunda

Quase na fria região das trevas!

 

Olha esse sol que a criação inunda!

Oh! quanta luz, oh! quanta doce vida

Deixar-me vai na escuridão profunda!

 

Tu ao menos perdoa-me, querida!

Suave esposa, que eu ganhei roubando,

Perdida agora para mim, perdida!

 

Ao maldito na morte, ao miserando,

Que mais lhe resta em sua noite impura?

Sequer alívio ao coração nefando.

 

Nos olhos trago a tua morte escura.

Foi meu ódio cruel que há decepado,

Ainda em flor, a tua formosura.

 

Mensageiro de paz, era enviado

Um dia à taba de teus pais, um dia

Que melhor fora se não fora nado.

 

Ali te vi; ali, entre a alegria

De teus fortes guerreiros e donzelas,

Teu doce rosto para mim sorria.

 

A mais bela eras tu entre as mais belas,

Como no céu a criadora lua

Vence na luz as vívidas estrelas.

 

Gentil nasceste por desgraça tua;

Eu covarde nasci; tu me seguiste;

E ardeu a guerra desabrida e crua.

 

Um dia o rosto carregado e triste

À taba de teus pais volveste, o rosto

Com que alegre e feliz dali fugiste.

 

Tinha expirado o passageiro gosto,

Ou o sangue dos teus, correndo a fio,

Em teu seio outro afeto havia posto.

 

Mas, ou fosse remorso, ou já fastio,

Ias-te agora leve e descuidada,

Como folha que o vento entrega ao rio.

 

Oh! corça minha fugitiva e amada!

Anhangá te guiou por mau caminho,

E a morte pôs na minha mão fechada.

 

Feriu-me da vingança agudo espinho;

E fiz-te padecer tão cruas penas,

Que inda me dói o coração mesquinho.

 

Ao contemplar aquelas tristes cenas,

As aves, de piedosas e sentidas,

Chorando foram sacudindo as penas.

 

Não viu o cedro ali correr perdidas

Lágrimas de materno amado seio;

Viu somente morrer a flor das vidas.

 

O que mais houve da floresta em meio

O sinistro espetáculo, decerto

Nenhum estranho contemplá-lo veio.

 

Mas, se alguém penetrasse no deserto

Vira cair pesadamente a massa

Do corpo do guerreiro; e o crânio aberto,

 

Como se fora derramada taça,

Pela terra jazer, ali chamando

O feio grasno do urubu que passa.

 

Em vão a arma do golpe irão buscando,

Nenhuma houve; nem guerreiro ousado

A tua morte ali foi castigando.

 

Talvez, talvez Tupã, desconsolado,

A pena contemplou maior do que era

O delito; e de cólera tomado,

 

Ao mais alto dos Andes estendera

O forte braço, e da árvore mais forte

A seta e o arco vingador colhera;

 

As pontas lhe dobrou, da mesma sorte

Que o junco dobra, sussurrando o vento,

E de um só tiro lhe enviou a morte.”

 

Ia assim suspirando este lamento,

Quando subitamente a voz lhe cala,

Como se a dor lhe sufocara o alento.

 

No ar se perdera a lastimosa fala,

E o infeliz, condenado à noite escura,

Os dentes range e treme de encontrá-la.

 

Leva os olhos na viva aurora pura

Em que vê penetrar, já longe, aquela

Doce, mimosa, virginal figura.

 

Assim no campo a tímida gazela

Foge e se perde; assim no azul dos mares

Some-se e morre fugidia vela.

 

E nada mais se viu flutuar nos ares;

Que ele, bebendo as lágrimas que chora,

Na noite entrou dos imortais pesares,

 

E ela de todo mergulhou na aurora.



terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Curumim Jesus

 Pedro Lucas Lindoso

 

É Natal na floresta das chuvas. Aqui não há neve, mas chove. E muito. Nessa época do ano o rio começa a encher. Até junho as chuvas serão abundantes, como sempre.

Carlos fez sua casa longe do rio. Num barranco. Assim evita problemas com a cheia. Sua esposa Joana é professora da comunidade. Carlos, além de pescar, produz açaí e castanha. O casal tem dois filhos. Um curuminzinho de dois anos e uma linda cunhantã de cinco.

Joana fez uma bela árvore de Natal para alegrar as crianças. Sabiamente, enfeitou sua árvore com coisas da floresta. Pintou caroços de tucumã para fazer bolas. Fez enfeites com palha de açaí e ouriços de castanha. Ficou uma maravilha.

Carlos veio a Manaus comercializar seus produtos e fazer compras. Perguntou a sua esposa se ela queria algo especial. Joana pediu um presépio, se não fosse muito caro.

O presépio chegou numa caixa “made in China”. Provavelmente os chinesinhos que produziram o presépio nunca ouviram falar de Jesus, Maria e José.

Joana adorou o presépio e decidiu montá-lo na escola. Queria compartilhar com seus alunos e a comunidade. Carlos que também é marceneiro caprichou na montagem. Areia do rio, palhas de açaizeiro e um lindo painel com lua, estrelas e o cometa que anunciava a chegada de Jesus, compunham, com singela beleza amazônica, o presépio vindo da China.

Quando ficou pronto Joana chamou os alunos e a comunidade para vê-lo. Um dos alunos pergunta:

– Quem é esse curumim?

Joana explica que o curumim é Jesus, que se faz curumim e nasce todo ano como Salvador do Mundo.

– E ele nasceu num tapiri?

Não há tapiri em Belém da Judéia. Ele nasceu numa gruta. Pobrezinho. Esses pastores o reconheceram como o Salvador. Esses reis vieram visitá-lo e trouxeram presentes, explicou a professora Joana.

– Pensei que Deus fosse gente grande! Exclamou uma cunhatã muito sabida.

Deus é o Pai, o Filho e o Espírito Santo, explica Joana. Esse curumim é Deus. É o curumim Jesus.

 

 

domingo, 25 de dezembro de 2022

Manaus, amor e memória DXCVIII


Governadores do Amazonas no século 19 e na virada do 20.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

A poesia é necessária?

 

Gaia

 

Bruna Lombardi

 

Você sabe como eu sou despreocupada

que me encerro neste quarto e me permito

todas as divagações, as fantasias

obsessões, perseguições, todos os dias

você sabe que eu me viro de inventos

que eu me reparto e dou crias

que eu mal me resolvo e me aguento

carrego pedras no bolso

e enfrento ventanias.

 

Você sabe como eu sou desorientada

raciocino pelo instinto e cometo

fugas de túnel de ladra de galeria

uso malhas e madras manhas e lanhas

e percorro superfícies

em que você escorregaria

 

Mas você sabe como eu sou de subsolos

de subterfúgios, de subversos subliminares

como eu sou de submundos

subterrâneos, de sub-reptícias folias

meio de circo, meio de farsa

ervas, panfletos, fluidos, presságios

quebrantos, jeitos, gírias, reviras

de sensações e cismas, filosofias

 

de como eu sou de estradas, andanças, pressentimentos

atmosférica e vadia

gato da noite, de crises, guitarras

ouros e danças e circunstâncias

de vinho azedo e companhia.

       

Que eu sou de todas as misturas

todas as formas e sintonias

e enfrento esse aperto, essas normas

forças, pressões, imposições, o poderio

os intervalos, o silêncio da maioria.

 

Você sabe de toda minha luta

mesmo quando a intenção silencia

que eu não cedo, não desisto

a todo custo, a toda faca, a todo risco

eu sobrevivo de paixão e de anarquia.

 

Você sabe bem da minha fraude

Você conhece as minhas alquimias.

 

 

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Propósitos para o próximo ano

 Pedro Lucas Lindoso

 

Estava na piscina do condomínio quando um jovem empurrou seu irmão menor, ainda de tênis e camisa, na piscina. O menino saiu com o tênis encharcado e comentou com a mãe:

– A senhora viu? Ele fez de propósito!

Fiquei pensando se o garoto sabia o significado da palavra propósito. Ele a usou corretamente, sem dúvida. O dicionário nos ensina que propósito significa tomada de decisão; aquilo que se pretende alcançar ou realizar; finalidade, fim, mira. Ao empurrar o irmão ainda vestido na piscina, o rapaz tinha uma finalidade. Provavelmente mostrar superioridade, ou exibir-se ou mesmo perturbar o irmão.

De repente, a palavra propósito começou a aparecer em livros que leio, em entrevistas e podcasts. Em recente comemoração com colegas de trabalho sugeriu-se que as pessoas, de forma voluntária, revelassem um propósito para o próximo ano que em breve começará.

Ao receber o presente do amigo oculto, cada um dos presentes revelou seu propósito para 2023. O primeiro disse que iria terminar seu doutorado. Outra, já separada, que assinaria os papéis do divórcio. O fumante inveterado informou que ia parar de fumar. Quatro pessoas disseram que fariam regime para emagrecer.  Ela disse que queria engravidar. Ele concordou com o propósito da noiva. Alguns eram improváveis e não passavam de sonhos, como ganhar na loteria, por exemplo. Outros bem saudáveis como o do jovem profissional ao dizer que finalmente iria sair da casa dos pais. Complementou dizendo que ter responsabilidade pela própria vida é o primeiro passo para atingir metas. Foi aplaudido. De repente, alguém colocou uma questão preocupante:

– Penso que para se ter um propósito é preciso saber o que se quer e onde se quer chegar. Além disso, é necessário saber exatamente como e o que fazer para alcançar esse propósito. A pessoa disse que estava fazendo análise justamente para descobrir isso. E que seu propósito era ter alta em 2023.

Finalmente o médico do grupo disse que o Hospital John Hopkins fez uma pesquisa sobre o assunto. O resultado foi surpreendente. Os levantamentos feitos concluíram que as pessoas que têm propósitos na vida vivem mais.  O que parece bastante óbvio. Mas o que de fato foi surpreendente, segundo o nosso colega médico, é que que essas pessoas que tem propósitos vivem mais do que aquelas que cuidam bem da própria saúde. Ou seja, se cuidamos da nossa saúde e ainda termos propósitos, ganhamos dois propulsores de longevidade. Assim, o importante é cuidar da saúde e ter propósitos. Não se esqueça: as pessoas que têm propósitos na vida vivem mais. Feliz 2023!

 

domingo, 18 de dezembro de 2022

Manaus, amor e memória DXCVIII

 

Esse jegue aí está na contramão... Ou seria ele inglês?

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Homenagens a Mário Faustino e Torquato Neto, por Zemaria Pinto

Academia Amazonense de Letras, projeto Academia de Portas Abertas, 
dia 27 de novembro, na "aula" do professor Mário Ypiranga Monteiro, 
vivido pelo ator Roger Barbosa. 






 

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

A poesia é necessária?

 

Definição de Poesia

Boris Pasternak (1890-1960)

 

Um risco maduro de assobio.

O trincar do gelo comprimido.

A noite, a folha sob o granizo.

Rouxinóis num dueto-desafio.

 

Um doce ervilhal abandonado,

A dor do universo numa fava.

Fígaro: das estantes e flautas –

Geada no canteiro, tombado.

 

Tudo o que para a noite releva

Nas funduras da casa de banho,

Trazer para o jardim uma estrela

Nas palmas úmidas, tiritando.

 

Mormaço: como pranchas na água,

Mais raso. Céu de bétulas, turvo.

Se dirá que as estrelas gargalham,

E no entanto o universo está surdo.

(1917)

 

(Tradução: Haroldo de Campos)


quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Oito de dezembro


Pedro Lucas Lindoso

 

Um dia especial. Aqui no Amazonas, comemora-se o dia da padroeira do Estado.  Dia de Nossa Senhora da Conceição. A data é de grande significado para a Igreja Católica. A Virgem Maria, Mãe de Jesus, foi concedida sem pecado.

A maternidade divina de Maria é base e origem de sua imaculada conceição. Ela é fruto da união de Santa Ana e São Joaquim. Embora Maria tenha nascido como todo ser humano, os católicos acreditam que Maria foi concebida sem o pecado original.

A igreja católica acredita que Maria foi preservada por Deus para ser a morada sagrada de Jesus.

Os católicos festejam a data desde o século XV. Há muitos anos, Nossa Senhora da Conceição ė considerada a padroeira da nação portuguesa. No Brasil, além do Amazonas, é celebrada em muitas localidades.

No sincretismo religioso brasileiro, a Imaculada Conceição é a padroeira dos pescadores e também a deusa do amor. Não é por acaso que neste dia se comemore o Dia da Família.

Meus pais, José e Amine Lindoso, casaram-se neste dia em 1948. Vera e eu também casamos nesta. Nossa Senhora nos abençoou com dois filhos e três netinhas. Todas homenageiam Nossa Senhora. As duas mais velhas são Marias. Maria Luísa e Maria Helena. A mais novinha se chama Catarina em honra de Nossa Senhora das Graças.

Maria Luísa é estudiosa, simpática e gosta de dançar. Maria Helena é extrovertida, despachada e também gosta de dançar.  Ambas gostam de músicas do boi Caprichoso. Catarina é uma bebezinha muito simpática e curiosa. Espero que ela goste do boi Garantido!

Dia oito de dezembro também se comemora o dia da Justiça. O conceito de Justiça está vinculado aos conceitos de Equidade, Honestidade e Dignidade.  Por isso o conceito de Justiça é uma utopia.

Neste dia oito celebramos Nossa Senhora, a família, a Justiça e o amor. Este último o mais importante. A utópica Justiça pode ser uma ilusão, um sonho ou devaneio. Diferentemente da família e do amor.

Não é sem razão que, no sincretismo religioso, Nossa Senhora da Conceição representa o amor e a família.

 

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

domingo, 11 de dezembro de 2022

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

A poesia é necessária?

 

Carta a Stalingrado

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

 

Stalingrado...

Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!

O mundo não acabou, pois que entre as ruínas

outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,

e o hálito selvagem da liberdade

dilata os seus peitos, Stalingrado,

seus peitos que estalam e caem,

enquanto outros, vingadores, se elevam.

 

A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.

Os telegramas de Moscou repetem Homero.

Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo

que nós, na escuridão, ignorávamos.

Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída,

na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,

no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das bombas,

na tua fria vontade de resistir.

 

Saber que resistes.

Que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos, resistes.

Que quando abrimos o jornal pela manhã teu nome (em ouro

 [oculto) estará firme no alto da página.

Terá custado milhares de homens, tanques e aviões, mas valeu a pena.

Saber que vigias, Stalingrado,

sobre nossas cabeças, nossas prevenções e nossos confusos

 [pensamentos distantes

dá um enorme alento à alma desesperada

e ao coração que duvida.

 

Stalingrado, miserável monte de escombros, entretanto resplandecente!

As belas cidades do mundo contemplam-te em pasmo e silêncio.

Débeis em face do teu pavoroso poder,

mesquinhas no seu esplendor de mármores salvos e rios não profanados,

as pobres e prudentes cidades, outrora gloriosas, entregues sem luta,

aprendem contigo o gesto de fogo.

Também elas podem esperar.

 

Stalingrado, quantas esperanças!

Que flores, que cristais e músicas o teu nome nos derrama!

Que felicidade brota de tuas casas!

De umas apenas resta a escada cheia de corpos;

de outras o cano de gás, a torneira, uma bacia de criança.

Não há mais livros para ler nem teatros funcionando nem

[trabalho nas fábricas,

todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede,

mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos ao sol,

ó minha louca Stalingrado!

 

A tamanha distância procuro, indago, cheiro destroços sangrentos,

apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,

caminho solitariamente em tuas ruas onde há mãos soltas e relógios partidos,

sinto-te como uma criatura humana, e que és tu, Stalingrado, senão isto?

Uma criatura que não quer morrer e combate,

contra o céu, a água, o metal a criatura combate,

contra milhões de braços e engenhos mecânicos a criatura combate,

contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a criatura combate,

e vence.

 

As cidades podem vencer, Stalingrado!

Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas uma

 [fumaça subindo do Volga.

Penso no colar de cidades, que se amarão e se defenderão contra tudo.

Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres,

a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem.