Tainá Vieira
Desde o primeiro instante até
o último momento de vida temos relação com a comida. Tem gente que morre
desnutrida assim como tem gente que morre por comer demais. Há comida em todos
os momentos de nossas vidas, sempre há comida por perto, mesmo que esta não nos
pertença naquele momento. É comum em filmes e novelas ver cena de alguém pobre
e com fome olhando para vitrines de padarias, aqueles bolos tão bonitos e
deliciosos convidando-os a comê-los e a pessoa sem nada para comprar. Mas não é
só na ficção que existe isso, na vida real é o que mais se vê. Certa feita,
quando eu era adolescente e estava lanchando na rua, mais precisamente numa
praça, estava sozinha e comendo um sanduiche e segurando uma garrafinha de
refrigerante, apareceu uma senhora, acho que era moradora de rua, ela roubou-me
o lanche das mãos e saiu caminhando calmamente, eu fiquei sem ação, apenas
fiquei olhando ela ir embora com o meu lanche. Ela precisava mais do que eu.
Comer o mesmo alimento todos os dias é
nauseante, mas quando este falta sentimos saudade. Os ribeirinhos, pessoas que
moram às margem dos rios, praticamente só se alimentam de peixe e farinha. Pelo
menos do lugar de onde vim é assim, não é todo dia isso, mas com certeza dos
sete dias da semana cinco são o peixe e a farinha que reinam na mesa. No
entanto, quando vão para a cidade ou a seca mata os peixes e passam a ingerir
outros alimentos, essas pessoas sentem a falta, ou melhor, sentem necessidade
do peixe e da farinha. Pelo menos esse é o meu caso. Na verdade, nunca estamos
100% satisfeitos com o que comemos. Acontece de comermos algo e desejarmos
outro. Outro dia aprendi a fazer um sanduiche sem pão: coloca-se a carne; o
tomate; o queijo e o molho na folha de alface, feito isso é só fechar os olhos
e comer imaginando que a folha de alface é o pão. Come-se bem, sem precisar sair
da dieta.
Quando eu estava na faculdade,
li um livro chamado Seara Vermelha,
do baiano Jorge Amado, cujo enredo conta a saga de uma família de retirantes
expulsa de terras nordestinas, essa família toma o rumo de São Paulo, a pé. A
viagem é cheia de aflições, morte e fome, muita fome. Mas o que mais me chamou
a atenção foi uma cena em que depois de muito padecer na viagem com sede, fome,
finalmente conseguem chegar a uma cidade onde precisam pegar o navio para
atravessar o rio São Francisco e depois pegar o trem para São Paulo, os
retirantes passam a comer o peixe oferecido na embarcação. Conta o livro: Após a seca e a
racionada comida da caatinga, charque assado e pirão de farinha, a comida de
bordo, peixe abundante e gorduroso, parecia um sonho. Era à vontade. Homens
comiam dois e três pratos de pirarucu, lambiam os beiços, esticavam-se na
madeira do navio de barriga para cima, acalentando o sol como as jiboias no
sertão depois de devorarem um bezerro ou um cabrito. De
tanto comer o peixe gordo, os retirantes tiveram disenteria, passaram mal,
adoeceram e algumas crianças até morreram. Quando a comida é pouca maltrata, quando é
farta mata.
Não há vida sem comida, por isso, quando uma
pessoa está no hospital quase morrendo, ainda lhe enfiam comida goela a baixo,
e, mesmo que o individuo não consiga comer devido a complicações ou falta de
apetite, colocam-lhe uma sonda de alimentação na barriga ou pelo nariz. É um
alimento liquido, como se fosse um leite, não passa pela boca, a pessoa não
sente o gosto, mas pelo menos não sente fome. E também pode passar por essa
sonda chá, água e até suco. Matem-me,
por favor, quando eu não puder mais sentir o gosto de um delicioso café. Pensando
bem, mais vale a sonda de alimentação do que a comida de hospital. Não existe
comida pior do que a de hospital, ela tem gosto e cheiro de doença. Por mais
que eu ame cozinhar, jamais conseguiria cozinhar numa cozinha de hospital. Não, nem água consigo beber, ela tem gosto de
soro fisiológico e olha que nunca senti o gosto de soro. Minhas pequenas
doenças curo em casa com receitas deixadas por minhas ancestrais. Para gripe:
chá de limão com alho e mel; canja; pau de canela para cheirar e desentupir o
nariz. É o suficiente para curar gripe. Para cólica basta tomar chá de limão.
Para dores do coração ou da alma, mingau de mucilon de arroz resolve.
O fato é que os alimentos são partes de nós e
até são mais importantes que muita coisa. Que nos falte amor, sexo, religião,
sonhos, mas não nos falte comida, que não falte leite materno para o bebê e nem
a dieta que passa pela sonda de alimentação de uma pessoa hospitalizada. Morrer
pelas garras da fome é trágico, cruel e doloroso. Morrer de barriga cheia é
como se fosse uma forma de recompensa, ainda que esquisita e inexplicável. A
primeira coisa que fazemos quando nascemos é comer, que seja também a ultima
coisa a fazer, seria belo se assim fosse. Eu até fico me imaginando aos 76 de anos
idade morrendo logo após o meu café da manhã.