Amigos do Fingidor

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Fantasy Art – Galeria

Surprise.
Michael Mobius.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Retrato de uma obra-prima


Rogel Samuel


É um tema banal, popular, mesmo vulgar. A mãe, já tão gasto motivo dos cadernos poéticos e saudades, pois todos nós tivemos ou temos a mãe a saudar, a lembrar, a louvar, a chorar.

Mas Jorge Tufic é um poeta excepcional: com que realizou sua obra-prima, sonetos pós-modernos em que ele traça o perfil, o “Retrato de mãe“, de sua verdadeira mãe, ou da personagem mãe.

O livro todo está no blog
http://historiadosamantes.blogspot.com/search/label/JORGE%20TUFIC

O pequeno livro é uma obra-prima em quinze sonetos. Começa por uma invocação:

Venham fios de luz, aromas vivos
misturar-se às palavras, à centelha
do louvor mais profundo deste filho

Invocada, a mãe começa a delinear-se, começa a aparecer, vem em fragmentos, pouco nítida, mas forte, mas sentida, pressentida, sim, começa ele a pintar o retrato interno da dulcíssima Mãe e que logo todos nós assumimos, conjuntamente, nossa mãe síntese e simbólica, a Fonte, semente e nome de nossa vida, que tudo nos deu.

Tema freudiano, pois.

E no segundo soneto logo aparece um mistério: Quem será este desconhecido Ramón que aparece no penúltimo verso?

É D. Ramón Angel Jara, Bispo de La Serena, Chile, citado no pórtico do livro. No livro há citações, pós-modernidade. Ou seja, a obra se diz: “Calma, eu sou apenas uma obra literária”.

A descrição, o retrato começa pelos cabelos, as tranças, a voz, a lembrança.

Teus cabelos castanhos, tuas tranças
fazem lembrar as madres de Cartago.

Depois vem a casa, a cozinha, as comidas da culinária libanesa, a lentinha, o azeite, as cebolas fritas, a coalhada, o pão redondo, que a Mãe preparava... Mas tudo isso passou. Onde estão as comidas, os pratos de lentilha, a terrina de azeite para as coalhadas, as cebolas fritas? Tudo passou... Como, ao redor da casa, o vento. Como passou o vento do tempo. Também passam a cerca do quintal, os vizinhos, as vozes cantantes, e passaram. E o que passa é aquele Calendário sem datas, o chão do passado, o que passa. A casa da mãe. O que passa.

Lentilha, azeite doce, o acebolado
chia na frigideira de alumínio;
a casa está repleta de convites

Que dizer sobre o quarto soneto? Escreveu Dom Ramon Angel Yara, bispo de La Serena, Chile, no seu igualmente “Retrato de Mãe”: “Uma simples mulher existe que, pela imensidão de seu amor, tem um pouco de Deus; E pela constância de sua dedicação, tem muito de anjo” (Tradução de Guilherme de Almeida).

Que dizer do quarto soneto?

Trata da permanência da mãe. Do que permanece, na lembrança. Mãe não morre nunca.

Somos nós mesmos. Nossa Mãe somos nós mesmos, em continuidade dialética.

Em tudo, minha mãe, te vejo e sinto.
Neste verniz antigo, neste cheiro
suavíssimo que vinha do teu corpo,

A permanência é essa, da mãe, que mesmo morta, ainda dói em nós, que ainda cantante, ainda existente, que ainda alivia, ainda consola, ainda sorri.

A mãe é eterna!

Sim, eterna mas morre: é o quinto soneto.

A morte do eterno. A queda dos deuses. E num domingo! É o soneto da morte, do fim. O Eterno, como bem viu Hannah Arendt, é a eternidade do instante. O imortal é a presença da lembrança.

Façamos aqui a distinção (que Hannah Arendt estabelece) entre imortalidade e eternidade, para esclarecimento dessa alienação do mundo moderno.

Imortalidade significava continuidade no tempo através da realização de grandes feitos, obras e feitos notáveis. Por sua capacidade de produzir obras e de realizar feitos imortais, os imortais podiam, através das marcas de sua passagem, participar da natureza dos deuses. Na antiguidade clássica, havia os que ambicionavam a fama e, portanto, a imortalidade, e havia os que, satisfeitos com os prazeres que a natureza lhes oferecia, viviam e morriam como animais. Nesses dois casos, percebe-se uma alienação e uma falta de compreensão do real.

Outra coisa era a experiência do eterno, própria do filósofo no sentido estrito do termo, a visão da eternidade ainda que passageira. Diz Arendt que depõe muito a favor de Sócrates o fato de ele não ter escrito nada, porque não estava preocupado com a fama, ou seja, com a imortalidade. O filósofo vive a experiência do eterno. Se escreve sua experiência, ambiciosa a imortalidade, pois procura deixar para a posteridade algum vestígio de si, a fama.

A experiência do eterno, diz Arendt, só pode ocorrer fora da esfera das ambições humanas. Se morrer é deixar de estar entre os homens, a experiência do eterno é morte. O contrário é a preocupação com a fama, com a imortalidade. Eternidade e imortalidade são dessa maneira, integralmente contraditórios.

Tal experiência, a percepção do Eterno, diz Hannah Arendt, tem de ser rápida, pois ninguém pode suportá-la durante muito tempo. O condicionado e mortal não pode encarar o eterno na sua eternidade, senão indiretamente, rapidamente, numa intuição momentânea. O eterno está fora do mundo do homem. A imortalidade , ao contrário, reside entre os homens, é criação humana. O eterno não, não é condição de condicionamento humano, não é tocado pela ambição humana. O eterno advém ao homem, quando este nada deseja, na imobilidade do pensamento, silenciado pela vida contemplativa. Heidegger sabia disso. Pois o eterno não pode ser convertido em atividade humana, e uma iluminação que não se consegue com o movimento do esforço, mas com a observação pura dos movimentos do pensar. O eterno é positivo, mas nasce quando há radical negação. Nem pode ser aprisionado pelo discurso, pois não pode ser objetivado: “O Tao que tem nome não é o Tao”. O eterno é mais espaço do que razão. Está onde o “eu” não se encontra. Nem está delimitado no tempo, na convenção e no produto humano, pois o eterno é presença. E por isso não pode ser “usado” para a glória e fama do homem. Mais: o eterno não está no sujeito, porém vigora quando desaparecem sujeito e objeto. Ou quando não há espaço entre observador e coisa observada, como diz Krishnamurti.

A Imortalidade, entretanto, foi impiedosamente abalada com a queda do Império Romano. A destruição de Roma mostrou cruelmente que nenhum produto do homem pode ser considerado eterno (ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro, Forense/Rio de Janeiro, Salamandra/São Paulo, Ed. Universidade São Paulo. 1981. 339p.).

Portanto, o eterno é a presença. Assim como a presença de minha mãe morta ainda dói, hoje, enquanto escrevo, tantos anos se passaram de sua morte. O fato de minha mãe ainda doer em mim significa que ainda está viva comigo, eu que vivi ao longo da vida sempre longe dela (talvez por isso não tenho nenhuma foto de minha mãe na parede, para não alimentar o fogo de uma dor antiga).

Numa tarde opressiva de domingo,
o estrondo de tua queda: a irreversível
fratura que me dói quando te lembro

A seguir o poeta retrocede, se volta para o tempo materno, ou seja, a infância, a iluminada época da Mãe, da mãe protetora armadura fonte. Nossa juventude dela vinha, nossa fartura se originava nela. A poderosa Mãe, entretanto pobre, que se inquietava na escassez. Mãe bela, esbelta, musical. Mãe mítica! Poderosa fantasia posta em ouro. Em brilhos e luas. Amada que quando voltava trazia o mundo inteiro em seus cabelos, em suas vestes, em suas mãos. Mãe fada.

Nossa infância era toda iluminada
pelas fontes da tua juventude.

O texto é escrito com o intuito, com a inquietante busca de recuperar a imagem daquela criatura mítica, divina, dama antiga, fada e santa, busca infinita de volta ao útero materno, ao ninho antigo, àquele aconchego materno, onde tudo estava em paz, onde nós nos alimentávamos, nos encontrávamos com nossa originária semente, e para isso, para esse canto, o poeta pede a voz do Narciso, na água dos regatos, a imagem da Mãe, dela nunca nós nos poderemos libertar, aquela que em nós vive e dela nunca sairemos.

Mas nada.

Somente versos. Somente nos versos a sua fotografia.

O que a lembrança traz, porém, gera um pavor, o horror da recordação, o recordar aquela cena que não devia de ser nunca recordada, a agonia, a morte, a terrível e insuportável cena da morte, daquela que foi fonte da vida, da alegria, da proteção, abrigo, auxílio, amparo, e por quê?, e como de repente aparece este camoniano “estavas, posta no esquife” – ainda que ela esteja ali liberta como num trono, entronizada no Eterno sono, o sonho rente à luz, Iluminada – a morte veio mas também vieram as galáxias, vieram vales luminosos, abriram-se auroras fartas – mas por teres ido ficam mais sombrios os dias aqui deixados:

Estavas, posta no esquife, igual a todas
as defuntas convulsas, lapidadas.

Depois da morte do Eterno, depois de a mãe ser “posta em esquife”, naquele terrível verso camoniano, ficam as relíquias, os pertences, o vestido de linho desbotado, o sapato, o chinelo, a nuvem, tudo posto num saco tosco, humilde e roto, o legado de uma tristeza infinita, porque o tesouro se enterrara com ela mesma, e não há como dizê-la.

A morte da mãe.

E o canto se transforma em rugidos carcerários, impotentes, de barro, quilhas, peito, e onde o poeta revela seu modelo Jorge de Lima, sua poética, seu traçado.

A viagem é a sua morte.

A morte o tempo, as ampulhetas, as ressonâncias. A que mar foi levada aquela amada?

Aquelas viagens se tornam a viajar.

A lembrança neste fim que sempre volta, algo inumerável, roupas no tanque, fantasmas trastes. A voz da mãe. Calvário de lembranças.

O soneto pós-moderno faz reflexões literárias, como essa referência a (Gabriel) Chalita.

Ou seja, o poeta ressalta o caráter literário da obra, que se refere a si mesma.

O poeta como que diz: “não chore, isto é apenas literatura”.

E o retrato de mãe fica incompleto, só fragmentos de lembranças, como pedaços de imagem.

Mas o clima, a alma sai inteira, como quem abre a luz da primavera.

Publicado originalmente no blog de Rogel Samuel.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Encontro das Águas: paradoxo e insensatez


Tenório Telles

Eu acuso a cumplicidade de parte significativa dos políticos do Amazonas com esse crime contra o nosso patrimônio natural. Eu acuso a indiferença dos gestores públicos diante dessa insanidade. Os órgãos que cuidam do meio ambiente no Estado, bem como o Ipaam e o Iphan local são cúmplices dessa brutalidade.

Do cuidado com nosso patrimônio natural depende o futuro de nossa terra. Não, não é só o futuro, mas o presente e a própria vida. Temos a responsabilidade de legar às próximas gerações condições sociais mais favoráveis. E disso faz parte o zelo com nossa maior riqueza: a natureza. Os argumentos que sustentam que o progresso é tudo não têm fundamento se não levam em consideração o significado que lugares e pessoas têm para a existência da sociedade.

O Encontro das Águas é muito mais que um simples lugar. É um espaço que nos identifica e uma metáfora do milagre da vida. Um símbolo do encontro – que não é só o encontro de dois rios: é o encontro de gentes, da magia, da memória e do próprio tempo. É também uma lição: depois de muito lutar, os dois rios se unem e se misturam para formar o rei dos rios do planeta. Pela sua importância e pelo que representa em termos naturais, não tem sentido a insistência das pessoas que têm feito de tudo para construir o porto nas Lajes. O dinheiro não pode estar acima dessas coisas. Se pra eles é isso o que importa, para a sociedade o que interessa é a preservação do Encontro das Águas.

Alguns economistas, que defendem a construção do porto, alegam que a obra trará desenvolvimento para a cidade. E com base nisso tentam cooptar as pessoas para a sua posição. A pressão junto à população que vive no entorno da área tem sido sistemática: muitos, inclusive, em troca de promessas de favorecimento e pequenas vantagens, vestiram a camisa da construção do porto. Alguns poucos seguem resistindo em defesa da manutenção desse espaço natural. O fato é que se os defensores dessa causa forem derrotados, em pouco tempo a beleza do Encontro das Águas sobreviverá apenas em fotografias e cartões-postais.

Devemos, sim, continuar lutando para salvar o nosso Encontro das Águas, para impedir que ocorra com ele o mesmo que aconteceu com os igarapés de Manaus, poluídos pela ausência de tratamento dos resíduos das empresas do distrito industrial. O mesmo crime cometemos com a Ponte da Bolívia, o Tarumã, a Ponta Negra, o Mindu e os espaços naturais da cidade, que poderiam ter sido transformados em parques públicos e foram destruídos pela especulação imobiliária. Isso tudo tornou Manaus uma cidade brutalizada e sufocante, sem lugares para o convívio social ao ar livre. Uma cidade no meio da maior floresta do mundo, sem espaços verdes, sem arborização e com seus igarapés envenenados e aterrados.

Por isso, eu acuso a cumplicidade de parte significativa dos políticos do Amazonas com esse crime contra o nosso patrimônio natural. Eu acuso a indiferença dos gestores públicos diante dessa insanidade. Os órgãos que cuidam do meio ambiente no Estado, bem como o Ipaam e o Iphan local são cúmplices dessa brutalidade. Para decepção de todos, a justiça federal comportou-se de forma irresponsável ao compactuar com os interesses espúrios dos que insistem nesse crime contra o povo do Amazonas. Essa história em torno do Encontro das Águas é um paradoxo: enquanto os países em geral lutam para salvar seus espaços naturais, testemunhamos a ação de um grupo que tudo faz para destruir um dos mais belos cartões-postais do planeta. Para que não envergonhemos as próximas gerações, com nossa omissão, devemos continuar lutando para evitar esse ato de insensatez.

O sonho é nossa chama

Jorge Tufic


Este novo livro do grande poeta cearense Francisco Carvalho surpreende pela totalidade poética, liberta afinal de separações estróficas, quando traz de volta aos leitores sonetos já publicados e dez inéditos, miniaturas essas que, por sua vez e pelo simples motivo de que as rimas chegaram ao seu máximo limite toante ou consonante, extrapolam dos cânones tradicionais, sem, com isso, deixarem de inventar e reinventar a utopia de Petrarca, Camões, Jorge de Lima, entre tantos outros, nunca em desnível com os mais ferrenhos cultores desse gênero de arte, tão brasileiro quanto universal. Nota-se aí, por outro ângulo menos visível a quem não acompanha, de perto, a trajetória do autor, que a maioria deles passara pelo crivo de uma releitura crítica, e foram selecionados.

Em “Algumas Palavras”, nos explica o mestre: “Não adianta citar nomes, mas é sabido que os verdadeiros poetas estão honestamente empenhados na produção de uma arte poética que se distingue pela universalidade da linguagem e pela prática de uma forma mais flexível às exigências da modernidade. Escrevendo sonetos ou poemas em versos livres, revelam qualidades literárias que os consagram à admiração da posteridade. Afinal de contas, se o soneto está realmente fora de moda, ultrapassado na forma e no conteúdo, por que tanta gente continua a escrevê-lo com tamanha convicção? Deve existir alguma explicação para isso. Há quem supunha que a preferência pelo soneto seria uma forma de opção pelo caminho mais fácil. Será?”

A prova em contrário, ou a resposta cabível, nós vamos encontrar ao longo dessas 98 páginas da excelente coletânea de 170 sonetos éditos e 10 inéditos, dando-nos estes a leveza de uma nuvem-personagem que nos encanta e tira o amargor da vida inteira através de uma dança em que vai se detendo, ora como “pombas que voltam do exílio”, ora em diversos lugares da infância do poeta, ora ainda a esperar numa esquina, desdobrando-se e metamorfoseando-se como coisa real ou “engano dos sentidos”. “A Nuvem e o pássaro”, aliás, já foi título de um outro livro de Francisco Carvalho.

Tudo para indicar, se é que deva ser necessário, o que logo sobressai da primeira impressão de leitura, ou seja, a unidade quase palpável do texto, agora tomado na sua totalidade, e mais que isso, a emoção que transmite de um roteiro estético carregado de símbolos e metáforas que também incursionam, mas sem transbordamentos ou evasivas, pelos domínios da metalinguagem.  Francisco Carvalho consegue ler a si mesmo do jeito que gostaria de fazê-lo com os outros. E atinge o máximo. Parabéns, amigo!

domingo, 28 de agosto de 2011

Poesia é não

O endereço de lançamento do livro é em São Paulo.
Estrela é filha dos poetas Paulo Leminski e Alice Ruiz.

sábado, 27 de agosto de 2011

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Senhora, uma leitura 6/6

Zemaria Pinto


Estrutura da narrativa

Foco narrativo – Para começar, diferentemente das duas outras grandes obras urbanas Lucíola e Diva, que são narradas em primeira pessoa, pela perspectiva do herói romântico (Paulo e Augusto, respectivamente), em Senhora o foco narrativo  apresenta-se em terceira pessoa, ou seja, o narrador não é personagem da história.

Num exercício pleno do gênio romancista, é o próprio Alencar que, de fora da trama, coloca-se, deliberadamente, como narrador, com o intuito, talvez, de conferir mais realismo ao seu trabalho.

Na narrativa em terceira pessoa, o narrador é chamado onisciente ou demiurgo, por saber de tudo, por estar em toda parte, como um deus. E assim, interfere na narrativa, faz comentários... É o senhor, enfim. Por isso é permitido a Alencar fazer referência a si e a outro livro de sua autoria – daí nossa insistência em fazê-lo também neste trabalho:

Mal pensava Aurélia que o autor de Diva teria mais tarde a honra de receber indiretamente suas confidências, e escrever também o romance de sua vida.
(Resgate, II)

O tempo manipulado – A narrativa não é feita de maneira linear, numa sequência cronológica, e sim por idas e vindas, numa sucessão de imagens: presente/passado; passado/presente.

O recurso de fragmentar a história conduz a narrativa de maneira requintada. Assim, a noite de núpcias é mostrada em dois capítulos, entremeada por toda a segunda parte do livro. Da mesma forma, como já dissemos, o início da narrativa (ou do livro) não é o início da fábula (a história que se conta, com princípio, meio e fim). O autor, artisticamente, propõe-nos um mosaico cujas peças vão se encaixando perfeitamente à medida que a narrativa prossegue. Ao final, temos todas as informações necessárias para a compreensão do que foi lido.

Senhora no século XXI

O Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX é um cenário distante, de cores esmaecidas pelo tempo implacável. Aurélia e Seixas são, para nós, figuras irreais, diferentes de todas as pessoas que conhecemos. Se suas virtudes são idealizadas por José de Alencar, suas falhas e vilanias parecem ingênuas diante do estilhaçamento ético que vivemos. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, mudam-se os valores.

A Senhora do século XXI seria outra mulher: mais forte, com toda a certeza, no relacionamento sentimental com o novo Seixas, que, por outro lado, não teria escrúpulos de exercer o papel de marido, para o qual fora contratado. O resultado, fugindo à equação alencarina, ensejaria uma trama diferente, recheada de violência, pontuada por cenas explícitas das intimidades das altas rodas, e um final infeliz – pelo menos sob a perspectiva original.  

Ou você acha que não, leitor?

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Jânio Quadros ou A volta dos que não foram

Há 50 anos, o presidente Jânio Quadros (1917-1992) renunciava.
Parece que foi mês passado...

Linguagens-culturas, as heteropráxis e a coisa sagrada – 2/2


João Bosco Botelho


A questão que relaciona a coisa sagrada à religião foi analisada por Croce que negou a independência de uma “categoria religião” e a considerava como subproduto da “categoria moral”, enquanto Otto se esforçou para demonstrar a realidade da experiência do “sagrado” como fundamental para qualquer religião. Por outro lado, Gramsci desconsiderou qualquer conceito de religião sem a correspondente relação cultural entre o indivíduo e o objeto sagrado. Os estudos gramscianos colocaram a religião como integrando uma concepção da vida cotidiana contida no conjunto ideológico ligado à ética e por isso contribuindo, em certas circunstâncias, para que o homem aceitasse as desigualdades sociais. Durante as ditaduras comunistas no Leste europeu, que encantou tanta gente, os intelectuais marxistas e stalinistas construíram linguagens-culturas forjadas no absoluto desprezo pelas ideias e crenças religiosas, pré-entendidas como antítese da ciência e inimigas do povo. Sem êxito, esses ideólogos, representantes maiores do cerne da ciência como indispensável à “libertação dos oprimidos”, tentaram transferir para o Partido Comunista a coisa sagrada das igrejas de muitas crenças e ideias religiosas.

Outros intelectuais, com forte influência cartesiana, tentaram interpretar as ideias e crenças religiosas a partir das palavras latinas “relegere” e “religare”, atadas às complexas regras e interdições que norteiam o entendimento das coisas sagradas, as mesmas que as heteropráxis mostraram não serem exclusivas e diretamente relacionadas à adoração de divindades e celebrações religiosas.

As polaridades da inflexibilidade comunista e cartesiana podem ser encontradas na concepção de Portter: “A religião foi a mãe das ciências e das artes”. Entre essas intolerâncias, as análises das heteropráxis induzem na ampliação desses horizontes restritivos, na direção de Jung, como outra opção analítica, que fundamentou a confissão religiosa na transformação provocada pela experiência do “numinoso”, sentida e seguida no conjunto de atitudes fundamentadas na fé e fidelidade à coisa sagrada.

Não é possível esquecer que diferentes formas de expressões religiosas estão presentes nos quatro cantos do mundo, no passado e presente, com as linguagens-culturas construindo-reconstruindo a coisa sagrada entre os consulentes. Do mesmo modo, esses mesmos povos também entendem a causa das doenças e os processos de curas como partes da mesma ordem social, onde o cerne da “coisa sagrada” é transformado continuamente, sob múltiplas roupagens metamórficas, a partir de sincretismos com os antigos mitos de origem, que relatam as primitivas relações do homem com os outros animais e com a terra.

Os livros de medicina e religião não pararam de ser escritos, de geração a geração, estritamente atados aos sistemas de valores de referência aos quais se ligam, sejam as universidades ou as igrejas. A maioria foi elaborada apoiada numa história linear quantitativa longe dos simbolismos das heteropráxis, onde as estruturas mentais e o cotidiano foram seguidamente pouco valorizados. Felizmente, alguma literatura especializada atual está se afastando dessa postura, entre a contemplação e a crítica destrutiva, e se enriqueceu ao associar a coisa sagrada às heteropráxis.

Essa nova abordagem a partir das heteropráxis possibilitou compreender outros significantes simbólicos da coisa sagrada como instrumento de cura, desde o passado longínquo até a atualidade. Por essa razão, tornou-se visível o quanto são semelhantes entre povos nos cinco continentes.

Assim, não parece ser adequado afirmar que essa impressionante manifestação coletiva seja somente de caráter social. O historiador Mircea Eliade, com propriedade incomparável, atribuiu a dificuldade quase intransponível de se buscar as explicações no fato de que as crenças e as ideias não são fossilizáveis. Quando os arqueólogos descobrem um túmulo com significação histórica, todos os detalhes do esqueleto, do esquife e dos acompanhamentos são importantes para compreender o grupo social do morto, porém os pensamentos religiosos do morto continuarão em vagas suposições. Essas dificuldades são proporcionalmente maiores na medida em que se recua no tempo.

Tentando estabelecer o início desse processo, a relação dos nossos ancestrais distantes com a coisa sagrada, por meio das datações paleopatológicas e arqueológicas, o antropólogo Leroi-Gourhan assumiu posição crítica em relação à religiosidade na pré-história anterior há 30.000 anos. Dessa época, existem muitas sepulturas rituais, onde os mortos foram enterrados com artefatos de caça e pesca, generosos pedaços de carne e agasalhos adicionais, que sugerem fortemente a crença no renascimento.

O imaginável renascimento após a morte, parte importante da coisa sagrada, tem acompanhado o homem na sua busca para prolongar cada vez mais o tempo de vida e oferecer a sensação calmante da possibilidade de desfrutar do conforto noutro mundo. Essa fantástica busca pode ter começado com a idéia religiosa arcaica, junto à coisa sagrada, de que seria possível renascer a partir dos ossos, provavelmente ligada à prática do sepultamento rituali. Nesse sentido, são claras as passagens do Antigo Testamento explicativas do aparecimento da mulher a partir da costela (Gn 2, 21 24) do primeiro homem e do renascimento a partir dos ossos descarnados (Ez 37, 1 8).

Essas citações bíblicas fazem pensar que o culto aos ossos e, a partir dele, o renascimento tiveram o seu início nos primórdios da sagração dos objetos pelo homem, depositárias da certeza de que esses ritos se confundem com a origem do próprio homem. Assim, não deve parecer estranha a crença no poder curador da coisa sagrada.

As linguagens-culturas que constroem a coisa sagrada junto ao corpo da medicina-divina e da medicina-empírica ajustam a sedução na eficiência simbólica dos ritos suplicantes como instrumentos para unir, em atitude mágica de credulidade o consulente e a coisa sagrada.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Monte Mor e Haicais

Jorge Tufic


Dois livros foram lançados pelo escritor e poeta Almir Gomes de Castro: Haicais, poesia, e Monte Mor, romance.

Quanto aos haicais escolhidos ou selecionados por mim, dentre centenas de autoria de Almir Gomes de Castro, preferi os guilherminos ou semiguilherminos, desprezando aqueles que mais pareciam trísticos, ou seja, simples poemetos compostos de três versos, muito comuns em língua portuguesa, desde os seus primórdios. Pois não foi à toa que o mestre Guilherme de Almeida, ao traduzir haicais japoneses e ao deparar-se com o ideograma, conservara a métrica da composição original, mas, sendo isto pouco para fazer a diferença, introduziu-lhes rimas capazes de aproximar das nossas as mesmas dificuldades que os famosos cultores do gênero teriam encontrado ao traçarem o desenho de suas metáforas, tendo em vista o momento poético ou do êxtase místico imposto pela beleza singular das estações de cada ano. Fada-se, portanto, ao limbo o trístico de nosso idioma metido a ser um haicai de língua portuguesa, devendo ficar, para sempre, o que toma esta forma:

Por onde passou
O vento do catavento
O sonho ficou.

Quanto ao romancista de Monte Mor, pertence ele à nova geração de escritores do Ceará, podendo estar entre os mais jovens, pela técnica, e os mais velhos, pela inesgotável temática da vida sertaneja propriamente dita, quando aprofunda a história de Lampião e do Padre Cícero, ou torna aos mistérios de velhas localidades interioranas, a exemplo da austera Baturité das primeiras décadas do século XX. Com pinceladas breves, estilo sóbrio e narrativa meticulosa, dá-nos o autor, neste romance, uma dramática sequência de fatos históricos e sociais bem próximos daqueles que teriam sido legados ao esquecimento, mercê da cortina de mistério que ainda hoje se ergue entre a ficção e a realidade.

São dois livros de leitura fácil, agradável, poética, novelesca e moderna, com todos os ingredientes para substituir horas de televisão pelo contato humano da palavra, da cor, da rima, do verso, da história viva tirada de dentro de nossa própria História. E mais não digo, a fim de não estragar a surpresa que vem por aí.

domingo, 21 de agosto de 2011

Na Amazônia e no código, a ciência quer ser ouvida

O Encontro das Águas,
que a Vale do Rio Doce e o Governo do Amazonas querem destruir.
Washington Novaes*

Ao mesmo tempo que o Senado retomava nesta semana as discussões sobre propostas de mudanças no Código Florestal, a presidente da República baixava medida provisória que altera (para reduzi-los) os limites de três parques nacionais na Amazônia, de modo a permitir que se executem neles obras das Hidrelétricas de Tabajara, Santo Antônio e Jirau. Outros dois parques deverão seguir o mesmo caminho, para permitir o licenciamento de mais quatro usinas (no complexo Tapajós).

Reabrem-se, por esses caminhos, polêmicas e temores de que a nova legislação e o novo Código Florestal estimulem o aumento do desmatamento, como parece já estar ocorrendo. Segundo o Imazon, entre agosto de 2010 e julho de 2011 a área desmatada no bioma amazônico subiu para 6.274 quilômetros quadrados. E a progressão do desmate, segundo o Ibama de Sinop (MT), está sendo estimulada “pela expectativa de anistia aos desmatadores” no código. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o número de áreas de soja em novos desmatamentos em Mato Grosso, Rondônia e no Pará quase dobrou (de 76 para 147 áreas) em relação a 2010.

Dizem muitos defensores das alterações no Código Florestal que as mudanças são indispensáveis para a expansão do agronegócio. É uma visão contestada por cientistas, que apontam, só em Mato Grosso, 8 milhões de hectares de pastos degradados (Estado, 20/7). É a opinião também do respeitado biólogo norte-americano Thomas Lovejoy, lembrando que na Amazônia a média é de uma cabeça de gado por hectare ocupado, muitas vezes inferior à de outros lugares, mesmo no Brasil, e pode ser melhorada, sem novos cortes. E “a Amazônia é a galinha dos ovos de ouro do agronegócio brasileiro”, diz ele (Folha de S.Paulo, 16/8). O desmatamento maior permitido pelas alterações no código, afirma, “pode ser um tiro no pé dos ruralistas”, se chegar a 20% da floresta (está em 18%), e talvez atinja um “ponto de inflexão” em que o aumento da temperatura pode estender-se até a outras áreas no Sul-Sudeste, com muitos problemas para a agropecuária.

As preocupações com a relação entre desmatamento, mudanças climáticas e “desastres naturais” estão presentes em muitos estudos científicos recentes. O Inpe é uma das instituições preocupadas – e também com um crescimento de 100% nas tempestades e catástrofes “naturais” nos próximos 60 anos no Sudeste, e mais ainda nas regiões litorâneas; três vezes mais até 2070 (Estado, 9/8). Já na Amazônia, especificamente, estudo conjunto do Inpe e do Escritório Meteorológico Hadley Centre (Grã-Bretanha) prevê forte aumento da temperatura e queda significativa na precipitação pluvial. Isso poderá significar substituição da floresta por outros tipos de vegetação.

Pois é exatamente neste momento, de tantas advertências científicas, que vem mais um alerta da Amazônia: as instituições científicas não estão sendo ouvidas na questão do Código Florestal. Nem em outras, como a da espantosa decisão de reverter uma decisão judicial e retomar o projeto de construção de um porto diante do invejável Encontro das Águas, em Manaus, onde os Rios Solimões e Negro se encontram e correm separados por quilômetros – as águas barrentas de um ao lado das águas mais escuras do outro –, fenômeno que atrai gente do País e do mundo todo.

O perigo parecia afastado quando uma decisão judicial embargou, em julho de 2010, a pedido do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o licenciamento do porto. Mas há poucos dias outra decisão, da Justiça Federal em Manaus, alegando que não houve audiências públicas antes de ser pedida a suspensão do licenciamento ambiental, revogou o embargo. E o governo do Estado do Amazonas, favorável à instalação do porto, imediatamente concedeu a licença para o projeto. Diz o Iphan que vai recorrer da decisão, também contestada pelo Ministério da Cultura – e que vem na mesma direção do “facilitário do desenvolvimento econômico” presente no desmatamento.

E – é preciso reiterar – tudo se faz esquecendo a visão da ciência. Como em outro ângulo: um grupo do Museu da Amazônia e do Instituto de Pesquisas da Amazônia está dizendo, num paper, que existe “uma grande variedade de áreas úmidas” no País, como “áreas alagadas ao longo de grandes rios, com diferente qualidade de águas (pretas, claras, brancas), baixios ao longo de igarapés de terras firme, áreas alagáveis nos grandes interflúvios (campos, campinas e campinaranas alagáveis, campos úmidos, veredas, campos de murunduns, brejos, florestas paludosas), assim como áreas úmidas de estuário (mangues, banhados e lagoas costeiras)”. Cada um desses tipos, diz o estudo, deve receber “tratamento específico em forma de artigo específico no Código Florestal, que deve conter flexibilidade suficiente para absorver os avanços do conhecimento científico”.

Mas isso não está ocorrendo, com prejuízos para a sociedade e o meio ambiente, já que as áreas úmidas “proporcionam benefícios e serviços ambientais importantes”. Como, por exemplo, estocagem de água, limpeza de água, recarga do lençol freático, regulação do clima local, manutenção da biodiversidade, regulação de ciclos biogeoquímicos, inclusive estocagem de carbono, hábitat e subsídios para populações humanas tradicionais (pesca, agricultura de subsistência, produtos madeireiros e não madeireiros e, em áreas abertas savânicas, pecuária extensiva).

Esse papel das áreas úmidas, afirma o texto, “vai aumentar ainda, considerando os impactos das mudanças climáticas previstas”. Só na bacia amazônica são 30% da área; no Pantanal, 160 mil quilômetros quadrados. Ao todo, incluindo outras áreas, 20% do território brasileiro. Por tudo isso, os usos potenciais dessas áreas “deverão ter reconhecimento específico, dentro do Código Florestal e em outras instâncias federais”.

É a voz da ciência. É preciso ouvi-la nesta nova discussão no Congresso. E no Encontro das Águas.

Quase teatro – puro cinema

Caio Porfírio Carneiro


Almir Gomes de Castro lança um livro surpreendente – Kuriquiã –,biografia romanceada, de sopro épico. É a vida, na região acreana do Alto Purus, de imigrantes da família do brilhante poeta Jorge Tufic, que lá abriu os olhos para o mundo e viveu a infância e além dela, transferindo-se depois para Manaus. Vale-se Almir da primeira pessoa, como se o poeta contasse essa odisseia dos que vieram de longe, além mar, nordestinos e habitantes da selva, com os seus segredos, sustos, dura realidade e lendas, em amostragem um tanto teatral e cinematográfica. Surpreendente como o autor praticamente tudo transferiu para o campo das falas, exsurgindo disto uma visão bastante impressionista das personagens e da região. O narrativo, com isto, comanda a história, e o descritivo tornou-se quase elíptico, sem perder nenhuma qualidade criadora ou desvirtuamento da verdade. E o curioso vai mais longe: o poeta Jorge Tufic, personagem principal, narrador, pouco aparece, mas está presente nas entrelinhas como uma sombra quase palpável, e o drama e a trama da história fogem do caminho estreito e se ampliam na vida das personagens e da região.

Eu sabia palidamente das origens acreanas do grande poeta Jorge Tufic. E agora, neste livro, vi, palpitando, em que mundo ele nasceu, cresceu e absorveu desse mundo real e encantado, sem perder os liames seculares dos seus. A ótica narrativa abre-se muito, com suas tramas difusas e ao mesmo tempo unas, trazendo ao vivo a vida das personagens, e ele, o poeta, parecendo se resguardar, não fica em segundo plano, eis que é um espelho acompanhando tudo de perto.

A ascensão do poeta na vida, em Manaus, e projetando-se nacionalmente, vem em fulguração rápida. O livro é um recado: este é o seu passado, estas as suas raízes, laboratório da sua caminhada. E aqui chegou com nova arte poética, respeitada e admirada no país inteiro.

Este livro é cinema. Daria um belo filme.

Almir Gomes de Castro soube treliçar e destreliçar os cordéis para escrevê-lo. E o poeta é mais do que merecedor desta quase prece.

É tão fácil tirar a prova... Bastará ler o livro.

sábado, 20 de agosto de 2011

Fantasy Art – Galeria

Mediterraneo.
Alex Alemany.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Senhora, uma leitura 5/6

Zemaria Pinto


Estrutura do romance

Em Senhora, José de Alencar exercita todo seu gênio criativo, apresentando estruturas formal e narrativa extremamente elaboradas. O romance divide-se em quatro partes, com os seguintes títulos: O Preço, Quitação, Posse e Resgate.

O preço – Em linguagem  jurídica, o preço é elemento natural  do contrato de compra e venda, é o valor do objeto contratado. Esta primeira parte, composta por treze capítulos, não é o “início” da história de Aurélia, uma vez que a narrativa começa após alguns acontecimentos que só se mostram ao leitor na segunda parte. Assim, a Aurélia que se apresenta é uma moça rica, autoritária, irônica, que desfila sua beleza e riqueza pelos salões da Corte, cotando

seus adoradores pelo preço que razoavelmente poderiam obter no mercado  matrimonial.
(O Preço, I)

E é também em linguagem financeira que estipula que o tio seja o intermediário do contrato de casamento, não sem antes regatear o preço do “objeto” comprado:

 Desejo como é natural obter o que pretendo, o mais barato possível;   mas o essencial é obter; e portanto até metade do que possuo não faço questão do preço.
(O Preço, IV)

Esta primeira parte é encerrada na noite de núpcias, na qual Aurélia  demonstra toda a verdade do casamento “arranjado”. Note, leitor, que o capítulo termina com a promessa de que Aurélia revelará  ao marido os motivos que a levaram a comprá-lo. Entretanto, a continuação dessa “conversa” só será mostrada ao leitor no último capítulo da segunda parte. Entre esses  dois capítulos, que tratam da mesma noite de núpcias, passa-se toda a segunda parte, da qual trataremos abaixo.

Quitação – a quitação é um documento, um recibo, um ato através do qual alguém fica livre de uma obrigação. Composta por nove capítulos, há um “retorno” ao passado, sendo narrada a história de Aurélia, anterior à primeira parte. Vemos, então, uma pobre e romântica Aurélia, e a situação miserável em que sua família vive. Nesta parte, é narrado o romance de seus pais, a morte de sua família, o namoro com Seixas e a violenta decepção sofrida, ao ser trocada por um dote de 30 contos de réis.

Calma, leitor, não há só tristezas, não. É nesta parte que Aurélia torna-se a rica herdeira  de seu avô, que, pouco antes de morrer, reconhece a neta.

No capítulo IX, há a continuação da conversa da noite de núpcias. Observe que o narrador utiliza-se de um recurso cinematográfico, o corte/montagem de cenas:

Tornemos à câmara nupcial, onde se representa a primeira cena do drama original, de que apenas conhecemos o prólogo.

Os dois atores ainda conservam a mesma posição em que os deixamos. Fernando Seixas obedecendo automaticamente a Aurélia, sentara-se, e fitava na moça um olhar estupefato.
(Quitação, IX)

Ah, leitor, o cinema ainda não fora inventado.

Aurélia revela que sempre considerou Seixas um ser especial, e, resignada, aceitaria até ser trocada por outra, mas jamais conceberia a degradação de vender seu corpo, como ele estava fazendo:

Essa degradação do homem a quem eu adorava, eis o seu crime.
(Quitação, IX)

Ao finalizar este capítulo, encerrando a segunda parte, vemos a “quitação” do título: Aurélia diz ser o tempo de concluir o mercado, passa um cheque no valor de 80 contos de réis, e dispara:

Estamos quites, e posso chamá-lo meu; meu marido, pois é este o nome de convenção.
(Quitação, IX)

Posse – a posse é o exercício dos poderes do domínio, da propriedade sobre coisas. Composta por dez capítulos, aqui é narrada a convivência dos cônjuges:  a encenação de casal feliz para a sociedade, e o duelo que travam na intimidade. Nesta terceira divisão, Seixas começa a “despertar” sua dignidade. Assim, ao deparar-se com o rico aposento ornamentado pela noiva 

Recuou com um gesto de repulsão. Esses primores de arte que pouco antes lhe acariciavam a imaginação, agora inspiravam-lhe nojo. Apartou-se do toucador, e chegou à janela.
(Posse, III)

A partir de um gesto simples, comprando uma escova e um pente de um mascate, no intuito de não se utilizar de nada do enxoval feito pela mulher, Seixas sofre a primeira das várias transformações que culminarão com sua revelação, ao final do romance, como um perfeito herói romântico. Assim, temos um Seixas diligente no trabalho, sem apego aos luxos. Às reclamações de Aurélia quanto ao seu comportamento (“avarento”,  conforme  os escravos), responde:

Vendi-lhe um marido; tem-no à sua disposição, como dona e senhora que é. O que porém não lhe vendi foi minha alma, meu caráter, a minha individualidade; porque essa não é dado ao homem alheá-la de si, e a senhora sabia perfeitamente  que não podia jamais adquiri-la  a preço d'ouro.
(Posse, V)

No capítulo VIII, há outro “retorno” à noite de núpcias, mostrando o que aconteceu com Aurélia, quando Seixas retira-se do aposento:

Naquele instante, recordando as palavras que Seixas proferira poucas horas antes; vendo-o tranquilo e disposto a aceitar como natural a terrível  situação;  pensando no desbrio com que esse homem sujeitava-se a  uma degradação de todos os instantes, Aurélia tivera um verdadeiro ímpeto de vingança.
(Posse, VIII)

É recorrente, assim, por toda terceira parte, o exercício de poder de Aurélia sobre Seixas: ela é a dona, a senhora; ele, o objeto, o escravo.

Resgate – Resgatar é pagar, é liberar-se, libertar-se de uma dívida. São nove capítulos, iniciando-se com Aurélia exercendo seu domínio:

No meio das adorações que a perseguiam, retirou-se orgulhosamente reclinada ao peito desse homem, tão invejado, que ela arrastava após si como um troféu.
(Resgate, I)

Seixas, entretanto, nesta altura da “reeducação”, já demonstra  para si o amor à senhora e, por vezes, sente desejo:

Seixas desviou os olhos, como se visse diante de si um abismo. Sentia a fascinação, e reconhecia que faltavam-lhe as forças para escapar à vertigem.
(Resgate, I)

Aurélia percebe que Seixas a ama, e observa as mudanças do marido:

Durante estas pausas, Aurélia observava o marido, e assistia comovida à transformação que se fora operando naquele caráter, outrora frágil, mundano e volúbil, a quem uma salutar influência restituía gradualmente à sua natureza generosa.
(Resgate, VI)

Assim, ao conseguir o dinheiro para comprar sua liberdade, Seixas está pronto para desempenhar, finalmente, seu papel de herói. O pagamento da dívida ocorre no último capítulo desta parte, que encerra o romance. Ambos agem friamente: 

– Agora nossa conta; continuou Seixas desdobrando uma folha de papel. A senhora pagou-me cem contos de réis: oitenta em um cheque do Banco do Brasil que lhe restituo intato; e vinte em dinheiro, recebido há 330 dias. Ao juro de 6% essa quantia lhe rendeu 1:084$710. Tenho pois  que entregar-lhe 21:084$710, além do cheque. Não é isto?

Aurélia examinou a conta corrente; tomou uma pena e fez com facilidade o cálculo dos juros.

- Está exato.
(Resgate, IX)

Entretanto, ao romperem solenemente o vínculo que os unia, ocorre a conciliação dos amantes e, na mesma câmara nupcial em que, na noite de núpcias, havia nascido o abismo entre os dois, dá-se a consumação do casamento, a vitória do amor, que tem origem divina, sobre a mesquinhez, falha tipicamente humana.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Aldiso Filgueiras desvenda o sumiço da ararinha-azul

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As múltiplas faces de Eva

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Um dos quadros da exposição de Marco Adolfs.

Simpósio Internacional Margens & Periferias – programação

Inscrições abertas; vagas limitadas.
Informações também pelo e-mail
 adrianaguiarodrigues@gmail.com

7 de setembro

15 às 17h – Reitoria da UEA - credenciamento

18h – Livraria Saraiva Megastore - Manauara Shopping

          Café Literário com o escritor angolano Ondjaki. Mediação: Allison Leão (UEA)

          Lançamento do livro “Há prendisagens com o xão” (Ondjaki)

          Lançamento do livro Arquipélago contínuo: literaturas plurais (Otávio Rios, Org.)

20h – Jantar por adesão



8 de setembro (REITORIA)

8h – Credenciamento

9h – Cerimônia de abertura

9h30min – Conferência de abertura: “Discutindo fronteiras: literaturas e globalização ou a ‘condição pós-colonial’ das literaturas africanas”, por Inocência Mata (UL). Apresentação: Jorge Valentim (UFSCar).

10h30min – Mesa plenária: “Páginas de e-mail, páginas de livros: palavras cruzadas”, Tânia Ramos (UFSC); “As margens do corpo e as margens da arte: a imagem das fezes na obra de Rubem Fonseca”, Vinícius Carvalho (IFMT/UFRJ). Mediação: Juciane Cavalheiro (UEA).

12h às 14min – intervalo para almoço

14h Mesa plenária “Nomear o desejo: homoerotismo, gênero e resistência em A Confiança, de Bernardo Santareno”, Jorge Valentim (UFSCar); “Apontamentos para a gênese da negritude na poesia africana de língua portuguesa”, Mario Lugarinho (USP). Mediação: Emerson Inácio (USP)

15h30min Mesa plenária: “Páginas de fim de século: a escritura de Fialho de Almeida”, Luci Ruas (UFRJ); “Unamuno e Portugal: de suicídios e naufrágios”, Paulo Motta (USP). Mediação: Maurício Matos (UEA).

17h – exibição de painéis



9 de setembro (ESCOLA NORMAL- manhã/REITORIA- tarde)

8h às 12h – Minicursos

I. Vozes da poesia periférica, Prof. Dr. Emerson Inácio (USP)

II. Literaturas Africanas de língua portuguesa na contemporaneidade, Prof. Dr. Mario Lugarinho (USP)

III. Da costa dos murmúrios ao grito das margens: o discurso descentralizador de Lídia Jorge, Prof. MsC Nicia Zucolo (UFAM/USP)

IV. A poética de Manuel Rui: riso e utopia, Profa. MsC Veronica Prudente (UEA/ UFRJ)

V. Rubem Fonseca: margens, fezes e abjeção, Prof. MsC Vinícius Carvalho (IFMT)

VI. Literatura galega: margens & periferias, Profa. Dra. Teresa Bermúdez (Universidade de Vigo)                            

12h às 14h – intervalo para almoço

14h – Mesa plenária: “A Amazônia de Euclides da Cunha”, Allison Leão (UEA); “Sobre a busca de um eldorado tropical na Amazônia das obras de Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha”, Maurício Matos (UEA). Mediação: Teresa Bermúdez (UVigo)

15h – conferência intermediária “Vozes da poesia periférica”, Emerson Inácio (USP). Apresentação: Otávio Rios (UEA/UFRJ)

16h30min - Mesa Plenária: “Literatura galega: margens e periferias”, Teresa Bermúdez (Universidade de Vigo); “Reflexões sobre vozes poéticas femininas em Moçambique”, Carmen Tindó (UFRJ). Mediação: Verônica Prudente (UEA/UFRJ).

18h – intervalo (cafezinho)

18h15min – Conferência de encerramento: “Portugal, cais de chegada: identidades em trânsito na imigração portuguesa”, Isabel Pires de Lima. Mediação: Luci Ruas (UFRJ).

Linguagens-culturas, as heteropráxis e a coisa sagrada – 1/2

João Bosco Botelho



     “Por nove dias, as setas do deus dizimaram o exército... Filho de Atreu, quero crer que nos cumpre voltar para casa sem termos nada alcançado, no caso de à morte escaparmos, pois os Aqui­vos, além das batalhas, consome‑os a peste. Sus! consultemos, sem mora, qualquer sacerdote ou profeta, ou quem de sonhos entenda – que os sonhos de Zeus se originam – para dizer‑nos a causa de estar Febo Apolo indignado: se por não termos cumprido algum voto ou, talvez, heca­tombes, ou se lhe apraz, porventura, de nós receber o perfume de pingues cabras e ovelhas, a fim de livrar‑nos da peste.” Homero (Ilíada, I, 53).

     A análise das heteropráxis é indispensável para penetrar na íntima associação do conflito de competência entre a medicina e a religião, manifestada nas malhas sociais há milhares de anos. Essa possibilidade permite, a cada momento, entender as linguagens-culturas construindo–desconstruindo-reconstruindo a coisa sagrada, fazendo parte da religião popular desvinculada da estrutura hierárquica das academias e transformada na religião do corpo. Desse modo, torna-se possível entender como é possível que os curadores, adivinhos, magnetizadores, feiticeiros e benzedores nunca cessaram de receber os consulentes.

     Parece lógico pressupor que esse repensar deveria suscitar maior interesse aos médicos-oficiais, os curadores oriundos das academias.

     O processo reprodutor desse impressionante fenômeno social por meio das linguagens-culturas, a crença na coisa sagrada como instrumento de cura, não pode ser somente social. Se assim fosse, não seriam possíveis as reproduções idênticas em sociedades distantes milhares de quilômetros entre si e sem nenhum contato interétnico. O extraordinário elo comum é a crença, pessoal e coletiva, de a coisa sagrada dispor de poder intrínseco de curar a doença, o mal, a dor. Desse modo, antes de tudo, a coisa sagrada é aquilo que cura.       

     A claríssima presença da coisa sagrada como o mais importante elo norteador nas práticas da medicina-divina e da medicina-empírica junto à religião do corpo transcendeu no tempo e chegou a nós vivifi­cada tão intensamente que fica impossível saber onde terminam os limites. Esse fato se passa tão naturalmente e é compreendido com tamanha certeza que não existem muitos questionamentos da sua his­toricidade.

     Em consequência da disputa gerada com a medicina oficial, oriunda das universidades, raramente essa questão vem à tona despida das paixões parcimoniosas. A análise acaba contribuindo para que os pressupostos teóri­cos da medicina-oficial sejam conduzidos por fora dessa complexa relação. A importância social é diluída na polarização da luta de poderes que pode ser simbolizada na mesma essência da de Apolo e Dionísio, onde a medicina‑ciência se confronta com a religião‑medicina. Tudo é passado como se as linguagens-culturas e os componentes sociais, culturais, políticos e econômicos que acompanham que constroem e desconstroem as sociedades em nada interferissem nessa com­plexa relação.

     Se recuarmos no passado mais distante, as mensagens deixadas nas paredes das cavernas pelos nossos ancestrais deixam entender, quando associadas aos outros dados da paleoantropologia, que as práticas de curas e as expressões de religiosidade estão incrivel­mente atadas e dependentes desde ha muito tempo.

(Concui na próxima quinta-feira)

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Fantasy Art – Galeria

Daniel dos Santos.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Edith Seligmann-Silva lança e faz palestras

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Evento: Lançamento do livro Trabalho e Desgaste Mental: o direito de ser dono de si mesmo


Editora: Cortez
Páginas: 624
Valor: R$ 59
Autora: Edith Seligmann-Silva
Data: 18 de agosto de 2011
Horário: 17h
Local: Livraria Valer (Rua Ramos Ferreira, 1195 – Centro)



Evento: Palestra Saúde e Trabalho: Aspectos Psicossociais do Adoecimento Contemporâneo – Um olhar para a Amazônia

Palestrante: Edith Seligmann-Silva
Data: 19 de agosto de 2011
Horário: 9h
Local: Auditório da Escola Superior de Ciências da Saúde – UEA
Endereço: Av. Carvalho Leal – Cachoeirinha


Data: 22 de agosto de 2011
Horário: 9h
Local: Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL)
Endereço: Av. Gal. Rodrigo Octávio Jordão Ramos, 3000 – Coroado I

As noites voadoras de Jorge Tufic

Rogel Samuel*


Na poesia de Tufic tudo voa, são estrelas, cintilam caminham no céu daquela Amazônia mítica, luas várias luas que se contam com as mãos, narrativas dos nossos mitos, viagem dos Dessana, canoas de cristal, transformadoras, estórias e sabenças de quem vive sozinho no meio do mato, faro de onça, muirakitãs da lua nua, que se despe na entressafra do amor,

despenca uma folha
e o verão estremece

Passarinhos que ouvem nossas conversas, na terra macia escrevemos nossos textos (nunca se sabe, tampouco, – porque se chama de vazio – o espaço da natureza).

Que será de ti, Amazônia? Cavidades, rangidos

Subitamente sou árvore,
flor, pássaro e livro.
Um livro cujas páginas
tomaram a cor e o risco
da música e da pedra.

..........
cinzel que não fere,
da jaula inconsútil.


(Texto escrito com “Quando as noites voavam”, de Jorge Tufic – Fortaleza, 2011.
Ele é o grande cantor da Amazônia!)

Publicado no blog de Rogel Samuel.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

As doces lembranças

         Jorge Tufic


“Doces lembranças”, de Dona Chloé Loureiro, é um livro original sob vários aspectos: ele conta a história de sua vida, retrata uma época de ouro, ensina a viver e, ao mesmo tempo em que narra os eventos cívicos, religiosos ou domésticos, transcreve as receitas que fizeram o sabor e estreitaram a convivência entre parentes e amigos. Em pinceladas vigorosas, mostra-nos ainda o que foi a Sena Madureira da sua e da minha infância nas décadas de vinte e trinta, quando, sempre com a diferença de uma década, nossos pais tiveram que trocar o ambiente semibucólico daquele município acreano pela cidade de Manaus.

Se os tempos deterioram, se a qualidade de vida do brasileiro deprime-se com o progresso e a cosmopolitização, Dona Chloé não recorda e faz recordar apenas para viver, mas, sobretudo, para salvar. E aqui está um livro, essencialmente brasileiro e puro, que nos indica o caminho de volta ao sentimento caseiro do afeto, aos encontros na praça, ao valor da amizade, ao cultivo fraterno da boa vizinhança. A criatividade e os milagres da cozinha também contam na levança dos hábitos, no enfrentamento cotidiano das dificuldades. Por outro lado, os pais e os filhos são incapazes de ver e sentir como vê e sente a mãe compenetrada, que saiu da curiosidade e dos anseios da primeira e segunda infâncias, dedicadas aos longos preparativos da mulher e da esposa, para as tarefas do lar. E as “Doces Lembranças” de Dona Chloé estão repletas de acontecimentos afetivos, e até de sustos e sacrifícios que somente a ela, e a suas doces lembranças, devem pertencer.

Mas, leiam com atenção este livro. Leiam e anotem, que há nas suas entrelinhas muitas outras receitas, de amor e sabedoria, que bem podem conduzir à felicidade. O cenário de nossa infância comum, tão barulhento para mim quanto suave e romântico para Dona Chloé, nos devolve aos idos que o leve debuxo que ilustra seus capítulos vai, aos poucos, sugerindo: a chatinha que dobra uma curva de rio, a canoa com seu japá, o relojão de parede, o bondinho, o quiosque da praça e os retratos de família. É assim, exatamente, que ficam na memória as cenas e os objetos de nosso passado. Só as lembranças, com suas tintas e suas cores, têm o poder de acordá-la numa paciente e amorosa recomposição de gestos, pessoas, eventos, cronologia. E a seguir, o elenco de receitas que alegravam o paladar, e dariam, a cada gênero de goma, seu clima e sua festa.

Com franqueza, eu não esperava emocionar-me tanto com a leitura destas reminiscências, depois de ter lido as memórias de Pedro Nava. O fato, no entanto, é que a terra de minha infância tem mais a ver comigo do que a Belo Horizonte ou a Juiz de Fora daquele autor mineiro, cuja obra, na opinião de Francisco de Assis Barbosa, é uma lição de vida e uma lição de Brasil, como as “Doces Lembranças”, de Dona Chloé serão, para nós, uma lição de vida e a lição de um Brasil diferente e esquecido. Se alguém duvida, compare a vitalidade interior das casas mineiras de antanho, descritas pelo mestre de “Balão Cativo”, com as suas congêneres do Acre, onde a casa do Dr. Areal Souto destaca-se como exemplo e modelo.

Decorridos alguns anos dos últimos episódios que marcam, com chaves de ouro, as páginas finais desta autobiografia, nós fizemos, eu e meus pais, esse mesmo roteiro fluvial de Sena Madureira a Manaus, e adivinho a emoção daqueles que deixavam suas raízes pela vida da Capital. Como se sabe, as únicas, assim consideradas naquele tempo Capitais da Amazônia, eram Manaus e Belém. São dezenas de pessoas que estiveram, momentos apenas, diante dos nossos olhos. Personagens reais, ou imaginários, seu tempo, hoje, é de fábula. Como aquele misterioso Ramayana de Chevalier que Dona Chloé viu e “fotografou” nas suas diversas e espalhafatosas aparições durante a viagem. E a quem tivemos por amigo no apogeu e na derrocada, apenas física e breve, de sua bela e prodigiosa existência.

Finalizando esta modesta apresentação da escritora Chloé Loureiro, eu tenho a dizer, simplesmente, que os ossos de seu baú “reencarnam” neste livro, não por arte de um saudosismo estéril e vazio, mas porque também florescem na dimensão poética de um legado cultural que vence a morte.