Hoje, a tarde está muito azul
L. Ruas (1931-2000)
Hoje, a tarde está muito azul.
Não há ódio no olhar dos homens
E os olhos das mulheres são bondade.
Levemente o sol derrama uma camada
De ouro muito velho sobre as águas.
Os motoristas dirigem com cuidado
E os pedestres caminham descuidados.
Não houve nenhum desastre borrando
De vermelho o azul da tarde.
Não houve nenhuma tragédia:
Nenhum marido abandonou a mulher;
Nenhum operário caiu do andaime;
Não houve nenhum incêndio na cidade;
Nenhum anjo se revoltou contra Deus.
Os sexos estão repousados:
Virgem alguma foi, hoje, deflorada;
Não houve incestos nem adultérios;
Não houve casos de inversão sexual;
Não houve nenhum crime passional
Registrado na crônica policial.
Hoje, a tarde está muito azul...
Não houve prisões nem fuzilamentos políticos
Em qualquer parte do mundo.
Não houve jovens partindo para a guerra
Em qualquer parte do mundo.
Não houve sequestros nem lutas raciais
Em qualquer parte do mundo.
Não foram feitas experiências com bombas nucleares
Em qualquer parte do mundo.
As crianças soltam balões na praça
Sem medo de morrer bombardeadas
E os namorados esperam a noite, em paz.
E, enquanto as crianças brincam na praça,
Em paz,
Passa o enterro alegre de um menino
Levado, por meninos, num caixão azul.
Hoje, a tarde está muito azul...