Zemaria Pinto
O cronista. Ainda um
amador, Machado
de Assis começa a publicar
regularmente na segunda
metade de 1859 a seção
“Aquarelas”, no jornal
O espelho. É dessa época um
texto bastante
expressivo, intitulado “A reforma pelo jornal”, onde, numa linguagem
vibrante, ele analisa o papel
do jornal na democratização das relações humanas:
Houve uma cousa que fez tremer as aristocracias,
mais do que
os movimentos populares;
foi o jornal.
(...) Graças a Deus, se há alguma cousa a esperar
é das inteligências proletárias, das classes ínfimas; das superiores,
não.
(...) Eu não
creio no destino individual,
mas aceito o destino
coletivo da humanidade.
Há um polo
atraente e fases
a atravessar. – Cumpre vencer
o caminho a todo
custo; no fim
há sempre uma tenda
para descansar, e uma relva para dormir.
É inadmissível
que esse
texto, pregando abertamente
a revolta (cumpre vencer
o caminho a todo
custo!), tenha saído
da pena de um
alienado.
A partir
do ano seguinte,
ingressa no Diário do Rio de Janeiro, de Saldanha Marinho,
onde trabalha
como repórter
parlamentar e crítico
teatral, além
de manter uma coluna
semanal intitulada “Comentários
da Semana”. Num longo
texto com
feição de crônica
intitulado “O Velho Senado”,
escrito na maturidade,
publicado em Páginas
Recolhidas (1899), Machado relembra
os tempos de repórter
do Diário do Rio
e sua convivência
com amigos
jornalistas, como
Quintino Bocaiúva e Bernardo Guimarães, e com os senadores,
liberais e conservadores,
que forjaram a história
da capital e do segundo
reinado, como
o plebeu Joaquim Nabuco e os nobres Visconde
de Ouro Preto,
Duque de Caxias
e Barão do Rio
Branco.
Tendo escrito mais de
setecentas crônicas – entre 1858 e 1900 –, Machado publicou em livro apenas seis
delas, em Páginas Recolhidas. Essas seis
crônicas antologiadas pelo
próprio autor
haviam sido publicadas na Gazeta de Notícias, entre
1892 e 1894. São textos
com um viés
literário que
não se encontrará em
boa parte das crônicas
de Machado, pois,
ordinariamente, são textos
escritos sob
o calor dos acontecimentos,
fazendo parte de um
jogo que
conjuga o informar com
o formar opinião. Em
Machado, contudo, esse
jogo é feito
com humor
e ironia, um
calculado amargor e alguma melancolia. A crônica literária
brasileira – um
gênero que
ultrapassa as definições corriqueiras de
“registro cronológico dos fatos”
– começa exatamente
com Machado
de Assis, para se espraiar
em Rubem Braga, Nelson Rodrigues e
Carlos Drummond de Andrade, só para ficar em
três mestres
incontestes.
Embora possam ser
encontradas com títulos
diferentes, relaciono a seguir
coletâneas de crônicas
publicadas postumamente:
. Crítica & Variedade
– publicações esparsas, entre 1859 e
1904;
. Bons Dias!
& Notas Semanais
– publicadas em 1878 e 1888-1889;
. Balas de Estalo
& Crítica – publicadas na Gazeta de Notícias,
entre 1883 e 1886;
. História de Quinze Dias
– publicadas na revista Ilustração Brasileira,
entre julho
de 1876 e abril de 1878;
. A Semana
– publicadas na Gazeta de Notícias, entre
1892 e 1900.
Voltemos àquelas seis crônicas
citadas: não diria que
são as melhores,
mas são
certamente representativas da obra de Machado
de Assis – e, não à toa,
foram escolhidas pelo próprio.
Quatro delas reportam-se a matérias de jornais,
que nem
sempre sabemos se são
verdadeiras ou inventadas. Vejamos cada uma delas.
“Vae Soli”: o título, em latim, é uma citação
do Eclesiastes (4,10): “Pobre daquele que está só: se
cair não tem quem o levante”;
o versículo seguinte
arremata: “Além disso, se dois
dormirem juntos, aquecer-se-ão
mutuamente; mas um
só como
há de aquecer-se?”.
Um dia
desta semana, farto
de vendavais, naufrágios,
boatos, mentiras,
polêmicas, farto
de ver como
se descompõem os homens, acionistas e diretores,
importadores e industriais, farto de mim,
de ti, de todos, de um
tumulto sem
vida, de um
silêncio sem
quietação, peguei de uma página de anúncios,
e disse comigo:
“Eia, passemos em revista as procuras
e ofertas, caixeiros
desempregados, pianos, magnésias, sabonetes,
oficiais de barbeiro,
casas para alugar, amas-de-leite, cobradores,
coqueluche, hipotecas,
professores, tosses
crônicas...”
E o meu espírito,
estendendo e juntando as mãos e os braços, como
fazem os nadadores, que
caem do alto, mergulhou por uma coluna abaixo. Quando
voltou à tona, trazia entre os dedos
esta pérola:
Uma viúva
interessante, distinta, de boa família e independente de meios, deseja encontrar por esposo um homem de meia-idade,
sério, instruído, e também
com meios
de vida, que
esteja como ela
cansado de viver
só; resposta
por carta
ao escritório desta folha,
com as iniciais
M.R...., anunciando, a fim de ser procurada essa carta.
Entre citações
bíblicas, históricas, filosóficas e literárias, Machado
de Assis, em duas páginas
e meia, escreve um
tratado sobre
a solidão. Uma das citações
refere-se a um capitão
da guarda de Nero – “rico,
interessante e aborrecido, como
tu” – que
se aconselha com o filósofo estoico
Sêneca sobre a cura
para o tédio que sentia. Dizia o capitão
ao filósofo: “não é a tempestade que me aflige, é o enjoo do mar”. Machado
faz um paralelo
entre a viúva
e o capitão, para
concluir: “Viúva
minha, o que
tu queres
realmente não
é um marido,
é um remédio contra o enjoo. (...) Queres menos um companheiro que uma companhia.”
E conclui:
Mas, se ele
te sair o que queres, que grande prêmio de loteria! Junto à amurada
do navio, vendo a fúria
do mar e dos ventos,
tu ouvirás muitas cousas sérias e
graciosas a um tempo,
seguindo com os olhos
a fúria dos ventos
e o tumulto das ondas
livre, do enjôo,
como pedia aquele
capitão de Nero, e por
diferente regímen do que lhe
aconselhou o filósofo. E a tua conclusão
será como a tua premissa;
em caso
de tédio, antes
um marido
que nada.
A crônica
“Salteadores da Tessália” é
de uma atualidade impressionante:
comenta a notícia sobre
a prisão de uma quadrilha
de deputados. O estilo
é inconfundível, desenvolvendo-se, tal como na anterior, num entrançado de altas
referências e grande
densidade poética,
além daquele calculado amargor, tendente
à melancolia.
Tudo isto
cansa, tudo isto
exaure. Este sol
é o mesmo sol,
debaixo do qual,
segundo uma palavra
antiga, nada
existe que seja novo.
A lua não é outra lua. O céu azul e embruscado, as estrelas e as nuvens,
o galo da madrugada,
é tudo a mesma
cousa. Lá vai um
para a banca
da advocacia, outro
para o gabinete
médico, este
vende, aquele compra,
aquele outro
empresta, enquanto a chuva cai ou não cai, e o vento sopre ou não; mas sempre o mesmo vento e a mesma chuva.
Tudo isto cansa, tudo
isto exaure.
Tal era
a reflexão que
eu fazia comigo,
quando me
trouxeram os jornais. Que me diriam eles que não fosse velho?
A guerra é velha,
quase tão
velha como
a paz. Os próprios
diários são
decrépitos. A primeira
crônica do mundo
é justamente a que
conta a primeira
semana dele, dia
por dia
até o sétimo
em que
o Senhor descansou. O cronista bíblico omite a causa do descanso divino; podemos supor que não foi outra senão o sentimento da caducidade
da obra.
A terceira
crônica, “O sermão
do Diabo”,
vale-se de uma obscura citação de Santo
Agostinho – “a igreja do Diabo
imita a igreja de Deus” – para
parodiar nada menos que o Sermão da
Montanha:
1º – E vendo o Diabo a grande multidão
de povo, subiu a um
monte, por
nome Corcovado,
e, depois de se ter
sentado, vieram a ele os seus discípulos.
(...)
13º – Ouvistes que
foi dito aos homens:
Amai-vos uns aos outros. Pois
eu digo-vos: Comei-vos uns aos outros; melhor
é comer que ser comido; o lombo alheio é muito mais nutritivo que
o próprio. (...)
15º – Assim,
se estiveres fazendo as tuas contas, e te lembrar que teu irmão anda meio desconfiado de ti,
interrompe as contas, sai de casa, vai ao encontro
de teu irmão
na rua, restitui-lhe a confiança,
e tira-lhe o que ele
ainda levar
consigo. (...)
18º – Não façais
as vossas obras diante
de pessoas que
possam ir contá-lo à polícia.
(...)
30º – Todo aquele que ouve
estas minhas palavras,
e as observa, será comparado ao homem sábio, que
edificou sobre a rocha
e resistiu aos ventos; ao contrário do homem
sem consideração,
que edificou sobre
a areia, e fica a ver
navios...
“A cena
do cemitério”
parodia uma das cenas mais dramáticas do Hamlet,
de Shakespeare, o enterro de Ofélia,
comentando, em clima de pesadelo, a crescente especulação financeira. “Canção de Piratas”, de
julho de 1894, alude
a Canudos, e à notícia
de que Antônio Conselheiro
reunira 2.000 homens “perfeitamente armados”. O tom
é de puro sarcasmo:
Machado vibra com
os rebelados e compara-os com os piratas cantados por
seu mestre
Victor Hugo.
Para nós,
artistas, é a renascença,
é um raio
de sol que,
através da chuva
miúda e aborrecida,
vem dourar-nos a janela e a alma. É a poesia
que nos
levanta do meio da prosa
chilra e dura deste fim
de século. (...)
Poetas de 1894, aí tendes matéria
nova e fecunda.
Recordai vossos pais;
cantai como Hugo a canção
dos piratas.
Machado renega a própria
rotina e se delicia com
o rompante romântico dos novos heróis, que “sacudiram as sandálias
à porta da civilização
e saíram à vida livre”.
Era a redenção
da poesia que
definhava no individualismo parnasiano:
um motivo épico, enfim, explodia no sertão brasileiro. Não se poderia pretender nada mais
original. Parece que Euclides da Cunha levou a sério os conselhos de seu amigo
Machado.
O último
texto, “Garnier”,
faz o necrológio do editor
que foi amado
e odiado pelos escritores
do seu tempo.
Machado descreve com
uma compaixão impressionista
a avareza do editor,
que morreu sem
se dar tempo, pela
entrega doentia
ao trabalho, de desfrutar
a riqueza acumulada.
Pessoalmente, que
proveito deram a esse
homem as suas
labutações? O gosto do trabalho,
um gosto
que se transformou em
pena, porque
no dia em
que devera libertar-se dele, não pôde mais; o instrumento
da riqueza era
também o do castigo.
Esta é uma das misericórdias da Divina Natureza.
Não importa: laboremus. Valha sequer a memória, ainda que perdida nas páginas
dos dicionários biográficos. Perdure a notícia, ao menos,
de alguém que
neste país novo
ocupou a vida inteira
em criar uma indústria liberal,
ganhar alguns
milhares de contos
de réis, para
ir afinal dormir em sete palmos de
uma sepultura perpétua.
Perpétua!
Há muitas outras crônicas que
poderiam fazer parte
desse conjunto antológico. Acrescento só mais duas, pelo que elas nos ajudam
a compreender melhor
a própria obra
machadiana. “Filosofia
de um par
de botas”
(1878), onde se reproduz o diálogo entre um velho e
abandonado par de botas,
a relembrar sua
atribulada passagem pelo
mundo, revela a “influência”
do cronista no romancista, especialmente em
Memórias póstumas de Brás Cubas.
Outro texto
exemplar é “Elogio
da Vaidade” (1878),
onde a própria
discursa opondo-se à Modéstia e justificando porque
ela, a Vaidade,
é a principal virtude
entre os homens.
Essa crônica ilustra a classificação que Ivan Teixeira usa
para Machado
de Assis: “um crítico
da cultura” –
dos costumes, do comportamento.
É um exemplo
da abrangência crítica de Machado de Assis. Ninguém
estava isento de sua
pena ferina:
nem mesmo
Jesus Cristo ou
Shakespeare. Concluindo o discurso, a Vaidade percebe que
a plateia não
concorda com o que
acabara de expor:
Querem ver que
perdi toda a minha
retórica, e que
ao cabo da pregação,
deixo um auditório
de relapsos? Céus!
Dar-se-á caso que
a minha rival
vos arrebatasse outra
vez? Todos
o dirão ao ver a cara com que me escuta este cavalheiro;
ao ver o desdém
do leque daquela matrona.
Uma levanta os ombros; outro ri de escárnio. Vejo ali um rapaz a fazer-me figa;
outro abana tristemente a cabeça;
e todas, todas as pálpebras parecem baixar, movidas por um sentimento único. Percebo, percebo! Tendes a volúpia
suprema da vaidade,
que é a vaidade
da modéstia.