Amigos do Fingidor

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Veja o vídeo: Ronaldo Tiradentes incentiva o terrorismo de hackers


O "jornalista" Ronaldo Tiradentes pisou na bola duas vezes ao entrevistar ao vivo o hacker InfoPCX: incentivou a prática e fez a apologia ao crime.

Tudo o que o tal InfoPCX fez foi um "ataque de negação de serviço" - o ABC de qualquer site de hackers -, quando, por excesso de acessos simultâneos controlados por um"zumbi", o site atacado fica temporariamente inacessível. Tiradentes comandou um ataque desses aos sites da Prefeitura de Manaus e da Assembleia Legislativa do Amazonas.

Por analogia, qualquer dia desses o malfadado "jornalista" vai entrevistar um pistoleiro e pedir uma demonstração. Cuidado, Marcos Santos!

O vídeo foi postado ontem no Blog do Holanda. Procurem para ver se ainda está lá...

Esta é a imprensa amazonense.

Álbum Purus

Clique sobre a imagem, para ampliá-la.

Arqueologia da doença: macro e microdimensão

João Bosco Botelho


A principal diferença entre a prática médica oficial (autorizada pelo Estado), a empírica (resultante do conhecimento historicamente acumulado) e a divina (estruturada na fé de que a matéria pode ser modificada pela ação divina) está assentada no fato de que a Medicina-oficial molda o diagnóstico, o prognóstico e o tratamento sobre propostas teóricas.

Esse conjunto histórico apresenta três momentos (ou cortes epistemológicos, na linguagem de Bachelard):

1º) A teoria dos Quatro Humores, elaborada na Escola Médica de Cós, na Grécia, no século IV a.C. A compreensão da morfologia da doença recebeu a dimensão do corpo. Nessa época, pela primeira vez, a doença passou a ser compreendida fora do domínio transcendente da divindade;

2º) No século XVII, quando a doença saiu do corpo para a microestrutura celular, pelos estudos de Marcelo Malpighi (1628‑1694), iniciando o pensamento micrológico. Os hospitais dos países subdesenvolvidos, mesmo realizando transplantes, continuam executando muitíssimo mais a Medicina de Malpighi do século XVII;

3º) No século XIX, a genética do frade agostiniano Gregor Mendel (1822‑1844) impulsionou a passagem da célula para a molécula e inaugurou a mentalidade molecular. O fruto final deverá ser a completa compreensão dos genes, não só a simples identificação gênica do projeto Genoma. Apesar da extraordinária importância, o projeto genoma só mapeou os genes, muito distante da futura compreensão de como eles funcionam inter-relacionados.

            Mesmo com os avanços da melhor compreensão da morfologia da doença, na macro e na microdimensão, obtidos em pouco mais de dois mil anos, o médico sofre no cotidiano incontáveis dúvidas. Sem poder empurrar os limites do sofrimento fora de controle e da morte prematura, notadamente, nos cânceres, incontáveis vezes não conseguem oferecer respostas satisfatórias.

            Essa é uma das grandes sagas da inteligência humana: continuar empurrando os limites da vida a partir do desvendar da arqueologia da doença!

            Por outro lado, no cerne das perguntas sem respostas, ainda existem as que interligam as três Medicinas: existiriam, realmente, pessoas com poderes excepcionais – dom – suficientes para curar pessoas, isto é, mudar a estrutura da matéria viva fora de todas as leis físicas que regem o universo?

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Fantasy Art – Galeria

Jonathon Earl Bowser.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Astrid Cabral lança 2a. edição de Intramuros

Astrid Cabral integrou-se ao Movimento Madrugada por meio da sua confissão artística, mas sem se fundar nas noites da boemia. Assim ela converteu-se em musa dos poetas do Clube. Bela e inteligente, precoce em suas atividades artísticas na produção de textos e na declamação de poemas, a demonstrar simpatia pelas novas correntes estéticas. Além da inserção de um discurso poético e percepção feminina, a obra de Astrid instaura, no contexto da poesia Madrugada, uma dicção poética mais intimista, reveladora de uma forte sensibilidade feminina. Mais que isso, sua obra é a revelação de uma nova percepção sobre a realidade local, um novo olhar sobre o tempo e o cotidiano, numa tentativa de recuperação do passado.

É verdade, entretanto, que embora Astrid Cabral dê a seus textos uma conotação mais subjetiva, não se desvincula de sua realidade, continua ligada ao universo regional. Daí a presença, em seus textos, da água, da terra, da natureza, do ciclo da vida em seu contínuo arrastar-se, deixando para trás a matéria impalpável das lembranças, tudo permeado por uma forte atmosfera intimista. Não é sem razão que todas as utopias se projetam no futuro. Já o presente é o dado, o palpável, o futuro próximo, que, se não encontra sua justificação no passado, pelo menos se explica a partir dele. O mundo real permeia a obra de Astrid Cabral desde os contos de Alameda (1963). À visão lírica, a contemplação da natureza, legítimas quanto sejam como fonte de poesia, ela prefere o olhar atento e minucioso para romper a casca da aparência sob a qual tudo se esconde. Em Intramuros, que a Editora Valer lança em segunda edição ampliada com poemas novos, muitos ainda inéditos, a poeta não postula uma simples nulificação do presente, porque o presente, mais que o passado vivido ou a memória, é sua matéria, e há na sua obra um permanente sentido de presença.

Sobre a autora

Astrid Cabral Félix de Sousa nasceu a 25 de setembro de 1936 em Manaus, onde fez os primeiros estudos e integrou o movimento Clube da Madrugada. Transferiu-se para o Rio de Janeiro, diplomando-se em Letras Neolatinas na atual UFRJ, e mais tarde como professora de inglês pelo Ibeu. Lecionou língua e literatura no ensino médio e na Universidade de Brasília, onde integrou a primeira turma de docentes. Depois Astrid virou o mundo em sua carreira diplomática e se especializou em teoria literária como professora de nível superior. E nunca mais abandonou a poesia, nem a poesia a abandonou. Em 1968 ingressou por concurso no Itamaraty, tendo servido como Oficial de Chancelaria em Brasília, Beirute, Rio e Chicago. Ao longo de sua vida profissional desempenhou os mais variados trabalhos, fora e dentro da área cultural. Detentora de importantes prêmios, Astrid participa de numerosas antologias no Brasil e no exterior e colabora com assiduidade em jornais e revistas especializadas.
Obras publicadas: Alameda (1963); Ponto de Cruz (1979); Torna-viagem (1981); Zé Pirulito (1982); Lição de Alice (1986); Visgo da Terra (1986); Rês desgarrada (1994); De déu em déu (1998); Intramuros (1998); Rasos d’água (2003); Jaula (2006); Ante-sala (2007); Antologia pessoal (2008); 50 poemas escolhidos pelo autor (2008); Doigts dans l’eau (2008); Cage (2008).

Evento: Lançamento do livro Intramuros
Editora: Valer
Edição:
Páginas: 114
Valor: R$ 20
Autor: Astrid Cabral
Data: 30 de junho de 2011
Horário: 18h30
Local: Livraria Valer (Av. Ramos Ferreira, 1195 – Centro)
Contatos: Valer: (92) 3635-1245

Para entender o conto

A obra se alinha a clássicos do gênero e aponta
para novos caminhos a serem percorridos.
Allan Gomes*

Autor condensa nesse ensaio grande parte da produção amazonense


O novo livro do escritor Zemaria Pinto, lançado em março, O conto no Amazonas visa, de forma enxuta, condensar o maior número de informações e referências sobre esse gênero na produção literária do Estado. O livro nasce destinado a ser um guia de viagem que ajudará leitores a chegar ao mundo da palavra e da criação literária. Desde a apresentação o autor esclarece que não é tarefa fácil, pela natureza controversa do gênero, e cita Machado de Assis, na apresentação de seus Papéis avulsos (1882): “Quanto ao gênero deles, não sei que diga que não seja inútil”.

É assim, invocando a humildade de Machado de Assis, que Zemaria traça um panorama sobre a produção contística do Amazonas com grande ênfase no período do Clube da Madrugada. Não se pode negar o diálogo que esta antologia estabelece com outras publicadas anteriormente (como a Antologia do Conto do Amazonas, organizada por Marcos Frederico Krüger e Tenório Telles, e a Antologia do novo conto amazonense, de Arthur Engrácio) e que, em conjunto, acabam formando um panorama abrangente das publicações do gênero.

Muitos contos


O conto no Amazonas é um estudo teórico e prático sobre essa arte narrativa. O diferencial está no fato de o autor utilizar como referência analítica os escritores representativos da produção contística regional. O texto se constrói a partir de um breve estudo introdutório em que situa o leitor em relação à história do conto, seus conceitos e os mais destacados criadores. O autor apresenta um guia de leitura e, ao mesmo tempo, um pequeno manual de iniciação não só para leitores, mas para os que desejarem se aventurar nessa arte.

Inicia seu percurso com a narrativa mítica “Baíra e sua namorada”, originária da mitologia dos índios Cauaiua-Parintintin. Volta-se para textos consolidados pela tradição literária, com a apresentação e a análise de obras organizadas entre Pré-Madrugada, Clube da Madrugada e Pós-Madrugada.

A capacidade de síntese do texto de Zemaria não deixa de apontar para a escrita contemporânea, sob influência da Internet, e abre espaço para nos indagarmos o porquê de parte dessa produção originária da rede ainda não ter encontrado espaço em antologias.

(*) Publicado no jornal A Crítica, de 28.06.2011.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Manaus, amor e memória XXIII

Moacir Andrade, diante de uma de suas obras, em foto de 1970.
Colaboração: Roberto Mendonça.

Gil Hollanda e seu canto perene

Jorge Tufic


Neste belíssimo Pelas ruas do meu canto, livro de autoria do paraibano Gil Hollanda, você não apenas lê, mas vê poesia. A gente chega à inusitada conclusão de que o poeta, nele, consegue harmonizar as duas vertentes primordiais do movimento concretista dos anos 50, no Brasil, ou seja: a de São Paulo, com os ortodoxos ¨criadores¨da teoria, e a do Rio de Janeiro, que tende mais para o lado emotivo da palavra, ao oposto de sua total substituição pelos signos ou pelo diagrama chinês.

O autor desta coletânea de poemas urbanos vai muito mais longe, acoplando em seu modo singular as experiências, inclusive, de Wladimir Dias Pino, quando se vale da fotografia que passa a servir de moldura ou conteúdo semântico da paisagem, histórica, ausente ou natural, mas sempre de João Pessoa, onde  reside e trabalha, caminha e sorri, embora, sendo ele, Gil, um conceituado professor de biologia, saiba dos danos que o progresso tem causado ao nosso planeta.

O lançamento de Pelas ruas do meu canto ocorrera no Bar In Toca (em frente ao antigo Hotel Globo, no Centro Histórico de João Pessoa). Uma noite que podemos dizer que foi memorável, com auditório lotado, no qual foram encenados poemas, com apresentação de banda musical, discursos e muita alegria. No dia seguinte ao evento, O NORTE, jornal da cidade, além de noticiar o fato, comenta: “Em Pelas ruas do meu canto o leitor vai encontrar imagens recorrentes da urbe parahibana. Algumas tradicionais, como o Ponto de Cem Réis e os parques Sólon de Lucena (Lagoa) e Arruda Câmara (Bica). Outras imagens remetem a lugares pouco retratados e quase nunca cantados em versos, como os casos do Edifício ‘18 Andares’, o vetusto casarão de azulejos, a feira de Jaguaribe ou ainda o cemitério com a sua fábrica de cimento.”

Trata-se do segundo livro de poesia de Gil Hollanda. Que precisa e deve ser divulgado, lido e até adotado nos cursos de letras, porquanto útil como informação didática, exemplo de mestria e modelo de inspiração: tornando-a possível, hoje, mesmo que vivamos um tempo pregnado de malos pressentimentos, violência e extrema crueldade. Do qual, no entanto, se eleva o canto do poeta.

domingo, 26 de junho de 2011

Haicai inédito de Luiz Bacellar

.

Rosa contra róseo:

o voo de guarás vermelhos

ao anoitecer.

                    (Luiz Bacellar)

sábado, 25 de junho de 2011

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Mar morto, de Jorge Amado, uma análise 11/14

Zemaria Pinto


Morte – É nesse período de dificuldades que o árabe Toufick, braço direito de F. Murad, rico comerciante e notório contrabandista, propõe negócio a Guma. Conhecedor de sua fama de bom mestre de saveiro e sobretudo de que seria uma pessoa em quem pudesse confiar, Toufick propõe a Guma um negócio sem riscos (com a proteção da própria Polícia!) e de retorno financeiro imediato. Tudo o que Guma precisa fazer é transportar algumas cargas de um navio ancorado ao largo para o porto de Santo Antônio, perto do farol da Barra, onde ficava o armazém de F. Murad. Guma pensa que pode fazer o serviço “uma ou duas vezes, o necessário para pagar o barco, depois dava o fora em Toufick”. Reacende-se nele a esperança de mudar de vida e atender aos anseios de Lívia, abandonar aquela vida de riscos cotidianos.

Feito o primeiro “serviço”, Guma quita sua dívida com João Caçula. Para Lívia, diz que fora um empréstimo de Rodolfo, que, aliás, tinha “negócios” com Toufick. Para os demais, diz que fora empréstimo do futuro sócio, tio de Lívia. O segundo carregamento não rendeu tanto, mas foi suficiente para quitar boa parte do débito com Dr. Rodrigo. A justificativa para o médico foi de que ganhara a quantia “na roleta”.

Vendo facilidade no contrabando, Guma considera que não precisa sair imediatamente do negócio: pode juntar um dinheirinho extra, ir para a cidade, associar-se com o tio de Lívia em um armazém de grande porte (não mais uma simples quitanda!) e nem precisaria vender o “Paquete Voador”...

Poderia vir de vez em quando, dar suas viagens também. Continuaria a ser um marítimo, a ter interesse no mar, a navegar. Satisfaria Lívia e ficaria satisfeito também, não se mudaria por completo. Aquilo é que era um bom plano. Mas para realizá-lo tinha que demorar mais tempo no negócio de contrabando para fazer o dinheiro necessário para entrar como sócio do tio de Lívia. Mais uns meses, umas tantas viagens, teria juntado o suficiente. Era um negócio rendoso aquele.
(“Contrabandista”)

Guma faz muitas outras viagens para o contrabando. Quita por completo o saveiro e começa a poupar para o futuro. Lívia acaba descobrindo de onde Guma arranjava dinheiro e vendo nisso a perspectiva de mudar definitivamente de vida, acaba concordando em que ele continue no negócio até quando fosse necessário. Estabelecem metas, fazem planos: o dia de abandonar o contrabando e montar seu próprio negócio na “cidade alta”, longe do mar e das tempestades, se aproxima.

Na rotina do contrabando, Guma vê as nuvens que se acumulam no céu e o vento que sopra furioso: prenúncio de tempestade. No saveiro, além de Guma e Toufick, vão Haddad, amigo deste, e Antônio, filho de F. Murad, estudante de Direito e boêmio, que queria conhecer de perto as atividades do pai. Mal se vê ao largo o navio que vai abastecê-los, encoberto pela bruma. Logo cai uma chuva violenta e o mar se encrespa. O trabalho de carregamento é concluído sob o forte temporal. O “Paquete Voador” ruma para o porto de Santo Antônio. Guma sabe do perigo. O saveiro carregado torna-se mais difícil de manobrar. O vento os desvia da praia, empurra-os para o mar alto.

Bem defronte é o porto de Santo Antônio. Mas estão muito ao largo. Guma manobra para embicar para o porto. Pouco adiante os arrecifes cobertos de água. Manobra com facilidade, mas as águas se levantam em ondas colossais, atiram o saveiro para os arrecifes. Estava carregado demais. Virou como se fosse um brinquedo na mão do mar. Os tubarões vieram de alguma parte, eles estão sempre próximos dos naufrágios.
(“Terras de Aiocá”)

Guma, vendo Toufick se debatendo, toma-o sobre as costas e nada, “contra as águas e contra o vento”, até o cais. Extenuado, é recebido por F. Murad, tomado de desespero, por não ver Antônio, seu filho. Guma atira-se na água, nadando com dificuldade.

Agora as forças lhe faltam a cada momento. Mas continua. E chega a tempo de ver Antônio ainda seguro no casco do saveiro que está virado, parecendo o corpo de uma baleia. Pega o rapaz pelos cabelos e recomeça a travessia. O mar o impede. Os tubarões, que já devoraram Haddad, vêm no seu rastro. Guma traz a faca na boca, Antônio seguro pelos cabelos. Na sua frente vê Lívia, Lívia quase tranquila, Lívia esperando que tudo mude para melhor. Lívia que tem um filho dele, Lívia a mulher mais bonita do cais. E os tubarões vêm atrás, se aproximam, ele esgota as forças. Mesmo Lívia ele não vê mais. Sabe apenas que tem que nadar porque leva um filho pelos cabelos, filho de F. Murad ou seu filho, ele não distingue mais. Lívia, Lívia vai na sua frente. As águas do mar são fortes, o vento assovia. Mas ele nada, ele corta as ondas. Leva um filho, será seu filho?
(“Terras de Aiocá”)

Guma nada com Antônio até bem próximo da praia, quando então o solta. As ondas jogam o rapaz a salvo na areia. Os tubarões alcançam Guma. Ele luta em vão.

Algum tempo depois a tempestade serenou. A lua apareceu e Iemanjá estendeu seus cabelos sobre o lugar onde Guma desaparecera. E o levou para as viagens misteriosas das terras misteriosas de Aiocá, para onde vão os valentes, os mais valentes do cais.
(“Terras de Aiocá”)

Milagre – O corpo de Guma jamais será encontrado, pois fora levado por Dona Janaína para a última viagem. Lívia sofre, sim, mas sem desespero. O “Paquete Voador”, ainda recuperável, é atirado na areia pela força do vento. Rosa Palmeirão retorna para ser “avó” do pequeno Frederico, conforme prometera. A mãe de Guma também retorna, está quase cega. Lívia considera que vender o saveiro “era como se entregasse seu corpo, como se deixasse possuir por outro (...) Vendê-lo era como vender seu corpo.”

Lívia assume o lugar de Guma na direção do saveiro, com o auxílio de Rosa Palmeirão. Vão guardar o lugar que um dia será de Frederico.

No cais o velho Francisco balança a cabeça. Uma vez, quando fez o que nenhum mestre de saveiro faria, ele viu Iemanjá, a dona do mar. E não é ela quem vai agora de pé no “Paquete Voador”? Não é ela? Ela é, sim. É Iemanjá quem vai ali. E o velho Francisco grita para os outros no cais:

 Vejam! Vejam! É Janaína.

Olharam e viram. Dona Dulce olhou também da janela da escola. Viu uma mulher forte que lutava. A luta era seu milagre. Começava a se realizar. No cais os marítimos viam Iemanjá, a dos cinco nomes. O velho Francisco gritava, era a segunda vez que ele a via.

(“Estrela”)

Ilustrações: capa da edição brasileira de 1982; capa da edição turca de 1982.




quinta-feira, 23 de junho de 2011

O aborto e o sagrado

João Bosco Botelho


            A mais antiga e clara referência cristã antiabortiva está no Didaqué, manual ético‑moral, escrito nos anos 100: “Não matarás criança por aborto, nem criança já nascido”. O filósofo cristão Tertuliano (c. 160‑220) também adotou a mesma posição: “É homicídio antecipar ou impedir alguém de nascer. Pouco importa que se arranque a alma já nascida ou se faça desaparecer aquela que está ainda por nascer”.  

             A partir do século IV, o aborto provocado passou a ser associado à idade fetal. Nesse sentido, São Jerônimo (331‑420), um dos quatro grandes Doutores da Igreja, na correspondência endereçada à Algásia, sustentou: “Os sêmens se formam gradualmente no útero e não se pode falar de homicídio antes que os elementos esparsos recebam a sua aparência e seus membros”. De forma semelhante, Santo Agostinho (354‑430) manteve a importância da separação etária dos fetos: “Pois uma vez que o grande problema da alma não pode ser decidido apressadamente com julgamentos rápidos e não fundamentados, a Lei não prevê que o ato seja considerado como homicídio, uma vez que não se pode falar de alma viva num corpo privado de sensações, numa carne não formada e, portanto, ainda não dotada de sentidos”.

            A dúvida sobre a data do início da anima­ção do feto, oriunda dos conceitos aristotélicos, atravessou os séculos. O magnífico São Tomás (1225‑1274) sustentou que só o aborto do feto animado seria homicídio. A força da tradição e a moralidade do tomismo para a estrutura dogmática da Igreja influenciaram, na Idade Média, no afrouxamento da proibição do aborto. O papa Gregório XIV, apoiado no argumento de muitos teólogos, revogou a Bula de Xisto V (1588) que punia civil e canonicamente todos os que praticassem o aborto em qualquer fase do feto.

             O retorno da Igreja, no século 20, ao rigor do cristianismo do Didaqué contra o aborto iniciou com o papa Pio XI, que acabou com a distinção entre o feto animado e não animado. No seu famoso discurso dirigido aos obstetras, em 1951, foi enfático: “Todo ser humano, até mesmo as criancinhas no seio materno, recebe o direito à vida diretamente de Deus... Não há nenhum homem, nenhuma autoridade humana, nenhuma ciência, nenhuma indicação médica, econômica, social, moral, que possa exibir título jurídico válido para dispor direta e deliberadamente de uma vida humana inocente visando sua destruição”.

            O documento conciliar Gaudium et Sepes, considerado progressista em muitos aspectos da ação social da Igreja, manteve a interdição incondicional: “A vida, uma vez concebida, deve ser tutelada com o máximo de cuidado; e o aborto, como o infanticídio, são delitos abomináveis”.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Fantasy Art – Galeria

Dorian Cleavenger,

domingo, 19 de junho de 2011

Maués começa a viver a expectativa do Flifloresta 2011

Thiago de Mello, Ademir Ramos e Zemaria Pinto, no Fliflresta Maués 2010.
Xico Gruber


Já estão confirmados os nomes dos escritores que estarão presentes no Festival Literário Internacional da Floresta de Maués (Flifloresta/Maués). O evento, promovido pela Prefeitura do município, acontecerá no dia 24 de junho, com a presença dos escritores Astrid Cabral, Dori Carvalho, Tenório Telles, Ademir Ramos,  Zemaria Pinto, Elson Farias, Nelson Castro, Luiz Lauschner e Abrahim Baze.

O Flifloresta faz parte da programação do Festival de Cultura de Maués, evento que conta com atividades desenvolvidas no período de 16 a 25 de junho, em comemoração aos 178 anos do município.

A abertura do Flifloresta/Maués está marcada para as 08h30, com a palestra magna “A importância da leitura na formação da juventude”, ministrada pela poetisa Astrid Cabral.

Depois, acontecerá o Simpósio de Leitura e Formação de Leitores, com a presença dos escritores convidados. O Simpósio será das10h às 19h. Dentro do Simpósio, haverá a palestra “As culturas indígenas e a construção da identidade na Amazônia”, com o antropólogo Ademir Ramos, e as mesas temáticas “O Papel da Escola na formação dos leitores”, com Elson Farias, e “Como me tornei escritor: formação e experiência”, com Zemaria Pinto.

Às 19h, haverá a abertura da Exposição de Fotografias de Paulo Câmara, denominada “Um olhar silencioso...”, e em seguida o lançamento dos livros “Intramuros”, de Astrid Cabral, “A cidade perdida dos meninos-peixes”, de Zemaria Pinto, "Tributo a um contador de história", de Xico Gruber, “Ferreira de Castro” de Abrahim Baze,  “O som das letras” e “ Aventuras do Zezé na História do Amazonas”, de Elson Farias, “Nova Ortografia da língua Portuguesa”, de Tenório Telles, “Paixão e fúria”, de Dori Carvalho, “O perfume do pau rosa” de Luiz Lauschner, e o Livro de Maués, com informações históricas e administrativas da cidade, prefaciado pelo próprio Prefeito.

Às 21h, está previsto, ainda, um recital poético com Dori Carvalho.

Na seqüência, serão premiados os vencedores do Festival de Narrativas, do concurso de Artes Plásticas, e serão homenageadas personalidades que ajudam a construir a história da Terra do Guaraná.

No último dia do Flifloresta/Maués, será promovido o chamado Café Literário, e em seguida a distribuição de mais de 1000 (mil) livros nas casas inscritas no programa “Bibliocleta”.

Segundo o prefeito do município, Miguel Paiva - Belexo, a realização do Flifloresta, como parte do Festival de Cultura de Maués, institui um novo conceito de comemorações populares. “Todo mundo está acostumado a fazer festas apenas com shows musicais. Estamos criando algo que vai além, que pode deixar sementes para o povo. O contato com a literatura pode mudar a vida de uma pessoa, seja de qual idade for”, afirma.

Os locais de realização do Flifloresta em Maués serão a sala de Exposições do Museu do Homem de Maués e o auditório do IFAM – Escola Técnica federal.

A primeira edição do Flifloresta aconteceu em 2008, em Manaus. Ano passado, os municípios de Careiro da Várzea, Itacoatiara , Parintins e Maués também foram cenários do evento. A participação popular é gratuita.

Falando de haikai

Jorge Tufic



Como distinguir o haikai de um trístico, em língua portuguesa, se ambos são compostos de estrofes com três versos? Talvez pelo conteúdo poético ou pela temática, se não também pela forma guilhermina, ou seja, fazendo rimar os versos primeiro e terceiro, introduzindo também rima leonina no segundo. No meu achar, contudo, desde que o trístico assuma a condição de metáfora, distinguindo-se da prosa ao ficar mais próximo de Matsuo Bashô, o dilema parece resolvido. Ou seja, ainda, as dificuldades em contornar as diferenças entre a língua japonesa e a portuguesa se atenuam com as tintas da paisagem, podendo avançar mais no terreno da meditação (zen) até que os versos da estrofe configurem uma independência maior no sentido de ampliar os domínios do significado. Como neste, de Olga Savary:

                                                                                  Cascata – ermida
                                                                                  devoção de estio
                                                                                  por um instante.

As aparentes facilidades do gênero, porém, conduzem aos excessos da hipertrofia. Mas disto padece também o soneto, a balada e demais formas fixas da poesia universal. No entanto, compensam as recolhas da espécie em livros da qualidade deste OKU, VIAJANDO COM BASHÔ, de meu amigo Carlos Verçosa (Secretaria de Cultura e Turismo do Governo do Estado da Bahia, 568 pgs), no qual se insere “A presença do haikai na poesia brasileira”, ensaio do autor, além de um prefácio de Oldegar Franco Vieira e um estudo de Octavio Paz, sem mencionar a riqueza de exemplos com que dá ao seu trabalho a dimensão exata de uma tese de mestrado.

Apenas, isto: que a segunda edição da obra inclua os haikaistas amazonenses e trate com mais respeito a contribuição de Guilherme de Almeida.

A BUSCA do teatro de Nereide Santiago – O caminho de Santiago

Jorge Bandeira

“Os ausentes são mortos temporários”
(Millôr Fernandes)


A trajetória teatral da diretora e dramaturga Nereide Santiago percorre caminhos de particularidades no campo cênico, trajetos de um Teatro cristalizado por uma encruzilhada entre a experimentação e o burlesco, e os resultados ao longo deste percurso denotam que podemos vislumbrar algumas luzes que acendem e apagam em cada montagem deste importante grupo chamado de A RÃ QI RI. Este caminho adentra agora na A BUSCA, sua mais recente produção para Teatro. Fôlego e reflexão nesta cena, onde algumas aparas poderão ser discutidas, ou descartadas pela trupe. O crítico aponta setas para algumas vias de soluções do espetáculo, mas ciente estou que o grupo possui sua linguagem rigorosa, e que hoje atua como um dos baluartes de um teatro de grupo, com tempo e disposição para futuros voos criativos. A rã coaxa neste lago caboclo, nesta cena teatral local exercitada hoje como um evento esporádico, e de matizes tão antagônicas como complementares.

Nosso Teatro hoje é feito de um caudal de gêneros, uns confusos, outros revigorados, outros simplesmente efêmeros, que só duram o fechar de um primeiro ato ou sessão. Vamos começar esta busca, uma busca necessária para a compreensão do que almeja esta rã, este mapinguari teatral, este poderoso amuleto de nossa cena teatral. Um primeiro conceito chama a atenção do crítico: a enunciação de um teatro não-dramático, ou pós-dramático, um teatro feito da desconstrução da cena, onde a angústia dos personagens é patente, onde ocorrem fusões e cisões, êxtases de deslocamentos no espaço-tempo, onde a caixa preta não responde ao simples fato do sumiço de um casal de amigos. Grupos cênicos e quadros que se colocam aos olhos dos espectadores naquele dia 3 de junho de 2011, no Teatro da Instalação, na 3ª apresentação desta A BUSCA, com texto e direção de Nereide Santiago e assistência de direção de Cleonor Cabral. Irma (Rosejane Farias) e Lugo (Augusto Marinho) são fluídos de uma existência e amizade, buscando um casal em fuga, com propósitos oscilantes de encontros e desencontros, de rancores e dissabores.

O texto de Nereide é como um patchwork, um caleidoscópio onde o espectador acompanha fugas e desaparecimentos, num jogo lúdico onde o ator caminha para um nada, onde os personagens ecoam vertentes teatrais de um Ionesco ou de um Beckett, e isso é algo inevitável, pois há esta contaminação bem-vinda no texto e na encenação de Nereide Santiago, que abre seu caminho com os recursos honestos que possui, seus atores e a cenografia barroca, juntamente com seu figurino que também segue uma linha barroca. E a inserção dos vídeos de O Rio e Em Marte complementam esta sensação de perda, de algo trágico, de uma filosofia de Heráclito de Éfeso, de algo que se renova, mas que está fadado a um jogo de eterna repetição. Palavras que se repovoam, que se multiplicam, que são minimalismos semânticos, que sempre voltam a ribombar em nossos ouvidos, nesta A BUSCA que leva ao nada, ao lugar nenhum. Ou ao que já conhecemos, ao cotidiano banal e triste, ao enfadonho. O Teatro de Nereide Santiago nos coloca neste caminho doloroso do refletir sobre nossa perenidade, sobre nossa inoperância frente à imortalidade, sobre uma busca de uma fonte da juventude que se converte em esclerose da atuação, uma vertigem capaz de nos fazer prosseguir. Os quadros se sucedem, ora levantados em placas brechtianas, e logo percebemos que os atores muitas das vezes “cantam” suas falas, aumentando assim a sensação de enfadonho de uma situação circular, e as marcas da direção trafegam nesta mesma ideia de circularidade, ao menos no palco italiano onde contemplei os penares e fugas dos personagens mambembes de A BUSCA.

Noto que a dramaturgia de Nereide recorre a esses elementos de comiseração, onde os personagens precisam se expor além dos palcos, clamam por uma saída desse nada e dessa ausência presentificada. Aqui temos alguns diálogos que se fecham em pleno silêncio, dando vazão ao quadro seguinte, à passagem de mais uma placa de sinalização do porvir. Alguns desses seres saídos da fértil imaginação de Nereide Santiago projetam por suas vozes querelas passadas, ausências de coisas importantes, referências freudianas aos pais, como se quisessem descobrir a chave psicanalítica dessas situações em que se estabeleceram, ou que foram obrigados por uma força estranha ao embarque num obtuso universo. Partidas e chegadas, uma sucessão de acontecimentos banais que tornam o cotidiano dos personagens maçantes, onde até os seus risos não querem rir, ou são exageradamente interpretados pelos bons atores de A BUSCA, criando um vínculo de falsidade cênica evidente. Risos descontrolados, mas que se controlam como ilusões de uma cena planejada, onde uma música incidental sempre prioriza o complemento de um roteiro de mesmices eventuais.

Uma viagem em um imaginário ônibus numa estrada esburacada, móveis mutantes que ora são bancos, ora são janelas, ora são camas, ora são parapeitos, uma metamorfose de objetos críveis num palco mágico, feito caixa de pandora, mas que poderiam surtir efeitos mais precisos, valorizando assim a dinamicidade dessas transformações. O casal em pleno conflito em seu cubo de insatisfação, denotando uma difícil convivência, um casal que se agride e vocifera com certa ironia, e que acaba por exemplificar tudo nos gestos mímicos e no jogo de sombras, elementos que repercutem mais uma vez a opção de Nereide Santiago pela cena, pelo Teatro, e não pelo realismo puro e simples. O que está em jogo é o construir a cena, eliminando uma aproximação pueril do público, uma empatia que a diretora não quer, ou que trabalha para, de forma gradual, eliminar de sua montagem. A frieza de uma encenação que paradoxalmente aproxima o público pelo desconforto, visto aqui como mérito do jogo e não como apanágio de mais uma sacada teatral que já se tentou anteriormente. Eis a precisão de Nereide Santiago, e ela elege o caminho mais complicado para engendrar o seu Teatro, o caminho da reflexão pelo desconforto, driblando o velho e batido maniqueísmo ou jogo moral, comum em muitas de nossas teatralidades. Felizmente.

Cabe ao público se antecipar e colocar esse desconforto a seu favor, seguindo o trilhar da investigação de Irma e Lugo, na busca do sumiço meteórico de Clara (Gorete Lima) e Zama (Rodrigo Verçosa), seus amigos que partiram, e que misteriosamente estão tão próximos deles. Como se os mortos comandassem os vivos. Tudo é revestido de um tédio que inebria, pois, como diz um dos personagens, “nada tem nenhuma importância”, uma chave paradoxal e um achado de jogo de palavras de significado dúbio da dramaturga Nereide Santiago. O simbólico da água como solvente universal, que tudo dilui, é notável, onde mais uma vez a apreciação dos personagens inóspitos alcança janelas da alma, agora com uma referência explícita ao sonho, ao surreal de Marc Chagall, numa das cenas de grande valor imagético de A BUSCA, onde o debruçar na janela é permeado de uma constante melancolia, aflitiva, mas que se recompõe pelo poder da água, elemento que permeia instantes significativos de toda narrativa “não-dramática”.

O elemento que reverbera em várias falas, a ausência dos pais, os objetos estranhos fazem das cenas alegorias da perdição, almas naufragadas pela inconstância de suas vidas, personagens-pesadelos, mas que apesar de tudo prosseguem suas jornadas. A jornada por esta busca é árdua, passa por cybers-café, estradas e rios, buscando a outra margem que foi perdida, suas amizades, seus amigos, e lógico que aqui temos a busca de um sentido às suas existências. A imagem da janela é repleta desse manancial de possibilidades que se avantajam, mas que só causam deslumbramento repentino aos personagens: canoas que sobem e descem o rio, criaturas fantásticas que se avistam ao longe, pontos luminosos difusos, olhos e vagalumes... É a coragem pela busca, adentrando no estágio crucial da fuga, onde a percussão preenche o vazio de uma batida de coração desesperançado, e onde temos a cantora decadente que lembra uma cantora de um conto de Kafka, “Josefina, a cantora”, que traz de volta o lúdico pelo back-light envolto em sedução, simulação de uma nudez que não aparece, de um jogo de sombra sadomasoquista.

O império dos sentidos onde temos o pênis garrafa, a dança caótica com a boneca (uma espécie de marca registrada da cena da companhia A RÃ QI RI!), seduções e libações dos amantes numa cena de cama inconclusa, o gozo interrompido, o quase coito. Os diálogos se aproximam no decorrer do desfecho, lembrando os jogos de palavras usados exaustivamente por Ionesco em suas antipeças (o caso mais notório é de A Cantora Careca), e acabam por seguir a linearidade das falas convencionais, incluindo aí os momentos de discordâncias do casal Clara e Zama.

Também ecoa no desfecho a verve de um Beckett, principalmente quando existe um questionar sobre a busca dos andantes: onde eles chegaram? Ao lugar nenhum, vaticina um deles. O que ganhamos com isso? Pergunta outro. Nada, eis a resposta seca de outrem. O que afinal pretendemos? Nada, fulmina um deles. E assim tudo volta à estaca zero, eles se cansam disso tudo, e sabem que um dia terão de estacionar, que nada restará mais a fazer. O epílogo interroga o que foi encenado, ou tudo pode ser um sonho ou um pesadelo? Não foi encontrado nenhum vestígio, nem de Clara nem de Zama, e apenas a misteriosa cidade de Nova Campina poderia trazer mais alguma pista sobre onde eles poderiam estar enfurnados. E surgem as palavras que redundam este nada, as mesmas de todo sempre do enredo, que ecoam em nossos ouvidos: a importância dos pais que são negligenciados, uns objetos estranhos, uma coisa muito grave que tivesse acontecido, são ecos distorcidos de cenas que são circulares, na aparência e na essência. Como último suspiro nisso tudo os viajantes que serviam de elo, como aparições espectrais, formam uma coreografia de uma corrida desenfreada pelo nada estático, ao som impactante de belo de “The Model”, da banda Kraftwerk. Uma verdeira delícia. O blecaute antecipa o nada absoluto que preencheu o palco da RÃ QI RI nesta A BUSCA, uma peça que nos faz encontrar algo que estava perdido há muito: nós mesmos.

sábado, 18 de junho de 2011

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Mar morto, de Jorge Amado, uma análise 10/14

Zemaria Pinto

Castigo – Se a morte de Esmeralda, tão esperada, pode ser considerada um alívio para Guma, a de Rufino o esmorece. Ele relembra, com melancolia, que quando jovem pensou em fazer carreira num navio grande e cair no mundo. Como seu amigo Chico Tristeza, que se tinha ido ainda menino e agora voltava, só de passagem, falando “línguas esquisitas” e contando histórias de outros cais. Lívia, perto de dar à luz, sonha para sua criança um futuro em terra firme. Ela não é do cais, somente Guma a faz ficar ali. E a cada viagem que ele faz o retorno é de sofrimento. E se um dia ele não voltar?

Não choveu. Não se acumularam nuvens no céu naquela noite. Dezembro era mês de festa na cidade e no cais. Mas a lua não apareceu, a cor cinza do céu não ficou azul com a chegada da noite. O vento escurecia tudo. Valia como a chuva, os raios, os trovões, fazia o papel de todos, aquela noite era dele só. Ninguém ouvia a canção que Jeremias cantava, o vento a dispersava. Os velhos marinheiros olhavam as velas que entravam. Vinham numa velocidade demasiada, era preciso ser bom mestre de saveiro para saber parar um barco no cais numa noite assim. E vários estavam no mar largo ainda, outros velejavam para a boca da barra, vinham do rio.
(“O ‘Valente’”)

Guma era um deles, não conseguira voltar a tempo. Lívia vê o saveiro de mestre Manuel apontar ao longe. Quando o saveiro atraca, ela percebe a inseparável Maria Clara curvada sobre corpo de Guma. O “Valente” fora destroçado ao encontro de uma coroa de pedras, mas Guma estava vivo. Vivo estava também o pequeno Frederico, que, com o susto de Lívia, resolve antecipar sua chegada ao mundo. Se o velho Francisco perdera numa noite de temporal o irmão e a mulher, Lívia ganhara, no gracejo da amiga Maria Clara, “um filho e um marido”.

Depois do acidente, Guma passa a considerar seriamente a ideia de abandonar a vida de marítimo. Sem o saveiro, teria que alugar sua força de trabalho, o que era humilhante para quem sempre fora independente. A lembrança do amigo Rufino não o abandonava. Todos aqueles acontecimentos eram tomados como castigo pela dupla traição. Dona Janaína não o queria mais para si, não iria levá-lo para as Terras do Sem Fim, por isso deixara que mestre Manuel e Maria Clara o salvassem, mas tirou-lhe o “Valente”, seu vínculo com o mar. O tio de Lívia oferece-lhe sociedade na quitanda. Por outro lado, o velho Francisco já andava negociando um outro saveiro, diretamente com o proprietário, João Caçula, que concordava em “financiar” metade do valor, em pagamentos mensais. A outra metade, lhe fora prometida por Dr. Rodrigo, e esta poderia ser paga somente após a quitação da primeira metade. Guma anima-se com o negócio, porque isso lhe possibilitaria entrar com algum capital no negócio da quitanda. Imagina que em seis meses teria pago o barco e mais seis meses eles poupariam para iniciar o novo negócio, a nova vida, longe do mar.

O novo saveiro, rebatizado como “Paquete Voador”, vive momentos de dificuldades no cais da Bahia. O ano previsto passou-se sem que Guma conseguisse pagar sequer o devido a João Caçula. Este, proprietário de outros barcos, também sentia os reflexos da crise e tinha dificuldades para pagar seus trabalhadores, daí pressionar Guma em busca de pagamento. Chega a propor a Guma a venda do barco, mas, naquele momento difícil, quem iria comprá-lo?

Ilustrações: capa de edição especial do Círculo do Livro; capa de edição israelense, de 1978.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Poetas da América de canto castelhano - lançamento

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quarta-feira, 15 de junho de 2011

A cidade perdida dos meninos-peixes – lançamento

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Fantasy Art – Galeria

Kim Eugene.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Manaus, amor e memória XXII

Rua Lobo D’Almada, no Centro de Manaus, em 1905.

domingo, 12 de junho de 2011

Espuma e vento, sol e mar

Jorge Tufic


Bernardo Neto é voz e letra, afeto e melodia. Louve-se, também, o intelectual sempre voltado aos livros, do amigo atencioso, do poeta invulgar que assume o conteúdo e a forma do mais autêntico cancioneiro da Barra do Ceará, uma extensão apenas de sua temática envolvente. Mas é neste flanco histórico da Conquista dessas terras litorâneas e sertanejas, até onde se respire aqueles ares bucólicos das serras, que ele se deixa rolar, com força total, pelas ondas da eternidade.

Estando num lançamento de livros na UFC, fui atraído, certa feita, por uma estranha e agradável modulação que partia de sua garganta abençoada pelos pássaros, e esta foi a senha para que nossas mãos se tocassem, velhos conhecidos que já éramos de tempos imemoriais. Agora Bernardo comparece ao meu escritório da rua São Paulo, onde me oferta este álbum sob todos os aspectos belíssimo, quer pelas ilustrações e letras de suas parcerias, quer pelo substrato das opiniões de amigos e admiradores, num crescendo que vai da prosa poética aos murmúrios de ternura que falam da história, sem perder de vista as altas virtudes do cantor e do grande rapsodo das origens do Ceará, entre poemas e canções embaladoras.

Quedo-me, pois, a ouvir esse poeta que ama sua terra, verdadeiros encantos de exaltação ao sol e ao mar, passo a passo imortalizados neste álbum cujo título, Barra do Ceará, poemas & canções, faz jus ao talento e à glória do grande artista que veneramos. De ouvi-lo, portanto, aprendo mais sobre a terra, a colonização, deste braço de oceano; deslumbram-me, também, as águas prateadas, a nostalgia e o mistério.

sábado, 11 de junho de 2011

Fantasy Art – Galeria

Jiansong Chen.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Elson Farias: 50 anos de "Barro Verde"

O poeta Elson Farias estará completando, neste 11/junho, 75 anos de idade.

Mar morto, de Jorge Amado, uma análise 9/14

Zemaria Pinto


Traição e remorso – Cinco meses após o casamento, Lívia tem o primeiro contato com a morte no cais: mestre Raimundo e seu filho Jacques, este da idade de Guma, afundam com o saveiro em noite de tempestade. A vida no cais está difícil. Poucas viagens e a tabela de preços muito abaixo do real valor do serviço que prestam. Guma se vira como pode. Por essa época, Rufino, o melhor amigo de Guma, enrabicha-se pela mulata Esmeralda e os dois vêm morar bem ao lado de Guma e Lívia. Para esta, a vinda da mulata é uma dádiva, pois quando Guma não estava em casa sua única companhia era o velho Francisco, que só sabia contar histórias de tempestades e naufrágios.

Esmeralda é uma mulher vivida, que não se apega a homem. Bonita e sensual deixa-se levar pelos instintos e logo vê em Guma um objeto de conquista. Ao mesmo tempo em que se desdobra de atenções com Lívia, que está grávida, não perde oportunidade de insinuar-se para Guma. Numa ocasião em que Rufino está viajando, Lívia sente-se mal e Guma acorda a vizinha para ficar com a mulher enquanto vai buscar o Dr. Rodrigo e o velho Francisco sai para chamar os tios. Quando tudo se acalma, com Lívia dormindo no quarto, Guma não resiste à sedução de Esmeralda e os dois fazem sexo numa rede, na sala. Extenuados, ela o provoca: “– Se Rufino visse isso...”

Guma volta a si. É bem Esmeralda quem está ali. É a mulher de Rufino. E sua própria mulher dorme doente no outro quarto. Esmeralda novamente fala em Rufino. Guma não ouve mais nada. Seus olhos estão vermelhos de sangue, sua boca seca, suas mãos procuram o pescoço de Esmeralda. Começam a apertar. Ela diz...
– Deixe dessa brincadeira...
Não é brincadeira. Ele a matará e depois irá se encontrar com Janaína no fundo mar. Esmeralda já vai gritar quando Guma ouve as vozes dos tios de Lívia conversando com o velho Francisco. Pula da rede, Esmeralda se compõe apressadamente mas a tia de Lívia espia para a sala com uns olhos espantados. Guma sacode as mãos agora inúteis:
– Lívia já está melhor.
(“Esmeralda”)

Começa aqui a degradação de Guma. A lembrança da dupla traição o consome. Ele violara a lei do cais. Lívia, sem de nada desconfiar, apega-se mais a Esmeralda. Paradoxalmente, Guma sente ciúmes de Esmeralda. Mas é um ciúme motivado pela posse incompleta. Ela fora dele, ainda que por alguns instantes, e o seu orgulho de macho não esquece isso. Rufino, por sua vez, desconfia que Esmeralda o está traindo e confidencia isso a Guma, o que o perturba ainda mais.

Um temporal naufragara três barcos. Guma e Rufino saem no “Valente” em socorro. Na tentativa de resgatar os corpos, Rufino mergulha sem se dar conta de um tubarão que se aproximava. Com uma faca na boca, Guma cai na água em socorro do amigo, salvando-o.

Por essa época, um visitante inesperado vem perturbar ainda mais o pequeno universo onde gravitam nossos personagens: é Leôncio, irmão de Francisco, a quem ele jamais se referira. Leôncio desaparece sem deixar vestígios, mas sua visita perturba Francisco, que dá de beber além da conta. Rufino, por seu turno, anda “diferente”. A verdade é que Esmeralda deixara de assediar Guma, o que era indicativo de que arranjara um amante. Guma imaginava-a morta e pensava que com isso a paz seria restabelecida.

O pior porém é que ela não morria, estava viva e com certeza traía Rufino com outro. Mesmo sem querer Guma sentia ciúmes.
(“Água Mansa”)

Por fim, Rufino descobre que Esmeralda estivera saindo com um marinheiro de um navio que já se fora. Como não podia vingar-se no sujeito, contenta-se em vingar-se na mulher. Convida-a para uma festa em Santo Amaro e vão na sua canoa. Pelas tantas, conta-lhe que sabe de tudo e vai matá-la. Percebendo que era inevitável, ela arma sua vingança também: conta-lhe com detalhes o que se passou entre ela e o melhor amigo dele. Rufino mata Esmeralda e mergulha para a morte.

Não pensou em Guma um só momento. Era como se o amigo tivesse morrido há muito. Passou longamente a mão pelo casco da canoa, olhou pela última vez as luzes distantes do seu porto, as águas se abriram para seu corpo. E na hora em que subiu pela última vez (já não percebia a canoa sem canoeiro que ia desgovernada) desfilaram perante seus olhos aqueles a quem o negro amara: seu pai, um gigante, sorrindo; viu sua mãe curvada e trôpega; viu Lívia, sua afilhada de casamento e Lívia ia no cortejo nupcial; viu Dona Dulce; viu o velho Francisco, Dr. Rodrigo, mestre Manuel, saveiros e canoeiros. E viu também Guma, mas Guma ria dele, ria nas suas costas. Seus olhos quase sem vida viram Guma rindo dele. Morreu sem alegria.
(“Água Mansa”)

Ilustrações: capa da edição francesa de 1982; capa de edição especial da editora abril, anos 1970.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Tenório Telles é homenageado no Dia da Leitura

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O escritor Tenório Telles.
A Secretaria Municipal de Educação (Semed) realiza nesta sexta-feira (10) a segunda edição do projeto "Leitura na Praça" com o tema “Educar para a Diversidade Étnico-Racial e Cultural, Visando a Paz entre os Povos”. O escritor Tenório Telles é o homenageado deste ano.


Os eventos serão realizados em locais e horários variados; dentre os principais está a Praça da Polícia, às 9h, com a presença de Telles, que se diz honrado pela oportunidade. “Eu encaro isso como um reconhecimento por todo esse trabalho que venho desenvolvendo há mais de 20 anos para a promoção da leitura. Incentivando os jovens e a comunidade escolar na aproximação dos livros e da cultura. Estou muito contente e espero ter saúde para poder continuar ajudando no engrandecimento dos leitores em nosso Estado".

A programação do “Leitura na Praça” está envolvendo sete distritos educacionais, com cerca de 16 mil alunos. Um total de 40 escolas da rede pública estarão em atividades educativas ligadas à leitura. Pela manhã, as atividades iniciam no Centro Social Urbano (CSU) do Parque Dez. Na parte da tarde, o evento será no Centro de Convivência da Família Padre Pedro Vignola, na praça de alimentação do Anfiteatro do Jorge Teixeira e no Manoa.

Outra entidade com atividades em destaque é a Escola Municipal Nestor José Soeiro do Nascimento, no Tarumã, que terá oficinas de teatro, pintura e exposição de livros, isso durante os três turnos de aula. Também haverá uma apresentação musical com a personagem Emília, de Monteiro Lobato.

A primeira versão do projeto “Leitura na Praça” foi realizada em 11 de junho de 2010, tendo o escritor Elson Farias como homenageado.

O aborto e o profano

João Bosco Botelho


O juramento de Hipócrates, elaborado no século IV a.C., mostra a clara tendência antiaborto dos médicos gregos: “Não darei venenos mortais a ninguém, mesmo que seja instado, nem darei a ninguém tal conselho e, igualmente, não darei às mulheres pessário para provo¬car aborto”.

Por outro lado, na mesma época, houve certa indulgência em Aristóteles (Política, VII, 4) que aconselhava a interrupção da gravidez frente às necessidades médicas, desde que o embrião não tivesse recebido o sentimento e a vida.

Após mais de dois mil anos de discussões, ora nas relações com o sagrado, ora como o profano das relações sociais, a estimativa do número de abortos provocados por ano no mundo ultrapassou, em 1989, 40 milhões casos. Dez por cento desse total, 4 milhões, foram feitos no Brasil, causando a morte de trezentas mil mulheres.

A tendência pró aborto iniciada na Europa nos anos setenta é hoje mundial. Nos últimos quinze anos, pelo menos vinte países modificaram as suas leis. Na Itália, o mais católico dos países da Europa, a legalização do aborto provocou muito conflito. O plebiscito realizado no papado de João Paulo II evidenciou que 70% dos italianos aprovaram a lei.

Na França, a permissão legal para o aborto alcança os embriões de 13 semanas. Contudo, a entrevista obrigatória com equipe especializada, que antecede o ato médico nos hospitais públicos, e o apoio governamental no sustento futuro da criança, consegue reverter a decisão em mais da metade dos casos.

A análise dos dados estatísticos continua mantendo as seguintes questões:

1. As proibições profanas e sagradas não modificaram, em quase dois mil anos, o comportamento das mulheres quando decididas a utilizar o aborto como método ¬anticoncepcio-nal;

2. Nas sociedades com problemas de superpopulação, ocorre o estímulo público e institucional ao aborto como forma de controle populacional.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Fantasy Art – Galeria

Renso Castañeda.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Se a Amazônia é nossa, por que não cuidamos dela?

Eliane Brum*

Para boa parte dos brasileiros, a floresta não passa de uma abstração



Um amigo me procurou tempos atrás porque queria usar suas férias para conhecer a Amazônia. Não as capitais, nem os hotéis engana-turistas, com seus macacos amestrados, pesca de piranhas e índios contratados para fazer dancinhas. Mas a floresta – e o povo da floresta. Expliquei a ele que não existe uma Amazônia, mas muitas, e que uma vida não basta para conhecê-las. Mas, se ele quisesse ter um contato real, precisaria sair do turismo previsível e se entregar à experiência. Meu amigo foi, então, para a reserva de Mamirauá, no estado do Amazonas, e, depois, comprou uma rede e embarcou num barco de linha pelo rio Solimões. A única parte previsível da viagem é que ele voltaria apaixonado – transformado e transtornado. E foi o que aconteceu. Meu amigo agora é um brasileiro com uma memória amazônica dentro dele, que o sobressalta a cada (má) notícia anunciada pelos jornais de São Paulo, onde vive.


Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá, em Tefé-AM.
A experiência do meu amigo me ajudou a compreender por que boa parte dos brasileiros pouco se importa com a Amazônia. Se você perguntar para qualquer pessoa na rua ou numa festa de família, ela vai enfaticamente dizer que a Amazônia é nossa, é o pulmão do mundo, é importantíssima. Mas, na prática, vai testemunhando a devastação da floresta pelo noticiário enquanto toma um pingado ou uma cerveja. Porque a Amazônia, para a maioria, não passa de uma abstração.

Uma floresta meio mitológica e longe, muito longe – não digo distante como Marte, mas muito mais distante do que Miami, Cancun ou mesmo o deserto do Atacama ou a Patagônia, destino dos que se consideram um pouco mais aventureiros. Até porque a Amazônia real exige força de espírito, uma entrega ao incontrolável da vida. A relação me lembra da inauguração do Animal Kingdom (Reino Animal), parque temático da Disney, nos anos 90, em que as crianças presentes ficaram profundamente entediadas porque os leões de verdade não falavam com elas nem faziam show aeróbicos, mais preocupados eles mesmos em dormir de tédio naquela selva de mentira.

Em Mamirauá, meu amigo era o único brasileiro do grupo. Havia dois britânicos, dois australianos e um austríaco. Nenhum deles fazia o tipo Indiana Jones. Meu amigo é roteirista de TV, dois dos visitantes eram do mercado financeiro e mexiam com a Bolsa, uma mulher estava estudando mandarim porque seu banco a mandaria para a China no mês seguinte, outra era publicitária, e o austríaco era um aposentado que cuidava da mulher doente havia duas décadas e uma vez por ano tirava férias e saía pelo mundo. Todos eles conheciam o Brasil – não o país turístico, mas um bem mais interessante – melhor do que o meu amigo, o que o deixou primeiro chocado, depois envergonhado. Deram-lhe dúzias de dicas preciosas sobre lugares pouco badalados. E não, não estavam atrás da biodiversidade brasileira. Queriam apenas conhecer o Brasil profundo e voltar para a rotina de suas vidas em seus países de origem com experiências – e não apenas com fotografias.

Fico me perguntando: por que a discussão do novo Código Florestal não mobiliza multidões em vez dos mesmos de sempre? Ou por que o povo não protesta pela aprovação açodada da usina de Belo Monte, concedida pelo Ibama neste início de junho mesmo sem que o consórcio tenha cumprido todas as exigências, num processo claramente atropelado desde o início? Tão atropelado que já gerou no passado o pedido de demissão do responsável pelo licenciamento no Ibama, que saiu denunciando que não suportava mais a pressão.

Está em curso a aprovação de um Código Florestal que contraria o bom senso ao anistiar desmatadores, entre outras liberalidades, e que representa um retrocesso na política ambiental do país em um momento crucial para o Brasil. Isso dito não por mim – mas por gente que dedicou a vida a estudar o tema. E ninguém faz passeata nas capitais.

A bacia do Xingu, onde o governo quer construir a usina de Belo Monte, é a moradia de 28 etnias indígenas, 440 espécies de aves, 259 de mamíferos e 387 de peixes. A obra vai deslocar pelo menos 20 mil pessoas de suas casas e outras 100 mil poderão migrar para uma região conhecida pelos conflitos de terra. O lago ocupará uma área equivalente a um terço da cidade de São Paulo. Como afirma Marina Silva em artigo, a previsão é de que algo em torno de 210 milhões de metros cúbicos, só um pouco menos que o volume subtraído para a construção do Canal do Panamá, seja retirado para a escavação dos canais. Sem contar a duvidosa viabilidade econômica do megaprojeto tocado pelo consórcio Norte Energia, que já sofreu várias desistências. Nem se sabe direito quanto a obra vai custar, já que os cálculos mudam a todo momento. Seja você contra ou a favor ou mesmo sem opinião formada, há de concordar que uma obra desta proporção, que vai alterar todo o ecossistema de uma região vital para o país e para o planeta, não pode ser construída sem cuidados rigorosos e respostas claras.

E isso tudo se desenrola numa época em que a implantação de grandes obras como hidrelétricas na Amazônia são questionadas como solução para o problema da energia no país por gente respeitável. Mas, cada vez que alguém ousa ter uma opinião dissonante ou fazer perguntas perfeitamente lógicas, imediatamente é “acusado” de ambientalista radical. Quando não culpado pelo déficit energético do país, como se a única alternativa fosse destruir o meio ambiente em prol do desenvolvimento. É complicado mesmo conciliar a geração de energia com a preservação ambiental, mas não há escolha nesse momento histórico – e chegamos a esse impasse porque demoramos a acordar (se é que acordamos). É para encontrar soluções responsáveis que tanta gente estuda e tanto dinheiro público é gasto. Se fosse fácil, qualquer um faria.

Belo Monte, por exemplo, é anunciada há uns 20 anos. E sempre que foi anunciada colaborou para acirrar os conflitos de terra na região de Altamira, no Pará. Onde já vive uma parcela considerável dos abandonados da Transamazônica e dos projetos megalômanos de ocupação da floresta promovidos pela ditadura militar. No Avança Brasil, de Fernando Henrique Cardoso, a retomada de Belo Monte estava prevista, e o mero anúncio triplicou a população da miserável Anapu, multiplicando os conflitos de terra na região. Não foi por obra do acaso que a missionária Dorothy Stang foi assassinada em Anapu. Mas a relação entre uma coisa e outra em geral é convenientemente esquecida.

Parece que a maioria pouco se importa, de fato, com o destino da Amazônia. Exceto os que vêm lutando e morrendo por ela, como aconteceu com quatro brasileiros entre 24 e 28 de maio – José Cláudio Ribeiro da Silva, Maria do Espírito Santo da Silva, Adelino Ramos e Eremilton Pereira dos Santos. Agora, se alguém lançar um SPAM na internet dizendo que “gringos” e “ONGs” americanas estão invadindo a Amazônia, aí o povo grita. Multiplicam-se os discursos ufanistas. Porque, afinal, a “Amazônia é nossa”. Pelo jeito, tão nossa que podemos acabar com ela. Gritar é fácil, pensar e se comprometer dá mais trabalho.

Tive o privilégio, por ser repórter e me interessar pela região, de conhecer várias Amazônias. Tenho uma vida simples e todo o dinheiro que me sobra, quando sobra, uso para conhecer o mundo da forma mais barata possível – e conheço menos do que gostaria, mas mais do que a maioria. Posso afirmar, sem hesitação, que o lugar mais belo que conheci em toda a minha vida, até hoje, foi a Amazônia – a parte ainda salva dela. Acho que, em algum momento do ensino médio ou fundamental, todos os estudantes deveriam conhecer uma parte da floresta, para se apropriar dela no coração, desde cedo, como o meu amigo que partiu de férias para Mamirauá e navegou pelo Solimões ao sabor das histórias do povo da floresta. Aí, sim, poderíamos dizer que a Amazônia é nossa.

Por enquanto, o descaso real com que acompanhamos o noticiário mostra que a Amazônia é apenas uma posse no imaginário da população. Mas não há uma apropriação real, concreta, que se traduza em preocupação e em cuidado com aquilo que se ama. Porque a floresta é apenas uma abstração para boa parte dos brasileiros.

Não, não são os gringos que estão dilapidando a Amazônia. Se a culpa fosse deles, seria bem mais fácil. Somos nós mesmos. E estamos à beira de sermos coniventes com mais dois golpes de morte – o novo Código Florestal e a aprovação descuidada da usina de Belo Monte.

(*) Publicado originalmente no site da revista Época.