Inácio Oliveira
Hoje lembrei-me de Luiz Bacellar. Tive a oportunidade de
conviver com ele e a desperdicei. Quando cheguei a Manaus, vindo do interior:
inocente, puro e besta; conheci o Zemaria Pinto, autor de Fragmentos de silêncio, livro que eu lia nos porões da biblioteca
pública de Óbidos. Ele me convidou para seu aniversário de 52 anos, disse-me
que seria num bar chamado El Perikiton que havia fechado, mas que abria excepcionalmente
para receber a Panelinha. A Panelinha, ele me explicou, tratava-se de uma
sociedade lítero-gastronômica que se reunia ordinariamente aos sábados. No dia
combinado eu fui o primeiro a chegar, pontualmente ao meio dia, esperei mais de
uma hora até que os primeiros membros da “panelinha” começaram a aparecer por
volta de uma da tarde. Primeiro apareceu o jornalista e escritor Marco Adolfs,
o compositor Nato Neto, depois a atriz Koia Refkalefsky, mais tarde os
professores Alisson Leão e Marcos Frederico, os poetas Cláudio Fonseca e Dori
Carvalho, e ainda Tenório Telles, por último apareceu o aniversariante e um
senhor franzino de uns setenta anos, discreto e elegante. Que me foi
apresentado como Luiz Bacellar, ele me ignorou solenemente, é claro.
Lembro que ao todo havia doze pessoas à mesa, lembro-me disso
porque alguém fez um gracejo dizendo que éramos os doze apóstolos e que o
Bacellar devia sentar-se à cabeceira como se fosse o Cristo, mas ele se recusou,
então calhou dele sentar-se ao meu lado. Eu conhecia sua fama de ranzinza e não
tive coragem de lhe dirigir a palavra. Ele cruzou as pernas, sacou um cigarro e
fumou no meio de nós, como alguém que estivesse nos anos 50. Depois comeu
sardinha frita e limpou a boca com a toalha da mesa, gesto que não chocou
ninguém, mas que contrastava com sua postura de lorde.
Todos ali tinham tanto a oferecer e eram tão generosos, eu
tinha apenas os meus 19 anos e fiquei calado a maior parte do tempo com medo de
dizer qualquer tolice. Eu havia lido, ocasionalmente, um ou outro poema do
Bacellar e é evidente que tinha ouvido falar dele, mas não tinha a menor noção
da grandeza de sua, breve e intensa, obra que só vim a conhecer de fato muito
tempo mais tarde.
Hoje eu penso que a ideia que se fazia do Bacellar, como de
alguém de trato difícil, talvez fosse exagerada. Lembro que naquela tarde
memorável, enquanto o Nato Neto cantava e tocava no violão canções que ele
havia composto de vários poemas, ele se dirigiu a mim e pediu que eu pedisse
para o Nato tocar um poema seu que ele havia musicado. O Nato tocou uma música
linda que falava sobre juritis. Depois ele me perguntou gostastes? Gostei, é
muito bonito. Essas foram as únicas palavras que trocamos naquela tarde.
Depois desse dia eu só fui aparecer na panelinha anos depois,
quando o Bacellar já havia morrido. E saber que houve tantos sábados que eu
podia ter estado lá, teria gostado de vê-lo comer peixe e ouvir quando ele
falasse. Eu o vi umas duas vezes mais: uma vez na Quarta literária e outra vez
na Cafeteria do Pina. Soube que ele estava doente e que vivia seus últimos dias
no Instituto Dr. Thomas, ensaiei diversas vezes ir visitá-lo, mas eu não tinha
nada para lhe dizer e temia lhe aborrecer. Certo dia vi a notícia da sua morte
no jornal, pensei em ir no seu enterro, mas não sei se esse gesto teria algum
sentido.
Depois fui lendo sua obra e fui me dando conta da dimensão
quase milagrosa da sua poesia, que poeta incrível era o Sr. Bacellar! A minha
vida e o próprio mundo tornaram-se mais suportáveis. E pensar que este poeta
andava por um rua incerta da mesma cidade que eu. Hoje se eu o encontrasse eu
apenas diria muito obrigado!