Amigos do Fingidor

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A Divina Comédia humana 5/6

Alegoria da Igreja prostituída, por Doré,
Canto XXXII do Purgatório.
Zemaria Pinto


IX



A nova jornada tem início. O Paraíso tem características similares ao Inferno e ao Purgatório, mas as suas divisões estão suspensas no ar, gravitando em torno da Terra: são os corpos celestes, que aqui, numa licença poética, chamaremos de céus. O primeiro deles é o céu da Lua, onde se encontram as almas dos impedidos de praticar o bem ou de cumprir os votos religiosos. No céu de Mercúrio estão os que praticaram o bem movidos por interesses materiais. O terceiro céu é o de Vênus, onde se encontram, claro, as almas dos que gozaram os prazeres sensuais, mas se penitenciaram. No céu do Sol encontram-se os teólogos, onde se destaca, luminoso, Tomás de Aquino. O céu de Marte abriga os combatentes da , onde Dante encontra seu antepassado Cacciaguida, que discorre sobre a pureza dos antigos costumes florentinos.  No céu de Júpiter estão os reis e príncipes justos. No silencioso céu de Saturno estão os espíritos contemplativos. No céu das Estrelas Fixas, Dante e Beatriz assistem à alegoria do triunfo de Cristo. No último dos céus, chamado de Cristalino ou Primeiro Móvel, Dante tem a visão da hierarquia celeste. Por fim, no céu imóvel, o Empíreo, Dante tem a visão da Rosa Celestial ou Rosa Mística, encabeçada pela Virgem Maria. Tão friamente quanto aparecera, Beatriz some da visão de Dante para reaparecer ao lado da Virgem, onde se encontra um trono preparado para o imperador Henrique VII, de Luxemburgo, que Dante um dia acreditara poder redimi-lo. Henrique VII morreria em 1313, em meio à escritura do poema. Para guiá-lo no céu de Deus, aparece-lhe Bernardo, o lendário fundador da Ordem Templária, o que colocaria um tempero a mais nas possibilidades de interpretação da Comédia. Bernardo, como um bom guia, intercede junto à Virgem para que seja concedido a Dante contemplar a Deus, sendo a voz para um dos mais belos versos dantescos: “Vergine madre, figlia del tuo figlio...” Ele , então, um tríplice círculo no qual está revelada a Trindade 

Oh! Como é pobre a expressão humana para descrever o que vi! Toda ela, a mais alta, não bastaria para reproduzir o mínimo que eu pretendesse referir. Ó Lume Eterno, que em Ti próprio tens sede, só Tu a Ti entendes e por Ti és entendido, e amas e Te comprazes nesse entendimento!

(O Paraíso, XXXIII, 121-126. Trad. Hernani Donato)



X



A visão beatífica encerra a viagem. Então, voltemos a falar de literatura. Contrariando o senso comum, sempre tive por Beatriz um sentimento que oscila entre a repulsa e o medo. No meu imaginário cristão-juvenil, o demônio sempre tomava as mais belas formas e fazia sempre as promessas mais sedutoras. O paradigma da tentação. Seria Beatriz um disfarce do demônio? Em Vida Nova, concluído, presumidamente, em 1294, Dante diz que a conheceu quando ambos tinham 9 anos e só voltaria a vê-la 9 anos mais tarde. Ele apaixona-se, ela o ignora. Beatriz casa-se aos 22 anos e morre aos 25, no nono dia, do nono mês, da nona década do século, segundo o poeta. Notaram com que insistência o número 9 aparece? Beatriz é apenas uma fantasia platônica do moço Dante ou é uma fantasia literária do poeta Dante? A eleição de uma amada que acompanha o poeta por toda sua obra não começou com os árcades luso-brasileiros, no século XVIII, nem com Petrarca, no XIV. É uma tradição que remonta a Catulo e Ovídio, mil e trezentos anos antes. A novidade introduzida por Dante é a morte da amada: ele não escreve para ela, mas sobre ela. No derradeiro parágrafo de Vida Nova, Dante afirma que “se aprouver àquele por quem todas as coisas vivem que minha vida dure por alguns anos, espero dizer dela o que nunca se disse de mulher alguma.” Se Beatriz Portinari não tivesse morrido tão cedo, teria Dante escrito A Divina Comédia? Ou a heroína teria outro nome? Beatriz, literalmente, significa beata... Mas, por tudo isso, a personagem Beatriz é única: evoluindo do amor humano ao divino, ela é a personificação sacralizada do amor carnal. Jamais haverá outra Beatriz.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Noturno do eu profundo


Capa da 3a. edição de
Lunamarga, 2005.
Adrino Aragão
                                           

                                              
            Talvez o título lembre o poeta Fernando Pessoa. Não seria pra menos, acho que, de algum modo, somos todos descendentes do vate lusitano. Mas, no caso do presente artigo, o título nasceu mesmo da leitura que fiz de Lunamarga, livro de Alencar e Silva, grande poeta brasileiríssimo, lamentavelmente ainda longe dos holofotes da mídia. Como disse Mário de Andrade: “os brasileiros não conhecem o Brasil”. Parafraseando o mestre, diríamos: o Brasil não conhece os seus poetas. Espalhados por estes brasis, esses poetas tecem e enriquecem, anonimamente, o que se faz de melhor na poesia brasileira.

            De fato, existe algo de eternidade na poesia de Alencar e Silva, que, por vezes, nos faz pensar no genial Fernando Pessoa. Não que isto comprometa a sua obra poética. Ao contrário, eleva-a, enriquece-a. E por uma razão: Alencar e Silva tem personalidade de poeta maduro, advinda de leituras constantes, sérias, profundas, conscientes, de grandes poetas, como Pessoa, Drummond, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Cruz e Sousa.

            O livro, publicado em 1965, foi reeditado ao término de 2005, numa feliz iniciativa da Editora Valer. O tempo, entretanto, em nada envelheceu o discurso poético do poeta. A começar do título Lunamarga, de forte simbolismo, já anuncia um universo de denso conteúdo existencial. O mundo real se configura no texto sob o aspecto noturno da subjetividade. “Tudo traz sob a pele a sua morte:/ a rosa e o sonho dançam sobre o abismo/ as formas de uma só fatalidade/ trabalhada em equívocos. Sereno,/ contudo, é o meu semblante: este e o mesmo/ que passeio entre as gentes. A amargura/ é disposta em murais pelas paredes/ do eu profundo – e me espia.”

            O poema “Tríptico do espanto”, do qual extraímos os versos acima, como que funda os rumos que a obra poética de Alencar e Silva haveria de seguir em livros posteriores.

            Ler Alencar e Silva é um deslumbramento para a inteligência e para a emoção do leitor. Mas o poeta não se entrega fácil. É preciso descobri-lo por trás “dos frágeis cristais embaçados” e captar-lhe a imagem em cada filigrana do poema. E isto exige atenção, sensibilidade e saber. Não o saber que exibe erudição. Mas, principalmente, o saber do pensar. Do refletir. Senão, será perder-se pelos caminhos de um rio profundo que ora corre sereno ora corre veloz. Como o poeta confessa: “Neste barco passageiro/ maldisposto a viajar/ eu me invento rotas novas/ rotas de nunca chegar”.

            Mas há momentos de absoluta, ou quase, transparência dos cristais: “Não sei, só sei que eu entrei/ em muitas casas de livros/ como quem vai para o cais...”. É quando os elementos do poema surgem luminosos, fulgurantes: o rio, a lua, a noite, o sonho, a solidão, a morte... – todos envolvidos na pele do tempo, que é medida, corte corrosivo a expor a finitude de tudo. Só a poesia é perene. E através do poema o poeta pode sobreviver.

            Essa certeza se me anuncia com a leitura atenta e emocionada de Lunamarga. Tomo de empréstimo os versos do poeta. E canto: “não tenho pátria/ determinada/ nem tenho pressa/ nesta jornada”.

Cordas - recital cênico

Medicina como especialidade social – punição na má prática e pagamento nos bons resultados

João Bosco Botelho



Com o sedentarismo avançando, no Neolítico, importantes modificações foram se processando nos grupos sociais que habitavam as terras férteis da Mesopotâmia e do Egito. Essas sociedades arcaicas iriam absorver parte da experiência acumulada. Nessa fase, ocorreu o início da modificação da economia produtora, passando do nível de subsistência coletiva à concreta divisão do trabalho, com o aparecimento do excedente de produção e das trocas comerciais. As sociedades mostravam-se francamente hierarquizadas. Também surgiram as propriedades privadas, que possibilitaram os assentamentos duradouros dos grupos humanos e evoluiriam para a organização das primeiras aldeias.

As cidades foram sendo formadas como produto da transformação e fortalecimento dos grupos sociais, ao mesmo tempo em que as sociedades arcaicas se estruturaram social e politicamente, processando-se assim as modificações que dariam início ao aparecimento das civilizações regionais. Entre elas, destacaram-se aquelas que ocuparam as terras próximas dos rios piscosos e obtiveram significativos avanços na guarda territorial e poder de guerra: a babilônia e a egípcia. Esses povos, mesmo mantendo importantes diferenças, influenciaram, direta e indiretamente, as culturas posteriores.

As civilizações regionais assimilaram, ao longo de vários milênios, diferentes formas de governos, predominando o teocrático de regadio e mercantil-escravista. Nessas sociedades rigidamente hierarquizadas, moldaram a ação do curador, nessa fase já reconhecido como médico, pelo menos aquele oriundo dos grupos dominantes.

As guerras fratricidas foram frequentes e contínuas, oferecendo como produto final dos saques novos escravos e territórios, fortalecendo a propriedade e a escravidão. Durante as guerras, deve ter ocorrido a participação ativa dos médicos, principalmente no manuseio das grandes feridas traumáticas e nas amputações cirúrgicas dos membros dilacerados.

Os metais foram fundidos e o cobre utilizado em várias atividades produtivas. A mecanização da agricultura tomou corpo com os arados primitivos. Apareceu o barco com vela e o uso comum do ferro. Esses fatos da nova vida social, comprovados pela arqueologia, contribuíram para aumentar as trocas do excedente da produção, fortalecendo a maior especialização da sociedade.

O corpo humano também foi manuseado nos rituais religiosos para a conservação após a morte. Essa conduta alcançou níveis de alta sofisticação entre os egípcios, sem que representasse avanço no conhecimento da anatomia. A retirada das vísceras, algumas completamente fragmentadas ou liquefeitas, como o cérebro, era consumada exclusivamente para melhor preservar o corpo. Mesmo com a clara diferenciação entre os que manuseavam o corpo com fim religioso e outros que tentavam entender e nominar as doenças, em torno de 3.500 anos, já estava estabelecida a figura social do médico como um dos especialistas nas relações sociais.

A atividade médica deveria ser intensa e diferenciada nos vários extratos da sociedade, suficiente para dar origem aos conflitos muito frequentes, gerando mal-estar social e obrigando o legislador a intervir. O rei Hammurabi (1728-1688 a.C.), da Babilônia, dedicou vários parágrafos do seu famoso código para disciplinar o exercício da Medicina, impondo prêmios e castigos. Nos parágrafos 218 a 223, está claro que: o médico era reconhecido e ocupava espaço importante nas relações sociais numa sociedade claramente hierarquizada.

Somente é possível entender as severidades das penas como espelho do problema social gerado pelo grande número de conflitos oriundos da ação médica prejudicial:

218 – Se um médico fez em um awilum (homem livre em posse de todos os direitos de cidadão) uma incisão difícil com uma faca de bronze e causou a morte do awilum ou abriu o nakkaptum (arco acima da sobrancelha) de um awilum com uma faca de bronze e destruiu o olho do awilum: eles cortarão a sua mão;

219 – Se um médico fez uma incisão difícil com uma faca de bronze no escravo de muskenum (intermediário entre o awilum e o escravo) e causou a sua morte: ele deverá restituir um escravo como o escravo morto;

220 – Se ele abriu a nakkaptum de um escravo com uma faca de bronze e destruiu o seu olho: ele pagará a metade do seu preço;

221 – Se um médico restabeleceu o osso quebrado de um awilum ou curou um músculo doente: o paciente dará ao médico 5 ciclos (cerca de 40 gramas) de prata;

222 – Se foi filho de um muskenum: dará 3 ciclos (cerca de 24 gramas) de prata;

223 – Se foi um escravo de um awilum: o dono de escravo dará 2 ciclos (cerca de 16 gramas) de prata.

Com isso o Código de Hammurabi formou jurisprudência com dois pontos cruciais da ordem médica: as sanções que devem receber os médicos pela imprudência, imperícia e negligência e os honorários médicos diferenciados pelo atendimento de pessoas integrantes dos diversos grupos sociais.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Fantasy Art – Galeria



Michael Parkes.


terça-feira, 27 de setembro de 2011

Maior Amor

Paulo Sérgio Medeiros


O sol murupi descasca a noite e encontra-o de bruços amorenando-lhe a tez e enxugando-lhe as costas serenadas de um pesadelo que ainda não acabara. A luz do poste em frente ao teatro da rua da Instalação mantém-se fiel ainda por alguns instantes antes de se despedir do ócio do infeliz e deixá-lo por conta da sua própria sorte.


Pés lentos em saltos quase nenhum mais com o amanhecer da madrugada, vultos de passos firmes e botas apressadas não hesitam em esnobar-lhe. Norberto está capotado ali sob olhares sorrateiros entregue ao flagelo duro da sarjeta. O celular no bolso dianteiro esquerdo toca uma, duas vezes e desliga. Norberto acorda deitado e levanta-se do colchão asfáltico nutrindo por sua vez a esperança de recauchutar a noite anterior enquanto sacode o lençol de poeira em meio a uma dor de cabeça que latejava ainda mais com as badaladas do sino da igreja da Matriz. O display do telefone móvel acusava quinze chamadas não atendidas e uma mensagem não lida. Uma sensação prenhe de curiosidade leva-o a conferir de quem eram as insistentes ligações. A ligeira suspeita bate com o número e a mensagem, Mamãe. Norberto já imaginando o teor da mensagem, prefere não lê-la. Norminha no auge de seus trinta e três anos, como todas as outras mães, só sossegava quando o filho matizava o calabouço de suas preocupações.

Norberto caminha por um túnel de flashes tal qual um filme rico em flashback. Porta bang-bang, penumbra, assovios, muitos assovios. A fome intima-o a parar na esquina dos sucos para embuçar o estômago com pastel de queijo e suco de acerola e enfim dar cabo do que acontecera durante a última reunião das estrelas. Os fios do pensamento puídos pelas muitas doses de felicidade etílica dificultavam montar o quebra-cabeça da porta bang-bang, penumbra, assovios, muitos assovios.

– Olha, não temos mais pastel. Pode ser outra coisa?

– Sim. Então traz um sanduíche. Responde Norberto com olhos famélicos.

Aquele jovem cujos ossos pareciam querer furar a pele estava angustiado entre o passado e o futuro sentindo na pele o dissabor do sanduíche da vida. A traição de sua memória o inchava de perguntas sem respostas que num súbito olhar pareciam vir de carona nas pupilas do atendente da lanchonete, um senhor encarquilhado, mas que ainda gozará o tétrico prazer de mais alguns anos por esse plano terreno. Para alimentar uma família, jornada dupla ainda não era o suficiente ao arauto da recôndita verdade perdida nos porões da madrugada.

– De onde nos conhecemos? Pergunta sofregamente Norberto.


– De onde comprar prazer nunca se tornará obsoleto.

Imediatamente Norberto mergulha a mão no bolso dianteiro esquerdo, apanha o celular para ler a mensagem não lida.


“Meu filho, me perdoa por polir o seu futuro com meu presente imundo.”

domingo, 25 de setembro de 2011

Adeus, amigo Neto!

Alencar e Silva, na Academia Amazonense de Letras,
em julho/2007.
Jorge Tufic



Hoje, dia 25 de setembro de 2011, se aparta de nós o poeta-irmão Joaquim de Alencar e Silva (o Neto, como sempre foi chamado), e, em seu lugar, nesse Rio de Janeiro que ele tanto amara, fica a primavera recém chegada, somando às flores do seu velório uma galáxia de bogaris e crisântemos, numa festa também de rosas ao lírico de LUNAMARGA e tantos outros livros de sua autoria. Chegou-nos a notícia através de um telefonema do Max Carphentier, e, logo, pela Internet, começa a expandir-se a foto do poeta e um resumo de sua biografia. Tudo muito rápido, enquanto as grandes famílias Dutra e Alencar pranteavam o trespasse desse inigualável pai e esposo, sem a menor quebra de harmonia entre sua pena de ouro e os encargos decorrentes do aconchego doméstico, frequentemente dividido com os amigos de longos anos, parentes e a gente humilde de Botafogo, bairro onde a Casa de Rui Barbosa permanece como um símbolo de tradição e respeito à história de nossa cultura.
Para mim, que devo tudo o que sou a ele, no que tange ao saber e ao aprendizado das letras, e apesar do quadro de saúde nada esperançoso que vinha apresentando nos últimos meses, a notícia dada pelo Max à Izabel, pelo telefone, encontrando-me eu ausente de casa, conseguiu nos abalar como se o mundo acabasse de ser atingido por aquele meteoro de que nos fala Henri Klibnik, autor de “La Grande Peur de Lan 2000”. Sem ação, contudo, restava-nos apenas ficar imaginando o que realmente teria acontecido ao Neto, sem ninguém disponível, nesse domingo, a nos dar qualquer luz nesse túnel de angústias e dolorosas interrogações, tendo às voltas dramas e tragédias como estas das cidades desertas pelo final de semana, a par de uma inexplicável ausência de profissionais da saúde nos postos de atendimentos. Em seguida, porém, telefonou-me o Renato Farias, ansioso também para obter informações concretas sobre aonde poderia se dirigir para o último adeus ao querido amigo. E, por último mesmo, recebi o telefonema do Saulo, quando, enfim, já não tinha mesmo jeito, choramos juntos.


Alguns meses antes, presenteou-me o Alencar com um bilhete de passagens Fortaleza-Rio-Rio-Fortaleza, com estada em sua própria residência, em Botafogo, tempo esse, de dez dias, em que estivemos juntos, ajudados pela Hilma, sua filha, na escolha de 200 sonetos de todos os seus livros, para futura publicação, cujo prefácio escrevi, tomado por uma alegria e um orgulho imensamente juvenis, chegando a sentir-me azul diante desse mistério narcísico, segundo uma parábola de Oscar Wilde, em que o discípulo se vê como se fosse o mestre, olhando-se em seus olhos.
Antes de meu retorno a Fortaleza, ele e Nair, sua esposa, deram-me um terno novo do poeta, para que eu o provasse, e, dando certo, ficasse com ele como lembrança daqueles dias memoráveis. E assim o fiz, não contendo as lágrimas, já a bordo da aeronave, quando pude compreender o segredo e o mistério do verdadeiro afeto, diante do mar e da eternidade.

Alencar e Silva (1930-2011)

Alencar e Silva, em foto recente.
Faleceu no Rio de Janeiro o poeta amazonense Alencar e Silva, autor de Sob vésper, Lunamarga e Território noturno, entre outros títulos.
Alencar foi um dos fundadores do Clube da Madrugada.
Na Academia Amazonense de Letras ocupava a cadeira 23, de Cruz e Sousa.
Leia alguns poemas de Alencar e Silva nO Fingidor.

Manaus, amor e memória XXV

Av. Eduardo Ribeiro. Ao fundo, o rio Negro.

sábado, 24 de setembro de 2011

Fantasy Art – Galeria

Frank Frazetta.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A Divina Comédia humana 4/6

Dante e Virgílio no Inferno, por Bouguereau.
(clique sobre a imagem, para ampliá-la)
Zemaria Pinto

VII

Voltemos ao início da viagem. O tempo do enunciado do poema é de uma semana, começando no dia 8 de abril de 1300, o ano do Jubileu romano, estendendo-se à quinta-feira da semana seguinte. O personagem narrador, que se identifica como o próprio poeta, vê-se perdido numa selva escura, símbolo da vida desregrada do personagem. Ele tenta subir por uma encosta, mas é impedido por uma onça, um leão e uma loba que o forçam a descer a um lugar onde não alcançaria a luz do sol. Ali ele encontra a alma do poeta Virgílio, que, atendendo a um pedido de Beatriz – amor platônico do poeta, morta precocemente –, se dispõe a guiá-lo pelo único caminho possível para sua salvação: inicialmente pelos reinos da dor, da esperança e, por fim, da bem-aventurança. Inicia-se a viagem, primeiramente transpondo a porta infernal que termina com a mais terrível das maldições: deixai toda esperança, vós que entrais! Mas antes é preciso dizer sobre a geografia do lugar. O Inferno tem um anteinferno, onde estão as almas recusadas por Deus e pelo Diabo; depois divide-se em duas partes: o alto Inferno, dos círculos 1 a 5; e o baixo Inferno ou Dite, círculos 6 a 9.

O primeiro círculo é o Limbo, onde se encontram as almas dos justos que viveram antes do cristianismo. Ali é a morada do próprio Virgílio: um castelo circundado por sete muros, símbolo das sete artes liberais cultivadas na Antiguidade. No segundo círculo, dos luxuriosos, ocorre um dos episódios mais comoventes da Comédia: o encontro com Francesca da Rimini e Paolo Malatesta. Dante tem clara simpatia pelos dois, mas o adultério não tem o seu perdão. E segue a viagem: no terceiro círculo, os gulosos; no quarto, avarentos e perdulários; no quinto, os coléricos; no sexto, os hereges; no sétimo círculo, em três divisões diferentes, estão os violentos contra o próximo (assassinos), contra si mesmos (suicidas) e contra Deus e a natureza (blasfemos, homossexuais e agiotas). Neste último, Dante encontra seu velho mestre Brunetto Latini. No oitavo círculo, chamado Malebolge ou “fossas malditas”, em dez outras divisões, encontram-se os fraudadores: gigolôs e sedutores, aduladores, simoníacos, adivinhos, astrólogos e bruxas, corruptos, hipócritas, ladrões, maus conselheiros, criadores de intrigas e cismas e falsários. Finalmente, no nono círculo, acham-se os traidores, em quatro compartimentos assim denominados: Caína, traidores da família; Antenora, da pátria; Tolomeia, da amizade; e Judeca, da bondade. Na Antenora, Dante e Virgílio encontram-se com o conde Ugolino a roer o crânio de seu inimigo, o arcebispo Ruggeri. Ugolino narra a traição do arcebispo, que o caluniara e em seguida trancou-o numa torre com seus quatro filhos, condenados a morrerem de fome. Vendo o desespero do pai, que mordia a própria mão, as crianças oferecem suas carnes para prolongar a vida do pai. No ponto mais fundo do Inferno, que é também o centro da Terra, sobre as águas congeladas do Cocito, o próprio Lúcifer, com três faces e três bocas, mastiga os supremos traidores: Judas, Cássio e Bruto. As três faces de Lúcifer contrapõem-se à Santíssima Trindade, simbolizando o ódio, o vício e a ignorância. Judas, traidor de Cristo, é o símbolo da traição ao divino. Cássio e Bruto, traidores de Júlio César, representam a traição ao humano. 

VIII

Dante e Virgílio, a partir do centro da Terra, começam um movimento de subida, saindo no hemisfério oposto àquele por onde entraram, até poderem rever a luz do Sol. Chegam ao pé de uma montanha, que é o próprio Purgatório, onde são recepcionados por Catão de Útica, símbolo da Roma antiga. Este é um ponto, para mim, até hoje impenetrável. Catão, suicida, vaga na parte exterior do Purgatório, antes mesmo do vestíbulo. No encontro com os poetas, ele relembra Márcia, sua esposa, que ficara no Limbo, onde ele também estivera. Catão, que preferira a morte a submeter-se a César, ocupa, na geografia da Comédia, um lugar estranho.     

A viagem segue pelo Purgatório. O leitor vai notar que alguns pecados punidos no Inferno o são também ali. O critério deve ser de intensidade. No vestíbulo, os peregrinos encontram os excomungados e os arrependidos de última hora. Os sete patamares da montanha representam os pecados capitais. No primeiro patamar estão os soberbos. No segundo, os invejosos. No terceiro patamar, os coléricos. Marco Lombardo, falando por Dante, diz que a corrupção decorre de maus governos e especialmente da confusão entre o poder espiritual e o poder temporal. O quarto patamar destina-se aos preguiçosos. O quinto, aos avarentos e perdulários. Neste, eles assistem ao espetáculo do fim da expiação do poeta napolitano Estácio, autor da Tebaida, que, purificado, após mais de 12 séculos de penitência, pôde, enfim, ascender ao Paraíso. Mas, segundo se apurou séculos depois, o Estácio poeta jamais se convertera ao cristianismo: Dante o confundira com um outro Estácio, retórico, de Tolosa. No sexto patamar encontram-se os gulosos e, finalmente, no sétimo, os luxuriosos. 
Beatriz, por Doré. Canto XXX, do Purgatório.

No paraíso terrestre, o último patamar do Purgatório, Dante e Virgílio testemunham uma série de prodígios, até que um carro guiado por anjos traz, finalmente, Beatriz. Virgílio despede-se: estava cumprida sua missão, como símbolo da humana sabedoria. Dali em diante todos os acontecimentos teriam um caráter divino, inalcançável a ele. Beatriz, num anticlímax, fria como uma santa, repreende Dante por seus pecados e o faz mergulhar no Letes, o rio do esquecimento, e, em seguida, no Eunoe, que mantém apenas as boas lembranças. Purificado, Dante eleva-se com Beatriz ao Paraíso.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Medicina como especialidade social – intervenção curadora do homem no homem

João Bosco Botelho


A palopatologia dos fósseis mostra que os homens e mulheres pré-históricos estavam sujeitos a diversas doenças semelhantes as que nós, homens modernos, continuamos enfrentando nos dias atuais. Não é demais repetir que a fratura traumática constituiu uma das doenças mais frequentes nos fósseis estudados, sendo confirmados, em algumas delas, sinais evidentes de infecção do osso, a osteomielite, lembrando as encontradas nos hospitais de hoje.

Do mesmo modo, foi possível estabelecer a existência de doenças sistêmicas, não traumáticas, como a denominada gota das cavernas, uma espécie de reumatismo do homem pré-histórico.

Com exceção do corpo congelado de um caçador, que viveu em torno de 6.000 anos atrás, encontrado nos Alpes, na Suíça, as pesquisas arqueológicas jamais encontraram outros corpos ou órgãos anteriores a essa época. Por outro lado, foram identificadas várias bactérias pré-históricas fossilizadas. O pólen de Nenúfar, designação de diversas plantas da família das ninfeáceas, capazes de determinar reação alérgica no homem atual, existe desde o Pleistoceno Médio, isto é, há mais de 100.000 anos. A tuberculose óssea na coluna vertebral, problema médico frequente nos países subdesenvolvidos, foi documentada por achado de esqueleto de homem do período Neolítico, constituindo, sem dúvida, o primeiro exemplar médico dessa doença.

A ocorrência de moléstias na pré-história é indiscutível. Porém, interessa conhecer como os homens primitivos iniciaram a luta para controlar a dor, conservar a saúde e empurrar os limites da vida. Certos autores, especializados em História da Medicina, articulam respostas em comparação com o comportamento de certos animais, quando estão feridos ou doentes: lambem os ferimentos, fazem limpeza mútua e comem plantas eméticas. É provável que o homem primitivo tivesse se comportado da mesma maneira: lambendo a área ferida e pressionando o local para parar a hemorragia.

Perdura a questão da existência de ritual mágico, na pré-história, ligado às concepções míticas da natureza circundante, na busca de cura das doenças. Na gruta de Trois Fréres, nos Pirineus franceses, está a pintura de um personagem em movimento de dança, datando de 10.000 anos, travestido de cervo, em atitude que sugere uma espécie de ritual com a intenção de curar, semelhante à dança dos bisões, praticado pelos índios do norte dos Estados Unidos, e a dos índios tukanos, no norte do Amazonas, ambos em cerimônias simbolizando o poder animal na cura das doenças.

O conjunto das informações paleopatológicas, no Neolítico, em torno de 10.000 anos, sugere fortemente a afetiva incorporação de métodos empíricos estruturando a ação intencional do homem sobre outro homem. Essas atitudes, algumas vezes foram muito agressivas, como a trepanação do crânio com instrumentos suficientemente fortes para cortar regularmente os ossos do crânio em formas geométricas bem definidas. Essa extraordinária prática é facilmente comprovada por meio do estudo dos fósseis. E mais, alguns desses homens pré-históricos que sofreram essa cirurgia sobreviveram muito tempo após a sua realização, o suficiente para favorecer o crescimento do osso cortado.

O conjunto das informações paleopatológicas do Neolítico, em torno de 10.000 anos, também sugere fortemente a incorporação de métodos empíricos estruturando a ação intencional do homem sobre outro homem.

É interessante assinalar, sem que existam explicações plausíveis, que as craniotonias, difundidas no Neolítico europeu, também foram executadas, até o século 16, por sociedades que não tiveram contato interétnico, como as da Polinésia francesa e as que floresceram no altiplano peruano nos tempos pré-coloniais.

Restará sempre a dúvida de porque essas craniotomias terem sido realizadas. De qualquer modo, não há como negar que, mesmo tendo sido esse o objetivo da intervenção do homem sobre o homem, representou algo absolutamente extraordinário, na medida em que uma parte do corpo, o conteúdo do crânio, foi exposta intencionalmente, isto é, desvendando e materializando o escondido atrás da pele e do osso.

É possível que o curador pré-histórico tenha exercido, simultaneamente, funções de liderança. Essa demonstração explícita de poder – um homem mortal igual aos outros, intervindo dentro do corpo desconhecido de outro homem – resultaria em grande destaque no grupo social.

Respeitando as devidas proporções, essa relação de dominação do curador sobre o objeto da sua prática – o doente –, sob alguns aspectos, perdura até os dias atuais. Esse poder do curador, na pré-história como nos dias atuais, poderia aumentar o nível de persuasão sobre o doente, tendo como base dois dos pontos de maior sensibilidade humana: a atávica fuga da dor e a preservação da vida.

Esse processo complexo pode ter sido um dos pilares sustentadores que edificaram o homem primitivo no processo de assimilação do conhecimento para evitar a dor e a morte, capaz de impulsioná-lo para desvendar as dúvidas do visível, como primeiro passo para o aperfeiçoamento da linguagem e da transmissão dos saberes.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

terça-feira, 20 de setembro de 2011

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Palavras de leitor

Jorge Tufic

Se é que existe uma poesia espontânea, leve, despojada, sem, contudo, abdicar da metáfora e do insight, aqui ela se encontra neste livro de Maria de Fátima Maia, em cujas rimas ocasionais, teatralização comedida e um lirismo permeado de sabedoria e bom humor, a simplicidade é o toque mágico de belíssimos poemas, alguns em tom de oração, outros contidos mas cheios de encantamento e ternura.

Há versos, neste livro, que mal tocam a superfície do papel, e nem precisam de reticências para flutuar entre o sonho e a realidade, entre a lágrima e o riso, entre o gesto grosseiro e a fuga para dentro de si mesma, esse abrigo sagrado donde se emana o bálsamo das grandes revelações em processo, embora lento, mas seguro do caminho que palmilha.

A poética de Fátima desvela um pouco de seu estofo bibliográfico, talvez ainda modesto, mas rico das influências recebidas a partir de Florbela Espanca, a quem dedica um dos poemas de “Palavritas”. É importante ressaltar, inclusive, a diversidade de estilos e técnicas com que deita e rola, dominando os segredos da métrica e do mais puro minimalismo, de causar inveja aos poetas que ainda insistem em confundir hai-kai com o trístico português.

Magia, precisão verbal e pudor diante da esfinge que nos devora com seu olhar feiticeiro, dão à textura de cada “objeto” deste volume um brilho diferente do outro, sendo todos, contudo, personas de uma única face iluminada pelo signo das transfigurações criadoras. Daí que, aos passos de hoje, ecos vindouros responderão com mais poesia ao que antes se reduzira a meras indagações em torno de sua existência abstrata, ou simplesmente hipotética. Por outras palavras, a tematização do fenômeno poético, de que ninguém jamais escapara, vai cedendo terreno à captura dos símbolos refratários.

Não será necessário dizer que a gente lê os poemas deste livro de um fôlego só. E o que vem a ser poesia senão uma busca contínua e pertinaz de seu nome verdadeiro, ou seja, do que é isso, afinal. Até que parece, às vezes, uma redundância tentar defini-la exatamente com as palavras de que ela nunca poderá sair, como sai a libélula de uma árvore.

E como faz, por brincadeira, Maria de Fátima Maia.

domingo, 18 de setembro de 2011

Manaus, amor e memória XXIV

Biblioteca Pública. Rua Barroso, esquina com 7 de Setembro.
Nota: sob esse título, tomado emprestado ao poeta Thiago de Mello, e sob o "marcador" Manaus Antiga, temos postado irregularmente fotos da cidade e de algumas de suas personagens. A partir de hoje, vamos tentar regularizar essas postagens: todos os domingos. E nada melhor que começar com a velha Biblioteca Pública, em reforma milionária há anos, e sem data para reabrir. Ê sodade!

sábado, 17 de setembro de 2011

As três “faces” de Medeia

Uma das atrizes que vivem as diversas Medeias, em ensaio.
Jony Clay Borges*


Célebre personagem da mitologia e da tragédia gregas, Medeia ressurge em diferentes momentos históricos na peça teatral que estreia hoje, às 19h, no Teatro da Instalação, com entrada franca. Em “Nós, Medeia”, montagem independente dirigida por Ednelza Sahdo a partir de texto premiado do autor Zemaria Pinto, a conturbada figura feminina se desdobra em três planos: mitológico, medieval e contemporâneo. 

“Nós, Medeia” reflete nas mulheres da época medieval e da atualidade o intenso drama da personagem. Na mitologia e na tragédia clássica de Eurípedes, Medeia abandona a família e a pátria para ficar ao lado de Jasão, líder dos Argonautas. Após ser traída e abandonada pelo amante, ela lança sobre ele uma maldição e tira a vida dos próprios filhos para puni-lo. 

“Zemaria Pinto colocou o texto clássico num universo relacionado diretamente à mulher, representando as mulheres de todas as épocas. A Medeia mítica representa todas as figuras femininas. A Medeia medieval é baseada nas mulheres daquele período que sofriam com perseguições religiosas por serem consideradas bruxas, assim como a figura original. A Medeia contemporânea é a nossa mulher de hoje, porém mais fragilizada por conta do tempo”, resume Ednelza. A peça, segundo ela, expõe o caráter universal da personagem. “Zemaria viu que Medeia, surgida séculos atrás, continua humana. Mudou o tempo, mas as histórias continuam as mesmas”, diz. 

Montagem 

Capa do livro de Zemaria Pinto
com o texto da peça. Editora Valer, 2003.
Montar “Nós, Medeia” é um projeto de anos de Ednelza. “Sempre fui apaixonada pelo clássico, e quando conheci o texto de Zemaria mostrei a meus alunos do (Liceu de Artes e Ofícios) Claudio Santoro. Eu me apaixonei, e coloquei na cabeça que um dia o montaria”, recorda a diretora e atriz. A título de informação, “Nós, Medeia” foi ganhador do Concurso de Textos Teatrais Inéditos, promovido pela Secretaria de Estado de Cultura em 2002. 

A montagem – contemplada nos editais do Programa de Apoio às Artes e do Programa de Apoio e Incentivo à Cultura – tem cenários de Gerson Albano e trilha sonora composta por Cleber Cruz e interpretada por Simone Ávila. No elenco estão 11 atores, entre eles Helena Almeida, Thaís Vasconcelos e Ariane Feitoza, como as respectivas Medeias mítica, medieval e contemporânea; Thiago Oliveira, como Jasão; e Adailson Veiga, como Creonte/Egeu. 

Ednelza conta que investiu na atuação do elenco, que inclui artistas novatos e veteranos. “Nosso trabalho foi muito mais voltado para a questão da interpretação. É algo pelo que batalho muito: que os atores estejam coesos, que levem bastante a sério, interpretando de maneira verdadeira”, conclui ela. 

Personagens têm temas musicais 

Cada uma das Medeias ganhou uma canção-tema, numa trilha sonora composta especialmente para a montagem de Ednelza Sahdo pelo músico Cleber Cruz. As composições temáticas serão interpretadas pela cantora Simone Ávila. 

“Tenho uma parceria com Ednelza de muito tempo e de muitas vertentes”, recorda Cruz, que já trabalhou com a diretora em espetáculos cênicos e folclóricos. “Dessa vez foi uma encomenda explícita, tive de mergulhar no texto e nas personagens. Minha preocupação era fazer um trabalho que fosse atual, sem ter a preocupação de ser de uma só vertente musical. Queria dar amplitude, mas sem perder o espírito do texto do Zemaria Pinto”, diz. 

Além da montagem de Ednelza, Cruz também assina a adaptação da trilha sonora de “O casamento da Sereia com o Mapinguari”, montagem do Companhia de Teatro Vitória-Régia. Repaginada, a trilha original ganhou canções com novos estilos, como o rap e o pagode.

Serviço
. Peça teatral “Nós, Medeia”
. Teatro da Instalação - Frei José dos Inocentes, Centro
. Hoje, às 19h
. Entrada franca
. Informações: 3234-4096
(*) Publicado no jornal A Crítica, de hoje, e no site do jornal.

Fantasy Art – Galeria

Boris Vallejo.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A Divina Comédia humana 3/6

O barco de Dante e Virgílio, por Delacroix.
Zemaria Pinto
V

Uma outra discussão que irá sempre abalonar a paciência do leitor neófito é quanto ao gênero do poema. Seria A Divina Comédia um poema épico? Ou seria um imenso poema lírico, na verdade, composto de inúmeros pequenos poemas? A discussão é ociosa. Passando por cima dos conceitos, vamos ao que interessa. A resposta é nem uma coisa nem outra, simplesmente porque não tem características de um nem de outro. Antes, a Comédia é um poema alegórico – uma representação simbólica de pensamentos e ideias. É a alegoria da purificação de um pecador, que, vivendo no exílio, já estava em estado permanente de penitência. É a alegoria da história do povo italiano, contada nos inúmeros episódios em que personagens da história daquele país aparecem, ora degradados, ora penitentes, ora glorificados, de acordo com a visão do poeta. Mas é também uma alegoria da história da humanidade: a viagem de Dante é a viagem do Homem em busca de si mesmo, de sua harmonia individual, tendo por fim a harmonia coletiva, sob as bênçãos de um Deus benevolente com aqueles que a Ele se submetem. Perceberam como a leitura alegórica transitou para a leitura moralista? Para Dante, seu poema é um instrumento que irá concorrer para o seu perdão político e pela sua glória como artista, mas é também o artefato que irá permitir ao seu leitor formar uma consciência histórica e, sobretudo, sedimentar opinião sobre as questões políticas e éticas do seu tempo.      

VI

É impossível falar da Comédia sem tocar num assunto ordinário: a estrutura do poema. Pula esta parte, leitor bem informado. O poema tem uma estrutura fechadíssima, apesar de seu desenvolvimento ser episódico. Mas Dante promoveu tantas amarrações que é impossível considerar a Comédia a não ser em sua totalidade. O poema, como já deve ter ficado claro para o leitor, divide-se em 3 partes: Inferno, Purgatório e Paraíso. Cada uma dessas partes tem 33 cantos, sendo que o Inferno tem um canto introdutório, totalizando 100 cantos, para um total de 14.233 versos. Os cantos são estruturados em estrofes de 3 versos e versos de 10 sílabas, com um esquema rímico original, a terça rima ou rima dantesca, que consiste em rimar, numa estrofe, o primeiro verso com o terceiro e o segundo verso com o primeiro da estrofe seguinte, numa sequência que só é interrompida no último verso de cada canto, que é solto, descolado de um terceto. Veja como funciona a terça rima nas palavras que Dante e Virgílio lêem no portal do inferno:

Por mim se vai à cidade dolente,                          (A)
Por mim se vai até a eterna dor,                (B)
Por mim se vai entre a perdida gente.       (A) 

Moveu justiça o meu supremo autor:                   (B)
Divina potestade fez-me e tais                  (C)
A suma sapiência, o primo amor.              (B) 

Antes de mim não houve coisa mais                    (C)
do que as eternas e eu eterno duro.           (D)
Deixai toda esperança, ó vós que entrais. (C)
(O Inferno, III, 1-9. Trad. De Vasco Graça Moura)

Cada uma das três partes termina com a palavra “estrelas” e cada lugar visitado tem 10 compartimentos: um vestíbulo mais 9 círculos no Inferno; uma área externa, um vestíbulo, 7 patamares, mais o paraíso terrestre no Purgatório; e 9 céus mais o empíreo no Paraíso. Esses números nos remetem a dois números como base de qualquer investigação numerológica na Comédia: 3 e 10 e seus múltiplos. O número 3 representa a Santíssima Trindade. O número 10 é o número da perfeição, da totalidade, da volta à unidade após o ciclo dos 9 números iniciais. Mas, atenção, leitor, a numerologia não tem amparo na teologia cristã.

A base científica da Comédia são as teorias de Ptolomeu, que acreditava ser Terra o centro do universo. Essa teoria perdurou ainda por mais de dois séculos depois, até que Copérnico apresentasse os princípios do heliocentrismo. A base ético-moral-teológica da Comédia está, sobretudo, na Suma Teológica de Tomás de Aquino. Mas o principal assunto da Comédia é a história, que Dante mescla, sem nenhuma consideração com a verossimilhança, com a mitologia. Ou seria esse procedimento a chave para melhor entender a intenção fictícia do poema? Deixemos de lado a mitologia cristã, que, no contexto do poema, é verossimilhante, e lembremo-nos de que uma das passagens mais marcantes do Inferno é o encontro de Dante e Virgílio com o herói Ulisses, que lhes dá uma versão inédita de sua morte. Há inúmeros usos dessa mitologia, como o Minotauro, Jasão, Medusa, as Fúrias, o cão Cérbero, entre tantos. Mas o paradoxo dessa mistura, me parece, é a invocação que o poeta faz a Apolo, pai das nove musas e patrono dos poetas, dentro do Paraíso, para descrevê-lo: 

Ó bom Apolo, ao fim em que laboro
faz-me de teu valor o pleno vaso
quanto pedes a dar o amado louro!
(O Paraíso, I, 13-15. Trad. De Vasco Graça Moura)

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Conpozissõis Imfãtis – A Presidenta

João Sebastião
(après Millôr)


A presidenta Dilma Rousseff nasceu em Belo Horizonte, onde foi estudanta do colégio Olavo Bilac, que as meninas chamavam de OB, aquela coisa absorventa.

Desde pequenina, ela era muito inteligenta.

Ela é descendenta de búlgaros, porque seu pai nasceu na Bulgária. Dilma foi militanta da esquerda contra a ditadura militar – ela era uma pessoa conscienta.

Depois de muita confusão, foi residenta em Porto Alegre, onde foi eminenta membra do PTB (Partido do Tio Brizola, que depois virou PDT, que parece remédio de barata, e agora o Amazonino quer roubar só pra ele).

Lá na capital gaúcha, a mineirinha se revelou uma grande gerenta, atuando em vários cargos públicos.

A nossa presidenta é fluenta em vários idiomas, embora ainda tenha dificuldades com o português, que, como todos sabem, é a língua mais difícil do mundo. O presidente Lula que o diga.

Ela sempre foi muito vigilanta e apesar do que dizem seus detratores, ela é muito tementa a Deus, quase uma crenta. São pessoas salientas e insignificantas que dizem essas coisas da nossa presidenta.

Dizem que ela é muito impacienta com os políticos corruptos. Por isso, ela está fazendo uma faxina insistenta, plantando uma sementa de honestidade naquele deserto moral e ético de Brasília.

Por isso que eu digo, seja persistenta, presidenta Dilma! Nunca seja uma desistenta!

Avanta, companheira Dilma!

A senhora é a nossa GOVERNANTA!!!


Conpozissõis Imfãtis: ™Millôr Fernandes.

Medicina como especialidade social – práticas de curas na pré-história

João Bosco Botelho


Entre os anos 1960 e 1970, os cursos de Medicina, no Brasil, desvincularam-se mais das relações históricas do doente com as doenças. Esse fato pode ter contribuído para acentuar a desinformação sobre o papel da Medicina ao longo de quase quatro milênios de história, como especialidade social no processo de busca, para manter a solidariedade aos doentes, aumentar a materialidade e diminuir a abstração na abordagem da saúde e da doença.

O processo que culminou com a Medicina como especialidade social, com avanço e recuos, tem proporcionado:

- Entender, dominar e modificar a multiplicidade dinâmica das formas e funções do corpo;

- Estabelecer os parâmetros do normal e da doença;

- Vencer as limitações impostas pelo determinismo da dor e da morte.

É mais difícil ao médico da atualidade compreender a Medicina, sem o olhar para trás e apreender a dinâmica social correlacionada às práticas de curas.

Esses saberes históricos facilitam o entendimento da função do médico, como um dos especialistas sociais que trabalham para evitar a dor e empurrar os limites da morte, tanto no passado quanto na sociedade contemporânea.

Sob esse enfoque – a Medicina como especialidade social –, não há como dissociar o presente do passado distante. As práticas de curas constituem um processo iniciado muito antes de a nossa espécie ter promovido o sedentarismo. Infelizmente, os registros arqueológicos daquela época se mostram insuficientes para que as análises paleopatológicas possam caracterizar algumas ações intencionais e repetidas do homem sobre o corpo de outro homem.

É possível que as comunidades ágrafas tivessem na busca da sobrevivência cotidiana e na observação das mudanças, em torno da natureza circundante e do corpo, grande parte da sua atenção. As relações entre vida-morte e saúde-doença deveriam estar entre elas, já que interferiam na segurança pessoal e coletiva. Esse conjunto pode ter provocado a especialização de alguns dos seus membros, que se interessaram para controlar as situações de risco à segurança e à vida.

Nessa fase, quando o nosso ancestral começou a apreender e tentar modificar o processo natural dos binômios vida-morte e saúde-doença, estava iniciado o extraordinário processo humano com o objetivo de diminuir a abstração e aumentar a materialidade dos acontecimentos e ações que pudessem evitar a dor e empurrar os limites da vida.

Essas pessoas diferenciadas fizeram-se curadores. Foi nesse contexto, no qual alguém passou a cuidar do outro, ferido, impossibilitado da locomoção, ou da própria proteção, que os elos de confiança entre o curador e o doente iniciaram as bases da Medicina como especialidade social.

Os mais antigos registros paleopatológicos indicativos da existência das práticas de curas, na pré-histórica, surgiram em comunidades ágrafas, alguns milhares de anos antes dos documentos escritos na Mesopotâmia.

Os indicativos evidenciam que o processo biológico de desenvolvimento e adaptação ao meio ambiente dos nossos ancestrais está voltado à fuga da dor e à busca do prazer. Os registros do homem da espécie Homo sapiens datam de aproximadamente 500.000 anos, correspondendo aos Pleistocenos Médio e Superior. Contudo, a documentação fóssil existente da primeira ação médica conhecida, no homem pré-histórico, data de 45.000 anos, no Pleistoceno Superior. Trata-se do esqueleto de um Neandertal, descoberto no monte Zagros, no Iraque, com traços de amputação intencional, no braço direito, com a marca indiscutível de o osso ter sido seccionado com a ajuda de objeto cortante. Sem que saibamos a razão pela qual o hominídeo teve o braço amputado, se resultante ou não de trauma, é indiscutível que um ou mais homens praticaram a ação dirigida no corpo de outro homem.

Existem outras ações curadoras bem documentadas, como a encontrada no osso rádio de alguém que viveu em torno de 25.000 anos, com sinal de fratura traumática consolidada após ter sido colocada no lugar certo, dessa forma demonstrando que foi ajudado por outro membro do grupo social.

Sem dúvida, fora das lesões determinadas pelos traumas, acidentes e embates dos nossos ancestrais entre eles e com outros animais, muitas doenças causadas por vírus, fungos e bactérias existiram antes do aparecimento da nossa espécie planeta. A questão maior é tentar saber como essas sociedades primitivas se relacionavam com essas doenças na sua luta pela sobrevivência.

Os registros arqueológicos e paleopatológicos podem estabelecer paralelismos da ação curadora exercida pelos ancestrais pré-históricos.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Fantasy Art – Galeria

Dorian Cleavenger.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

O beija-flor e o gavião – lançamento

.
Inspirado na história real da águia que fora criada como galinha – contada por Leonardo Boff –, Zemaria Pinto conta a história de Grandona, um gavião que pensava que era uma galinha, e Beijinho, um beija-flor muito esperto que ajuda o gavião a descobrir sua verdadeira identidade.

A narrativa convencional do primeiro capítulo, mostrando o cotidiano de um grupo de crianças de férias em uma chácara na bucólica Novo Airão, evolui para uma peça de teatro, onde as crianças representam, com muito humor, a história de Beijinho e Grandona.

O livro, com 50 páginas, é ilustrado por Humberto Rodrigues.

Voz Ceará, de Stella Leonardos

Jorge Tufic


            A seleção de “fragmentos” que dinamizam a rapsódia, se funda também nos princípios da Legenda e da Saga, a primeira incorporando a clássica “Legenda Sanctorum” ou “Legenda Aurea” (coisas a dizer, vida dos santos: legere = reunir, escolher), e a segunda como “relato, narrativa referente ao passado e, mais particularmente, ao passado remoto, tal como se transmite de geração em geração” (Jolles, André, in  “Formas Simples”, Cultrix, 1976). Dentre as várias experiências narrativas de Mário de Andrade, insere-se “Macunaíma, o herói sem nenhum caráter”, publicado em 1928, chamado, às vezes, de “idílio”, outras, de “rapsódia”, que assinala, segundo Massaud Moisés, “o caráter miscelânico da obra, ou sua indeterminação no painel dos gêneros literários”. 

            Neste “Voz Ceará”, a que a autora, Stella Leonardos, também denomina de rapsódia, nos surpreende descobrir como esta “voz” arrecada uma extensão bastante considerável de história, lendas, costumes, mistérios, fauna e flora, além de abraçar, com o tépido encantamento de seus versos, uma área igualmente consagrada de nomes da poesia cearense contemporânea, a exemplo de Virgílio e Luciano Maia, Artur Eduardo Benevides, Francisco Carvalho, folcloristas da cepa de Florival Serraine e cantadores da fama de João de Cristo Rei, João Lucas Evangelista e José de Matos. 

            Muito mais do que isso, ela conta, qual fosse um passarinho ágil e noturno, o que vê e o que tantos não viram ou deixaram de ver, mas de que ouviram certamente falar sobre estes inúmeros cearás que atravessam suas páginas, fazendo-nos deter, aqui e ali, ante passagens deveras exemplares da forma e do modo áspero desse imenso nordeste brasileiro, versátil e contraditório. Tecendo à vontade, sabendo que dispõe, para o feito em lavra, da matéria insone dos fatos consumados e do eloquente testemunho dos barcos e da paisagem, Stella empresta a cada traço verbal a leveza dos “elles” em que seu nome fulgura. Ela tem os olhos colados nas proas das jangadas, que por sua vez a olham, familiares, e transmitem, através de suas metáforas, a odisseia regional das “três raças-mamães brasileiras”. 

            Raramente um poeta, como ela, soubera harmonizar os elementos singulares da fala corrente, espontânea e carregada de significados, com uma linguagem tão fluida e tão bela, onde os espaços entre as frases constroem, alternado ao espaço gráfico propriamente dito, aquele sopro visível da poesia enlaçada à palavra mágica, inseparável do mito. 

            Começar a leitura desta rapsódia nos parece igual a reviver, de olhos abertos, de um lado, uma história que pouco conhecemos, e de outro, o avesso de uma realidade que somente a visão épica do rapsodo consegue transpor para a escrita. E aqui homens, serras, bichos, caminhos e tragédias, como que voltam filtrados por uma luz que se reflete na paisagem dos evos. Lendo-a, algo se restabelece dentro de nós: talvez a certeza de que tenhamos sido este passado; e o crédito de novas esperanças alteia-se nos arcos dos sonhos que ainda podemos viver e tocar para outros futuros. Como as jangadas, entre outros versos de SL:


                                   “Pertences de herdados mares?
                                   ou eu é que lhes pertenço?”

                                   .................................................

                                   “por sofridas tentativas
                                   de erguer a Cruz a caminho
                                   rumo à sonhada conquista
                                                do inóspito território”

                                   .................................................

                                   “a voz ceará prosseguindo,
                                                   cantando dos povoadores
                                   arribados de mar brabo,
                                               por terras híspidas vindos:
                                   – conquistemos estas bandas
                                               ocupadas pelos índios!” 

            O poeta aceita, neste particular, a ótica dos velhos colonizadores – e passa a olhar os índios, não mais como donos da terra, mas como simples ocupantes do espaço a ser conquistado. 

            Não é, contudo, a Clío que Stella Leonardos rende a homenagem de seus afiadíssimos acordes poéticos; é à doce Polímnia, essa musa da retórica, cujo discurso persuade enquanto transfigura. É assim que a vislumbramos, nós, seus leitores, no decurso de uma leitura sem pressas desnecessárias, senão apenas faminta de prosseguir ao longo de um texto elaborado sem o rigor dos formalistas ou parnasianos, mas aberto como o sol de uma túnica diante do altar de Apolo. 

            Rendilhado febril, diríamos até certo ponto obediente aos paralelos da linearidade artesanal e aos desenhos de um mapa interior que se vai revelando, em carne, terra e osso, mediante pesquisa, confronto e vivência da própria autora, este poema é único, no todo e em parte. Composto com a matéria viva da memória e do louvor a que e a quem merece ser louvado, é o Ceará, afinal, de Ana Triste e o Ceará dos jovens “padeiros” de hoje, que esplende e se eterniza em cada lance do bilro, no traçado da rota e no pouso, avelíssimo, das imagens fecundas.