Zemaria
Pinto
V
Ocidentais foi publicado no volume
das Poesias Completas, em 1901, mas
boa parte dos poemas
que o integram já
havia sido publicada antes, em revistas e jornais. Assim como os dois primeiros, é uma coleção
de poemas, sem
um projeto
autônomo de unidade,
como o que
orienta Americanas. O título é uma referência
a Orientais, de Victor Hugo, de
1829 – ao mesmo tempo
em que homenageia o mestre,
Machado faz-lhe um
contraponto: se Orientais
era uma suma
romântica, Ocidentais era seu antípoda,
ainda que de difícil classificação.
Muito já
se escreveu sobre Ocidentais:
já se disse, por
exemplo, que
era o melhor
da poesia de Machado
de Assis, e havia de sê-lo, afinal, de autor que
amadureceu nos outros
gêneros – isto
é, não nasceu “genial”,
como tantos
que morreriam em
tenra idade
– não era
de se esperar diferente
com relação
à poesia. Já
se traçaram paralelos entre o poeta e os
narradores da segunda fase ficcional de Machado, procurando, para além do fingimento,
descobrir-lhe os estados de alma (BOSI,
p. 178-180). O amargor schopenhaueriano,
o ceticismo e o pessimismo
que marcam a segunda
fase do ficcionista
se fazem presentes também
na “segunda fase”
do poeta – considerando-se que os três primeiros livros
eram românticos. Ora, o autor era um só, os gêneros,
diversos. Pontos
de contato seriam não
apenas esperados como
desejados, resultando em evidências da honestidade
intelectual do autor.
Foi dessa coleção que
saíram alguns dos poemas
mais antologiados de Machado de Assis: “Círculo
vicioso”, “A mosca
azul” e “Soneto
de natal”. Os três,
construídos numa linguagem de rara simplicidade filosófica, caíram no gosto popular. Mas é nesse livro
também, a despeito
de toda a rigidez
na seleção definitiva
dos outros livros,
que ele
encaixa uns poemas de circunstância – ou
de mera celebração
(seja a grandes vultos
da literatura seja a amigos;
no caso de “Alencar”, uma combinação de ambas). Aqui
estão também suas
mais significativas traduções
de poemas: “O Corvo”,
de Poe; o monólogo “To be or not to be” (assim mesmo intitulado), do terceiro ato do Hamlet,
de Shakespeare; o Canto XXV do “Inferno”, da Divina
Comédia, de Dante; e “Os animais iscados da peste”,
de La Fontaine. Há ainda dois
poemas longos,
narrativos, na mesma gasta estrutura
utilizada nos livros
anteriores, datados,
aliás, daquela época:
“Velho Fragmento”,
que algumas edições
trazem separado do todo, com o título “O
Almada”, e “Clódia”, sobre a fogosa musa do
veronês Catulo, lírico do século I a.C., que
a cantara sob o disfarce
de Lésbia.
Sem nos
apropriarmos da fúria cortadora do autor
para com seus livros anteriores, vamos à essência
de Ocidentais: descontados os
desgastados antológicos, os de circunstância
e/ou celebração,
as traduções e mesmo
os velhos narrativos – posto já não trazerem nenhuma novidade
– sobram 7 poemas, apenas:
“O desfecho”, “Uma criatura”,
“Mundo interior”,
“Perguntas sem
resposta”, “Lindoia”, “Suave mari magno” e “No alto”. Vejamos brevemente
cada um
deles.
“O desfecho” – abrindo o livro, dá o seu
tom: contrariando o mito,
Prometeu, pela primeira
vez, não
tem o fígado regenerado. A vida é comparada ao suplício
eterno do Titã:
o sofrimento só tem termo
com a morte.
“Uma criatura” – o poeta brinca com a ambiguidade do monstro
que descreve, concluindo: “Tu dirás que é
a Morte; eu
direi que é a Vida.”
(C, p. 126).
“Mundo interior”
– na comparação entre o mundo exterior,
a natureza, que
tem a preferência da maioria,
e o mundo interior,
o âmago do indivíduo,
o poeta opta por
este, totalmente
diverso daquele, mas
que guarda
em si
“um segredo
que atrai, que
desafia – e dorme.” (C, p. 129).
“Perguntas sem resposta” e “Lindoia” – formam o “interlúdio lírico”
de Ocidentais. O primeiro,
do ponto de vista
mítico; o segundo, do ponto
de vista literário.
Em “Perguntas
sem resposta”,
uma noiva, “pálida
Maria”, divide com a estrela Vênus a alegria do casamento a
realizar-se em três dias.
A morte súbita
do noivo, entretanto,
muda o seu
estado de espírito
e ela, na mesma
hora do cair
da tarde, divide com
a estrela a sua
imensurável tristeza,
mas a estrela
fica-lhe indiferente. “Lindoia” é uma pérola de delicadeza,
incrustada na áspera estrutura de Ocidentais.
Como uma última
homenagem ao Basílio da Gama
que ele
amara desde adolescente,
Machado compõe um
soneto promovendo um inusitado encontro
entre as musas Lindoia, Moema, Coema, Iguaçu e Iracema, sem
que elas
percam seu aspecto
literário, sem que pareçam
osso e carne,
mas espíritos
imaginados, habitantes do mundo interior,
para apropriar-se,
no desfecho, do verso genial de seu velho
mestre:
Além do amável,
gracioso porte,
Vede o mimo, a ternura
que lhe
resta.
Tanto inda é bela no seu rosto a morte!
(C, p. 138)
A simples
troca do tempo
do verbo, trazendo-o ao presente,
acrescido do advérbio para
completar a métrica,
metamorfoseia o verso do Gama (“Tanto era bela no seu rosto a morte!”) em autêntico verso
de Machado.
“Suave
mari magno” – referência
a um dístico
de Lucrécio sobre a banalidade
do mal quando
se está a salvo dele, o poema é uma sequência de imagens
mostrando a morte de um
cão, possivelmente envenenado, em plena rua, e a multidão
de curiosos a assisti-la, passivamente. Sonetilho combinando redondilhas maiores
e tetrassílabos, alguns exegetas da obra
de Machado já
tentaram extrair desse poema
uma relação com
sua condição
de epiléptico (TEIXEIRA, p. 186). Se assim o fosse, seria humor
negro e de péssimo
gosto. “Suave mari magno” se integra no eixo dos demais
poemas: a morte
é banalizada, não por
se tratar de um
cão – na verdade,
uma metáfora da condição
humana – mas
por não
comover além
da mera curiosidade.
“No alto” – o ponto
máximo de Ocidentais. Machado fecha o
livro com
esse soneto
que combina alexandrinos
e hexassílabos, usando os mitos de Ariel
e Caliban para alegorizar
a trajetória do poeta:
O poeta
chegara ao alto da montanha,
E, quando ia a descer a vertente do oeste,
Viu uma cousa estranha,
Uma figura má.
Então, volvendo o olhar ao
subtil, ao celeste,
Ao gracioso Ariel, que
de baixo o acompanha,
Num tom medroso e agreste
Pergunta
o que será.
Como se perde no ar
um som
festivo e doce,
Ou bem como
se fosse
Um pensamento vão,
Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta.
Para
descer a encosta
O outro estendeu-lhe a mão.
(C, p. 160)
Ariel, o espírito jovial,
abandona o caminhante
quando este
se prepara para
a jornada de descida,
no outro lado
da montanha – o lado
desconhecido. O “outro”,
inominado, mas, por
oposição ao primeiro,
Caliban, assume o comando da jornada, como uma metáfora das dificuldades
do poeta, na lide cotidiana.
Os temas
da morte e da interioridade dominam os três poemas que antecedem o interlúdio
lírico. A distensão
obtida por este,
entretanto, é apenas
parcial, porque
ambos os poemas
também tratam da morte.
O sexto poema retoma a maneira sombria
do tema dominante.
Por fim,
o último poema
promove um recuo e apenas
sugere o caminho por
onde Caliban guiará o poeta.
Ao final desse caminho,
por certo,
ele encontrará a “indesejada das gentes”.
Ocidentais tem como fulcro o tema
da morte, que
Machado sabia próxima.
Mas não
é só: o mistério
da morte só
pode ser desvendado pelo conhecimento da vida
– daí a alusão a Prometeu, um “símbolo da vontade humana
de intelectualidade” (BACHELARD, p. 104),
que só
se realiza no exercício da rebeldia, com a quebra
de paradigmas e a ruptura
dos modelos consagrados. Machado de Assis sabia-se um
Prometeu da literatura de língua
portuguesa, tinha plena
consciência disso, e deixou essa ideia
gravada a fogo naqueles sete poemas de Ocidentais. Como poeta, ele vai voltar ao tema ainda uma vez, ao registrar a morte
de Carolina, num poema que harmoniza a dor
particular a uma dor
mítica, que o poeta,
nunca antes
tão verdadeiro,
não se constrange de expor:
Querida, ao pé
do leito derradeiro
Em que
descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre
querida,
Trazer-te o coração do companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito
de toda a humana
lida,
Fez a nossa existência
apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.
Trago-te flores, ─ restos
arrancados
Da terra
que nos
viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e
separados.
Que eu, se
tenho nos olhos
malferidos
Pensamentos de vida
formulados,
São pensamentos
idos e vividos.
(“A Carolina”,
D, p. VI)
Neste poema, mais que em
qualquer outro que tenha escrito, Machado de Assis mostrou-se organicamente
intelectual – aqui, não mais na concepção gramsciana.
Desnudou-se perante seu leitor e assumiu seu lirismo sem fingimentos,
entregando-lhe mais que seu pensamento, entregando-lhe a própria alma: essencialmente
intelectual, no duplo sentido que essa expressão pode assumir. Se “nenhuma arte é mais visceralmente
nacional do que a poesia” (ELIOT, p. 30), podemos afirmar que a permanência de
um poema está diretamente relacionada com a identificação entre o poeta e seu
povo.
VI
Ao longo de 40 anos de
produção, o poeta Machado de Assis jamais se acomodou a formas ou fórmulas. O
romântico de Crisálidas dá lugar ao
experimentador em Falenas – ousando
novas linguagens, entre parnasiano e simbolista, e inventando um narrador que
depois lhe seria muito útil na sua prosa de ficção. Americanas é o laboratório onde ele procura demonstrar o “instinto
de nacionalidade”, sobre o qual refletia desde muito cedo, quase adolescente. A
síntese de sua procura, já o disse antes, ele enfeixa em Ocidentais, livro em que se aproxima, naqueles sete poemas
apontados, somados aos três antológicos, de uma poesia de cunho metafísico, de
serena investigação ontológica, onde a morte não é o fim, mas, metaforizada na
beleza do rosto de Moema, o início de uma nova etapa. Para Machado de Assis, o
início da imortalidade.
BIBLIOGRAFIA BÁSICA
MACHADO DE ASSIS. Obras Completas. São
Paulo: Globo, 1997.
A. Crisálidas, Falenas & Americanas
B.
Crítica & Variedades
C.
O Almada & Outros poemas
D. Relíquias de casa velha
BIBLIOGRAFIA DE APOIO
ANDRADA
E SILVA, José Bonifácio de. Projetos para
o Brasil. Organização: Miriam Dolhnikoff. São Paulo: Companhia das Letras;
Publifolha, 2000.
BACHELARD,
Gaston. Fragmentos de uma poética
do fogo. Trad. Norma
Telles. São Paulo: Brasiliense,
1990.
BOSI,
Alfredo. História concisa
da literatura brasileira.
37ª ed. São Paulo: Cultrix, 2000.
CURVELLO,
Mario. Falsete à poesia de Machado de Assis. In: BOSI, Alfredo et alii. Machado de Assis. São
Paulo: Ática, 1982.
ELIOT,
T. S. A função social da poesia. In: De
poesia e poetas. Tradução: Ivan Junqueira. São Paulo: Brasiliense, 1991.
GRAÇA, Antônio Paulo. Uma poética do genocídio.
Rio de Janeiro:
Topbooks, 1998.
RÓNAI,
Paulo. Não perca o seu latim.
Colaboração: Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. 5ª edição. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1990.
TEIXEIRA,
Ivan. Apresentação de Machado de Assis.
2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
Machado
é um intelectual orgânico, tanto no sentido empregado por Gramsci, com relação
a sua classe – a dos escritores – quanto numa acepção biológica: ele vivia de e
para escrever. Escrever era a sua vida.