Amigos do Fingidor

sexta-feira, 31 de março de 2023

Machado de Assis, poeta 4/4


Zemaria Pinto

 

V

Ocidentais foi publicado no volume das Poesias Completas, em 1901, mas boa parte dos poemas que o integram havia sido publicada antes, em revistas e jornais. Assim como os dois primeiros, é uma coleção de poemas, sem um projeto autônomo de unidade, como o que orienta Americanas. O título é uma referência a Orientais, de Victor Hugo, de 1829 – ao mesmo tempo em que homenageia o mestre, Machado faz-lhe um contraponto: se Orientais era uma suma romântica, Ocidentais era seu antípoda, ainda que de difícil classificação.

Muito se escreveu sobre Ocidentais: se disse, por exemplo, que era o melhor da poesia de Machado de Assis, e havia de sê-lo, afinal, de autor que amadureceu nos outros gênerosisto é, não nasceu “genial”, como tantos que morreriam em tenra idadenão era de se esperar diferente com relação à poesia. se traçaram paralelos entre o poeta e os narradores da segunda fase ficcional de Machado, procurando, para além do fingimento, descobrir-lhe os estados de alma (BOSI, p. 178-180). O amargor schopenhaueriano, o ceticismo e o pessimismo que marcam a segunda fase do ficcionista se fazem presentes também na “segunda fase” do poeta – considerando-se que os três primeiros livros eram românticos. Ora, o autor era um , os gêneros, diversos. Pontos de contato seriam não apenas esperados como desejados, resultando em evidências da honestidade intelectual do autor.

Foi dessa coleção que saíram alguns dos poemas mais antologiados de Machado de Assis: “Círculo vicioso”, “A mosca azul” e “Soneto de natal”. Os três, construídos numa linguagem de rara simplicidade filosófica, caíram no gosto popular. Mas é nesse livro também, a despeito de toda a rigidez na seleção definitiva dos outros livros, que ele encaixa uns poemas de circunstânciaou de mera celebração (seja a grandes vultos da literatura seja a amigos; no caso de “Alencar”, uma combinação de ambas). Aqui estão também suas mais significativas traduções de poemas: “O Corvo”, de Poe; o monólogoTo be or not to be” (assim mesmo intitulado), do terceiro ato do Hamlet, de Shakespeare; o Canto XXV do “Inferno”, da Divina Comédia, de Dante; e “Os animais iscados da peste”, de La Fontaine. Há ainda dois poemas longos, narrativos, na mesma gasta estrutura utilizada nos livros anteriores, datados, aliás, daquela época: “Velho Fragmento”, que algumas edições trazem separado do todo, com o título “O Almada”, e “Clódia”, sobre a fogosa musa do veronês Catulo, lírico do século I a.C., que a cantara sob o disfarce de Lésbia.

Sem nos apropriarmos da fúria cortadora do autor para com seus livros anteriores, vamos à essência de Ocidentais: descontados os desgastados antológicos, os de circunstância e/ou celebração, as traduções e mesmo os velhos narrativos – posto não trazerem nenhuma novidade – sobram 7 poemas, apenas: “O desfecho”, “Uma criatura”, “Mundo interior”, “Perguntas sem resposta”, “Lindoia”, “Suave mari magno” e “No alto”. Vejamos brevemente cada um deles.

“O desfecho” – abrindo o livro, dá o seu tom: contrariando o mito, Prometeu, pela primeira vez, não tem o fígado regenerado. A vida é comparada ao suplício eterno do Titã: o sofrimento tem termo com a morte.

“Uma criatura” – o poeta brinca com a ambiguidade do monstro que descreve, concluindo: “Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.” (C, p. 126).

Mundo interior” – na comparação entre o mundo exterior, a natureza, que tem a preferência da maioria, e o mundo interior, o âmago do indivíduo, o poeta opta por este, totalmente diverso daquele, mas que guarda em sium segredo que atrai, que desafia – e dorme.” (C, p. 129).

Perguntas sem resposta” e “Lindoia” – formam o “interlúdio lírico” de Ocidentais. O primeiro, do ponto de vista mítico; o segundo, do ponto de vista literário. EmPerguntas sem resposta”, uma noiva, “pálida Maria”, divide com a estrela Vênus a alegria do casamento a realizar-se em três dias. A morte súbita do noivo, entretanto, muda o seu estado de espírito e ela, na mesma hora do cair da tarde, divide com a estrela a sua imensurável tristeza, mas a estrela fica-lhe indiferente. “Lindoia” é uma pérola de delicadeza, incrustada na áspera estrutura de Ocidentais. Como uma última homenagem ao Basílio da Gama que ele amara desde adolescente, Machado compõe um soneto promovendo um inusitado encontro entre as musas Lindoia, Moema, Coema, Iguaçu e Iracema, sem que elas percam seu aspecto literário[1], sem que pareçam osso e carne, mas espíritos imaginados, habitantes do mundo interior, para apropriar-se, no desfecho, do verso genial de seu velho mestre:

 

Além do amável, gracioso porte,

Vede o mimo, a ternura que lhe resta.

Tanto inda é bela no seu rosto a morte!

(C, p. 138)

 

A simples troca do tempo do verbo, trazendo-o ao presente, acrescido do advérbio para completar a métrica, metamorfoseia o verso do Gama (“Tanto era bela no seu rosto a morte!”) em autêntico verso de Machado.

Suave mari magno” – referência a um dístico de Lucrécio[2] sobre a banalidade do mal quando se está a salvo dele, o poema é uma sequência de imagens mostrando a morte de um cão, possivelmente envenenado, em plena rua, e a multidão de curiosos a assisti-la, passivamente. Sonetilho combinando redondilhas maiores e tetrassílabos, alguns exegetas da obra de Machado tentaram extrair desse poema uma relação com sua condição de epiléptico (TEIXEIRA, p. 186). Se assim o fosse, seria humor negro e de péssimo gosto. “Suave mari magno” se integra no eixo dos demais poemas: a morte é banalizada, não por se tratar de um cão – na verdade, uma metáfora da condição humanamas por não comover além da mera curiosidade.

“No alto” – o ponto máximo de Ocidentais. Machado fecha o livro com esse soneto que combina alexandrinos e hexassílabos, usando os mitos de Ariel e Caliban para alegorizar a trajetória do poeta:

 

O poeta chegara ao alto da montanha,

E, quando ia a descer a vertente do oeste,

Viu uma cousa estranha,

Uma figura má.

 

Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste,

Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,

Num tom medroso e agreste

Pergunta o que será.

 

Como se perde no ar um som festivo e doce,

Ou bem como se fosse

Um pensamento vão,

 

Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta.

Para descer a encosta

O outro estendeu-lhe a mão.

(C, p. 160)

 

Ariel, o espírito jovial, abandona o caminhante quando este se prepara para a jornada de descida, no outro lado da montanha – o lado desconhecido. O “outro”, inominado, mas, por oposição ao primeiro, Caliban, assume o comando da jornada, como uma metáfora das dificuldades do poeta, na lide cotidiana.

Os temas da morte e da interioridade dominam os três poemas que antecedem o interlúdio lírico. A distensão obtida por este, entretanto, é apenas parcial, porque ambos os poemas também tratam da morte. O sexto poema retoma a maneira sombria do tema dominante. Por fim, o último poema promove um recuo e apenas sugere o caminho por onde Caliban guiará o poeta. Ao final desse caminho, por certo, ele encontrará a “indesejada das gentes”.

Ocidentais tem como fulcro o tema da morte, que Machado sabia próxima. Mas não é : o mistério da morte pode ser desvendado pelo conhecimento da vida – daí a alusão a Prometeu, umsímbolo da vontade humana de intelectualidade” (BACHELARD, p. 104), que se realiza no exercício da rebeldia, com a quebra de paradigmas e a ruptura dos modelos consagrados. Machado de Assis sabia-se um Prometeu da literatura de língua portuguesa, tinha plena consciência disso, e deixou essa ideia gravada a fogo naqueles sete poemas de Ocidentais. Como poeta, ele vai voltar ao tema ainda uma vez, ao registrar a morte de Carolina, num poema que harmoniza a dor particular a uma dor mítica, que o poeta, nunca antes tão verdadeiro, não se constrange de expor:

 

Querida, ao do leito derradeiro

Em que descansas dessa longa vida,

Aqui venho e virei, pobre querida,

Trazer-te o coração do companheiro.

 

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro

Que, a despeito de toda a humana lida,

Fez a nossa existência apetecida

E num recanto pôs um mundo inteiro.

 

Trago-te flores, ─ restos arrancados

Da terra que nos viu passar unidos

E ora mortos nos deixa e separados.

 

Que eu, se tenho nos olhos malferidos

Pensamentos de vida formulados,

São pensamentos idos e vividos.

(“A Carolina”, D, p. VI)

 

Neste poema, mais que em qualquer outro que tenha escrito, Machado de Assis mostrou-se organicamente intelectual – aqui, não mais na concepção gramsciana[3]. Desnudou-se perante seu leitor e assumiu seu lirismo sem fingimentos, entregando-lhe mais que seu pensamento, entregando-lhe a própria alma: essencialmente intelectual, no duplo sentido que essa expressão pode assumir.  Se “nenhuma arte é mais visceralmente nacional do que a poesia” (ELIOT, p. 30), podemos afirmar que a permanência de um poema está diretamente relacionada com a identificação entre o poeta e seu povo.

 

VI

Ao longo de 40 anos de produção, o poeta Machado de Assis jamais se acomodou a formas ou fórmulas. O romântico de Crisálidas dá lugar ao experimentador em Falenas – ousando novas linguagens, entre parnasiano e simbolista, e inventando um narrador que depois lhe seria muito útil na sua prosa de ficção. Americanas é o laboratório onde ele procura demonstrar o “instinto de nacionalidade”, sobre o qual refletia desde muito cedo, quase adolescente. A síntese de sua procura, já o disse antes, ele enfeixa em Ocidentais, livro em que se aproxima, naqueles sete poemas apontados, somados aos três antológicos, de uma poesia de cunho metafísico, de serena investigação ontológica, onde a morte não é o fim, mas, metaforizada na beleza do rosto de Moema, o início de uma nova etapa. Para Machado de Assis, o início da imortalidade. 

 

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

 

MACHADO DE ASSIS. Obras Completas. São Paulo: Globo, 1997.

A.    Crisálidas, Falenas & Americanas

B.     Crítica & Variedades

C.     O Almada & Outros poemas

D.    Relíquias de casa velha

 

BIBLIOGRAFIA DE APOIO

 

ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de. Projetos para o Brasil. Organização: Miriam Dolhnikoff. São Paulo: Companhia das Letras; Publifolha, 2000.

BACHELARD, Gaston. Fragmentos de uma poética do fogo. Trad. Norma Telles. São Paulo: Brasiliense, 1990.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 37ª ed. São Paulo: Cultrix, 2000.

CURVELLO, Mario. Falsete à poesia de Machado de Assis. In: BOSI, Alfredo et alii. Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982. 

ELIOT, T. S. A função social da poesia. In: De poesia e poetas. Tradução: Ivan Junqueira. São Paulo: Brasiliense, 1991.

GRAÇA, Antônio Paulo. Uma poética do genocídio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.

RÓNAI, Paulo. Não perca o seu latim. Colaboração: Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. 5ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

TEIXEIRA, Ivan. Apresentação de Machado de Assis. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1988.



[1] Lindoia, a heroína de O Uraguai (Basílio da Gama), recepciona as demais damas do indianismo: Moema, de Caramuru (Santa Rita Durão), Coema, de Os Timbiras (Gonçalves Dias), Iguaçu, de A Confederação dos Tamoios (Gonçalves de Magalhães) e Iracema, a própria, de Alencar.

[2] Suave mari magno. Primeiras palavras de um dístico de Lucrécio (A Natureza, Livro II, 1-2): Suave, mari magno, turbantibus aequora ventis / E terra magnum alterius spectare laborem. “É agradável, enquanto no mar revoltoso os ventos levantam as águas, observar da terra os grandes esforços de um outro.” (RÓNAI, p. 167).

[3] Machado é um intelectual orgânico, tanto no sentido empregado por Gramsci, com relação a sua classe – a dos escritores – quanto numa acepção biológica: ele vivia de e para escrever. Escrever era a sua vida.

 

quinta-feira, 30 de março de 2023

A poesia é necessária?

 

Silêncio e palavra

Thiago de Mello (1926-2022)

 

I

A couraça das palavras

protege nosso silêncio

e esconde aquilo que somos.

 

Que importa falarmos tanto?

Apenas repetiremos.

 

Ademais, nem são palavras.

Sons vazios de mensagem,

são como a fria mortalha

do cotidiano morto.

Como pássaros cansados,

que não encontraram pouso

certamente tombarão.

 

Muitos verões se sucedem:

o tempo madura os frutos,

branqueia nossos cabelos.

Mas o homem noturno espera

a aurora de nossa boca.

 

II

Se mãos estranhas romperem

a veste que nos esconde,

acharão uma verdade

em forma não revelável.

(E os homens têm olhos sujos,

não podem ver através.)

 

Mas um dia chegará

em que a oferenda dos deuses,

dada em forma de silêncio,

em palavra transfaremos.

 

E se porventura a dermos

ao mundo, tal como a flor

que se oferta – humilde e pura –

teremos então cumprido

a missão que é dada ao poeta.

E como são onda e mar,

seremos palavra e homem.


Hoje, 30 de março, Thiago de Mello estaria completando 97 anos.

 

quarta-feira, 29 de março de 2023

Palavras Sobremesa em nova edição



 

Palavras Sobremesa – release

 

A Casa da Pamonha apresentará, em parceria com o projeto cultural Escada Sem Degraus, no dia 31 de março, a partir das 18h, mais uma edição do projeto Palavras Sobremesa, com o tema “Palavra de Mulher”. Referente ao Dia Internacional das Mulheres, no mês de março. Uma exposição coletiva de poemas sob o vidro das mesas do referido restaurante.  

Trata-se de poemas de autoras locais distribuídos nas catorze mesas da Casa da Pamonha, duas mesas para cada autora. As autoras convidadas são: Darlene Fernandes, Grace Cordeiro, Jalna Gordiano, Luciana Nobre, Marta Cortezão, Pollyanna Furtado e Tainá Vieira. 

O evento conta com a apresentação musical da cantora e compositora Lucinha Cabral e a participação especial da atriz Koia Refkalefsky, que fará uma homenagem à poeta Astrid Cabral.

  

EQUIPE TÉCNICA:

Coordenação geral: Elzira Martiniani

Organização: Eliberto Barroncas e Railda Vitor

Curadoria dos poemas: Zemaria Pinto

Divulgação: Rafael Inocêncio

 

 

terça-feira, 28 de março de 2023

O tucumã de Urucará

Pedro Lucas Lindoso

 

Urucará é uma cidade muito simpática e não muito longe de Manaus. Pode-se ir de carro até Itapiranga, pela AM 363. A distância é de cerca de 350 km. Leva-se ainda uma hora de lancha até a sede do Município.

Vale a pena. A cidade é simpática e os habitantes são acolhedores. Estive lá com o projeto Literatura Caminhante, coordenado pelo professor Paulo Queiroz.

Foi com grande alegria que conheci o professor Joaquim Marques. Ele trabalha no Ensino Fundamental em Urucará. Tornou-se um escritor infantil com foco em lendas amazônicas. Joaquim Marques fez uma releitura da lenda do boto. Em sua versão, o sedutor mamífero aquático se transforma em professor e vem ensinar letramento às crianças de Urucará.

Com o sucesso do Boto Professor, Joaquim Marques vai lançar em breve a Lenda do Tucumã. As lendas amazônicas geralmente têm como personagens um jovem guerreiro e uma cunhã-poranga, a moça mais linda da tribo. Algumas dessas lendas explicam como surgiram algumas frutas ou seres mitológicos amazônicos. Há lendas explicando o guaraná, o açaí. E agora Joaquim Marques nos apresenta a lenda do tucumã.

Na região de Urucará havia a tribo dos Burubus. Nessa tribo existia uma índia muito bonita chamada Iná. A tribo vizinha era a tribo Caboquenas. Eram tribos rivais. Entre os caboquenas havia um índio guerreiro belo e forte chamado Cumã.

Nos arredores de Urucará há muita palmeira de tucumã. Fruto gostoso e muito apreciado pelos amazonenses. Inclusive é o ingrediente principal do sanduíche mais famoso da região. O X-caboquinho.

Não vou contar o final para não estragar a surpresa. O professor Joaquim me disse que imaginou a lenda há uns 30 anos atrás, quando de sua formação para professor do fundamental.

Soube que a origem da palavra Urucará seria a junção das palavras indígenas uru – cesto de palha, e cará que é um dos nomes dados ao inhame da Amazônia. Seria essa possivelmente a inspiração do Professor Joaquim para criar o nome do gostoso e nutritivo tucumã.

A junção do nome do guerreiro herói Cumã com o pronome pessoal tu. Para saber a estória de Cumã e Iná, aguardem o livro do professor e amigo Joaquim Marques. Caboclo urucaraense, escritor e meu confrade na Academia de Letras, Ciências e Cultura da Amazônia. ALCAMA.

Enquanto aguardamos o livro vamos saboreando o gostoso tucumã. Com café ou no X-caboquinho, além de saboroso é bastante nutritivo.

 

 

segunda-feira, 27 de março de 2023

domingo, 26 de março de 2023

Manaus, amor e memória DCXI

 

O hoje Palacete Provincial, no Centro Histórico de Manaus.

sexta-feira, 24 de março de 2023

Machado de Assis, poeta 3/4


Zemaria Pinto

 

IV

Americanas, de 1875, vem conjugar, no espírito experimentalista de Machado, a teoria e a prática, juntando o seu lirismoque busca, desde Crisálidas, novos rumos – à ideia do “instinto de nacionalidade”, tentando revigorar a vertente indianista do Romantismo brasileiro, inaugurada por Gonçalves Dias havia quase 30 anos, e cujo último estertor fora Ubirajara, de Alencar, publicado apenas um ano antes de Americanas. Embora temporão, Americanas não pode ser ignorado no corpus da poesia brasileira. Tivesse sido escrito pelo menos 20 anos antes, alguns de seus poemas teriam hoje o peso dos melhores trabalhos de Gonçalves Dias, mas, como isso seria impossível, creditemos o título à última fase do aprendizado do autor. Aos 36 anos, o poeta Machado de Assis mergulha em si mesmo, mais que no Brasil, e prepara-se para o grande voo que, como poeta, fará nos 25 anos seguintes, até completar aquele repertório que o consagraria em Ocidentais. Tal como Crisálidas, a edição definitiva de Americanas tem apenas 12 poemas; mas, ao contrário daquele, da edição original foi cortado apenas um.

Americanas é composto de 8 longos poemas narrativos e mais 4 de curto fôlego, sem espaço para manifestações sentimentais: um lirismo comedido, a serviço da ideia que expressa. Em outras palavras, o tom de Americanas é assumidamente épico. Mesmo o interlúdio lírico a que vamos aludir restringe-se à paisagem, indispensável para compor o quadro dos feitos heróicos que o épico exige. O título é ambíguo: pode se referir aos poemas (“poesias”, como se dizia então, daí o feminino) e seu caráter étnicosem negar a nacionalidade brasileira, mas inserindo o nativo no continente – ou pode ser homenagem às fortes figuras femininas retratadas em seis dos “romances”: Potira, Niâni, Ângela, Sabina, a índia inominada de “Última jornada” e as donzelas sacrificadas de “Os Orizes”. Façamos uma breve leitura dos poemas.

“Potira” – seduzida pelo cristianismo e pela civilização branca, Potira é sacrificada pelo chefe tamoio Anajê, a quem fora prometida. Instaura-se aqui a tensão entre a cristã e a violência nativa, revelando o mal causado pela intromissão branca.

“Niâni” – índia da nobreza guaicuru abandonada pelo marido, que a trocara por outra de “sangue vulgar”, enlouquece, “viúva sem bem o ser”, até a morte. Chama a atenção neste poema, além da linguagem – organizada em quadras e vazada em redondilhas e rimas alternadas agudas (B/D) – muito usada por Gonçalves Dias, a posição do narrador:

 

Contam-se histórias antigas

Pelas terras de além-mar,

De moças e de princesas,

Que amor fazia matar.

(A, p. 173)

 

“A Cristã-Nova” – passada na época da Inquisição, conta a história de Ângela, que troca o judaísmo pelo cristianismo, para casar-se com Nuno, herói do combate aos invasores franceses. Mas a Inquisição manda prender o pai de Ângela, acusando-o de judeu. Ângela se solidariza com o pai e faz um discurso de conteúdo judaico, indo presa junto com ele, sendo ambos deportados. Aqui o choque cultural é mais antigo, mas não menos oportuna a sua lembrança e a lembrança de sua persistente intolerância.

“Sabina” – neste poema instaura-se a tensão racial: Sabina, “cativa, não entrava na senzala, / nem tinha mãos para trabalho rude” (A, p. 212), 20 anos, a despertar paixões, acaba, como em dezenas de outros contos da época, apaixonada e seduzida pelosenhor moço”, filho de seu dono. Sabina engravida, enquanto Otávio prepara-se para casar-se com outra. Desesperada, ela está prestes a suicidar-se, quando “vence o instinto de mãe”, e ela opta pela vida – a sua e a do filho que se engendra em seu ventre.

Última jornada” – construído em terça rima, e com paralelos claros entre o episódio dantesco de Paolo e Francesca, neste poema harmonizam-se, com perfeição, forma e conteúdo. Trata-se da narrativa da jornada de dois amantesela aos céus, ele aos infernos. Pela boca do próprio personagem masculino, a história dos dois nos é contada: filhos de tribos inimigas, eles se conhecem num raro momento de trégua; apaixonam-se, fogem e a guerra toma novo fôlego. A moça, entretanto, passado o entusiasmo inicial, cai em profunda tristeza. Ela tenta fugir, mas é alcançada a meio do caminho pelo guerreiro, que a mata. “Talvez, talvez Tupã... de cólera tomado” castiga “a pena maior que o delito”, matando o guerreiro.

 

E nada mais se viu flutuar nos ares;

Que ele, bebendo as lágrimas que chora,

Na noite entrou dos imortais pesares,

 

E ela de todo mergulhou na aurora.

(A, p. 223)

 

“Os Orizes” (fragmentos) – projeto não concluído, faz parte deste bloco que trata das mulheres sacrificadas, pois, ao falar dos costumes desses índios que habitavam o sertão da Bahia, Machado descreve-lhe rituais, e entre eles: 

 

(...) As donzelas,

Mal saídas da infância, inda embebidas

Nos ledos jogos de primeira idade,

Ao brutal sacrifício... Oh! Cala, esconde,

Lábio cristão, mais bárbaro costume.

(A, p. 225)

 

Interlúdio lírico – formado por dois poemas, “A flor do embiruçu” e “Lua nova”, este interlúdio não é de amorosidade inter-humana, mas uma consagração à natureza. Se os poemas anteriores exploram os conflitos religiosos, raciais, étnicos e humanos, estes celebram a integração do homemindependente de credo, raça ou nacionalidadecom a natureza.

Núcleo intelectual – formado pelos poemas “José Bonifácio”, “A visão de Jaciúca”, “A Gonçalves Dias” e “Os semeadores”, este núcleo intelectual de Americanas tem a chave das ideias marteladas por Machado de Assis no todo do livro. Essas ideias consistem na fundação de uma nação mestiça, onde conviveriam em paz brancos, negros e índios, sob as bênçãos da Igreja. Devia ser isso o que o Andrada (1763-1838) tinha em mente quando escreveu:

 

Quando dentre os nossos reis se alçará um grande legislador, que dê nova forma ao índio, e ao negro? Que lhes dê o pleno gozo dos frutos do seu trabalho, e a liberdade civil, que depende da educação moral e intelectual do povo? (ANDRADA E SILVA, p.  64)

 

Claro que ele pressupunha, em troca, a destruição das culturas, a começar pela língua, e o banimento dos “costumes bárbaros”.

“José Bonifácio” não louva o Patriarca da Independência, mas o pensador que propunha uma reforma na sociedade nacional, com o fim da escravidão e a integração de negros e índios à sociedade. Objetivamente, a mestiçagem era o caminho para uma raça brasileira, dotada de homogeneidade cultural. “A visão de Jaciúca” complementa, de maneira cruel, o pensamento do Andrada: às vésperas de uma batalha (com brancos?), o guerreiro Jaciúca, “o duro chefe da indomável tribo”, tem uma visão em queera o termo da vida que chegara / ao povo de Tupã (...) Luas e luas volverão no espaço / antes da morte, mas a morte é certa, / e terrível será.”. Outra nação se erguerá sobre as ruínas da nação de Jaciúca, “e brilhará na terra, / gloriosa e rica”, por isso ele implora aos seus irmãos: “penduremos / as armas nossas, que sobeja há sido / a glória, e a doce paz que nos chama.” (A, p. 200-205). “A Gonçalves Dias” é uma elegia ao mentor intelectual de Americanas, o “cantor da América”, morto em um naufrágio, 11 anos antes. “Os semeadores”, por fim, homenageia os jesuítas que, “Paulos do sertão”, semearam o cristianismo entre os “bárbaros”.

É importante citar a disposição gráfica utilizada por Machado, que vem sustentar nossa leitura: os três primeiros poemas são as tragédias “Potira”, “Niâni” e “A Cristã-Nova”. Em seguida, vêm os quatro poemas que denominamos de “núcleo intelectual” do livro, seguidos pelos poemas do “interlúdio lírico”. O livro continua com mais trêsromances”: o drama de Sabina, seguido pela fábula dantesca de “Última jornada”, para encerrar-se com a alusão ao sacrifício das donzelas orizes. Há, portanto, uma intenção prévia nesse modo de organizar os textos. Parece-me, entretanto, que Machado comete um pecadilho nessa organização ao optar, burocraticamente, em deixar os fragmentos por último, como se fossem dispensáveis e apenas uma peça a mais no engenho do livro. Essa opção quebra a organização final pensada em Crisálidas (o inovadorVersos a Corina” seguido pelo sugestivo “Última folha”) e em Falenas (onde a última parte traz as inovações simbolistas e parnasianas, concluindo com a experimentação narrativa de “Pálida Elvira”). A intervenção divina e moralista no castigo ao infrator, a confessa alusão ao filósofo Montaigne, que dividia as almas dos índios entre boas e más, e o intertexto dantesco do sublime casamento entre forma e conteúdo alcançado em “Última jornada”, talvez a mais bela criação poética de Machado de Assis, seria o fecho ideal para este livro singular que é Americanas.

Machado confirma, nos textos que têm o índio como protagonista, o que Antônio Paulo Graça sistematizaria 120 anos depois: os heróis índiosépicos ou trágicosnão sobrevivem nunca porque estão fadados ao extermínio:

 

Todo romance indianista é, já podemos dizer, uma metáfora do genocídio. (GRAÇA, p. 149)

 

Em síntese, a ideia em Machado de Assis, servindo-se do caminho aberto por Gonçalves Dias, é que a destruição da cultura nativa é inevitável, sendo o mais sensato seguir o caminho proposto pelo Andrada, e fundar, sobre as cinzas do genocídio, uma grande nação mestiça, onde, certamente, prevalecerão o cristianismo e a cultura europeia, suportes da única ideia de civilização aceitável.