Tenório
Telles*
Fui seguindo viagem, navegando as águas
da tua poesia e parando nos diversos portos que são os teus livros. Notei que
eles testemunham episódios da tua longa caminhada. Tem muita gente que pensa
que a tua lírica é apenas de combate ou, como preferem outros, comprometida
socialmente. Tua poética possui diversos matizes e tons. Aliás, o início do teu
percurso criativo é marcado por uma dicção reflexiva sobre o existir e o
sentido da tua presença neste vasto mar que se chama vida: O poema “Rumo” é
revelador dessa inquietude e dessa busca: “Minhas faces mais diversas / são
labirintos antigos / que me confundem e perdem // Para chegar até onde / não me
presumo, mas sou, / sigo em forma de palavra”.
Sabe, amigo velho, hoje consigo
compreender o sentido do verso que abre o poema que acabei de citar: “Somente
sou quando em verso”. Tenho a impressão que o que dá existência às coisas são
as palavras. Existimos pelas palavras. Penso que o mundo não existe em si mesmo.
Acho que tudo é uma grande ilusão. Ou como dizia Shakespeare, um teatro. De
bufões, loucos e espectros. Quando afirmas que és pela poesia, lembro de uma
passagem do professor Bosi em que ele afirma que o poético é um ato de
ressignificação e de “reencantar pessoas, coisas e eventos, mas também
reconhecer-se em si mesma, palavra que se dobra sobre a palavra”. Acredito que
a única forma de ser verdadeiro e de chegar ao cerne das coisas é pela poesia e
por isso teu verso é epifânico.
Gosto da delicadeza dos teus poemas
afetivos. Não seriam propriamente amorosos, mas enamorados, cheios de ternura,
vibração e calorosos. “Num campo de margaridas” é tão bonito e comovente. E de
uma densidade crua e delicada. Ele está sempre comigo. Lembro sempre dele. Ouço
o ritmo dos versos e fico perscrutando o movimento das cenas. O jogo entre o
onírico e a vigília. E de como o encontro dos enamorados se dá dentro do sonho:
Sonhei que estavas dormindo
num campo de margaridas
sonhando que me chamavas,
que me chamavas baixinho
para me deitar contigo
[...]
Mas eu não fui, meu amor,
que pena!, mas não podia,
porque eu estava dormindo
num campo de margaridas
sonhando que te chamava
que te chamava baixinho
e que em meu sonho chegavas,
que te deitavas comigo
e me abraçavas macia
num campo de margaridas.
Thiago, percebi que nos teus poemas tu
contas na verdade uma história. Há uma narrativa permeando teu discurso
poético. Entre tantas coisas e temas [liberdade, utopia, amor, justiça...] que
teces com os fios do teu canto, o que sobressai é a tua vida, teu itinerário
poético-existencial: a descoberta do mundo, da poesia, o sonho de uma sociedade
diferente, libertária e mais justa. Plasmando tudo isso, um Eu à procura de si,
de um lugar na existência e desejoso de compreensão e acolhimento. Esse ser,
esse menino desconsolado, esse homem em busca de redenção se anuncia e se
enuncia ao longo dos poemas. Tuas dores são dores que te aproximam dos outros e
também de mim.
Nos versos de o “Encontro com o pai”,
senti tua tristeza, a angústia da criança que um dia esperou do pai a “antiga
ternura / e velhos carinhos / jamais transmitidos”, mas que viste “acumulados”
em seus olhos. Talvez por isso és tão veemente no artigo oitavo dos “Estatutos
do homem”: “Fica decretado que a maior dor / sempre foi e será sempre / não
poder dar amor a quem se ama”. Imagino a falta que fez esse afeto silenciado no
olhar do teu pai. Eu também convivi com esse silêncio e sei a dor que ele
causa. Tua mãe, dona Maria Mitouso de Melo, teve sabedoria para depurar essas
feridas com o bálsamo do amor e do cuidado. O poema que dedicas a ela é de uma
ternura e comoção que faz qualquer um chorar:
Dona Maria está partindo.
Parece que está dormindo.
Mas já está chegando ao finzinho
do vale que leva à eternidade.
Quero só ver o que a eternidade
vai fazer com Dona Maria.
Ela sempre garantiu, desde mocinha,
que ia morar lá no céu.
E muito ouvi dela que Jesus,
de quem era serva fiel,
A esperava, contente.
E por falar em eternidade, caro amigo,
noto que, embora ressaltes que não tenhas “lá essas certezas” quanto a essa
matéria, desde os teus primeiros livros há uma atmosfera de dúvida, uma ânsia
de compreensão de si e do mundo – uma certa angústia metafísica. No “Silêncio e
palavra”, de 1951, flagra-se um sinal alusivo a um certo sentido de
transcendência presente na tua fala poética. Quarenta e cinco anos depois
publicaste um poema, a propósito denominado “Da eternidade”, em que reiteras
esse vínculo com uma percepção que considera a possibilidade da transcendência
e de um princípio primevo que gerou todas as coisas:
Da eternidade venho. Dela faço
parte, desde o começo da vida
dos que me fizeram ser
até chegar ao que sou.
Como abarcar a complexidade dessa nossa
vida tão cheia de segredos e coisas que nos ultrapassam? Embora nos achemos autossuficientes,
o fato é que sabemos tão pouco sobre o que somos, nosso lugar no mundo, nosso
destino, o que nos espera... Várias vidas não seriam suficientes para esclarecer
tantas dúvidas e mistérios. A vida foi dadivosa contigo, meu bom amigo.
Chegaste até aqui e estás próximo de completar uma centena de anos.
Sobreviveste a tantas coisas e viste muito neste mundo tão grande e
inapreensível. E por teres vivido tanto, aprendeste a “cultivar... o dom de
ver, / mesmo o que visto dói de ausente brasa”.
Foi para te celebrar – tua vida e teu
canto – que escrevi esta carta para ser lida por ti e por todos os que te
querem bem. Que aprenderam a respeitar tua história e a amar teus versos.
Escrevi esta carta também para registrar teus longos anos de vida, tua luta,
teu comprometimento com a causa do ser humano e a transformação do mundo. E
porque te mantiveste fiel a ti e ao propósito de ser no mundo – e combateste o
bom combate sem te renderes como os guerreiros de Leônidas, que resistiram até
o fim pela liberdade –, relembro, neste momento, para louvar tua vida e tua
poesia, os versos do poeta grego Simonides dedicados ao general espartano e
seus soldados:
Digam aos espartanos, estranhos que passam,
Que aqui, obedientes às suas leis, jazemos.
Estas palavras, amigo leitor, é para
testemunhar um poeta e sua história. E também para celebrar a amizade – para
que não esqueçamos a mensagem desse filho de nossa terra que cantou a
liberdade, a utopia e um novo sonho para a humanidade – na certeza de que um
dia
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia
inteiro,
abertas para o verde onde cresce a
esperança.
Thiago, este pequeno gesto é para que
saibas que nada foi em vão e que a tua poesia foi inspiração e força para os
teus amigos e leitores. E também para os que continuam sonhando com um mundo
mais generoso, mais verde e mais solidário. Parabéns, querido amigo. Que as
musas continuem inspirando teu canto e te guardando.
*Tenório Telles é poeta e ensaísta,
autor de Canção da esperança & outros
poemas, Viver e Clube da Madrugada – presença modernista no
Amazonas.