Amigos do Fingidor

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

A poesia é necessária?

 Lição de escuridão

Thiago de Mello

 

 

Caboclo companheiro meu de várzea,

contigo cada dia um pouco aprendo

as ciências desta selva que nos une.

 

Contigo, que me ensinas o caminho dos ventos,

me levas a ler, nas lonjuras do céu,

os recados escritos pelas nuvens,

me avisas do perigo dos remansos

e quando devo desviar de viés a proa da canoa

para varar as ondas de perfil.

 

Sabes o nome e o segredo de todas as árvores,

a paragem calada que os peixes preferem

quando as águas começam a crescer.

Pelo canto, a cor do bico, o jeito de voar.

identificas todos os pássaros da selva.

Sozinho (eu mais Deus, tu me explicas).

atravessas a noite no centro da mata,

corajoso e paciente na tocaia da caça.

a traição dos felinos não te vence.

 

Contigo aprendo as leis da escuridão,

quando me apontas na distância da margem,

viajando na noite sem estrelas,

a boca (ainda não consigo ver) do Lago Grande

de onde me fui pequenino e te deixei.

 

De novo no chão da infância,

contigo aprendo também

que ainda não tens olhos para ver

as raízes de tua vida escura,

não sabes quais são os dentes que te devoram

nem os cipós que te amarram à servidão.

 

Nos teus olhos opacos

aprendo o que nos distingue.

Já repartes comigo a ciência e a paciência.

Quero contigo repartir a esperança,

estrela vigilante em minha fronte

e em teu olhar apenas um tição

encharcado de engano e cativeiro.

 

Barreirinha, 1981.


quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Fantasy Art - Galeria

Mateja Marinko.

 

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Segue-me

Pedro Lucas Lindoso

 

Na era auge do rádio, os comunicadores tinham orgulho da quantidade de ouvintes. Com a chegada da televisão a luta pelo maior número de telespectadores se intensifica. Escritores buscam leitores. Igrejas desejam aumentar o número de fiéis. Comerciantes, a clientela.

Há pouco tempo os jornais concorrentes disputavam por uma maior tiragem. Quanto maior a tiragem, mais prestígio tinha o jornal. Para muitos especialistas, mais importante que a tiragem é a efetiva circulação. A diferença consiste no número bruto de exemplares impressos de determinada publicação. Muitos periódicos para se autovalorizarem faziam uma tiragem bem maior que o necessário. A circulação é que de fato representa o número de exemplares que chegam às mãos dos leitores.

Um amigo jornalista me explicou que o que caracterizava um jornal de grande circulação era o seu serviço de assinaturas e quantos exemplares eram vendidos nas bancas. A distribuição, portanto, era de suma importância nos negócios e na administração de qualquer periódico.

Com a internet as coisas mudaram e os critérios também. Cada vez mais um menor número de pessoas compra o jornal físico. Lê-se tudo pelo computador, tablet ou smartphone.

Hoje não se buscam mais tantos os leitores, mas os seguidores. Há uma briga feroz por seguidores. Profissionais de mídia, blogueiros, influenciadores, artistas e celebridades contam diariamente, minuto a minuto, o número de pessoas que acessam seus canais. São os seus seguidores. E pedem que se inscrevam em seus canais. Imploram por inscrições. Claro, quanto mais inscritos, mais seguidores e consequentemente mais audiência e mais lucro. 

Gosto muito de ser leitor. Sou ouvinte de rádio e telespectador de alguns programas de televisão. Mas não me sinto confortável em ser seguidor de ninguém. Ora, seguir é um verbo transitivo direto. Significa acompanhar alguém, ir na mesma direção. Quer dizer também ter como padrão ou exemplo. Admirava muito meu pai. Sempre procurei seguir seus passos.

Seguir significa imitar, possuir a mesma opinião. E o mais importante é que seguir também tem um significado bem específico: permanecer próximo. Não quero ser seguidor de qualquer um.

Estamos no Natal, prefiro seguir Aquele que se faz Menino todo ano e veio para nos salvar. E não faltou convite. Ele mesmo falou aos seus discípulos:

– Segue-me.

  

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 13/14

 Zemaria Pinto

 

Crime e castigo ou a violência como semeadura

O desfecho de A selva, já o dissemos antes, é construído com um anticlímax inverossímil e uma alegoria tipicamente naturalista. A inverossimilhança: o perdão das dívidas financeiras de Alberto, concedido pelo até então desumano Juca Tristão, que, como representação alegórica de um capitalismo da pior espécie, reage de modo inexplicável, surpreendendo ao próprio Alberto, que amealhara o valor suficiente para comprar de volta sua liberdade. A alegoria: Tiago, um pária, transforma-se, pela raiva incontida, embora justificada, em justiceiro de Juca Tristão, que cometera o mais bárbaro dos crimes – a escravização de seres humanos. Após a execução, Tiago se justifica:

 

– Eu também gostava muito do patrão. Ele me podia até matar que eu não fugia. Era mesmo amigo dele. Mas seu Juca se desviou… Estava a escravizar os seringueiros. Tronco e peixe-boi no lombo, só nas senzalas. E já não há escravatura… (p. 218)

 

O castigo por meio do fogo guarda uma simbologia direta com a purificação espiritual e com a semeadura dos campos, que são queimados para dar lugar a uma nova safra. Souvarine, o anarquista de Germinal (1881), sintetiza com precisão essa ideia:

 

Incendeiem as cidades, ceifem os povos, arrasem tudo, e, quando não sobrar mais nada deste mundo podre, talvez nasça outro melhor dos escombros. (ZOLA, p. 150-151)

 

Para destruir as minas de carvão de Montsou, Souvarine opta pela água, símbolo tão forte quanto o fogo, no que diz respeito às liturgias espirituais e agrárias. Por trás dessas metáforas, está uma ideia, muito mais complexa, que transcende a mera palavra de ordem, produzindo uma grave reflexão sobre as transformações sociais, ao longo da história:

 

A violência é a parteira de toda velha sociedade que está prenhe de uma nova. (MARX, p. 286)

 

A ação de Tiago passa ao largo de qualquer ideia político-revolucionária: é apenas a reação violenta de um animal que estivera a vida inteira enjaulado, diante da compreensão de que Juca Tristão praticara um crime contra a humanidade, em que ele, embora tardiamente, se incluía. Ferreira de Castro desenha o seu improvável Souvarine amazônico:

 

Por detrás deles surgiu, pernejando lentamente, o negro Tiago. Após o alarme, ninguém mais o vira, ninguém mais pensara nele. O clarão agonizante, iluminando-lhe de lado o rosto seco e anguloso, tornava-o mais mefistofélico, velho feiticeiro que se animara, caminhando desengonçadamente, amparado pelo seu bordão. (p. 217)

 

O adjetivo mefistofélico é mal empregado e não corresponde à imagem construída ao longo da narrativa. Tiago não passa de um pobre diabo, um espectro bêbado, simulacro de nada, mesmo a despeito do metafórico bordão a compor a figura do falso feiticeiro – símbolo de autoridade, mágica arma de divindades, eixo de transcendências. A última imagem de Tiago, ainda que em cores fortes, é apenas um esboço em cinza e cinzas.

O narrador, de novo ele, não confiando no seu confuso leitor, faz uma ponte entre a pulsão sexual de Alberto e a cólera do infeliz Tiago, buscando justificar, científica e metafisicamente, segundo os piores padrões naturalistas, a “razão do instinto”:

 

Depois do que [Alberto] vira, em si e nos outros, quando o instinto pode mais e acorda mil reacções ignoradas, mil imposições que tiranizam os próprios lúcidos e os desvairam, e os amarrotam, e os igualam aos que trazem alma primitiva, só havia a acusar a origem remota, que não fora perfeita na sua criação. Mas também ela era irresponsável e perdia-se na lenda ou na hipótese, longínqua e obscuramente. (p. 219)

  

A conclusão do narrador, no antepenúltimo parágrafo do livro, é um misto de asneira e impostura: o ser humano, criado por um Deus descuidado, é fruto de um pecado – lenda ou hipótese, longínqua e obscura. Só isso explica que os “lúcidos” e os de “alma primitiva” reajam de forma similar – como meros animais malfeitos que são. Fica subtendido que os lúcidos são Alberto e a civilização europeia; e os de alma primitiva são aqueles que continuariam na selva.  

A revolução semeada por Tiago está por acontecer. A Amazônia continua sendo saqueada – hoje, em muito mais larga escala que há cem anos – e o povo continua subjugado, em regime de inumana servidão.

 

Os 14 capítulos de A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras. 

Mas você pode obter o livro completo clicando nesta linha.

 

domingo, 27 de dezembro de 2020

sábado, 26 de dezembro de 2020

Fantasy Art - Galeria

Jia Lu.

 

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Bolero's Bar 21

Dos almas 

Zemaria Pinto


O que Deus uniu só o ser humano pode separar. Foi o que se deu conosco. O edifício de felicidade que construímos com tanto empenho e dedicação ruiu por terra, num repente, quando a sombra do ódio nos envolveu. Daquele ponto em diante, ficou impossível continuar: a desconfiança minou nossas almas, de um lado e de outro, como uma doença que, progressivamente, corroesse nossos corpos até secá-lo, aos ossos. Ela morreu para mim. Mas ficaram as boas lembranças, de antes da doença, em que a alegria não conhecia a inveja e o ciúme. Se nosso amor fora abençoado, por que, quando mais precisamos d’Ele, Deus nos abandonou?

 

Dos almas (1945), de Dom Fabián (Argentina, 1915-2001). Bolero.


No Spotify, ouça a playlist Bolero’s Bar.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

A poesia é necessária?

Ânsia múltipla

Gilka Machado (1893-1980)

 

Beija-me, Amor,
beija-me sempre, e mais, e muito mais,  

– em minha boca esperam outras bocas
os beijos deliciosos que me dás!


Beija-me ainda,
ainda mais!
Em mim sempre acharás
à tua vinda
ternuras virginais.


Beija-me mais, põe o mais cálido calor
nos beijos que me deres,
pois viva em mim a alma de todas as mulheres
que morreram sem amor!...

 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Fantasy Art - Galeria

Nasser Zadeh.

 

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Conosco e convosco

Pedro Lucas Lindoso

 

 É sempre uma alegria quando a nossa netinha Maria Luísa nos visita. Apesar das restrições sanitárias devido a pandemia, as relações familiares foram relativizadas quanto ao isolamento social. Sempre com os cuidados, naturalmente. Num arroubo de alegria exclamamos:

– É sempre uma grande felicidade quanto você está conosco!

 No que ela, no auge de seus quatro anos, pergunta de pronto:

– Vovô, o que é conosco?

Lembrei-me da missa, quando o sacerdote nos saúda, dizendo:

– O Senhor esteja convosco.

A pergunta de Maria Luísa é pertinente. A forma de tratamento vós, ou seja, a segunda pessoa do plural, tornou-se muita rara, tanto no Brasil como em Portugal. Limita-se a uso dialectal, litúrgico ou formal.

No português contemporâneo, a pessoa a quem se fala pode ser expressa pelos pronomes tu ou ainda pelo pronome de tratamento você. Maria Luísa foi ensinada a usar o senhor e a senhora, para os mais velhos. O que expressa respeito e consideração.

Aqui no Amazonas usamos muito o tratamento tu. No Sudeste tem predominado o você. No Rio grande do Sul, o tratamento por tu é dialectal. Usa-se entre familiares e amigos. Usa-se também, o respeitoso o senhor e a senhora. O gaúcho não usa muito o pronome você. Não é nem familiar nem respeitoso. Seria uma demonstração de indiferença e pode ser pejorativo.

Em Francês existe o pronome vous. Usa-se em situações formais: com desconhecidos, pessoas idosas, no ambiente de trabalho. Tem até um verbo para seu uso: o verbo vouvoyer. Os franceses se utilizam do pronome tu nas relações informais com a família, amigos, filhos e entre pessoas da mesma idade. Existe também um verbo para isso, o tutoyer.

Disse para Maria Luísa que conosco significa com a gente. É ainda complicado para ela entender o que são os pronomes oblíquos tônicos. Consultando a gramática, temos relacionados os oblíquos tônicos, na 1ª pessoa do singular (eu): mim, comigo; na 2ª pessoa do singular (tu): ti, contigo; na 1ª pessoa do plural (nós): nós, conosco; na 2ª pessoa do plural (vós): vós, convosco.

Em tempos de pandemia, lembrei-me novamente da missa e do padre. Que o Senhor esteja sempre conosco nestes dias de medo e apreensão. Conosco e convosco.

 

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 12/14

 Zemaria Pinto

 

Ainda, o Naturalismo

Uma das lendas que cercam o escritor Ferreira de Castro refere-se à sua primazia na abordagem literária das causas sociais, em língua portuguesa. De fato, há o reconhecimento por parte da crítica especializada de que seus primeiros livros antecipam alguns aspectos do Neorrealismo, em Portugal, mas sem o vincular ainda a esse movimento, que viria à luz somente na década seguinte. Massaud Moisés não deixa de apontar o papel do autor nesse processo.

 

Com o romance Gaibéus, de Alves Redol, posto em circulação nos começos de 1940, inicia-se o Neorrealismo. O seu programa de ação opõe-se frontalmente ao da Presença.[1] Desenvolvendo aspectos realistas da obra de Ferreira de Castro, visíveis já na década de 1930, os seus adeptos preconizam uma literatura engajada, de ação social, visando à transformação da sociedade com a denúncia das iniquidades sociais. (MOISÉS, 2012, p. 559)

  

Célio Pinheiro, após afirmar que “o sentido geral” de A selva “é o de um lamento laudatório”, conclui pela relevância da obra e de Emigrantes, na transição para o Neorrealismo:

 

As influências americanas, as obras do tipo das de Aquilino e de Ferreira de Castro conduzem o pensamento dos escritores para o Neorrealismo de 1940, num contraponto ao intimismo de Presença. (PINHEIRO, p. 259)

 

Distante do Neorrealismo, que faria uma literatura engajada e em sintonia com as causas populares, e até do Realismo, que, no século XIX, denunciava as mazelas da burguesia, na raiz de A selva está o anacrônico Naturalismo, cuja visão pseudocientífica reduz a humanidade a um amontoado de párias, zoomorfizando-a, enquanto a natureza é antropomorfizada.

 

Durante todo esse tempo, a selva era cárcere sem porta e enquanto as feras, reconquistada a terra nativa, por ela andavam livremente, estavam presos os homens. (p. 171)

 

Alberto é um trânsfuga, por não se reconhecer mais nas antigas ideias, mas também, sem aderir às novas, torna-se um alienado, contrariando as convicções neorrealistas.

 

“Os republicanos... Os monárquicos...” Tudo aquilo lhe soava imprevistamente a oco, longínquo e sem sentido. Arrefecera-lhe a paixão, as suas antigas ideias pareciam-lhe de tempos remotos, dum outro eu que se perdera e esfumara na lonjura. (p. 173)

 

Acrescente-se ainda que um idealismo desconexo o guia, como transparece neste diálogo com Juca Tristão:

 

– Você, então, é monárquico mesmo?

– Fui, fui.

– Ah, aderiu à República?

– Não. Hoje não me satisfaz nem uma coisa nem outra. Tenho aprendido muito nos últimos tempos. Sobretudo depois que vim para aqui.

– Então?

– Não sei. É um desejo que tenho de justiça para todos. Sem dúvida a Humanidade está longe ainda da elevação colectiva que eu sonho para ela. (p. 197)

 

Alberto vive um momento de transição ideológica – que nomeamos, páginas atrás, de humanismo pré-iluminista –, mas ignorar o que em 1919, 1920 era aquele sonho de “justiça para todos” e de “elevação coletiva para a humanidade” é outra inverossimilhança. De modo involuntário, Alberto antecipa aquela personagem de Lampedusa, para quem é preciso mudar tudo para tudo continuar como está – ou como sempre foi.[2]

Há de se lembrar que, em língua portuguesa, o pioneirismo na adoção da estética neorrealista pertence ao Brasil, identificada prosaicamente como “Geração de 30”, com A bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, secundado por O quinze (1930), de Rachel de Queiroz. Ainda na década de 1930, surgem autores de ponta, como Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos, que viriam a influenciar fortemente o neorrealismo português.

Os 14 capítulos de A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras. 

Mas você pode obter o livro completo clicando nesta linha.



[1] Referência à revista Presença (1927-1940), suporte do movimento identificado como Presencismo, caracterizado por uma “literatura viva”, de forte influência francesa e russa – Proust e Dostoiévski, por exemplo –, em oposição à “literatura livresca”, acadêmica (MOISÉS, 2012, p. 517). Essa “literatura viva”, entretanto, tinha caráter intimista e metafísico, sem qualquer relação com a realidade das ruas, que viria a ser a pedra angular do Neorrealismo. Os principais nomes do Presencismo são Miguel Torga, José Régio e Branquinho da Fonseca, além do veterano Fernando Pessoa, que pontificara no movimento chamado Orfismo, em torno da revista Orpheu (1915). Por analogia, podemos dizer que os dois movimentos constituem o Modernismo em Portugal.

[2] Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957), no romance O leopardo (1958), sobre as mudanças políticas ocorridas na Itália – especialmente, na Sicília –, entre 1860 e 1910.


domingo, 20 de dezembro de 2020

Manaus, amor e memória CDXCIV

Rua da Instalação, em 1913.

 

sábado, 19 de dezembro de 2020

Te conto em contos – inscrições abertas


Para entrar no site, clique sobre a figura.

 

Fantasy Art - Galeria

James Zar.

 

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Francisco Carlos (10/12/1960 – 17/12/2020)

 

Francisco Carlos, dramaturgo e diretor.

Bolero's Bar 20

A volta do boêmio 

Zemaria Pinto


– Amigas e amigos leais, amores da minha vida plena de amor, o bar é um templo sagrado, apropriado a orações em sussurros, não a discursos. Mas preciso dizer da minha alegria em revê-los, abraçá-los, tocar para vocês, cantar com vocês. Não faz muito tempo, saí por aquela porta, crente que uma nova etapa da minha vida começava. E era verdade. Uma vida maravilhosa, com a mulher que escolhi para envelhecer, amorosa flor, mãe dos meus filhinhos. Agora, de volta, apenas reato o fio da etapa anterior, com esta que segue sendo a minha felicidade: os meus amigos e a minha família. Porque eu não posso separá-los: eu sou vocês e sou eles. Sem eles eu não sou nada e não sou nada sem vocês. Dó maior, maestro! 

 

A volta do boêmio (1957), de Adelino Moreira (Portugal, 1918-2002). Samba-canção.

No Spotify, ouça a playlist Bolero’s Bar.


quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

A poesia é necessária?

Mar e vento

Luciano Maia

 

A minha nau a um tempo derivou –

foi quando conheci da noite o mar.

Não me salvou a bússola: em voo

uma ave azul as asas foi me dar.

A mostrar-me o horizonte ao céu se alçou

e por suas asas consegui me alçar

por sobre o vendaval que arrebentou

o cordame das velas pelo ar.

No céu diviso luzes e por vê-las

navega a minha nau um mar isento

de noites tormentosas. Singra pelas

ondas sem pressa e sem adiamento.

Segue o cardume alado das estrelas

pela mão oceânica do vento.


quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Fantasy Art - Galeria

Cleopatra.
Laura Sava.

 

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Themis – a esquecida

Pedro Lucas Lindoso

 

Dia 8 de dezembro é uma data significativa para os amazonenses, principalmente para os católicos. Comemora-se o dia da Imaculada Conceição, padroeira do Amazonas. Meus saudosos pais, José e Amine Daou Lindoso se casaram nesse dia. Minha esposa Vera e eu também. É uma data bastante significativa.

No dia 8 de dezembro também se comemora o dia da Justiça. Representada pela deusa Themis. No nosso antigo e histórico Tribunal de Justiça, no topo do prédio, uma esplendorosa estátua da deusa Themis, contempla, sem vendas, os amazonenses que estão fazendo as coisas certas.

Em homenagem a essa poderosa deusa e ao seu dia recentemente comemorado, estou indicando a leitura do livro Justiça: o que é fazer a coisa certa?, de Michael Sandel. Nessa obra, o emérito professor de Harvard trabalha o pensamento e a Ética exposta pelos filósofos Aristóteles, Immanuel Kant e John Rawls.

Sandel trata de questões marcantes. Com enfoque na Ética, trabalha temas sobre moral e lei: no que consiste o dever dos indivíduos de tratar uns aos outros, como a lei deve ser, e como a sociedade deve se organizar. O meu conceito de justiça bate com o de Sandel. Buscar a felicidade para o maior número de pessoas. Respeitar a liberdade de escolha. E por fim, cultivar a virtude e preocupar-se com o bem comum.

E a representação da justiça em Themis? Enquanto a nossa deusa Themis apresenta-se sem vendas, no topo do antigo Palácio da Justiça, a mesma deusa encontra-se devidamente vendada na Praça dos Três Poderes em Brasília, em frente ao Supremo Tribunal Federal. Muitos explicam que os olhos vendados representam a imparcialidade. Seria a justiça amazonense parcial? Em Frankfurt, na Alemanha, encontrei uma Themis sem venda exposta em praça pública. O direito alemão é paradigma para muitos ordenamentos, inclusive o nosso.  E então?

Precisamos aproveitar o 8 de dezembro para nos exercitar. É necessário se fazer um exame crítico sobre nossas próprias visões da justiça. Assim, poderemos compreender melhor o que é ser justo. Com olhos vendados ou arregalados é primordial se aprender, como cidadão, a fazer a coisa certa, e com Ética.

Dia 8 foi também o Dia Nacional da Família. Bela data. A família é a base da sociedade e de fundamental importância. Alguns, em nome da suposta família tradicional, têm cometido injustiças. Mas não podemos deixar Themis esquecida. Meditemos.

Themis, no alto do Palácio da Justiça, em Manaus, representada sem venda 
e com a balança pendendo à esquerda...


segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 11/14

Zemaria Pinto

 

Aspas, para que vos quero?

Até há algumas linhas, creditamos ao ente narrador todas as falhas da narrativa, considerando-se que o estatuto da ficção permite que isolemos numa bolha todo o universo da diegese. Entretanto, o autor não está isento de falhas, inclusive na construção de um mau narrador. Além de um narrador que mete os pés pelas mãos por óbvia incapacidade demiúrgica, que o antecede, em A selva comete-se uma falha técnica que só pode ser creditada ao autor: o desrespeito às convenções mais elementares da narrativa, na separação entre discurso direto e indireto. Um erro que se repete em dezenas de ocorrências similares. Ressalve-se que a edição utilizada traz incrustrada no seu pórtico a legenda “Edição Definitiva”, o que nos deixa à vontade para descartar possíveis falhas editoriais.

O que convencionamos chamar de discurso – direto, indireto ou indireto livre – é nada menos que a prosaica fala. Numa narrativa, o discurso direto, a fala de uma personagem, será identificado por um verbo dicendi ou por recursos gráficos, como aspas ou travessão. No discurso indireto, o narrador incorpora à sua fala palavras ou frases da personagem.  Vejamos um exemplo simples de discurso direto, onde o verbo e o recurso gráfico são usados ao mesmo tempo:

 

– Que terá acontecido? –, perguntou Alberto. (p. 128)

 

Agora, um exemplo de confusão entre o discurso direto e o indireto:

 

“Se ela soubesse o que ele sofria agora, morreria de desgosto!” (p. 80)

 

Quem está falando é a personagem Alberto, com exclamação e tudo, não é o narrador – como se supõe pela presença do pronome “ele” –, mas as aspas apontam para Alberto. Não houvessem aspas, seria um caso simples de discurso indireto livre.

Vejamos outro exemplo:

 

Alberto desceu a escada e caminhou vagarosamente até à margem do rio. Sufocava. “Miseráveis! Infames! E se ele fosse lá? Se arrombasse a porta e libertasse os cinco homens?” (p. 211)

 

O parágrafo divide-se em duas partes: uma, do narrador, sem aspas, e outra, da personagem, entre aspas. Ocorre que esta se subdivide em duas partes também:

 

“Miseráveis! Infames!”

“E se ele fosse lá? Se arrombasse a porta e libertasse os cinco homens?”

 

Quem diz a primeira parte é Alberto. Para continuar a segunda parte, o pronome “ele” teria que ser substituído por “eu”. Novamente, se não houvessem aspas, diríamos que era discurso indireto livre. Mas as aspas estão lá. Seria um mero cochilo, a que qualquer autor está sujeito, mas quando isso se multiplica às dezenas deve-se dar outro nome.

 

“Bastar-lhe-ia a passagem para Manaus e de lá para Lisboa. Mesmo em terceira classe, seria já felicidade, pois a ideia do regresso tudo absolvia. E em Lisboa não morreria, certamente, de fome. Daria explicações, faria o mais que fosse preciso, para não sobrecarregar a mãe. Havia de viver e concluir o curso, que outros, com menos possibilidades ainda, também viviam e se formavam.” (p. 174)

 

O pensamento é de Alberto, mas está longe de configurar-se como fala, no sentido estrito da palavra. Para Saussure, a fala “é sempre individual e dela o indivíduo é sempre senhor”, enfatizando:

 

A fala é um ato individual de vontade e inteligência, no qual convém distinguir: 1º – as combinações pelas quais o falante realiza o código da língua no propósito de exprimir seu pensamento pessoal; 2º – o mecanismo psicofísico que lhe permite exteriorizar essas combinações. (SAUSSURE, p. 45)

 

O “mecanismo psicofísico” da personagem Alberto se confunde de tal maneira com o narrador que parece trair uma inegável vontade do autor em fundir-se com ambos.

 

Os 14 capítulos de A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras. 

Mas você pode obter o livro completo clicando nesta linha.

 

domingo, 13 de dezembro de 2020

sábado, 12 de dezembro de 2020

Fantasy Art - Galeria

Karol Bak.

 

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Bolero's Bar 19

Historia de un amor 

Zemaria Pinto


Estar aqui, no meio de tanta gente alegre ou triste e me sentir sozinho como nunca estive, não existem palavras para expressar. É uma dor vazia. Uma sensação de queda. As mãos inúteis não seguram, sequer tocam. É um pesadelo em que me vejo correndo na escuridão, sem saber para onde vou nem do que fujo, e, de repente, a queda, o vazio, o nada... Dizem que a rotina corrompe o amor. Para nós, ao contrário, o amor era uma suave liturgia: desde o acordar até o adormecer, e todos os pequenos gestos, as mais corriqueiras ações, os atos mais banais, tudo era parte do sagrado ritual cotidiano, onde o bem e o mal se encontravam na mais perfeita harmonia. A luz que dela emanava e iluminava o nosso caminho apagou-se e me jogou nas trevas dessa existência sem sentido.

 

Historia de um amor (1955), de Carlos Eleta Almarán (Panamá, 1918-2013). Bolero.

No Spotify, ouça a playlist Bolero’s Bar.

 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Severiano Mário Porto (19/2/1930 – 10/12/2020)

 

O arquiteto da floresta.

A poesia é necessária?

Sísifo

José Paulo Paes (1926-1998)

 

hoje agora me decido

depois amanhã hesito

o dia detém meu passo

a noite cala meu grito

 

deuses onde? céu existe?

céu existe? deuses onde?

um eco que faz perguntas

um espelho que responde

 

e eu sísifo tardotriste

a tilintar as correntes

de dilemas renitentes

 

lá me vou sem vez nem voz

rolar as pedras dos mudos

pela montanha dos sós

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Fantasy Art - Galeria

Jeff Wack.

 

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Idalina – uma pessoa de fé

Pedro Lucas Lindoso

 

Liguei para titia para cumprimentá-la pelo seu aniversário. Estava muito triste. Sem poder comemorar em face da pandemia.  Ela insiste que tem só 70 anos. Uma pessoa que teve um irmão que combateu na FEB – Força Expedicionária Brasileira, na Itália durante a II Guerra, não tem menos que 90 anos.

Disse-me que quando o irmão foi para a guerra, tornou-se devota de Santo Expedito. Achei estranho. Ele não é o santo de causas urgentes e impossíveis? Então titia me explicou:

– É o santo que protege viajante, estudante e militares. Meu irmão era tudo isso na época. E voltou da guerra vivo, Graças a Deus e a Santo Expedito.

O Santo Google me informa que Santo Expedito foi um comandante Romano. Porta uma cruz com a palavra Hodie, que é “hoje”, em latim. Seu pé direito pisa sobre um corvo, que grita a palavra Cras, que significa “amanhã”. A grande mensagem de Santo Expedito é: não deixe para amanhã aquilo que deve ser feito hoje, não procrastine!

– Tia Idalina também é devota de São Judas e Santo Antônio. Mas é segredo porque Expedito pode ficar com ciúmes. Coisas de tia Idalina. A única pessoa, carola e devota, que recusou o convite para ser ministra da eucaristia. O motivo da recusa é que aprendeu no Catecismo que somente o sacerdote pode pegar na hóstia consagrada.

Idalina só vai à missa e só comunga em jejum. Ainda usa véu e vai à igreja somente de vestido com mangas. Sente saudades da missa rezada em latim. No seu tempo, mulher não se aproximava do altar. Nunca ousou passar da balaustrada. A pequena grade que separa o altar, hoje só existente nas igrejas mais antigas.

Com a pandemia, os sacerdotes têm evitado dar a comunhão na boca dos fiéis. Idalina se recusa a tocar na hóstia consagrada e não tem comungado. Expliquei a ela que a igreja se modernizou depois do Concílio Vaticano II.

Ela rebate dizendo que seus parâmetros de fé e do exercício de sua religiosidade são os estabelecidos no Concílio de Trento. O Concílio de Trento foi realizado nos meados do século 16 com o objetivo de assegurar a unidade da fé e a disciplina eclesiástica. Aconteceu no contexto da Reforma da Igreja Católica e da reação à divisão então vivida na Europa, devido à Reforma Protestante. Os sacerdotes mais antigos e conservadores insistem em adotar princípios e dogmas já superados. Entre os leigos só conheço mesmo a tia Idalina. Ela não gosta de ser chamada de carola, beata ou papa-hóstia. Diz ser desrespeitoso.

Idalina é uma pessoa de muita fé. Acredita piamente que essa pandemia vai acabar logo. Amém!