Zemaria Pinto
“Poeta não se define: é um ser à parte.” Dividido entre “Sonetos” e “Poemas”, O Sétimo Dia traz um Jorge Tufic peregrino, desde Sena Madureira a Salamanca, passando pelo Cairo, por Alcântara, Machu Picchu, Nam Madol, Atlanta, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Lisboa e Singapura. Além, claro, de Manaus e Fortaleza. No soneto “Périplo”, talvez a chave dessa busca incessante, ele escreve:
Cidades inventei por toda parte
quando o tédio mostrou-me o seu reverso:
nos sítios da miséria, o controverso
lixo da solidão que se fez arte.
Perdi a mala, o sonho, o meu tabaco.
Lavrando rochas, decepando luas,
tudo me enoja, tudo me enche o saco.
Sinto falta de Beirute, mas o Líbano também se faz presente no “Soneto à Beringela”, vegetativa musa sobre a mesa; no “Soneto Árabe” – Amada os cedros voam. Pedras cantam / nos âmbares da terra. –, nos oásis, nas tâmaras, nos sândalos, nos desertos, nas tendas recorrentes, e, muito especialmente, no “Soneto para Kahlil Gibran”:
Letra por letra a doce voz do mestre
vai-se passando para o coração.
O ser generoso cultiva a amizade e cultua a arte, alegorizada no “sétimo dia” genesíaco. Assim, Tufic contempla os amigos, como, entre tantos, Nilton Maciel, Almir Diniz, Marco Luchesi e a amada Izabel, e faz arte sobre arte ao dizer daqueles amigos que lhe preenchem a solidão, como Van Gogh, Borges, Huidobro, Rembrandt, Cioran, Bandeira, Kurosawa e o distante Van Pereira. Mas é o cachimbo, outra recorrência, o melhor companheiro da solidão, quando o poeta descobre “a geometria do incativo e momentâneo brilho do que passa.” São momentos de sonho, lições simples, de há muito cristalizadas na memória:
Não sei dizer passarinho
sem dizer passarinhos,
tal como ensinava
a senhora de meus dias.
Ela dizia de um modo
que se via e se ouvia
o ser e o canto
a pluma e o vento;
e, por detrás de tudo,
o canto do encanto
tanto do pássaro
como dos passarinhos.
A’sso-fir, em árabe
são pássaros de pássaro
e pássaro de pássaros.
Tufic nos dá lições de simplicidade e plasticidade: simplicidade plástica e plasticidade simples – pois essa é a essência de uma poesia que, sem pretensão de inventar, está sempre a renovar-se. Ouçam essa dúzia de versos colhidos a esmo:
Eu tive um lar, talvez uma varanda
com árvores de fogo nos telhados;
Quantos metais se fundem nessa chama
Versos-medula plangem neste abraço
junta-se ao nosso o eco de outros nadas.
de luz & sobra paz & antemanhã
Late um cão neste verso, late late
Todos os mortos pulsam nas raízes
Palavras há também sobre os destroços
da noite plena como é pleno o sexo
De qualquer solidão brota a poesia.
para que eu chova estrelas, vento claro.
O ser generoso tem o ânimo elevado, ainda que sujeito a angústias episódicas, especialmente ao tédio dos domingos – porque o sétimo dia, meus amigos, é o sábado; o domingo é apenas o dia da “ressaca vital”, o dia da criatura sem o criador:
Como sugar
deste sol
que tudo resseca
as tâmaras vitalícias
do apogeu
e da
alegria?
Eu dizia que, a despeito dos domingos, o humor do poeta mantém-se vivo, seja olhando velhos álbuns de fotografias, seja num “anúncio” que beira o nonsense:
Aluga-se um velho
que já não serve pra nada.
Garante-se, porém,
que ainda olha e vê.
E enquanto olha e vê
cachimba
os pedaços da noite.
“Poeta não se define: é um ser à parte.” O nosso querido confrade Alencar e Silva já percebera isso no ensaio Jorge Tufic: as tendas do caminho (lançado aqui, neste salão, a 23 de março do ano passado). Diz o Alencar: “vem o Poeta construindo e diversificando os seus caminhos, percorrendo e iluminando as suas sendas e cumprindo, enfim, o itinerário que se traçara ao adentrar as terras-do-sem-fim da poesia.” Esses caminhos que se bifurcam e se multiplicam são os caminhos da inquietação que só o verdadeiro artista experimenta – mesmo quando em estado de contemplação, mesmo quando apenas cachimba em seu cachimbo, feito “não de roseira, que a rosa é o fumo, mas do aroma e da nuvem passageira.”
Eu, que não gosto de adjetivos, pinço deste livro um soneto magnífico, que, se não fosse pela obrigação ritual da apresentação que me foi pedida – e pelo orgulho-narciso de assomar a esta tribuna –, poderia ter lido logo no início desta fala e dado por encerrada minha participação, pois se trata de uma síntese de tudo o que falei até aqui, uma autêntica Poética – uma definição viva do que é a poesia, o poeta, o fazer poético:
Poeta não se define: é um ser à parte.
De homem se veste, de animal caminha,
mas algo nele de anjo se avizinha
quando em fatias brancas se reparte.
Cheira o pão de seus versos; faz-se arte
pela dor que humaniza e que espezinha;
não a dor do egoísmo, a dor mesquinha,
mas a dor que se empluma no estandarte.
Pode ser o domingo que se anula,
um galgo que tropeça, o lenço esgarço
que, sendo de Marília, ainda tremula.
Para si mesmo estranho ele se enigma,
avesso ao paletó, caderno esparso,
nada o liberta, nunca, desse estigma.
Muito obrigado.