domingo, 31 de janeiro de 2021
sábado, 30 de janeiro de 2021
sexta-feira, 29 de janeiro de 2021
Bolero's Bar 25
Siempre en mi corazón
Zemaria Pinto
A distância, o tempo, a solidão não servem para medir a ausência. Eu sei que vocês vão rir, mas, acreditem, ele está presente o tempo todo, não sei se no meu coração ou na minha mente. Ou na minha vontade. No meu desejo que arde. Nas memórias doces e amargas, uma infinidade de véus que vão revelando lembranças apagadas. É como se ele tivesse ido para a guerra, para a linha de frente, para a certeza da morte. Mas eu devo esperá-lo. Enquanto ele estiver vivo, enquanto o inimigo não o fuzilar, eu devo esperá-lo.
Siempre en
mi corazón (1941),
de Ernesto Lecuona (Cuba, 1895-1963). Bolero.
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quinta-feira, 28 de janeiro de 2021
A poesia é necessária?
Makunaíma recria o mundo
Jorge Tufic (1930-2018)
Depois das águas grandes,
o mundo ficou seco e oco.
Pedaços de carvão ficaram rolando no solo,
como ecos de pedras,
vozes de rio, gemidos de fogo.
Então, Makunaíma acordou.
E do barro de sua vigília
retirou aquele homem, sua forma de barro,
seu peito cavado.
No outro lado de Roraima
seus feitos continuaram.
Homens e mulheres foram sendo mudados
em rochas, antas e javalis.
Perto de Koimelemong, um cervo
mergulha na terra a cabeça-de-pedra.
Sobre uma grande onda na Serra de Aruaiang,
pousa uma cesta de luar.
A Serra do Mel parece conduzir
um silêncio de aragem
e vai sem ter vindo.
Muitas dessas pedras se elevam
no país dos ingleses, assim como peixes
e uma cesta que imita, por baixo,
um perfil de mulher.
A savana da Serra de Mairani
são braços, pernas e cabeça
de um ladrão de urucu.
Aí também se entreabrem umas nádegas de pedra.
Cachoeiras acima,
o movimento dos peixes adentra na rocha.
Uma pedra chamada Mutum
canta como este
quando alguém vai morrer.
Por um oco de salto,
vespas gigantes construíram suas casas
e zumbem na base mais profunda da serra.
Aqui fora, Makunaíma dá os últimos retoques
nos bichos domésticos.
Depois disso ele deita na terra molhada
e se deixa esvair em milhares de seres
que nadam para o rio.
quarta-feira, 27 de janeiro de 2021
terça-feira, 26 de janeiro de 2021
Ordem natural e tragédia em Shakespeare
Pedro Lucas Lindoso
Por que
acontecem as tragédias? Desde muito jovem me faço essa pergunta. Tive o
privilégio de cursar Letras, mais especificamente Língua e Literatura Inglesa,
na UnB, a prestigiada Universidade de Brasília. Fui aluno de Lucia Sander,
especialista em Shakespeare e mestra em nos fazer compreender o sentido das
tragédias shakespearianas.
Lucia
Sander sempre enfatizava, antes de estudarmos determinado texto trágico de
Shakespeare, que jamais podíamos nos esquecer da visão Medieval hierárquica do
mundo. O homem medieval acreditava que Deus havia fixado para cada um de nós
uma cadeia de valores. Um lugar específico. Um sistema de hierarquias. Essas
hierarquias seriam muitas e variadas.
Todavia,
lembro-me que essas hierarquias se correspondiam entre si. Deus, Sol, Lua,
Terra, por exemplo. Em tudo havia uma gradação. Família, pai, filhos. Deus,
reis e súditos. Ordens que deveriam ser temidas e respeitadas.
A
crença vigente naqueles tempos era a de que Deus havia criado o universo com
esse sistema de hierarquias múltiplas e correspondentes entre si. Nesse sentido,
hierarquia é uma gradação dos seres, uma ordem que deve ser temida. Assim, tudo
que compromete essa hierarquia traz instabilidade e caos. Aí temos as
tragédias.
Em Romeu
e Julieta verifica-se que os amantes desafiaram essa ordem. Ao perderem o
equilíbrio moral, acabam ocasionando a própria morte.
O tema
recorrente de Rei Lear gira em torno das leis naturais desafiadas e refletidas
nas relações interpessoais e familiares dele com suas filhas e as outras
pessoas ao seu redor. A consequência? Tragédia.
Macbeth,
é trágico na pequenez de sua ambição, aflorada com profecia de bruxas. Elas
predizem que ele será rei. De soldado valoroso e fiel passa a cometer uma série
de atrocidades e assassinatos em busca incessante pelo alcance do objeto
desejado: a coroa.
Contudo,
Hamlet, a mais famosa das tragédias de Shakespeare, é calcada na vingança. O
Rei Cláudio após assassinar o rei, seu próprio irmão, inverteu a ordem natural
da vida.
E o que
de tão trágico estaria acontecendo nesses tempos? Um amigo militar me explicou:
– A
ordem natural das coisas, como sempre e desde os velhos tempos, é, de fato,
respeitar a hierarquia. General não bate continência para coronel. Muito menos
para capitão.
segunda-feira, 25 de janeiro de 2021
Carlos Araújo ( 10/12/1966 – 25/01/2021)
Lançamento do primeiro POETATU, em 1995 (eu acho). Da esquerda para a direita: Carlos Araújo, Marco Gomes, Anibal Beça, Tenório e Aristides Telles e Zemaria Pinto. |
Biótico
Carlos Araújo
fosse
descrever minha vida
seria assim:
poeta curumim
anjo luciferino
doce menino
nauta de
barquinhos de papel
palhaço que
chora emocionado
pássaro
ferido que caiu do céu
se fosse
prever minha vida
seria assim:
humus de sentimentos
pão dos
filhos da terra
ciclo que não
chega ao fim
domingo, 24 de janeiro de 2021
sábado, 23 de janeiro de 2021
quinta-feira, 21 de janeiro de 2021
A poesia é necessária?
Não posso adiar a palavra
Helder
Proença
Quando te propus
um amanhecer diferente
a terra ainda fervia em lavas
e os homens ainda eram bestas ferozes
Quando te propus
a conquista do futuro
vazias eram as mãos
negras como breu o silêncio da resposta
Quando te propus
o acumular de forças
o sangue nómada e igual
coagulava em todos os cárceres
em toda a terra
e em todos os homens
Quando te propus
um amanhecer diferente, amor
a eternidade voraz das nossas dores
era igual a “Deus Pai todo poderoso criador dos céus e da terra”
Quando te propus
olhos secos, pés na terra, e convicção firme
surdos eram os céus e a terra
receptivos as balas e punhais
as amaldiçoavam cada existência nossa
Quando te propus
abraçar a história, amor
tantas foram as esperanças comidas
insondável a fé forjada
no extenso breu de canto e morte
Foi assim que te propus
no circuito de lágrimas e fogo, Povo meu
o hastear eterno do nosso sangue
para um amanhecer diferente!
quarta-feira, 20 de janeiro de 2021
terça-feira, 19 de janeiro de 2021
Faceluto
Pedro
Lucas Lindoso
Uma das
primeiras lições que o estudante de Direito aprende, é o aforismo “ubi
societas, ibi jus”. Expressão também usada “Ubi homo ibi societas; ubi
societas, ibi jus”: “Onde há homem, há sociedade; onde há sociedade, há Direito”.
Para a
famosa antropóloga americana, já falecida, Margaret Mead a primeira evidência
de civilização foi um fêmur fraturado de 15.000 anos encontrado em um sítio
arqueológico. Leva-se em média cerca de seis semanas de descanso para a
cicatrização de uma fratura de fêmur.
Alguém
cuidou dessa pessoa. O osso quebrado foi curado. Talvez aí tenha também nascido
o Direito. A vida é um direito garantido por lei. O direito à vida é o mais
importante e mais discutido dentre todos os direitos abarcados pelo Código
Civil Brasileiro e pela Constituição Federal.
Algum homo
sapiens cuidou de seu semelhante, levando-o provavelmente para uma caverna
e dando-lhe comida e assistência até sua recuperação. Deve ter sido um líder,
um chefe ou um pai de família.
O
processo civilizatório evoluiu e o homem, deixando de ser nômade, instala-se em
pequenas comunidades. Depois vieram as vilas, cidades, as metrópoles e, hoje,
as megalópoles.
As
pandemias, como essa do coronavírus, ficavam restritas às pequenas comunidades,
depois aos países e continentes. Até pouco tempo, a distância entre os países
era medida em dias, meses e até anos. Meu avô libanês Daou emigrou para o
Brasil com três irmãos no início do século passado. A única irmã deles, tia
Amine emigrou para a longínqua Nova Zelândia com o marido. Na década de 1930,
uma carta de Manaus para Auckland, via Rio de Janeiro e Londres, levava de seis
meses até um ano.
Hoje
falamos com os primos neozelandeses por e-mail e facebook. A comunicação virou
instantânea. Os vírus e as epidemias também viajam com rapidez. Jatos de Paris
ao Rio. De Nova Iorque a Pequim. De Londres a Sidney, varrem os céus levando
passageiros, alegrias, tristezas e toda espécie de vírus e enfermidades.
Essa
pandemia tem ceifado muitas vidas. Como o primitivo homem que fraturou o fêmur,
todos temos direito à saúde e à vida. Hoje o problema é mundial. Precisamos de
líderes para cuidar não só de uma perna, mas de milhões de infectados por esse
terrível vírus.
Quanto
ao Facebook, tenho evitado abri-lo. Há os amigos dos amigos e conhecidos
postando notícias de luto e perdas diariamente. Facebook virou faceluto. Xô corona.
segunda-feira, 18 de janeiro de 2021
7 dias cortando as pontas dos dedos - 4a. edição
Há dois
anos demos início à veiculação do e-zine “7 dias cortando as pontas dos dedos”.
Contendo poemas, contos, charges, quadrinhos, entre outras formas de expressão
de combate ao avanço do fascismo no país. E hoje chegamos ao pior momento do
governo genocida, afetando gravemente o estado do Amazonas. E aqui estamos
novamente. Estamos no front! Junte-se a nós!
Solicite o regulamento: 7dias.cortando.aponta.dosdedos@gmail.com
domingo, 17 de janeiro de 2021
Leituras Compartilhadas: O amante das amazonas, de Rogel Samuel
Horário de Brasília. Para assistir ao vivo, acesse o link no Portal Entretextos: https://www.portalentretextos.com.br/ |
sábado, 16 de janeiro de 2021
sexta-feira, 15 de janeiro de 2021
Bolero's Bar 24
Alguém me disse
Zemaria Pinto
É
engraçado o quanto o sofrimento atrai amigos; não apenas os velhos amigos, mas
novos, que aparecem como insetos depois da chuva. Pouco me importa! Pouco me
importa que estejas com outro ou com outros. Se estás feliz, muito bem! Ótimo! A
vida segue. O quer que eu diga agora parecerá mágoa. E é mágoa! Mentiste, me
enganaste, me traíste! E acham que me consolam vindo me dizer que te viram, com
quem te viram, onde te viram. Merda! É mais um trouxa que vai cair na tua lábia
de juras de amor eterno, um novo começo, agora é sério etc. etc. etc. Não
demora muito e o idiota vai estar aqui ou em outro bar, querendo morrer afogado
em um copo. Centenas, milhares, milhões de copos, não aplacarão a dor de ser
descartado.
Alguém me
disse (1960), de
Evaldo Gouveia (Iguatu-CE, 1928-2020) e Jair Amorim (Santa Leopoldina-ES,
1915-1993). Bolero.
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quinta-feira, 14 de janeiro de 2021
A poesia é necessária?
Negra!
Joaquim
Cordeiro da Mata (1857-1894)
I
Negra!
negra! como a noite
d’uma
horrível tempestade,
mas,
linda, mimosa e bela,
como
a mais gentil beldade!
Negra!
negra! como a asa
do
corvo mais negro e escuro,
mas,
tendo nos claros olhos,
o
olhar mais límpido e puro!
Negra!
negra! como o ébano,
sedutora
como Fedra,
possuindo
as celsas formas,
em
que a boa graça medra!
Negra!
negra!... mas tão linda
co’os
seus dentes de marfim;
que
quando os lábios entreabre,
não
sei o que sinto em mim!...
II
Só,
negra, como te vejo,
eu
sinto nos seios d’alma
arder-me
forte desejo,
desejo
que nada acalma.
se
te roubou este clima
do
homem a cor primeva;
branca
que ao mundo viesses,
serias
das filhas d’Eva
em
beleza, ó negra, a prima!...
gerou-te
em agro torrão;
S’elevar-te
ao sexo frágil
temeu
o rei da criação;
é
qu’és, ó negra criatura,
a
deusa da formosura!...
quarta-feira, 13 de janeiro de 2021
terça-feira, 12 de janeiro de 2021
O afeto em tempos de pandemia
Pedro Lucas Lindoso
Uma das
condições de felicidade está na demonstração de afeto. Abraços, beijos e outros
gestos de carinho podem transmitir paz, tranquilidade, confiança. Podem até nos
curar.
Fiquei
intrigado com cena de um seriado sobre a família real britânica. A falecida
princesa Diana pede uma audiência com sua sogra, a rainha Elizabeth II. Foi
pedir apoio, orientação e afeto. Seu casamento estava em crise. A rainha foi
extremamente fria. Ao final do encontro, a soberana levanta-se, como indicando
que a conversa se encerrava ali. De repente, Diana se aproxima da sogra e lhe
dá um abraço. A rainha parece ter ficado chocada. Se desvencilha da nora e sai
da sala.
Sabe-se
que os britânicos sempre mantiveram distanciamento social. Comum em muitos
países europeus e até nos Estados Unidos. Fiquei impressionado com a cena. Será
que eles não se abraçam? Mesmo na intimidade da família? O protocolo real
proíbe que o comum dos mortais toque nos membros da realeza. Mas não sabia que
a regra valia entre eles.
Aqui em
Manaus algumas pessoas conversam se tocando. Tia Idalina, por exemplo. Saiu de
Manaus, mas Manaus não saiu dela. Ajeita meu colarinho. Pega no meu braço, na
minha mão. Abotoa o botão de minha camisa polo, que uso desabotoada. Sou seu
sobrinho, é certo. Mas faz com qualquer um com quem tenha um pouco de
intimidade.
É
espantoso que o coronavírus tenha se espalhado tão fortemente em alguns países
como a Inglaterra. Desde sempre e antes da pandemia, os ingleses conversam no
mínimo mantendo um metro de distância entre si.
A quantidade
“certa” de abraços e beijos me parece uma necessidade para sermos felizes.
Desde que mutuamente consentidos e com as pessoas certas. Não é crível que se
vá por aí distribuindo abraços e beijos. Também devemos ensinar as crianças que
não permitam que qualquer pessoa as toquem.
Os
maoris são os povos nativos da Nova Zelândia, um país colonizado por ingleses.
Tenho parentes por lá. Há um cumprimento de tradição Maori chamado de hongi. As
pessoas encostam suas testas e esfregam a ponta dos narizes juntas. O ato é
conhecido como “respiro de vida” e acredita-se que tenha vindo dos deuses.
Essa
prática deve ter dificultado muito a integração do colonizador inglês com os
nativos neozelandeses. Ou não! Por lá a pandemia foi controlada com sucesso.
O fato
é que a pandemia e a quarentena nos forçaram a evitar e distribuir nossos
gestos de afeto. Todos nós e as pessoas que amamos merecem sentir os efeitos
positivos de nosso toque. Xô corona!
segunda-feira, 11 de janeiro de 2021
domingo, 10 de janeiro de 2021
sábado, 9 de janeiro de 2021
sexta-feira, 8 de janeiro de 2021
Bolero's Bar 23
El reloj
Zemaria Pinto
As
horas passam como cavalos enlouquecidos, sob as sombras da noite. Eu conto
cada segundo marcado, avançando ao encontro da manhã, quando ela irá embora,
construir um novo futuro, um outro destino. Se eu pudesse parar o tempo, não o
tempo dos relógios, mas o tempo das vidas, a manhã não chegaria jamais e a
noite seria para sempre. Bobagem. O tempo é uma ilusão. O relógio é uma ilusão.
Eu estou aqui, despedaçado, e ela está lá, dormindo sem remorsos. Mas o sol é
concreto. Quando a manhã chegar, terei a solidão por companhia e essa
indescritível dor me dilacerando a vontade.
El reloj (1957), de Roberto Cantoral (México,
1935-2010). Bolero.
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quinta-feira, 7 de janeiro de 2021
A poesia é necessária?
Platônica
Tenório Telles
Para Marcos Frederico
o pássaro da poesia
[línguaprateada]
incendeia a cortina
do mundo:
sombras deixam
o casulo e
v o a m
em busca de luz
o coração em trevas
ful/gura e flor/esce
como um sol originário
e inexplicável
quarta-feira, 6 de janeiro de 2021
segunda-feira, 4 de janeiro de 2021
A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 14/14
Zemaria Pinto
Verdade e literatura
O romance de Ferreira de Castro sempre
foi lido com complacência, apontando-se-lhe, com merecida festa, os poucos acertos,
e contornando-se, com indispensáveis contorcionismos retóricos, os muitos erros.
O maior acerto está onde encontramos as maiores falhas: no caráter documental
da narrativa. Apontamos, e não vamos repeti-las, as incoerências entre a trama
encabeçada por Alberto e os números da vida real, entre 1919 e 1921, período em
que Alberto teria ficado no Paraíso. Mas o que sobra de acerto é a denúncia do
escravismo e das condições subumanas a que eram submetidos os seringueiros, que
já estava, com maior contundência, em um livro publicado seis anos antes: La
vorágine, do colombiano José Eustasio Rivera (1888-1928). A mesma Amazônia,
os mesmos seringueiros, os mesmos vis exploradores. Mas a comparação termina
por aqui, porque não encontramos nenhuma evidência de que o autor português
lera o colombiano.
Um outro acerto de Ferreira de Castro é
quanto à linguagem. Ainda que atrelado ao Naturalismo, ele já pratica a
linguagem que seria corrente no Neorrealismo: desprovida de ornamentos, simples,
objetiva, descarnada – tal como a queriam os modernistas.
Quanto às falhas, apontadas
minuciosamente ao longo deste trabalho, podem ser identificadas em dois grupos.
No que diz respeito à organicidade da trama, demostramos a inverossimilhança do
protagonista e o descaso com que o autor trata os números que deveriam embasar
o realismo de sua narrativa, transformando as cores fortes de um possível documentário
ficcional em uma ficção inverossímil, de cores desbotadas. O segundo grupo é o
da estrutura narrativa, com o abuso de clichês e exploração do exotismo, além
dos incontáveis disparates anotados, aos quais se ajunta o descaso com as
convenções mais elementares da narrativa ficcional.
Noventa anos passados, A selva
ainda é a principal referência na prosa de ficção que trata do ciclo econômico
da borracha, pois pouco se acrescentou sobre esse tema, no gênero: Beiradão
(1958), de Álvaro Maia, e O amante das Amazonas (1992), de Rogel Samuel.
Não temo, pelas suas qualidades intrínsecas, acrescentar a essa parca lista um
poema de esquecido autor amazonense, anterior ao romance português: A Uiara
(1922), de Octavio Sarmento (1879-1926).
A Uiara é um poema narrativo, com 978 versos
decassílabos e esquema rímico irregular, dividido em sete capítulos, que
mostram a jornada do cearense Militão, uma alegoria dos milhares de nordestinos
que, como dissemos, eram recrutados para suprir a mão de obra nativa,
insuficiente para atender à demanda dos seringais.
Tecnicamente, um romance, o narrador –
limitado, pois conta “de ouvir contar” – acompanha Militão fugindo da
implacável seca nordestina, com mulher e filha, que morrem em meio da viagem. Na
sequência, carregando no cromatismo, descreve a viagem rumo ao seringal; em
seguida, discorre sobre o lendário amazônico, para, enfim, deter-se no dia a
dia do solitário Militão. Embora sem definir datas, presume-se que os
acontecimentos se passem antes da queda nos preços e na demanda da borracha.
Mas não é a questão social-financeira que está em jogo. Octavio Sarmento
constrói sua personagem lentamente, forjando o estofo psicológico de Militão e
concluindo, freudianamente, que a Uiara é a representação do seu desejo sexual
reprimido.
Embora, por vezes, exagerando nas cores,
A Uiara é um poema sóbrio, antecipador de toda a literatura sobre o
período. O seu esquecimento se deu por jamais ter merecido uma edição em livro,
posto que a publicação, em 7 de dezembro de 1922, quando se comemorava o
centenário da Independência, deu-se em um jornal: o Diário Official. No
entender de Mário Ypiranga Monteiro, A Uiara não recebeu “o bafejo da
crítica honesta do tempo” (p. 159). Para uma literatura dividida entre a Grécia
clássica e a França do XIX, A Uiara, tratando de nordestinos miseráveis e
paisagens selvagens, era um incômodo. Não resisto ao paralelo com Juca Mulato,
o poema de Menotti Del Picchia que, em 1917, retoma a temática regionalista,
esquecida desde os românticos, e antecipa o Modernismo, trazendo a vida do
homem comum para a poesia, escapando do marmóreo Parnasianismo e do penumbrento
Simbolismo. Embora um simbolista tardio na sua obra lírica, em A Uiara,
Octavio Sarmento, que, muito provavelmente, conhecia o poema de Del Picchia,
despe-se de qualquer pudor e, romântico na forma, planta uma semente de modernidade
na literatura amazonense, 13 anos antes de Violeta Branca, 32 anos antes do
Clube da Madrugada. Não, Pereira da Silva não conta.
Aqui, voltamos ao ponto inicial de
nossa jornada, encerrando-a. Faláramos de obras que envelhecem e obras que são
ressignificadas. No primeiro caso, por tudo que tratamos, temos A selva.
No segundo, 13 anos depois de sua publicação em livro, numa iniciativa da
Academia Amazonense de letras, sob a presidência do escritor Elson Farias,
temos A Uiara – ainda em fase de descoberta e afirmação. Mas não se
trata de trocar um pelo outro, tão escassa é a literatura do período; antes, é
preciso compreender o fenômeno literário como algo que não se deixa aprisionar
numa cápsula de tempo, como não se permite dogmatizar o que é apenas humano. A
única verdade da literatura é que ela não tem uma verdade. Não uma só, pelo
menos.
Referências
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Arte poética. In: A poética clássica.
3. ed. Tradução: Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1988. p. 19-52.
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Jaime. Ferreira de Castro. Col. A obra e o homem, vol. 5. Lisboa:
Arcádia, 1961.
CASTRO,
Ferreira de. A selva. 37. ed. Lisboa: Guimarães Editores, 1989a.
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Pequena história de “A selva”. In: A selva. 37. ed. Lisboa: Guimarães
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COIMBRA,
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Dissertação de mestrado. Braga: Universidade do Minho, 2000. Arquivo obtido em
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Euclides da. À margem da história. Organização: Leopoldo Bernucci et
al. São Paulo: Editora Unesp, 2019.
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Preâmbulo. In: RANGEL, Alberto. Inferno verde. 5. ed. Manaus: Valer, 2001.
GONDIM,
Neide. Dos bamburrais aos beiradões. In: MAIA, Álvaro. Beiradão. 2. ed.
Manaus: Valer/Edua,1999.
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Allison. Amazonas: natureza e ficção.
São Paulo: Annablume; Manaus: FAPEAM, 2011.
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Karl. O capital. Livro primeiro: O processo de produção do capital.
Volume 1, tomo 2. Tradução: Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril,
1984.
MOISÉS,
Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. 33. ed. São Paulo:
Cultrix, 2012.
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Dicionário de termos literários. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2004.
MONTEIRO,
Mário Ypiranga. Fatos da Literatura Amazonense. Manaus: Universidade do
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PEREIRA,
Nunes. O inferno de Ferreira de Castro. In: Revista da Academia Amazonense
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PINHEIRO,
Célio. Introdução à literatura portuguesa. São Paulo: Pioneira, 1991.
PINTO,
Zemaria. O texto nu. 3. ed. Manaus: Valer, 2019.
RIVERA,
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Octavio. A Uiara & outros poemas. Manaus: Academia Amazonense de
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SAUSSURE,
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Chelini et al. São Paulo: Cultrix, 2012.
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ZOLA,
Émile. Germinal. Tradução: Francisco Bittencourt. São Paulo: Abril,
1979.
domingo, 3 de janeiro de 2021
sábado, 2 de janeiro de 2021
sexta-feira, 1 de janeiro de 2021
Bolero's Bar 22
Castigo
Zemaria Pinto
Aí um
dia você explode. Joga todo o peso das costas pelos ares. E fica leve como o pó
que flutua na réstia de luz. Porque, quando você se dá conta da bobagem que fez,
você é apenas isso: poeira, sordidez, porcaria, lixo. E tudo começa com uma
briguinha. Aliás, com um acúmulo de briguinhas. Na verdade, o fim começa quando
você cansa do monturo de briguinhas acumuladas por anos. Voltar é um verbo que
eu não conjugo. Orgulho e castigo. Parece título de romance antigo. Ah, se a
gente já nascesse sabendo. Quanta lágrima seria evitada.
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