Amigos do Fingidor

domingo, 31 de janeiro de 2021

sábado, 30 de janeiro de 2021

Fantasy Art - Galeria

Charlie Terrell.

 

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Bolero's Bar 25

Siempre en mi corazón 

Zemaria Pinto


A distância, o tempo, a solidão não servem para medir a ausência. Eu sei que vocês vão rir, mas, acreditem, ele está presente o tempo todo, não sei se no meu coração ou na minha mente. Ou na minha vontade. No meu desejo que arde. Nas memórias doces e amargas, uma infinidade de véus que vão revelando lembranças apagadas. É como se ele tivesse ido para a guerra, para a linha de frente, para a certeza da morte. Mas eu devo esperá-lo. Enquanto ele estiver vivo, enquanto o inimigo não o fuzilar, eu devo esperá-lo.

 

Siempre en mi corazón (1941), de Ernesto Lecuona (Cuba, 1895-1963). Bolero.

No Spotify, ouça a playlist Bolero’s Bar.

  

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

A poesia é necessária?

 Makunaíma recria o mundo

Jorge Tufic (1930-2018)

 

Depois das águas grandes,

o mundo ficou seco e oco.

Pedaços de carvão ficaram rolando no solo,

como ecos de pedras,

vozes de rio, gemidos de fogo.

Então, Makunaíma acordou.

E do barro de sua vigília

retirou aquele homem, sua forma de barro,

seu peito cavado.

 

No outro lado de Roraima

seus feitos continuaram.

Homens e mulheres foram sendo mudados

em rochas, antas e javalis.

Perto de Koimelemong, um cervo

mergulha na terra a cabeça-de-pedra.

Sobre uma grande onda na Serra de Aruaiang,

pousa uma cesta de luar.

A Serra do Mel parece conduzir

um silêncio de aragem

e vai sem ter vindo.

 

Muitas dessas pedras se elevam

no país dos ingleses, assim como peixes

e uma cesta que imita, por baixo,

um perfil de mulher.

 

A savana da Serra de Mairani

são braços, pernas e cabeça

de um ladrão de urucu.

Aí também se entreabrem umas nádegas de pedra.

Cachoeiras acima,

o movimento dos peixes adentra na rocha.

 

Uma pedra chamada Mutum

canta como este

quando alguém vai morrer.

Por um oco de salto,

vespas gigantes construíram suas casas

e zumbem na base mais profunda da serra.

 

Aqui fora, Makunaíma dá os últimos retoques

nos bichos domésticos.

Depois disso ele deita na terra molhada

e se deixa esvair em milhares de seres

que nadam para o rio.


quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Ordem natural e tragédia em Shakespeare

 Pedro Lucas Lindoso

 

Por que acontecem as tragédias? Desde muito jovem me faço essa pergunta. Tive o privilégio de cursar Letras, mais especificamente Língua e Literatura Inglesa, na UnB, a prestigiada Universidade de Brasília. Fui aluno de Lucia Sander, especialista em Shakespeare e mestra em nos fazer compreender o sentido das tragédias shakespearianas.

Lucia Sander sempre enfatizava, antes de estudarmos determinado texto trágico de Shakespeare, que jamais podíamos nos esquecer da visão Medieval hierárquica do mundo. O homem medieval acreditava que Deus havia fixado para cada um de nós uma cadeia de valores. Um lugar específico. Um sistema de hierarquias. Essas hierarquias seriam muitas e variadas.

Todavia, lembro-me que essas hierarquias se correspondiam entre si. Deus, Sol, Lua, Terra, por exemplo. Em tudo havia uma gradação. Família, pai, filhos. Deus, reis e súditos. Ordens que deveriam ser temidas e respeitadas.

A crença vigente naqueles tempos era a de que Deus havia criado o universo com esse sistema de hierarquias múltiplas e correspondentes entre si. Nesse sentido, hierarquia é uma gradação dos seres, uma ordem que deve ser temida. Assim, tudo que compromete essa hierarquia traz instabilidade e caos. Aí temos as tragédias.

Em Romeu e Julieta verifica-se que os amantes desafiaram essa ordem. Ao perderem o equilíbrio moral, acabam ocasionando a própria morte.

O tema recorrente de Rei Lear gira em torno das leis naturais desafiadas e refletidas nas relações interpessoais e familiares dele com suas filhas e as outras pessoas ao seu redor. A consequência? Tragédia.

Macbeth, é trágico na pequenez de sua ambição, aflorada com profecia de bruxas. Elas predizem que ele será rei. De soldado valoroso e fiel passa a cometer uma série de atrocidades e assassinatos em busca incessante pelo alcance do objeto desejado: a coroa.

Contudo, Hamlet, a mais famosa das tragédias de Shakespeare, é calcada na vingança. O Rei Cláudio após assassinar o rei, seu próprio irmão, inverteu a ordem natural da vida.

E o que de tão trágico estaria acontecendo nesses tempos? Um amigo militar me explicou:

– A ordem natural das coisas, como sempre e desde os velhos tempos, é, de fato, respeitar a hierarquia. General não bate continência para coronel. Muito menos para capitão.

 

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Carlos Araújo ( 10/12/1966 – 25/01/2021)


Lançamento do primeiro POETATU, em 1995 (eu acho).
Da esquerda para a direita: Carlos Araújo, Marco Gomes, Anibal Beça,
Tenório e Aristides Telles e Zemaria Pinto.


Carlos Araújo e Marco Gomes (1954-2020) idealizaram a Antologia POETATU, que teve quatro volumes, entre 1995 e 2009, reunindo a geração nascida nos anos 1950 e 1960, com a participação especial de alguns veteranos, como Anibal Beça, Luiz Bacellar e Anisio Mello.

Biótico

Carlos Araújo

 

fosse descrever minha vida

seria assim:

poeta curumim

anjo luciferino

doce menino

nauta de barquinhos de papel

palhaço que chora emocionado

pássaro ferido que caiu do céu

 

se fosse prever minha vida

seria assim:

humus de sentimentos

pão dos filhos da terra

ciclo que não chega ao fim

 

domingo, 24 de janeiro de 2021

Manaus, amor e memória CDXCIX

Ponta Negra, anos 1960, lado oposto ao do falecido Hotel Tropical.

 

sábado, 23 de janeiro de 2021

Fantasy Art - Galeria


Igor Kamenev.

 

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

A poesia é necessária?

 Não posso adiar a palavra

Helder Proença

 

Quando te propus
um amanhecer diferente
a terra ainda fervia em lavas
e os homens ainda eram bestas ferozes

Quando te propus
a conquista do futuro
vazias eram as mãos
negras como breu o silêncio da resposta

Quando te propus
o acumular de forças
o sangue nómada e igual
coagulava em todos os cárceres
em toda a terra
e em todos os homens

Quando te propus
um amanhecer diferente, amor
a eternidade voraz das nossas dores
era igual a “Deus Pai todo poderoso criador dos céus e da terra”

Quando te propus
olhos secos, pés na terra, e convicção firme
surdos eram os céus e a terra
receptivos as balas e punhais
as amaldiçoavam cada existência nossa

Quando te propus
abraçar a história, amor
tantas foram as esperanças comidas
insondável a fé forjada
no extenso breu de canto e morte

Foi assim que te propus
no circuito de lágrimas e fogo, Povo meu
o hastear eterno do nosso sangue
para um amanhecer diferente!


quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Fantasy Art - Galeria


Renso Castañeda.

 

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Faceluto

Pedro Lucas Lindoso

 

Uma das primeiras lições que o estudante de Direito aprende, é o aforismo “ubi societas, ibi jus”. Expressão também usada “Ubi homo ibi societas; ubi societas, ibi jus”: “Onde há homem, há sociedade; onde há sociedade, há Direito”.

Para a famosa antropóloga americana, já falecida, Margaret Mead a primeira evidência de civilização foi um fêmur fraturado de 15.000 anos encontrado em um sítio arqueológico. Leva-se em média cerca de seis semanas de descanso para a cicatrização de uma fratura de fêmur.

Alguém cuidou dessa pessoa. O osso quebrado foi curado. Talvez aí tenha também nascido o Direito. A vida é um direito garantido por lei. O direito à vida é o mais importante e mais discutido dentre todos os direitos abarcados pelo Código Civil Brasileiro e pela Constituição Federal.

Algum homo sapiens cuidou de seu semelhante, levando-o provavelmente para uma caverna e dando-lhe comida e assistência até sua recuperação. Deve ter sido um líder, um chefe ou um pai de família.

O processo civilizatório evoluiu e o homem, deixando de ser nômade, instala-se em pequenas comunidades. Depois vieram as vilas, cidades, as metrópoles e, hoje, as megalópoles.

As pandemias, como essa do coronavírus, ficavam restritas às pequenas comunidades, depois aos países e continentes. Até pouco tempo, a distância entre os países era medida em dias, meses e até anos. Meu avô libanês Daou emigrou para o Brasil com três irmãos no início do século passado. A única irmã deles, tia Amine emigrou para a longínqua Nova Zelândia com o marido. Na década de 1930, uma carta de Manaus para Auckland, via Rio de Janeiro e Londres, levava de seis meses até um ano.

Hoje falamos com os primos neozelandeses por e-mail e facebook. A comunicação virou instantânea. Os vírus e as epidemias também viajam com rapidez. Jatos de Paris ao Rio. De Nova Iorque a Pequim. De Londres a Sidney, varrem os céus levando passageiros, alegrias, tristezas e toda espécie de vírus e enfermidades.

Essa pandemia tem ceifado muitas vidas. Como o primitivo homem que fraturou o fêmur, todos temos direito à saúde e à vida. Hoje o problema é mundial. Precisamos de líderes para cuidar não só de uma perna, mas de milhões de infectados por esse terrível vírus.

Quanto ao Facebook, tenho evitado abri-lo. Há os amigos dos amigos e conhecidos postando notícias de luto e perdas diariamente. Facebook virou faceluto.  Xô corona.


segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

7 dias cortando as pontas dos dedos - 4a. edição

 


Há dois anos demos início à veiculação do e-zine “7 dias cortando as pontas dos dedos”. Contendo poemas, contos, charges, quadrinhos, entre outras formas de expressão de combate ao avanço do fascismo no país. E hoje chegamos ao pior momento do governo genocida, afetando gravemente o estado do Amazonas. E aqui estamos novamente. Estamos no front! Junte-se a nós!

 Solicite o regulamento: 7dias.cortando.aponta.dosdedos@gmail.com


domingo, 17 de janeiro de 2021

Leituras Compartilhadas: O amante das amazonas, de Rogel Samuel


Horário de Brasília.
Para assistir ao vivo, acesse o link no Portal Entretextos:
https://www.portalentretextos.com.br/

 

Manaus, amor e memória CDXCVIII



 

sábado, 16 de janeiro de 2021

Fantasy Art - Galeria

Benita Winckler.

 

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Bolero's Bar 24

Alguém me disse 

Zemaria Pinto


É engraçado o quanto o sofrimento atrai amigos; não apenas os velhos amigos, mas novos, que aparecem como insetos depois da chuva. Pouco me importa! Pouco me importa que estejas com outro ou com outros. Se estás feliz, muito bem! Ótimo! A vida segue. O quer que eu diga agora parecerá mágoa. E é mágoa! Mentiste, me enganaste, me traíste! E acham que me consolam vindo me dizer que te viram, com quem te viram, onde te viram. Merda! É mais um trouxa que vai cair na tua lábia de juras de amor eterno, um novo começo, agora é sério etc. etc. etc. Não demora muito e o idiota vai estar aqui ou em outro bar, querendo morrer afogado em um copo. Centenas, milhares, milhões de copos, não aplacarão a dor de ser descartado.

 

Alguém me disse (1960), de Evaldo Gouveia (Iguatu-CE, 1928-2020) e Jair Amorim (Santa Leopoldina-ES, 1915-1993). Bolero.

No Spotify, ouça a playlist Bolero’s Bar.


quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

A poesia é necessária?

 Negra!

 Joaquim Cordeiro da Mata (1857-1894)

 

I

Negra! negra! como a noite

d’uma horrível tempestade,

mas, linda, mimosa e bela,

como a mais gentil beldade!

Negra! negra! como a asa

do corvo mais negro e escuro,

mas, tendo nos claros olhos,

o olhar mais límpido e puro!

 

Negra! negra! como o ébano,

sedutora como Fedra,

possuindo as celsas formas,

em que a boa graça medra!

Negra! negra!... mas tão linda

co’os seus dentes de marfim;

que quando os lábios entreabre,

não sei o que sinto em mim!...

 

II

Só, negra, como te vejo,

eu sinto nos seios d’alma

arder-me forte desejo,

desejo que nada acalma.

se te roubou este clima

do homem a cor primeva;

branca que ao mundo viesses,

serias das filhas d’Eva

em beleza, ó negra, a prima!...

gerou-te em agro torrão;

S’elevar-te ao sexo frágil

temeu o rei da criação;

é qu’és, ó negra criatura,

a deusa da formosura!...

 

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Fantasy Art - Galeria

Yuehui Tang.

 

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

O afeto em tempos de pandemia

 Pedro Lucas Lindoso

 

Uma das condições de felicidade está na demonstração de afeto. Abraços, beijos e outros gestos de carinho podem transmitir paz, tranquilidade, confiança. Podem até nos curar.

Fiquei intrigado com cena de um seriado sobre a família real britânica. A falecida princesa Diana pede uma audiência com sua sogra, a rainha Elizabeth II. Foi pedir apoio, orientação e afeto. Seu casamento estava em crise. A rainha foi extremamente fria. Ao final do encontro, a soberana levanta-se, como indicando que a conversa se encerrava ali. De repente, Diana se aproxima da sogra e lhe dá um abraço. A rainha parece ter ficado chocada. Se desvencilha da nora e sai da sala.

Sabe-se que os britânicos sempre mantiveram distanciamento social. Comum em muitos países europeus e até nos Estados Unidos. Fiquei impressionado com a cena. Será que eles não se abraçam? Mesmo na intimidade da família? O protocolo real proíbe que o comum dos mortais toque nos membros da realeza. Mas não sabia que a regra valia entre eles.

Aqui em Manaus algumas pessoas conversam se tocando. Tia Idalina, por exemplo. Saiu de Manaus, mas Manaus não saiu dela. Ajeita meu colarinho. Pega no meu braço, na minha mão. Abotoa o botão de minha camisa polo, que uso desabotoada. Sou seu sobrinho, é certo. Mas faz com qualquer um com quem tenha um pouco de intimidade. 

É espantoso que o coronavírus tenha se espalhado tão fortemente em alguns países como a Inglaterra. Desde sempre e antes da pandemia, os ingleses conversam no mínimo mantendo um metro de distância entre si.

A quantidade “certa” de abraços e beijos me parece uma necessidade para sermos felizes. Desde que mutuamente consentidos e com as pessoas certas. Não é crível que se vá por aí distribuindo abraços e beijos. Também devemos ensinar as crianças que não permitam que qualquer pessoa as toquem.

Os maoris são os povos nativos da Nova Zelândia, um país colonizado por ingleses. Tenho parentes por lá. Há um cumprimento de tradição Maori chamado de hongi. As pessoas encostam suas testas e esfregam a ponta dos narizes juntas. O ato é conhecido como “respiro de vida” e acredita-se que tenha vindo dos deuses.

Essa prática deve ter dificultado muito a integração do colonizador inglês com os nativos neozelandeses. Ou não! Por lá a pandemia foi controlada com sucesso.

O fato é que a pandemia e a quarentena nos forçaram a evitar e distribuir nossos gestos de afeto. Todos nós e as pessoas que amamos merecem sentir os efeitos positivos de nosso toque. Xô corona!


segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

“O amante das Amazonas” em debate


Horário de Brasília.

 

domingo, 10 de janeiro de 2021

sábado, 9 de janeiro de 2021

Fantasy Art - Galeria

Malcom X.
Kevin Williams.

 

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Bolero's Bar 23

El reloj 

Zemaria Pinto


As horas passam como cavalos enlouquecidos, sob as sombras da noite. Eu conto cada segundo marcado, avançando ao encontro da manhã, quando ela irá embora, construir um novo futuro, um outro destino. Se eu pudesse parar o tempo, não o tempo dos relógios, mas o tempo das vidas, a manhã não chegaria jamais e a noite seria para sempre. Bobagem. O tempo é uma ilusão. O relógio é uma ilusão. Eu estou aqui, despedaçado, e ela está lá, dormindo sem remorsos. Mas o sol é concreto. Quando a manhã chegar, terei a solidão por companhia e essa indescritível dor me dilacerando a vontade.


El reloj (1957), de Roberto Cantoral (México, 1935-2010). Bolero.

No Spotify, ouça a playlist Bolero’s Bar.

 

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

A poesia é necessária?

 Platônica

Tenório Telles

Para Marcos Frederico

 

o pássaro da poesia

[línguaprateada]

incendeia a cortina

do mundo:

sombras deixam

o casulo   e      v o a m

em busca de luz

o coração em trevas

ful/gura e flor/esce

como um sol originário

e inexplicável


quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Fantasy Art - Galeria


Young-june Choi.

 

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 14/14

Zemaria Pinto

 

Verdade e literatura

O romance de Ferreira de Castro sempre foi lido com complacência, apontando-se-lhe, com merecida festa, os poucos acertos, e contornando-se, com indispensáveis contorcionismos retóricos, os muitos erros. O maior acerto está onde encontramos as maiores falhas: no caráter documental da narrativa. Apontamos, e não vamos repeti-las, as incoerências entre a trama encabeçada por Alberto e os números da vida real, entre 1919 e 1921, período em que Alberto teria ficado no Paraíso. Mas o que sobra de acerto é a denúncia do escravismo e das condições subumanas a que eram submetidos os seringueiros, que já estava, com maior contundência, em um livro publicado seis anos antes: La vorágine, do colombiano José Eustasio Rivera (1888-1928). A mesma Amazônia, os mesmos seringueiros, os mesmos vis exploradores. Mas a comparação termina por aqui, porque não encontramos nenhuma evidência de que o autor português lera o colombiano.

Um outro acerto de Ferreira de Castro é quanto à linguagem. Ainda que atrelado ao Naturalismo, ele já pratica a linguagem que seria corrente no Neorrealismo: desprovida de ornamentos, simples, objetiva, descarnada – tal como a queriam os modernistas.

Quanto às falhas, apontadas minuciosamente ao longo deste trabalho, podem ser identificadas em dois grupos. No que diz respeito à organicidade da trama, demostramos a inverossimilhança do protagonista e o descaso com que o autor trata os números que deveriam embasar o realismo de sua narrativa, transformando as cores fortes de um possível documentário ficcional em uma ficção inverossímil, de cores desbotadas. O segundo grupo é o da estrutura narrativa, com o abuso de clichês e exploração do exotismo, além dos incontáveis disparates anotados, aos quais se ajunta o descaso com as convenções mais elementares da narrativa ficcional.

Noventa anos passados, A selva ainda é a principal referência na prosa de ficção que trata do ciclo econômico da borracha, pois pouco se acrescentou sobre esse tema, no gênero: Beiradão (1958), de Álvaro Maia, e O amante das Amazonas (1992), de Rogel Samuel. Não temo, pelas suas qualidades intrínsecas, acrescentar a essa parca lista um poema de esquecido autor amazonense, anterior ao romance português: A Uiara (1922), de Octavio Sarmento (1879-1926).

A Uiara é um poema narrativo, com 978 versos decassílabos e esquema rímico irregular, dividido em sete capítulos, que mostram a jornada do cearense Militão, uma alegoria dos milhares de nordestinos que, como dissemos, eram recrutados para suprir a mão de obra nativa, insuficiente para atender à demanda dos seringais.

Tecnicamente, um romance, o narrador – limitado, pois conta “de ouvir contar” – acompanha Militão fugindo da implacável seca nordestina, com mulher e filha, que morrem em meio da viagem. Na sequência, carregando no cromatismo, descreve a viagem rumo ao seringal; em seguida, discorre sobre o lendário amazônico, para, enfim, deter-se no dia a dia do solitário Militão. Embora sem definir datas, presume-se que os acontecimentos se passem antes da queda nos preços e na demanda da borracha. Mas não é a questão social-financeira que está em jogo. Octavio Sarmento constrói sua personagem lentamente, forjando o estofo psicológico de Militão e concluindo, freudianamente, que a Uiara é a representação do seu desejo sexual reprimido.

Embora, por vezes, exagerando nas cores, A Uiara é um poema sóbrio, antecipador de toda a literatura sobre o período. O seu esquecimento se deu por jamais ter merecido uma edição em livro, posto que a publicação, em 7 de dezembro de 1922, quando se comemorava o centenário da Independência, deu-se em um jornal: o Diário Official. No entender de Mário Ypiranga Monteiro, A Uiara não recebeu “o bafejo da crítica honesta do tempo” (p. 159). Para uma literatura dividida entre a Grécia clássica e a França do XIX, A Uiara, tratando de nordestinos miseráveis e paisagens selvagens, era um incômodo. Não resisto ao paralelo com Juca Mulato, o poema de Menotti Del Picchia que, em 1917, retoma a temática regionalista, esquecida desde os românticos, e antecipa o Modernismo, trazendo a vida do homem comum para a poesia, escapando do marmóreo Parnasianismo e do penumbrento Simbolismo. Embora um simbolista tardio na sua obra lírica, em A Uiara, Octavio Sarmento, que, muito provavelmente, conhecia o poema de Del Picchia, despe-se de qualquer pudor e, romântico na forma, planta uma semente de modernidade na literatura amazonense, 13 anos antes de Violeta Branca, 32 anos antes do Clube da Madrugada. Não, Pereira da Silva não conta.

 

Aqui, voltamos ao ponto inicial de nossa jornada, encerrando-a. Faláramos de obras que envelhecem e obras que são ressignificadas. No primeiro caso, por tudo que tratamos, temos A selva. No segundo, 13 anos depois de sua publicação em livro, numa iniciativa da Academia Amazonense de letras, sob a presidência do escritor Elson Farias, temos A Uiara – ainda em fase de descoberta e afirmação. Mas não se trata de trocar um pelo outro, tão escassa é a literatura do período; antes, é preciso compreender o fenômeno literário como algo que não se deixa aprisionar numa cápsula de tempo, como não se permite dogmatizar o que é apenas humano. A única verdade da literatura é que ela não tem uma verdade. Não uma só, pelo menos.

 

Referências

 

ARISTÓTELES. Arte poética. In: A poética clássica. 3. ed. Tradução: Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1988. p. 19-52.

BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: um pouco-antes e além-depois. Manaus: Calderaro, 1977.

BRAGA, Robério. O Amazonas ao tempo de Ferreira de Castro. Manaus: Governo do Amazonas, 2006.

BRASIL, Jaime. Ferreira de Castro. Col. A obra e o homem, vol. 5. Lisboa: Arcádia, 1961.

CASTRO, Ferreira de. A selva. 37. ed. Lisboa: Guimarães Editores, 1989a.

______. Pequena história de “A selva”. In: A selva. 37. ed. Lisboa: Guimarães Editores, 1989b. p. 17-24.

COIMBRA, Arthur Ferreira. Paiva Couceiro e a contra-revolução monárquica (1910-1919). Dissertação de mestrado. Braga: Universidade do Minho, 2000. Arquivo obtido em 06/04/2020, no sítio: http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/6989.

CUNHA, Euclides da. À margem da história. Organização: Leopoldo Bernucci et al. São Paulo: Editora Unesp, 2019.

______. Preâmbulo. In: RANGEL, Alberto. Inferno verde. 5. ed. Manaus: Valer, 2001.

GONDIM, Neide. Dos bamburrais aos beiradões. In: MAIA, Álvaro. Beiradão. 2. ed. Manaus: Valer/Edua,1999. 

LEÃO, Allison. Amazonas: natureza e ficção. São Paulo: Annablume; Manaus: FAPEAM, 2011.

MARX, Karl. O capital. Livro primeiro: O processo de produção do capital. Volume 1, tomo 2. Tradução: Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril, 1984.

MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. 33. ed. São Paulo: Cultrix, 2012.

______. Dicionário de termos literários. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2004.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fatos da Literatura Amazonense. Manaus: Universidade do Amazonas, 1976.

PEREIRA, Nunes. O inferno de Ferreira de Castro. In: Revista da Academia Amazonense de Letras. N. 7. Manaus: Tipografia Fênix, 1957. p. 99-103.

PINHEIRO, Célio. Introdução à literatura portuguesa. São Paulo: Pioneira, 1991.

PINTO, Zemaria. O texto nu. 3. ed. Manaus: Valer, 2019.

RIVERA, José Eustasio. A voragem. Tradução: Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. 

SARMENTO, Octavio. A Uiara & outros poemas. Manaus: Academia Amazonense de Letras, Governo do Amazonas, Valer, 2007.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. 28. ed. Tradução: Antônio Chelini et al. São Paulo: Cultrix, 2012.  

SERRANO, Clara Isabel. Arte de falar e arte de estar calado: Augusto de Castro – jornalismo e diplomacia. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017. Arquivo obtido em 10/04/2020, no sítio: https://digitalis.uc.pt/pt-pt/livro/arte_de_falar_e_arte_de_estar_calado.

ZOLA, Émile. Germinal. Tradução: Francisco Bittencourt. São Paulo: Abril, 1979.

 

 

Para obter o livro completo, clique nesta linha.

domingo, 3 de janeiro de 2021

Manaus, amor e memória CDXCVI

Tarumãzinho, em 1968.

 

sábado, 2 de janeiro de 2021

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Bolero's Bar 22

Castigo 

Zemaria Pinto


Aí um dia você explode. Joga todo o peso das costas pelos ares. E fica leve como o pó que flutua na réstia de luz. Porque, quando você se dá conta da bobagem que fez, você é apenas isso: poeira, sordidez, porcaria, lixo. E tudo começa com uma briguinha. Aliás, com um acúmulo de briguinhas. Na verdade, o fim começa quando você cansa do monturo de briguinhas acumuladas por anos. Voltar é um verbo que eu não conjugo. Orgulho e castigo. Parece título de romance antigo. Ah, se a gente já nascesse sabendo. Quanta lágrima seria evitada.   

 Castigo (1958), de Dolores Duran (Rio de Janeiro, 1930-1959). Samba-canção.

No Spotify, ouça a playlist Bolero’s Bar.