Amigos do Fingidor

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 9/14

 Zemaria Pinto

 

Exotismo, clichês e disparates    

O olhar estrangeiro (inclusive, de dentro do Brasil) tende a ver a Amazônia pelo prisma do exotismo, desde Gaspar de Carvajal, passando pelos viajantes fabulosos – como Raleigh e Acuña –, além da ficção de Julio Verne, Conan Doyle e Gastão Cruls. Nem a lucidez barroco-expressionista de Euclides da Cunha escapa à armadilha. Entre tanto que escreveu sobre a Amazônia, preparando seu segundo “livro vingador”, costuma-se repetir a frase oca – edênica, lírica, mas sem sentido: “a Amazônia é a última página, ainda a escrever-se, do Gênesis” (CUNHA, 2001, p. 27). Um prefácio de Euclides da Cunha valia por toda uma literatura.

Aplicada a um autor português, a assertiva acima tem um certo atavismo: afinal, oficialmente, o português foi o primeiro invasor destas terras, onde, ainda que ligado por laços de quase-propriedade, ele se sente um estrangeiro porque é um não-integrado. A Amazônia como a vê Ferreira de Castro é um amontoado de clichês e disparates. Falando de Lourenço, por exemplo, que não aceitava o ofício de seringueiro, ele sintetiza a lendária “indolência inata” do caboclo amazônico “numa barraca, numa mulher e numa canoa” (p. 116). Não há como não lembrar o macunaímico bordão: ai, que preguiça!...

A viagem ao seringal Paraíso, de cerca de 15 dias, ocupa 32 páginas de descrições, próximo a um sexto do total redigido. A selva, os rios e as pessoas são representados ao longo do livro com clichês animalescos: “imensurável aranha hidrográfica” (p. 42); “monstro líquido” (p. 49); “a pata enlameada que a Amazónia fundia no Atlântico” (p. 64); “a selva, como uma fera (...)” (p. 77). A pequenez do homem diante da selva monstruosa é descrita com uma grandiloquência melodramática:

 

E o homem, simples transeunte no flanco do enigma, via-se obrigado a entregar o seu destino àquele despotismo. O animal esfrangalhava-se no império vegetal e, para ter alguma voz na solidão reinante, forçoso se lhe tornava vestir pele de fera. (...) Dir-se-ia que a selva tinha, como os monstros fabulosos, mil olhos ameaçadores, que espiavam de todos os lados.” (p. 84)

 

E mais adiante: “aquele mundo vegetal tinha cruéis egoísmos, ferocidades insuspeitadas e tiranias inconfessáveis” (p. 131). Nem os animais escapam à fúria criativa do narrador infiel: ao descrever uma onça, ele diz que “a folhagem quase não rangia sob o seu listado corpanzil” (p. 164). Estava, decerto, vendo mentalmente um tigre africano.

O clichê mais usado pelo narrador para demonstrar a animalidade da gente que ia para o Paraíso (um trocadilho, por si só, infame) é “rebanho”: nove vezes. Literalmente, desde a primeira página, quando Balbino reflete, via discurso indireto do narrador, sobre a perda de três “brabos”, que ele arregimentara no Nordeste e escafederam-se:

 

Que diria Juca Tristão, que o tinha por esperto e exemplar, quando ele lhe aparecesse com três homens a menos no rebanho que vinha pastoreando desde Fortaleza? (p. 27)

 

O mesmo chavão serve também para descrever os imigrantes japoneses, que chegam no seringal, para trabalhar na agricultura:

 

Era rebanho copioso, de pele seca, proeminências ósseas nas faces e olhar mortiço de quem regressa de outro mundo. (p. 188)

 

Ressalve-se que a desgastada metáfora é de uso exclusivo do infiel narrador e não pode, absolutamente, ser atribuída ao humanista autor.

A descrição de uma tempestade amazônica é o mote para uma cacofônica metáfora musical, quando ouvimos a exótica “orquestra infernal” da “selva endemoninhada”: a “monótona cantilena” cotidiana passa a uma “triste litania” – “um uivo forte, perene e agoirento” – e logo transforma-se em “música épica e desesperada”, “um concerto de instrumentos desvairados”. Quando amaina a “doida apoteose de fim de mundo falido”, a selva “era um monstro que estava ali, pesado, inofensivo, a bramir um sofrimento que não despertava piedade” (p. 133-135).

Outra metáfora musical é usada, com mais rigor, para expressar o silêncio, embora insista na antropomorfização da floresta, uma armadilha do exotismo:

 

E por toda a parte o silêncio. Um silêncio sinfónico, feito de milhões de gorjeios longínquos, que se casavam ao murmúrio suavíssimo da folhagem, tão suave que parecia estar a selva em êxtase. (p. 77)

 

Quando Guerreiro, o guarda-livros, é apresentado ao leitor, o descuidado narrador diz que era “o primeiro homem branco que Alberto via no seringal” (p. 111). Ainda em relação a Guerreiro, o narrador diz que Alberto sente-se próximo a ele “pela cor de sua pele” (p. 153). Ao trocar confidências com Firmino, este deixa escapar, subserviente: “eu tenho pena de seu Alberto. O seringal não é para um homem com a sua pele” (p. 92). O infiel narrador não esconde suas preferências arianas. A trama se passa há mais de 30 anos da Lei Áurea, quando os escravos deixaram essa condição para serem brasileiros, mas não cidadãos, pois eram apenas párias miseráveis. Esse arianismo seria um resquício do choque de raças que o autor, tido e havido como um humanista, presenciara, ainda em criança, ao aportar na babel Belém do início do século XX ou apenas mais uma infidelidade do narrador? A cartilha realista-naturalista ensinava que, do trinômio hereditariedade-meio social-momento, a carga genética era o fator decisivo.

 

Os 14 capítulos de A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras. 

Mas você pode obter o livro completo clicando nesta linha.


domingo, 29 de novembro de 2020

sábado, 28 de novembro de 2020

Fantasy Art - Galeria

Laura Sava.

 

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Bolero's Bar 17

Nuestro juramento

Zemaria Pinto


Tristeza não combina com a gente. É o uísque que te entristece. A dúvida é para os filósofos, não para os amantes. A angústia, idem. Nós nos amamos e somos felizes, mas se isso te faz sofrer, vamos fazer um trato. O cenário é o pior possível: se um de nós morre, o que o outro vai fazer, para sobreviver a esse amor? Tudo que te peço é que chores sobre o meu corpo o que puderes chorar, para que eu leve no ataúde as tuas lágrimas por companhia. Mas se eu ficar sozinha, te prometo escrever nossa história. Assim, todos ficarão sabendo do quanto nos amamos e o quanto é possível amar. As letras serão vermelhas sobre a página branca, simbolizando o meu sofrimento. Tinta-sangue, brotada do coração.

 

Nuestro juramento (1956), de Benito de Jesús (Porto Rico, 1912-2010). Bolero.

No Spotify, ouça a playlist Bolero’s Bar.


quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Francisco Calheiros (28/11/1968–25/11/2020)

 

Francisco Calheiros – advogado, professor, poeta –, membro fundador
e primeiro presidente da Academia Itacoatiarense de Letras. 

A poesia é necessária?

 Cântico Negro

José Régio (1901-1969)

 

“Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos doces, 

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: “vem por aqui!”

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali...

 

A minha glória é esta:

Criar desumanidade!

Não acompanhar ninguém.

– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre à minha Mãe.

 

Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos...

 

Se ao que busco saber nenhum de vós responde

Por que me repetis: “vem por aqui!”?

 

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí...

 

Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.

 

Como, pois, sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?...

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

 

Ide! tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátrias, tendes tetos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.

Eu tenho a minha Loucura!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

 

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe.

Mas eu, que nunca princípio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: “vem por aqui”!

A minha vida é um vendaval que se soltou.

É uma onda que se alevantou.

É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou,

– Sei que não vou por aí!

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Fantasy Art - Galeria

Carlo Marcelo.

 

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Ponham a mão na consciência

Pedro Lucas Lindoso

  

Em 20 de novembro de 2003, Jovino, um jovem negro brasiliense, aguardava o nascimento de seu primogênito em uma maternidade pública do Distrito Federal.

O Correio Braziliense daquele dia noticiava a intenção dos movimentos culturais de valorização da negritude em comemorar a data homenageando Zumbi dos Palmares. Símbolo da resistência e luta contra a escravidão. Zumbi lutou pela liberdade de culto, religião e prática da cultura africana no Brasil Colonial. O dia de sua morte, 20 de novembro, deve ser lembrado e comemorado como o Dia da Consciência Negra.

Jovino pensou então em batizar o rebento de Zumbi. A esposa protestou com veemência. Disse-lhe que Zumbi significa alma penada que vagueia pela noite. O filho com certeza seria discriminado pela sua cor de pele. Se carregasse esse nome sua vida seria um inferno. Jovino obedeceu à esposa e o garoto foi batizado como Alessandro. Mas o pai o chama desde sempre de Zumbi. E o apelido pegou.

Alessandro gosta do apelido e tem até orgulho em ter nascido no dia 20 de novembro. Prepara-se para cursar Sociologia e História na UnB. É excelente aluno e deverá ingressar na faculdade em breve.

Já descobriu que seus bisavôs eram descendentes de chefes tribais da Nigéria. Não se considera descendente de escravos e sim de valorosos guerreiros da mãe África. Alessandro Zumbi defende o 20 de novembro de 1695 como data a ser comemorada pela negritude brasileira. Muito mais significativa que o 13 de maio de1888.

Aqui em Manaus há duas ruas alusivas ao fim da escravidão. 24 de maio de 1884, quando a cidade aboliu a escravidão, e 10 de julho, do mesmo ano, pelo Estado do Amazonas. No último dia 15 de novembro, além da Proclamação República, comemorou-se o dia nacional de combate ao racismo.

O jornalismo televisivo, além da cobertura das eleições, noticiava que naqueles dias duas mulheres negras haviam sido vilipendiadas, em razão de sua cor. Uma delas por um conhecido advogado. Com tantas datas referentes ao fim da escravidão, muitos brasileiros não têm consciência que racismo é crime. Quando o crime é direcionado a uma pessoa, ele é considerado uma injúria racial.

É deplorável. Aos racistas e intolerantes, quando se comemora o Dia da Consciência Negra, um conselho:

– Ponham a mão na consciência!

 

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 8/14

 Zemaria Pinto

 

Estrutura (testemunhal-realista-documental) comprometida

Se Ferreira de Castro pretendeu um realismo documental para A selva, comecemos por indicar uma falha básica na estrutura da narrativa.

 

Quando [Alberto] desembarcara em Belém, ido de Portugal, a borracha ainda tinha altas cotações e exercia profundo sortilégio sobre todos aqueles que davam ao dinheiro a maior representação da vida. (p. 31)

    

O moralista narrador engana-se ou fantasia quanto às “altas cotações”. Em 1919, a demanda pela borracha era 14% menor que a demanda de 1910, e o preço internacional, nesses mesmos 9 anos, despencara 67,5% – isto em comparação direta, sem levar em conta o desgaste cambial, agravado pela guerra de 1914-1918 (BENCHIMOL, p. 252).

 

– Quando cheguei ao seringal [há seis anos], ainda a borracha se comprava a dez e a doze mil réis. (p. 90)

 

A fala de Firmino revela um novo tropeço no realismo narrativo: em 1913, o preço da tonelada da borracha era pago a 4,2 mil réis, não mais que 44% do que alcançara havia apenas três anos (BENCHIMOL, p. 252). Firmino mentia, pela voz do infiel narrador.

A história é conhecida e até hoje chorada aos borbotões, não vou repeti-la. Nativos da floresta, distribuídos geograficamente sem nenhuma racionalidade, os seringais estavam à míngua e, embora continuassem produzindo, não eram mais nem o simulacro da riqueza que gestou a belle époque amazônica.   

Se tivesse levado em conta o fator econômico, e situado a ação do romance uns dez anos antes, o desenho de Alberto seria diferente. Em uma primeira versão, aliás, era um líder operário:

 

No desdobrar duma greve, com alvorotadas marchas, rúbidos estandartes, gritos, muitos gestos e protestos, um operário lançava a sua bomba em Belém do Pará. E, fugindo às buscas policiais, ocultava-se, hoje aqui, amanhã ali, ao sabor inquieto das circunstâncias (...); depois, corajosas fraternidades davam-lhe a mão e ele evadia-se para o interior da Amazónia, para a floresta virgem. (CASTRO, 1989b, p. 22)

 

Talvez esse rude operário parecesse menos estranho ao selvagem ambiente do Paraíso que o inverossímil Alberto: estudante universitário, com aparentes boas leituras e bons relacionamentos, que, exilado na Espanha, pensa ficar melhor no Brasil, para onde vem sem qualquer informação, acreditando na conversa de seu parente, que o recebera a contragosto, de que cortar seringa o tornaria rico. Em 1919, quando a ruína econômica da região já era vista a olho nu – há anos, conforme comprovamos –, essa escolha é, para dizer o mínimo, absurda, embora consciente:

 

Um dia, porém, a hevea[1] brasiliensis, levada sub-repticiamente por mãos britânicas, desdobrara a sua nacionalidade, entregando também a seiva enriquecedora em terras de Ceilão. Ferida pela emigrada, a borracha da Amazónia deixara de ser meio de elásticas fortunas, limitando a perspectiva das ambições. Era prata e não oiro o que se colocava agora no outro lado da balança. (p. 32-33)

 

Percepção errada, era muito, muito menos que prata, certamente. Prata de tolo.

Seguindo à risca o protocolo da ficção, entretanto, Ferreira de Castro não está errado. Mas o seu castelo testemunhal-realista-documental desmorona em definitivo, desmascarando o seu infiel narrador, tateando cego entre as ruínas.

Sob uma outra perspectiva, entretanto, se a ficção, que se pretende realista, não encontra reflexo na realidade, e se a fábula não se estrutura de modo verossímil, qual o seu valor? E aqui não tratamos de valor histórico, mas artístico. Neste ponto, sem perder de vista o narrador infiel, passamos a responsabilidade da narrativa diretamente ao autor.

 

Os 14 capítulos de A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras. 

Mas você pode obter o livro completo clicando nesta linha.




[1] Na edição trabalhada, a palavra “hevea” foi substituída por “herva”, num caso de flagrante negligência editorial.


domingo, 22 de novembro de 2020

Manaus amor e memória CDXC


Rua Marechal Deodoro, na esquina com a 7 de Setembro.
À esquerda, o Grande Hotel.

 

sábado, 21 de novembro de 2020

Fantasy Art - Galeria

Tim Okamura.

 

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Bolero's Bar 16

Folha morta

Zemaria Pinto


Terra caída, levada rio abaixo, metáfora do fim. Eu, menos visível: apenas uma folha à deriva num igarapé raso. Um palhaço em fim de festa, depois de ter sido o anfitrião. Ouço o murmurar da zombaria de todos como a uma invasão de cigarras histéricas. Insisto, pago antes, bebo em pé. Até quem já me bajulou do modo mais servil sente-se no dever de me humilhar – gestos e olhares de desprezo e reprovação. Fecho os olhos, a aguardente queimando o estômago vazio, e me entretenho com minhas lembranças, boas e alegres lembranças que, aos poucos, de jardins luminosos, vão tomando por veredas sombrias até chegar de volta neste maldito bar, onde, afinal, não sou a única matéria em decomposição.

 

Folha morta (1956), de Ary Barroso (Ubá-MG, 1903-1964). Samba-canção.

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quinta-feira, 19 de novembro de 2020

A poesia é necessária?

 Poética I

Alencar e Silva (1930-2011)

 

Não o poema-verso simplesmente,

mas o poema-coisa, sim: substância

inefável, sim: coisa que funcione

como relógio e o que ele preconiza.

 

Assim, sem asco aceito-o integral

como uma pedra ou coisa-viva incômoda

que fere e entanto dá-se em forma e gosto

à natureza que a urdiu. Poema:

 

eia! deserto povoado. Fruto

onde a fome espreitava a presa. Chuva

onde a sede lavrava seu incêndio.

 

Incessante doar-se em ponte e veículo

ao evento da coisa – corpo vivo

intato sobre as águas do poema.


quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Fantasy Art - Galeria

 

Noemi Safir.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Heróis da pandemia

 Pedro Lucas Lindoso

 

Não há dúvidas que os grandes heróis dessa pandemia foram os profissionais de saúde. Muitas vezes trabalhando sem EPI’s adequados, sem recursos clínicos apropriados e vulneráveis ao terrível vírus. Muitos faleceram no exercício da profissão. Médicos, enfermeiros, dentistas, fisioterapeutas, paramédicos, auxiliares de enfermagem e de laboratórios.

Mas há uma categoria que merece o nosso respeito pelo sofrimento experimentado durante a pandemia. Refiro-me as professoras e professores do ensino fundamental. Principalmente aqueles que dão aulas nas primeiras séries. Mais especificamente as professoras alfabetizadoras. Em sua grande maioria são mulheres. Não quero desmerecer os poucos alfabetizadores homens. Longe disso.

Uma das mais belas páginas da História da Educação no Brasil foi o conhecido Ensino Normal. Presente em todas as capitais e grandes cidades. A Escola Normal tinha como alunas moças da classe média e alta brasileiras. Cursava-se o Ginasial. De lá, com excelente base em conhecimentos gerais, português e matemática, as meninas tornavam-se normalistas.

Os conhecidos anos dourados, tanto na música quanto na nossa literatura, são pródigos em relatar a essência dessas moças. Sonhadoras, educadas e bem preparadas, tornavam-se professoras. Orgulho de suas famílias, dos pais e dos maridos, ensinaram as primeiras letras a milhões de brasileiros.

Hoje essas moças cursam Pedagogia e ainda continuam nas salas de aula, alfabetizando os brasileirinhos e brasileirinhas que tomarão conta do país no futuro.

Com essa pandemia, houve parcial transmissão de conhecimento para parte da população que tem acesso a computadores e tablets. Todavia, muitos ficaram sem aulas. Principalmente os pequeninos. 

Uma professora alfabetizadora me confessou, em lágrimas, que não conseguiu alfabetizar nenhuma criança nesse ano. Impossível. Salvo raras exceções em que os pais puderam colaborar e as que tinham acesso à internet. Foi um ano perdido. E ela se questiona: o que vai ser dessas crianças que não foram alfabetizadas? Serão promovidas para a série seguinte?

Infelizmente, com pandemia ou sem pandemia, os professores não são valorizados em nosso país. Não vou entrar no mérito se a eleição do Biden foi boa ou não para o Brasil. O fato é que a Sra. Joe Biden é professora. Bom para os americanos que terão uma professora na Casa Branca, como “first lady”.

 

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 7/14

Zemaria Pinto

 

O entrecho

Experimentado nos enredos mirabolantes das primeiras histórias que escreveu, e que rejeitaria mais tarde, Ferreira de Castro, ao compor A selva, pensou o entrecho desta de maneira totalmente diversa daquelas:

 

Pretendera realizar um livro de argumento muito simples, tão possível, tão natural, que não se sentisse mesmo o argumento. Um livro monótono porventura, se não pudesse dar-lhe colorido e vibração, mas honesto, onde o próprio cenário, em vez de nos impelir para o sonho aventuroso, nos induzisse ao exame e, mais do que um grande pano de fundo, fosse uma personagem de primeiro plano, viva e contraditória, ao mesmo tempo admirável e temível, como são as de carne, sangue e osso. (CASTRO, 1989b, p. 22)

 

A selva limita-se a isso que o próprio autor admite como sua “ambição”: uma história simples, com longas descrições monótonas, onde – complexa, como nenhum ser humano – a personagem de maior relevo, embora na função de antagonista, é a própria selva. Além desta, um outro vilão se destaca no Paraíso: o impulso sexual reprimido. É buscando anular a diferença entre realidade e ficção que o realismo de A selva se resume em um determinismo francamente naturalista, pois há uma tese a defender: sendo produto de seu entorno, homem nenhum resiste ao jugo do monstro selvático, que dobra, humilha e destrói a todos que o enfrentam. Uma óbvia adesão ao infernismo.[1]

Alberto tem 26 anos quando chega ao Brasil, vindo da Espanha, onde esteve refugiado após a derrota dos rebeldes monarquistas portugueses, no início de 1919. Na conversa com o comendador Aragão, ele informa:

 

– Eu sou um exilado político. Sou monárquico e tomei parte na última revolta de Monsanto, de que vossa excelência, decerto, ouviu falar… (p. 59)

 

Eles pretendiam restaurar a monarquia, derrubada nove anos antes, mas foram repelidos pelos republicanos. Contrariando os códigos realistas, o romance não informa datas. Tomemos então o ano de 1919 – quando aconteceu a revolta, em janeiro – como parâmetro, porque é a única data referida, ainda que indiretamente, sendo, certamente, o ano da chegada de Alberto no Brasil. Sua permanência pode ser medida pelo tempo que se passou até a promulgação da anistia aos revoltosos, o que aconteceria em 9 abril de 1921 (SERRANO, p. 83). Não mais que dois anos, portanto, ficaria Alberto no seringal Paraíso.  

 Em Belém do Pará, um irmão de sua mãe o abrigaria. Mas as coisas não correm como planejado. O tio tratou de arrumar-lhe uma colocação bem distante, onde não fosse um peso a mais. Como já vimos, há um paralelo estrutural com a história de José Maria, que acaba aqui. Na sequência, Alberto vai para o seringal Paraíso, em Humaitá, recrutado por Balbino. No seringal, ele é designado, juntamente com Firmino e Agostinho, para a localidade Todos-os-Santos, recém atacada pelos Parintintins, que mataram Feliciano, a quem a Alberto coubera substituir...

Firmino é o amigo de todas as horas – uma personagem auxiliar na trama, e, em relação a Alberto, seu confidente e o oposto que o complementa. Agostinho é a representação do que há de mais sórdido na natureza do Paraíso. Após uma temporada cortando seringa, Alberto torna-se o aviador do armazém do seringal, onde toma contato com a realidade escravagista na relação entre o patrão e os “brabos”, que trabalhavam sem nunca lograr sair da condição de devedores. Negativados sempre, iam se enredando cada vez mais nas teias do explorador Juca Tristão.

Euclides da Cunha, em página antológica – “Vede esta conta de venda de um homem” –, demonstra de modo irrefutável, com suas artes de engenheiro, que, mesmo nas condições mais favoráveis – o que inclui, sem mulher e filhos – o seringueiro sempre terminava devendo ao patrão, o que ele classifica como a “mais criminosa organização do trabalho” (CUNHA, 2019, p. 57-61). E o testemunho de Euclides data do final de 1905 ou início de 1906, quando o preço da borracha, em ascendência, alcançava altas cotações, pagando aos escravizados muito mais que pagaria em 1919. Arthur Reis lembra da condição de analfabetos da quase totalidade dos seringueiros, reféns da honestidade dos seringalistas, para o que não havia nenhuma garantia (apud BENCHIMOL, p. 326). Alberto era uma exceção, um corpo estranho no meio de brabos e broncos, numa cronologia capenga. Essencialmente, Alberto é uma inverossimilhança.

Aos poucos, o protagonista desenvolve uma consciência de classe que lhe era estranha quando chegara. Percebe-se prisioneiro e, mais que isso, escravo. Apesar de sua mente organizar a sociedade em castas, ele não aceita ficar no porão daquele navio negreiro fundeado em plena selva amazônica. Uma frustrada tentativa de fuga, liderada pelo amigo Firmino, desperta-o de vez, ao perceber que, como cães, que obedecem cegamente ao dono, os seringueiros não tem, entre si, qualquer traço de compromisso ou cooperação recíproca:

 

“Que ideia faziam da solidariedade esses grandes analfabetos? Que ideia tinham da sua própria situação? Mas a culpa seria verdadeiramente deles?” (p. 208)

 

Recebendo a notícia de que fora anistiado em Portugal, Alberto negocia sua liberdade, sendo anistiado também no seringal, no maior anticlímax da narrativa. Antes da viagem, contudo, um incêndio provocado por Tiago destrói o casarão e mata o torturador dos seringueiros, Juca Tristão.

A selva é um romance de espaço, pelo antagonismo onipresente da floresta, e é também um romance de formação, pois Alberto aprende muito sobre o ser humano, amolecendo suas convicções monarquistas em troca de um humanismo ainda pré-iluminista – um avanço para quem começara a viagem de ida como serviçal de algum rei, refletindo sobre “aquela humanidade primária” com quem era forçado a conviver:


“Possuíam alma essas gentes rudes e inexpressivas, que atravancavam o mundo com a sua ignorância, que tiravam à vida coletiva a beleza e a elevação que ela podia ter? (...) Só as seleções e as castas, com direitos hereditários, tesouro das famílias privilegiadas, longamente evoluídas, poderiam levar o povo a um mais alto estádio.” (p. 41)

 

Tiago – negro, velho, alcoólatra, coxo – é uma alegoria: de mero títere do cruel Juca Tristão transforma-se, após décadas de humilhação, em juiz e carrasco de seu algoz, a quem ele devotara paradoxal submissão. Seu gesto surpreendente guarda uma outra tese da narrativa: o crime bárbaro é a explosão de uma energia acumulada até os limites do impossível. Tiago é um símbolo do trabalhador explorado e – por que não? – uma semente da revolução, que para Alberto principiava a ser o oposto do que era no início da narrativa. 

 

Os 14 capítulos de A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras. 

Mas você pode obter o livro completo clicando nesta linha.




[1] Uma visão maniqueísta divide a Amazônia em duas perspectivas lineares – paraíso ou inferno –, de onde se abstrai se o texto é adepto do edenismo ou do infernismo.


domingo, 15 de novembro de 2020

sábado, 14 de novembro de 2020

Fantasy Art - Galeria

 

Chelin Sanjuan.


sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Bolero's Bar 15

Encadenados 

Zemaria Pinto


É mais forte que a nossa vontade, não tem sentido, não tem controle. Se tu vais, retornas. Se eu vou, me encontras. É uma maldição: acorrentados um ao outro por toda a vida. O amor como martírio, o desejo como castigo. E esse eterno regressar é como um estúpido relógio: cumprido o ciclo, ele começa tudo de novo até que o mecanismo emperre, desgastado pelo tempo. Esse é o nosso futuro – amar com a força do ódio, sem prazo para acabar. Por isso, nada de despedidas. Foi-se o tempo em que eu ficava chorando pelos cantos, descabelada, pensando em suicídio. Em vez disso, mergulho na serenidade da tua ausência, até que a tua volta produza uma nova chaga, que, como as outras, nunca cicatrizará.

 

Encadenados (1956), de Carlos Arturo Briz (México, 1917-1973). Bolero.


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quinta-feira, 12 de novembro de 2020

A poesia é necessária?

 Prece

Antonin Artaud (1896-1948)

 

Ah dá-nos crânios de brasa crânios
Pelas faíscas do céu queimados
Lúcidos crânios, crânios reais
Por tua presença traspassados

Que renasçamos nos céus internos
Crivados de abismos efervescentes
E que vertigens nos atravessem
Com suas unhas incandescentes

Vem saciar-nos que temos fome
De comoções intersiderais
Em nossas veias em vez de sangue
Despeja agora lavas astrais

Vem desprender-nos, vem dividir-nos
Com tuas mãos, brasas de corte
Para nós abre os tetos ardentes,
Onde se morre pra lá da morte

No mais profundo de sua ciência
Confunde, abala nossa razão
Arrebatando-lhe a inteligência
Nas garras novas de um furacão

 

(Trad. Mário Faustino)


quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Fantasy Art - Galeria


Yuehui Tang.

 

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Não vote no Cacareco

Pedro Lucas Lindoso

 

Eu fico muito ansioso em vésperas de eleições. Confesso que gosto muito de ir às urnas. Não é só porque me preocupo em bem escolher nossos representantes. O fato é que passei anos sem votar. Meu primeiro título era um cartão de ¼ de folha. No verso havia espaços quadriculares para carimbo e comprovação de votação. Não se podia “plastificar”. Acabei plastificando o meu, por desgosto. Não tinha serventia. Era só um registro. Requerido somente para fins de concurso público e expedição de passaporte.

Eu era eleitor de Brasília, Distrito Federal. Fui morar lá ainda menino e aos 18 anos tirei meu título. Em 1975 não havia eleições em Brasília. Só fui votar em 1990, aos 33 anos. Idade em que o Cristo foi crucificado.

No próximo dia 15 os eleitores de Brasília não vão às urnas. Lá não há prefeito nem vereadores. O DF é dividido em regiões administrativas. Os administradores são escolhidos pelo governador.  

Somente depois da Constituição Federal de 1988 é que o Distrito Federal passou a ter representação política. Ulisses Guimarães disse que Brasília era uma cidade “cassada”. Com a Constituição Cidadã a cidade ganhou uma Câmara Distrital e representação no Congresso Nacional. É renovada de 4 em 4 anos, quando se lege o presidente e os governadores.

Quando tirei meu título, na época dos militares, não se votava para presidente e nem para governadores. Mas havia eleições nos estados. Aqui no Amazonas votava-se para o Congresso Nacional e para a Assembleia. Em Brasília não havia ainda a Câmara Legislativa. O governador era escolhido pelo Presidente da República, que era sempre um general, junto com os ministros de estado.

Em 1996 iniciou-se o uso de urnas eletrônicas. Todas as capitais e grandes cidades começaram a utilizá-las. Eu não votei naquele ano. Era eleição para prefeito e vereadores. O Distrito Federal não participou por não os eleger. Naquele mesmo ano uma nova lei estabeleceu o modelo em vigor do título eleitoral. Houve um recadastramento. O meu velho e original título ficou “plastificado ad aeternum” e nunca foi utilizado, nem o verso carimbado. Houve um tempo em se votava escrevendo o nome dos candidatos. Ou em pequeninas cédulas impressas e distribuídas pelos próprios candidatos.

Cacareco foi um rinoceronte do Zoológico do Rio de Janeiro, emprestado ao Zoológico de São Paulo. Nas eleições municipais de um distante outubro, Cacareco recebeu milhares de votos para vereador. Tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro. Nessas eleições não vote no Cacareco. Mesmo porque o nome dele não consta das urnas eletrônicas.

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 6/14

Zemaria Pinto

 

Criador e criatura: paralelos

Sem enveredar por sendas psicanalíticas, é evidente, a partir da leitura do romance, que o fictício Alberto e o real José Maria Ferreira de Castro pouco têm em comum, além da distância de casa e da lancinante solidão decorrente.

Ao chegar no Brasil, Alberto, 26 anos, é um estudante de direito que lutara pela causa monarquista, na frustrada Revolta de Monsanto, em janeiro de 1919, e se autoexilara, fugindo de uma possível condenação por sedição.[1]

José Maria chega ao Brasil em 1911, tangido pela miséria de sua aldeia natal e a ilusão de ganhar dinheiro fácil no Brasil. Aos 12 anos de idade, certamente não pensava em política.

Ambos são enganados pelos patrícios que os receberam, indo para o seringal sob falsas promessas de enriquecimento fácil.

No seringal, enquanto Alberto vai aprender a cortar seringa, em uma área crítica, José Maria fica trabalhando no armazém – e escrevendo, pois desde cedo sentira o chamado da literatura. Alberto, após reler os livros que levara, limita-se ao exercício do “charadismo”, um passatempo tolo, pretensamente intelectual.

Graças a Nunes Pereira, que teve acesso ao borderô de José Maria, referente aos anos de 1913 e 1914, ficamos sabendo que “seus patrões lhe perdoaram o débito, ao fecharem-lhe a conta” (PEREIRA, p. 103). O mesmo aconteceria também com Alberto, num inverossímil acesso de ternura e gentileza por parte do asqueroso e truculento Juca Tristão.

Por não termos maiores detalhes da estada de José Maria no seringal, os paralelos terminam por aqui. Como se vê, tirando o embuste dos compatriotas, o episódio do comendador e a “bondade” dos patrões de ambos, nada mais os aproxima, além da distância de Portugal.

O mais absurdo de tudo isso é que há quem acredite piamente que o monarquista Alberto é o próprio Ferreira de Castro, mas no contexto português: em um sítio monárquico,[2] encontrei, numa postagem de 2008, uma relação de participantes da Revolta de Monsanto, onde se pode ler:

 

– José Maria Ferreira de Castro (civil – escritor)

 

Esse sítio de mensagens entre apoiadores da causa monarquista portuguesa, que ainda os há, se estende às comemorações do centenário da revolta, em 2019, sem que ninguém questione o nome intruso.

 

Sem dúvida, a vivência de Ferreira de Castro na selva forneceu-lhe material para a construção da história de Alberto. Mas, sob o provocativo prisma do distanciamento e do estranhamento e invertendo os paradigmas de criador e criatura, seria profícuo dizer que Ferreira de Castro também foi bastante construído pela história de Alberto. (LEÃO, p. 97)

 

É certo que Ferreira de Castro teve mais vantagem em ser confundido com Alberto, que o inverso. Alberto, a ficção, tende a ser esquecido, enquanto a ficção em torno de Ferreira de Castro ganha mais e mais adeptos, graças às sucessivas publicações de escandalosos equívocos editoriais.

 

Os 14 capítulos de A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras. 

Mas você pode obter o livro completo clicando nesta linha.



[1] A Revolta de Monsanto, em Lisboa, aconteceu de 22 a 24 de janeiro de 1919, em apoio ao movimento que se iniciara no dia 19, na cidade do Porto. Este conseguiu se manter até 13 de fevereiro, quando foi sufocado pelas forças legalistas republicanas. Os efêmeros 25 dias de restauração do regime monárquico entraram para a história, pela via da ironia, como Monarquia do Norte ou Reino da Traulitânia (COIMBRA, p. 118-135).  

 [2] https://geneall.net/pt/forum/148192/revolta-monarquica-monsanto/#a178335 consultado em 7 de abril de 2020.