sexta-feira, 31 de outubro de 2014
quinta-feira, 30 de outubro de 2014
Meio ambiente e linguagem
Zemaria Pinto
A poesia ,
por outro
lado , é a primeira
manifestação artística
da linguagem . É o momento
em que
os nomes extrapolam o dicionário e funcionam de forma
conotativa, isto é, passam a representar o que
não são ,
tomam vida nova ,
se expandem, se multiplicam em
significados . Ensinar
poesia a crianças
é ensiná-las a amar a linguagem , a casa
da vida .
O haicai
é um tipo
de poema desenvolvido
no Japão, desde o século
XII, mas que
só encontrou verdadeiro
reconhecimento literário
no século XVII, quando
viveu o maior de todos
os haijins, Matsuo Bashô. Compõe-se de três
versos e, à parte
a técnica , dedica-se à observação da natureza .
Ensinar haicais
a crianças e adolescentes
(sem excluir
os adultos , é claro )
pode ser uma forma
de fazê-los vivenciar a consciência ecológica ,
na observação da natureza
e no amadurecimento deles mesmos enquanto seres humanos .
O haicai
não tem nada
a ver com
seitas , religiões ,
ou sistemas de pensamento .
O haicai não é zen ,
não é budista ,
mas é, com
certeza , uma forma
de ver o mundo
e de se posicionar nele. A sua técnica , muito simples ,
ensina-nos, também , a organizar nossa
linguagem . O haicai
trabalha com
o transitório , com
o sensorial , é observação
transformada em poesia .
Comunicação
apresentada em um “Workshop ecológico”, no CAUA, em outubro de 1977.
Políticas de saúde frente a pior das doenças: a fome
João Bosco Botelho
Como todas as especialidades sociais, a Medicina deve ser
compreendida no contexto da totalidade social do homem, evitando a restrição da
ação individual imposta pela relação médico‑paciente. Essa atitude política impõe
dificuldades crescentes porque alarga o espectro de representação e obriga a
participação do médico, como agente oficial da medicina, nos destinos da
sociedade.
Há muito tempo existe o tácito reconhecimento de
diferentes práticas médicas entre ricos e pobres. Platão (República, 406, d) observou
as diferentes consultas: enquanto o abastado dispunha de tempo e dinheiro para
pagar regiamente o médico, o pobre sem temo e dinheiro, não recebia atenção
semelhante.
A situação mudou pouco na atualidade. As análises das complicações
ocorridas nos serviços de emergência mostram que certas pessoas recebem
tratamento diferenciado. Na hora de decidir, o médico acaba levando em
consideração outros fatores além dos supostamente técnicos. Mesmo nos
ambulatórios, onde habitualmente não existe risco de vida, quando o paciente se
mostra mais esclarecido o profissional de saúde presta mais atenção no curso da
consulta.
Apesar de essas situações serem conhecidas, não existe no
momento qualquer perspectiva para modificá‑las, especialmente nos países onde
predomina a fome quantitativa ou quantitativa na maior parcela da população.
É certo que a crueldade da fome alcança a maior parte do
planeta. Embora a produção de alimentos tenha aumentado consideravelmente nos
últimos trinta anos, cerca de 2 bilhões de pessoas, no mundo, estão diariamente
privadas do alimento mínimo para viver com menos doença. Como as crianças não
comem o mínimo necessário, o sofrimento da fome se arrasta durante os primeiros
anos de vida, gerando a desnutrição e o conjunto de doenças incapacitantes ou
que aumentam a mortalidade. Também é importante assinalar que as crianças
nascidas de mães também subnutridas, jamais poderão desenvolver adequadamente
as funções motoras e de aprendizado. É uma verdadeira fábrica de deficientes
físicos e mentais.
No Brasil, o problema é de magnitude semelhante. Apesar de
ostentar a sétima economia mundial, algumas parcelas da população, as mais
pobres, têm a mesma expectativa de vida que os da Etiópia, Birmânia e El
Salvador. É exatamente por essa razão que fica difícil falar de medicina no
Brasil sem lembrar que, dois mil e duzentos anos depois, Platão registrou a
existência de Medicinas desiguais.
A maior parte das enfermarias dos hospitais públicos
brasileiros (os quem têm maior poder aquisitivo, raramente ocupam esses leitos)
está preenchida por pessoas e crianças portadoras de doenças causadas direta ou
indiretamente pela subnutrição crônica.
Os estudantes de medicina, todos os dias, vêm os pequenos
doentes que conseguem sair vivos da diarreia da ameba para retornarem, poucos
meses depois, com a pneumonia fatal. É realidade absolutamente inaceitável, resultante
de um processo econômico e social injusto e desumano, na medida em que
marginaliza, nos limites da miséria absoluta, parte significativa da população.
O combate à fome, evitando as doenças infecciosas
responsáveis pela elevada mortalidade infantil, não passa somente pelos
auxílios financeiros na forma de "bolsas", devem incluir
necessariamente ao direito à educação de boa qualidade em horário integral,
para ajuste da alimentação e atenção primaria à saúde.
quarta-feira, 29 de outubro de 2014
terça-feira, 28 de outubro de 2014
segunda-feira, 27 de outubro de 2014
A busca da verdade
Darcy Ribeiro, por J. Bosco. |
Anísio Teixeira me
ensinou a duvidar e a pensar. Ele dizia de si mesmo que não tinha compromisso
com suas ideias, o que me escandalizava, tão cheio eu estava de certezas.
Custei a compreender que a lealdade que devemos é à busca da verdade, sem nos
apegarmos a nenhuma delas.
(Darcy Ribeiro, em Confissões)
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domingo, 26 de outubro de 2014
Manaus, amor e memória CLXXXIII
sábado, 25 de outubro de 2014
quinta-feira, 23 de outubro de 2014
Ecologia humana?
Zemaria Pinto
Há um paradoxo comum
nas discussões a respeito
do equilíbrio ecológico :
quando se privilegia a discussão das influências
negativas sobre
o meio ambiente ,
o Homem , motivação principal
da discussão , acaba sempre
relegado a segundo plano .
É claro que
um planeta
saudável favorecerá a vida humana . A discussão que eu proponho, entretanto ,
caminha em
outra direção
que a da relação
homem x natureza :
é preciso discutir
a relação homem
x homem .
Há um
evidente desequilíbrio no “meio ambiente pessoal ” do homem
moderno . Se olharmos ao nosso redor ,
veremos uma situação caótica no nosso
dia-a-dia , decorrente da deficiência no atendimento às nossas necessidades mais
elementares : saúde ,
educação , justiça ,
água , energia
elétrica ... E o que
falar do caos
no trânsito ? E da violência
gratuita , que
se pratica como diversão ?
E da corrupção generalizada? E da absoluta falta de
confiança em
nossos representantes políticos , o que
ameaça , mesmo ,
o próprio sistema
político ?
É preciso
repensar a própria
trajetória humana .
Os valores mais
caros da humanidade
parecem relegados a um plano inferior .
Justiça social ?
Oportunidade igual
para todos ?
A globalização da economia
impõe um paradoxo
terrível ao homem
que a vive, na medida
em que
a lei mais
elementar da economia
pressupõe o equilíbrio entre a oferta
de bens , por
um lado ,
e a capacidade de adquirir
esses bens ,
por outro .
O avanço da tecnologia
aumenta o desemprego, diminui salários e, consequentemente, desequilibra a relação econômica .
Posicionarmo-nos contra a tecnologia , entretanto ,
seria não apenas
temerário como
também infantil
e ridículo . A evolução
da espécie tem passado
obrigatoriamente pela evolução tecnológica ,
desde a pedra
lascada.
Comunicação apresentada em um “Workshop ecológico”, no
CAUA, em outubro de 1977.
Medicina na mitologia grega
João
Bosco Botelho
As
relações entre as práticas de curas e compreensão mítica da realidade
se perderam no tempo . Algumas vezes, é impossível distinguir onde começa uma e termina a
outra, compreendendo que a mitologia
nasce das relações com o mundo da natureza
empírica , mas
acima do meramente
empírico .
Das
primitivas relações do homem com o animal, predominando o sangue como garantia
da vida, posteriormente substituídas pelas relações com a terra, surgiu
empiricamente o vegetal na busca da saúde e evitando a morte.
O
uso do vegetal, indispensável para a sobrevivência do homem, se processou em
complexa compreensão mítica, marcada pelas explicações que se sucederam nos
milênios sobre a origem primeira e do destino final do ser humano. Evoluíram da
epopeia de Gilgamesh, dos babilônios, à teoria do Big Bang, dos modernos
astrofísicos, passando pela gênese judaico-cristã e Yebá Beló da lenda desana
da criação do Sol, indígenas do grupo linguístico tucano, das margens dos rios
Tiquié e Papuri, no alto rio Negro.
Os
registros do século 6 a.C. descrevendo a Medicina ligada à mitologia grega são,
provavelmente, o produto das complexas relações do homem que antecedeu a
formação do pensamento grego. É possível estabelecer certo paralelismo entre
muitos aspectos das relações médico-míticas das civilizações babilônica,
egípcia e indiana com as da Grécia antiga.
De
acordo com a mitologia grega, a Medicina começou com Apolo, filho da união de
Zeus com Leto. Inicialmente, Apolo era considerado como o deus protetor dos
guerreiros. Posteriormente, identificado como Aplous, aquele que fala verdade. Apolo
purificava a alma por meio das lavagens e aspersões e o corpo, com remédios. Por
essa razão, o deus que lavava e libertava o mal.
Um
dos filhos de Apolo, Asclépio recebeu educação do centauro Quiron para ser
médico. A escolha do centauro foi feita porque dominava os saberes da música,
magia, adivinhação, astronomia e Medicina. Além dessas habilidades, Quiron
possuía incomparável destreza, manejava com a mesma habilidade o bisturi e a
lira.
Para
os gregos daquela época, Asclépio divinizou a Medicina. Celebrado em grandes
festas públicas, no dia 18 de outubro, data em que até hoje se comemora o dia
do médico no Ocidente. Asclépio conquistou uma fama inimaginável, tinha a delicadeza
do tocador de harpa e a habilidade agressiva do cirurgião. Todos os doentes que
não obtinham cura em outros lugares, procuravam as curas milagrosas desse deus
curador. Mais cirurgião do que médico, ele criou as tiras, as ligaduras e as tentas
para drenar as feridas. Com esse imenso poder, ressuscitou alguns mortos. Zeus,
temendo que a ordem do mundo fosse transtornada, ordenou a morte de Asclépio com
os raios das Ciclopes.
A
genealogia mítica de Asclépio identifica duas filhas, Hígia e Panaceia; a
primeira, celebrada como deusa da saúde perfeita; a segunda, curadora por meio das
plantas medicinais. Além delas, dois filhos, Machaon e Podalírio, descritos por
Homero como médicos guerreiros, com destaque na guerra de Tróia.
Nos
muitos registros de agradecimentos dos doentes para Asclépio, as esculturas produzidas,
entre os séculos 6 e 2 a.C., contém a serpente enrolada no bastão. Seja qual tenha
sido a razão que levou o homem, no passado, a estabelecer elos entre a serpente
e a Medicina, está relacionada às imagens metafóricas da luta pela sobrevivência,
entre as quais a mitologia é parte sustentadora.
quarta-feira, 22 de outubro de 2014
terça-feira, 21 de outubro de 2014
segunda-feira, 20 de outubro de 2014
Lábios que beijei 32
Zemaria Pinto
Alice
Como gerente de banco,
eu conheci todo tipo de gente. Alice foi a mais estranha, numa escala de um para
mil: ainda hoje tenho pesadelos com ela, um nome sem rosto que me infligiu um
estigma na memória... Em uma manhã chuvosa, atendi ao telefone uma moça que buscava
informar-se sobre operações ordinárias. Sua voz era rouca, jovial e vivaz, e,
de repente, vi-me envolvido em uma conversa que há muito extrapolara o
meramente profissional. Trocávamos informações sobre gostos comuns,
preferências mútuas. Sugeri que conversássemos mais tarde. Ela não quis me dar
seu número, disse que ligaria depois do expediente externo. Era uma situação
comum: casada, ou algo parecido, ela mandava no jogo, sem expor-se a riscos.
Naquela tarde, entretanto, nada aconteceu. Dias passados, já nem lembrava mais
de Alice, ela ligou-me. A conversa estendeu-se por mais de uma hora. Alice era
desinibida e talvez até um pouco atrevida em suas posições. Opinava sobre tudo
– artes, política, esportes – e era muito firme em suas convicções. Quando eu
disse que era casado, ela soltou uma gargalhada: – Até quando? No dia seguinte,
ela voltou a ligar, para mais uma longa conversa. Aos poucos, percebi que
aquele desembaraço escondia a mais amarga solidão. Mas ela não falava nada
sobre sua vida pessoal. Dizia que quando nos encontrássemos eu ficaria sabendo
de tudo sobre ela. As ligações continuaram diariamente, durante três semanas,
ela sempre se esquivando de um encontro. Nos finais de semana, sentia falta de Alice,
de sua voz sensual e moleca. Até que ela cedeu: marcamos um encontro para o
anoitecer de sexta-feira. Trocaria o sagrado horário da cerveja com os amigos para
conhecer de perto aquela mulher cuja voz me seduzia. Fui até o coreto da Praça
da Polícia; esperei cerca de uma hora e meia. Alice não deu o ar de sua graça.
Na segunda-feira, minha ânsia foi atendida com o toque do telefone no horário
de costume: – Você não falou comigo... – Como, se você não apareceu? Fiquei
feito um idiota, no coreto, vendo as pessoas passarem. Nem sequer me olhavam,
tão apressadas. Além de mim, só uma moça paraplégica, levada por uma senhora de
idade, estava no local. Aliás, eu saí e ela ficou... Nesse momento, percebi um
“clic” do outro lado da linha. E nunca mais ouvi a enigmática voz de Alice.
domingo, 19 de outubro de 2014
sábado, 18 de outubro de 2014
quinta-feira, 16 de outubro de 2014
Adrino Aragão: a grandeza do minimalismo na literatura 3/3
Zemaria
Pinto
Caderno do escritor
Falei da árvore e dos frutos maturados.
Pouco resta para falar desse fruto novo (novo, mas não verde) que é o livro Caderno do escritor, onde Adrino Aragão
exercita, de modo ainda mais radical, o conto minimalista, não importa o nome
que damos a ele. São 116 contos, mais um bônus sobre o qual falarei mais
adiante.
Espelho
meu, dizei-me: qual desses dois sou eu?[1]
Uma frase em uma linha, duas orações e
nove palavras. Isto é um nanoconto de Adrino Aragão.
Vamos analisá-lo sumariamente. Em cada
uma das orações, Adrino recupera alguns séculos de tradições literárias.
“Espelho meu” é a clássica fala da madrasta de Branca de Neve, narrativa originária
da tradição oral alemã, provavelmente da Idade Média, e compilada pelos irmãos
Grimm na primeira metade do século XIX. A segunda frase – qual desses dois sou
eu? – é a expressão profunda da figura literária chamada “duplo”, expressa,
para melhor entendimento, pela fórmula “eu = outro”. Ao defrontar-se com o
espelho e fazer a pergunta, o narrador-personagem remete-nos a Jorge Luis
Borges, uma influência confessa na obra de Adrino Aragão. Mas isso é pouco. Há mais
de dois mil e duzentos anos, o romano Plauto já brincava com essa figura em Anfitrião. Mas não nos alonguemos, isto
é apenas uma apresentação, não uma tese.
Alguns contos parecem ser a conclusão de
uma narrativa mais longa. Cabe ao leitor montar a história anterior. Um
exemplo:
Há
uma dor ácida de profunda solidão por toda a quitinete, desde que ela me
deixou. Acordo (acordo?) no meio da noite, não sei que rumo tomar: você não
sabe o que é o amor de um velho apaixonado[2].
Alguns contos não escondem que são
poemas, como neste autêntico haicai:
Trégua
na mata:
o
grito do acauã
esfacela
o silêncio[3].
A metalinguagem é tema recorrente, como demonstrado
por Joaquim Branco, na obra de Adrino Aragão. E não poderia ser diferente neste
livro, onde vários contos são construídos a partir do tensionamento entre o
narrador e a narrativa. Este conto de sete palavras poderia ser inserido na
parte inicial deste trabalho, onde tentamos definir o conto enquanto gênero
literário:
O
conto não é ponto final: é interrogação[4].
O bônus a que me referi anteriormente é
um conto chamado “Velho Catuxo”, apresentado em três versões. E mais não direi
para não estragar a surpresa.
Poderia falar muito mais sobre este
pequeno grande livro, que confirma a assertiva de Bachelard: “a miniatura é uma
das moradas da grandeza”[5].
Poderia citar exemplos da sensualidade que penetra suavemente vários contos do
livro... Poderia falar das personagens do povo, naturalmente anônimas: o homem
rico e generoso que foi parar no asilo de velhos desamparados, a menina pobre
que deu o golpe do baú, o jogador de futebol vencido pelas drogas, a Nega
Charuto no céu... Não. Leiam e releiam e descubram esse universo mínimo de
Adrino Aragão, contido nesta casca de noz que é o Caderno do escritor e vão compreender porque o poeta e pintor
Fernando Abritta, que ilustrou o livro, dedicou-lhe estas enigmáticas palavras:
Adrino
escreve como um menino que, munido de uma atiradeira, vai acertando as lâmpadas
acesas que iluminam o cotidiano e, ao quebrar essas certezas, faz com que a
gente enxergue um pouco melhor[6].
Adrino, meu velho, aceite o meu abraço
fraterno por mais esta façanha.
Doutores fritz
João
Bosco Botelho
A antropóloga
Maria Andréa Loyola após pesquisa realizada em Nova Iguaçu e Santa Rita (RJ), entre
1976 e 1979, estabeleceu importantes relações entre a busca de saúde nos hospitais
e ambulatórios púbicos e a dos curadores por ela denominados "especialistas
não reconhecidos" (rezadores, padres, freiras, pastores, benzedores, pais
e mães de santos) e por mim caracterizados como "doutores fritz".
Os resultados
desse trabalho estão publicados no livro "Médicos e curandeiros: conflito
social e saúde", de 1982, onde a pesquisadora esclarece que a
procura do tratamento fora das instituições públicas representa reconstruções
pessoais e coletivas, para superar a absoluta ausência do Estado, na atenção
médica primária, a penúria social, certeza do abandono e, especialmente, o
descrédito nos médicos e hospitais. Os "doutores fritz" possibilitam
reinserções sociais por meio de outros sistemas de poderes locais relativamente
autônomos que permitem aos suplicantes afirmarem as identidades e pensarem ser
possível possuir lugares no mundo.
Existem pontos
que podem ser questionados tanto na elaboração quanto na reprodução da
liberdade com que os "especialistas não reconhecidos" ou
"doutores fritz" se multiplicam e atuam nas igrejas ligadas às muitas
tendências religiosas. O início da discussão pode ser a partir do pressuposto
de alguns segmentos dos poderes políticos usarem esses curadores como anteparo
às pressões coletivas frente às dificuldades do atendimento médico no sistema
público. Dito de outro modo, sem esses "especialistas não
reconhecidos", a insatisfação popular cresceria gerando conflito e
desgaste político.
Nos anos
1970, apareceu no Rio de Janeiro um "doutor fritz" autodenominado "sete da lira". Esse personagem, durante alguns meses, sem ser
importunado pelas autoridades sanitárias, atendeu milhares de pessoas no
subúrbio de Campo Grande. Desgastado pelos incontáveis insucessos, esvaziado,
restou o enorme patrimônio econômico da "fundação que administrava os dons
mágicos do curador."
Não é
adequado rejeitar ou criticar a priori os "doutores fritz". É importante
que essa discussão tome maior corpo nas universidades, inclusive na disciplina
História da Medicina, para que os pesquisadores sociais, como a antropóloga
Maria Andréa Loyola, continuem as análises e divulguem os resultados.
No livro
"Medicina e religião: conflito de competência", 2a. edição, que eu
publiquei pela Editora Valer, em 2005, mantive a ideia de a importância mais
imediata do sagrado continuar sendo a coisa sagrada, onde o conjunto que
encanta e reproduz possui um ou mais objetos de fixação, do culto do corpo
santo às relíquias, das imagens às oferendas nas encruzilhadas, gerando
consciência e resposta, ajudando os suplicantes a achar e ocupar os lugares no
mundo.
Historicamente,
a maioria dos cultos de conjuração é terapêutica, para amenizar a dor da
pobreza ou a cólica menstrual. Essa forma de atuar na saúde e na doença, por
ser mágica, sem passar por médicos e hospitais desacreditados, é a mais comum e
toca fundamentalmente no cerne da existência humana na ambição de recuperar a
saúde e evitar a morte precoce.
Os
inaceitáveis indicadores que continuam contribuindo para a reprodução dos "doutores fritz" começam no atual
modelo de desenvolvimento, gerador dos enormes desníveis socioculturais e se
consolidam na ausência de uma política voltada para a atenção primária da saúde
e da infância nos países onde os atendimentos médicos primários são frágeis ou
inexistentes.
quarta-feira, 15 de outubro de 2014
segunda-feira, 13 de outubro de 2014
Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude
Embora
um pequeno-burguês, eu penso como aquele príncipe de Lampedusa: para que as
coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude.
(João Sebastião – ng
ebastião - a, num surto de cinismo, justificando seu voto em Apoeta
nefelibata, filósofo de boteco, profeta do caos, eleitor do PT desde 1982 –,
num acesso de cinismo, justificando seu voto em Aécio Neves)
O verdadeiro caminho
O verdadeiro caminho passa por uma corda que não está esticada no alto, mas logo acima do chão. Parece mais destinada a fazer tropeçar do que a ser trilhada.
(Franz Kafka)
domingo, 12 de outubro de 2014
sábado, 11 de outubro de 2014
quinta-feira, 9 de outubro de 2014
Adrino Aragão: a grandeza do minimalismo na literatura 2/3
Zemaria
Pinto
O conto à meia-luz
O professor Joaquim Branco trabalha com
três livros de Adrino Aragão: Inquietação
de um feto, Tigre no espelho e Conto, não-conto & outras inquietações.
Três momentos diferentes do autor, três fases distintas de uma mesma obra: o
jovem, o homem maduro, o mestre.
De Inquietação
de um feto, Joaquim Branco destaca “o poético na confluência da prosa”[1]:
de fato, Adrino Aragão opta pelo afastamento total do realismo que minava a
contística amazonense e constrói pequenas narrativas onde a linguagem transita,
sem nenhum pudor, entre o mito e o místico: “Voo de Ícaro”, “Invenção”, “Rosa
vigiada”, “Filho”, “O afogado”, são contos que, nas palavras de Arthur
Engrácio, sabiamente recuperadas por Joaquim Branco, “além de invadirem o
terreno do fantástico, do mistério e do absurdo, tocam de perto o poético.”[2] Para
ilustrar sua tese, Engrácio transforma os dois parágrafos, de cinco linhas
cada, do conto “Filho” em um poema, de duas estrofes, com sete versos cada,
“com resultados surpreendentes”:
Tens
as vestes esfarrapadas, meu filho.
Teus
caminhos são tortuosos.
Teus
pés estão feridos e o corpo lanhado de espinhos.
Te
perdeste na procura do caminho
onde
poucos estiveram.
O
cavaleiro da estrada quis punir-te;
foste
poupado.
Vem,
meu filho.
Vou
cobrir a nudez de teu corpo cansado.
Do
cordeiro e do leão fiei tuas vestes.
E
nas três varas de bambu
sustentarás
teu corpo.
Até
que a espiga haja crescido viçosa
e
teus filhos estejam alimentados[3].
Em Tigre
no espelho, Joaquim Branco ressalta “o uso da intertextualidade, da
metalinguagem e o enfrentamento do ‘outro’, presentes em quase todo o percurso
narrativo do livro, preparando o terreno que vai se tornar a própria substância
da ficção”[4].
De fato, usando referências que fazem
pontes entre Edgar Allan Poe e Franz Kafka, Guimarães Rosa e Ernest Hemingway,
Adrino Aragão constrói um labirinto borgeano onde em cada passagem questiona-se
o próprio fazer literário, tal como ensinara o onipresente Jorge Luis Borges. Joaquim
Branco diz que, valendo-se do entrelaçamento de textos e personagens diversos,
e de uma linguagem adstrita ao realismo fantástico, em Adrino “a mímese se
realiza predominantemente através de processos metalinguísticos”[5],
ao que eu acrescentaria o embate consigo mesmo (o outro, o espelho), usando a
literatura para desmistificar a si mesma, como neste fragmento, extraído de
“Anotações para um conto”:
Que
diabo! Um escritor não pode ficar tanto tempo sem escrever. Por mais que me
esforce não consigo escrever nada. Nem um conto sequer. O último trabalho como
que me sugou totalmente. Decidi não ficar esperando pela inspiração e tentei
desenvolver algumas ideias mas não deu certo. Só consigo escrever impulsionado
por uma força interior me sufocando, gritando para sair[6].
Em 1999, escrevi um breve e
despretensioso ensaio sobre Tigre no
espelho, onde observo que o tema central do livro é a problematização do
ato de criar, de fazer arte[7].
Esse tema está presente em dez dos doze contos do livro – que, por sinal, não
se enquadram no escopo restrito da obra de Joaquim Branco: os mini, micro ou
nanocontos. Mas é exatamente esse questionamento recorrente que interessa ao
crítico, antes de chegar à grandeza das miniaturas de Conto, não-conto & outras inquietações, o cerne de sua pesquisa.
Nesse livro, Joaquim Branco anota que “se
concentra a maior força criativa do autor, que consegue em poucas linhas,
descobrir – no sentido de abrir, levantar o véu – um universo de sugestões e
vias para o leitor. Ali são demonstradas as relações entre o trágico e o
cotidiano, remontando ao mitológico grego”[8].
Eu diria mais, pois Adrino Aragão, neste
livro mais que em qualquer outro, assume um lado regionalista – mas não aquele
ligado ao realismo-naturalismo: um regionalismo anterior, mítico,
essencialmente amazônida. Aliás, nunca é demais repetir: “poucas literaturas
têm uma retaguarda mitológica tão expressiva como a literatura amazonense;
poucas literaturas têm o luxo de uma mitologia própria, cujas origens
confundem-se com as várias etapas do desenvolvimento da humanidade”[9].
Como exemplo, o próprio Joaquim Branco cita o miniconto “encantamento”:
a
canoa solitária descia de bubuia as águas barrentas do solimões. ao redor de
chapéus de palha que flutuavam ao sabor da correnteza, o festim dos botos
anunciava o encantamento de duas cunhãs do vilarejo[10].
[1]
Obra citada: p. 62.
[2]
Obra citada: p. 68.
[3] Obra
citada, p. 68-69.
[4]
Obra citada: p. 51.
[5] Obra
citada: p. 53
[6] Tigre no espelho, p. 75.
[7]
“Tigre no espelho”, in: Análise Literária
das Obras do Vestibular 2000 (Manaus: EDUA, 1999).
[8] Obra
citada: p. 80.
[9]
Frases pinçadas do meu livro O conto no
Amazonas (Manaus: Valer, 2011. p. 19).
[10] Obra
citada: p. 75.
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