Zemaria Pinto
Outro clássico: Carinhoso,
de Pixinguinha e João de Barro, o Braguinha. Canção que emociona há muitas
décadas, pois foi gravada pela primeira vez no mesmo ano de Chão de estrelas, a bem da verdade, é
uma canção muito mais “atual”, “moderna”, que aquela, com sua romântica e
envelhecida ideologia do bom malandro. Carinhoso,
ao contrário, tem linguagem simples e uma melodia cativante, que qualquer frequentador
de barzinho sabe levar. Mas a letra de Carinhoso...
Meu coração
Não sei porque
Bate feliz
Quando te vê
E os meus olhos ficam sorrindo
E pelas ruas vão te seguindo
Mas mesmo assim
Foges de mim
Ai, se tu soubesses como eu sou tão
carinhoso
E o muito, muito que te quero
E como é sincero o meu amor
Eu sei que tu não fugirias mais de
mim
Vem, vem, vem, vem, vem sentir o
calor
Dos lábios meus
À procura dos teus
Vem matar esta paixão
Que me devora o coração
E só assim então
Serei feliz
Bem feliz
É uma letra funcional. Sem a envolvente melodia de
Pixinguinha, é apenas um amontoado de clichês. A exceção poética – “e os meus
olhos ficam sorrindo” –, não sustenta o todo, coroado pelo imperdoável “vem
matar esta paixão / que me devora o coração”. Tenho vontade de pedir desculpas
ao Braguinha, mas resta-me o consolo de reconhecer que a extraordinária
composição do mestre Pixinguinha fica mais gostosa quando acompanhada pela
letra funcional do mestre Braguinha. E só por curiosidade: a gravação original,
de 1937, cantada por Orlando Silva, tem 02min46seg de duração, dos quais exatos
01min24seg – mais da metade – são ocupados com a introdução, orquestrada.
O caso Vinicius de
Moraes. Poeta
reconhecido desde 1935, quando lançou seu segundo e premiado livro de poesia, Forma e exegese, Vinicius teve vários
poemas usados como letras antes de se tornar compositor quase que em tempo
integral, exatos 20 anos depois, ao compor uma série de canções de câmara em
parceria com o maestro amazonense Cláudio Santoro. No ano seguinte, iniciava a
parceria com Antônio Carlos Jobim, dando vida à peça que viraria filme vencedor
do festival de Cannes e do Oscar de filme estrangeiro, em 1959: Orfeu negro. A parceria com Jobim
resultaria ainda no disco seminal da Bossa Nova – Canção do amor demais, na voz da “divina”, como Vinicius a chamava,
Elizeth Cardoso (1920-1990). Esse disco abria com “Chega de saudade”, marcada
pela estranha batida de um novo violonista: João Gilberto. Inquieto, em 1962
iniciou a parceria com Baden Powell, que nos legou afro-sambas antológicos,
como “Berimbau” e “Canto de Ossanha”, além do delicioso “Samba da benção”.
Outros parceiros vieram, ora com mais ora com menos frequência: Edu Lobo,
Francis Hime, Chico Buarque, até o definitivo Toquinho. Poeta lírico por excelência, uma análise da
obra musicada de Vinicius de Moraes é campo fértil para demonstrar nossa
raquítica teoria. Não é esse o nosso objetivo. Entretanto, vamos deixar pistas,
para que o leitor possa exercitar-se, confirmando ou discordando da nossa
teoria da letra-poema:
• Poemas-letras:
Poema dos olhos da amada, Soneto de
separação, Soneto de fidelidade, A arca de Noé, A casa, Rosa de Hiroshima;
• Letras-poemas:
Serenata do adeus, Marcha da quarta-feira
de cinzas, O que tinha de ser, Para viver um grande amor, O filho que eu quero
ter, Bom dia, tristeza, Valsinha;
• Letras
poéticas: Minha Namorada, Sabe você,
Pau-de-arara, Cotidiano Nº 2, Regra três, Menininha;
• Letras
funcionais: Só danço samba, O nosso amor,
Garota de Ipanema, Amor em paz, Maria vai com as outras, Onde anda você?
Letra ordinária. Não, não nos esquecemos, leitor.
Temos certeza que você não terá dificuldade em reconhecer a letra ordinária.
Não precisa muito esforço. Basta ligar o rádio. Aliás, se fôssemos representar
nossa teoria numa pirâmide quantitativa, muito parecida com aquela que vimos
nas primeiras páginas deste livro, provavelmente ela ficaria assim.
Pirâmide representativa da provável quantidade de letras, por
categoria.
O poema-letra é uma exceção. Por outro lado, a letra-poema é
mais rara que a letra poética, enquanto que a letra funcional constitui um
universo muito maior que ambas. A letra ordinária, entretanto, domina,
especialmente porque está ligada, qualitativamente, ao tipo de música que a
veste. Música de má qualidade, letra do mesmo nível. Mas isso não deve ser
motivo de queixa. São as leis de mercado. Só não precisamos submeter nosso
discernimento a elas.
FIM