João Bosco Botelho
Escola de Cós
O corte separando o antes e o depois, nos saberes da Medicina como paideia, encontra-se no livro
Das Doenças Sagradas, de autor desconhecido, do século 4 a.C.:
“Quanto à doença que nós chamamos de sagrada (epilepsia), eis o que ela significa: ela não me parece nem mais divina, nem mais sagrada que as outras; ela tem a mesma natureza que as demais doenças e se origina das mesmas causas que cada uma delas. Os homens atribuíram-lhe uma natureza e uma origem divinas por causa da ignorância e do assombro que ela lhes inspira, pois em nada se assemelha às outras.”
Pela primeira vez, uma enfermidade foi explicitamente assentada no domínio da
tékhne, após ser retirada do domínio dos deuses e deusas curadoras. Não é demais repetir que também nessa época, na ilha de Cós, ocorreu o ápice da medicina-oficial grega. O genial Hipócrates, o principal representante da Escola de Medicina de Cós, foi reconhecido como o marco nos saberes médicos por Platão (Protágoras 313b-c e Fedro 270c) e, posteriormente, por Aristóteles (
La Politique. Paris. J. Vrin. 1989. p. 484).
Os integrantes da Escola de Cós construíram o maior legado da Medicina como paideia:
a teoria dos Quatro Humores, aqui considerada como primeiro corte epistemológico da Medicina. Na realidade, a proposta teórica uniu elementos reconhecidos da Filosofia e da Medicina. Para cada elemento de Empédocles foi associada uma categoria teórica, capaz de unir com coerência as qualidades da natureza com as do corpo.
A teoria dos Quatro Humores, atribuída a Políbio, está descrita no manuscrito
Da Natureza do Homem (Daremberg.
Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855:
“O corpo humano contém sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra, que esses elementos constituem a natureza do corpo e são responsáveis pelas dores que se sente e pela saúde que se goza. A saúde atinge o seu máximo quando estas coisas estão na devida proporção em relação umas às outras, no que toca a sua composição, força e volume além de estarem devidamente misturadas. A dor surge quando há excesso ou falta de uma destas coisas, ou quando uma delas se isola no corpo em vez de estar misturada com as outras.”
A Medicina como paideia saltou do domínio casual e ametódico para o método construído em torno da busca da etiologia nos desequilíbrios dos humores. O diagnóstico acompanhava o prognóstico e a terapêutica para identificar o excesso ou a falta do humor desequilibrado. Como consequência, os tratamentos se voltaram para excretar as sobras por meio de vomitórios, sudoreses, diureses, diarreias e sangrias. O prognóstico se materializava na presença ou na ausência de resposta à terapêutica.
A aceitação da teoria dos Quatro Humores por alguns médicos da Escola de Cós não atenuou os embates com alguns filósofos, em certa medida, defensores da medicina-empírica e da medicina-divina, ambas livres das medidas de mensurações impostas pelo entendimento jônico da natureza.
Esses conflitos aparecem em dois textos:
– O filósofo Heráclito de Éfeso (540-470), de genialidade exclusiva, é contundente na antipatia aos médicos (
Os Pré-Socráticos: fragmentos, doxografia e comentários. 2. ed. São Paulo. Abril Cultural. 1978. p. 297): “Os médicos, quando cortam, queimam, e de todo o modo torturam os pacientes, ainda reclamam um salário que não merecem, por efetuarem o mesmo que as doenças”;
– O autor desconhecido de
Sobre a Medicina Antiga, do século 4 a.C., testemunha certo conflituoso entre alguns médicos e filósofos, no qual repudiaram de maneira enfática, a generalização de todas as doenças estarem estritamente ligadas somente aos quatro elementos de Empédocles: (DAREMBERG, 1855.
Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855: “1. Que no caso de um doente afetado por uma alimentação crua e curado por uma alimentação cozida, não é possível dizer o que foi eliminado da dieta, se o calor, se o frio, se a umidade ou a secura; 2. Que não existe um quente absoluto que possa ser misturado para curar o frio, uma pessoa tem de tomar água quente ou vinho quente ou leite quente e a água o vinho e o leite tem propriedades diferentes que serão mais eficazes do que o calor.”
Em alguns trechos da mesma obra, Hipócrates também sustenta que o corpo humano é composto por grande número de coisas de naturezas diversas: salinas, amargas, doces, ácidas, adstringentes, insípidas etc., e não só de quatro componentes. Essa posição hipocrática é intrigante porque, em última análise, pode ser entendida como resistência à teoria dos Quatro Humores do genro Políbio.
De certo modo, a contestação hipocrática traduz o conflito que alcançou outros filósofos para reduzir a saúde e a doença somente aos quatro determinantes da teoria dos Quatro Humores (sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra). É possível que os médicos da Escola Médica de Cós tenham sofrido influência de Alcméon, filósofo e médico de Crotona, no Sul da Itália, que admitia um grande número de forças atuando nos corpos (Thivel, Antoine.
Cnide et Cós? Paris. Les Belles Lettres. 1981. p. 289-383). No livro
Da Natureza do Homem, atribuído a Políbio, na mesma época, ressalta as ideias de Alcméon (Jouanna, J.
Hippocrate et l’École de Cnide. Paris. Les Belles Lettres. 1974 p. 137- 174), o defensor da ideia de a saúde ser dependente do equilíbrio de múltiplas forças dinâmicas e a doença seria o predomínio de umas sobre as outras.
Platão (República 407b-c-d-e) adotou o modelo médico dos tempos homéricos. É possível que essa leitura platônica tenha contribuído para ativar o conflito de competência entre a Medicina, voltada à interpretação da natureza por meio da
tékhne, e a religião. Em aparente contraditório, Platão retoma a Medicina como
téhkne ao distinguir as diferenças entre as práticas Medicinais entre pobres e ricos. O filósofo critica o modo como os médicos dos escravos correm de um paciente para outro e dão instruções rápidas sem falar com os doentes e os compara com os médicos dos homens livres (Leis 720a-b-c-d-e):
“Se um deles ouvisse falar um médico livre a pacientes livres, em termos muito aproximados das conferências científicas, explicando como concebe a origem da doença e elevando-se a natureza de todos os corpos, morreria de rir e diria no que a maioria das pessoas chamadas médicos replica prontamente em tais casos: – O que fazes, néscio, não é curar o teu paciente, mas ensiná-lo como se a tua missão não fosse devolver-lhe a saúde, mas fazer dele médico”.
Em certos aspectos, médicos e filósofos estavam de acordo. Tanto Platão (Platon.
Oeuvres Complètes. Paris: Ed. Gallimard. Bibliothèque de la Pléiade. 1950. v.1, v.2. Banquete, 186-187) quanto Hipócrates (Darembrg.
Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris: Labe Éditeur. 1855), reconheceram como insofismável a obrigação do médico em esclarecer o doente de todos os aspectos da enfermidade. Aristóteles (Aristote.
La Politique. Paris: J.Vrin. 1989. I, 11, 1282) vai mais longe e distingue o médico do homem culto em Medicina, estabelecendo o espaço que cada um pode ocupar nas suas funções específicas.