Amigos do Fingidor

sábado, 30 de novembro de 2013

Fantasy Art - Galeria


Zeljko Tonsic.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Deuses, heróis, bufões – uma dramaturgia amazônica 5/10


Zemaria Pinto

1.  Tragédias amazônicas
 

Faz-se necessário esclarecer que a tragédia de que trato aqui não se atrela à concepção aristotélica, em que o herói, de índole superior e destituído de toda maldade, comete uma “falha”, previamente determinada pelos deuses (1988, p. 31-33); nem tampouco à linha de Schopenhauer, para quem o sentido da tragédia extrapola os pecados individuais, visando expiar o “pecado original, isto é, a culpa da existência mesma” (2005, p. 334). Acredito, com Camus, que a tragédia moderna é coletiva (2008, p. 312-317); seus efeitos visam refletir a perda ou a destruição que se abate sobre determinado grupo, cabendo ao drama a representação do individual. Seria cansativo esboçar uma relação, mínima que fosse, das tragédias coletivas que marcaram o século XX ou mesmo este incipiente XXI – não importa a abrangência geográfica do levantamento –, que poderiam ser temas a levar ao palco. É somente nesse sentido que as três peças aqui analisadas podem ser classificadas como tragédias.

A Paixão de Ajuricaba, encenada inicialmente em 1974, repercute no próprio título o seu caráter trágico: a palavra paixão, como aqui empregada, tem conotações místicas, ligadas ao sofrimento dos primitivos cristãos. Não era essa certamente a intenção do autor, mas sim associar a luta do guerreiro manau à ideia de mártir da colonização. Dividida em dois atos, a peça tem na sua primeira parte a criação ficcional do idílio entre Ajuricaba e Inhambu, enquanto a segunda recria o fato histórico da prisão e da morte de Ajuricaba.    

Segundo o texto que tenho em mãos (1997a, p. 17-46), a ação se passa em 1738. Deve ser um equívoco, pois o próprio Márcio Souza, na Breve História da Amazônia, registra a morte de Ajuricaba em 1728 (1994, p. 62-63). O professor Arthur Reis a situa em 1727 (1989, p. 98-99).

A cena inicial mostra o coro lamentando a morte de Ajuricaba, anunciando ao público/leitor o desfecho trágico do enredo. Em seguida, Ajuricaba e Inhambu se digladiam com palavras e, aos poucos, o ritual da conquista amorosa vai nos fornecendo informações sobre os acontecimentos antecedentes: Ajuricaba derrotara o líder xiriana Poeraré, aliado dos portugueses, pai de Inhambu, e esta ainda se ressente da perda. Ajuricaba mostra suas armas: “– Eu sou Ajuricaba, filho de Poronominaré, senhor do rio Negro, rei dos manau, conquistador do Parima e flagelo dos portugueses.”

Atuando como narrador, o coro fornece algumas informações básicas: 

– Os manau, povo de Ajuricaba, habitavam neste país romântico que era o vale do rio Negro. Invadido por portugueses, ingleses, espanhóis, franceses e holandeses, esse país romântico passou a ver seus habitantes espoliados e escravizados pelos europeus, preados desumanamente pelos exploradores de droga do sertão.
 

Ajuricaba, acusado de aliar-se aos inimigos de Portugal, atrai a ira dos súditos que querem a Amazônia para a coroa. O primeiro ato termina numa bela elipse, com a fusão entre a festa de casamento de Ajuricaba e Inhambu e a prisão de ambos.

Pela denúncia de alta traição contra o rei de Portugal por se aliar ao “invasor”, Ajuricaba será levado a Belém, para ser julgado. Tal como no ato anterior, o coro e as conversas de Ajuricaba com o Capitão Português, o carcereiro Teodósio (um aculturado) e com o Irmão Carmelita fornecem informações sobre o pano de fundo histórico da peça. Inhambu, liberta, intercede pelo marido junto ao Capitão Português, que lhe faz a mais velha das chantagens sexuais em troca da facilitação da fuga de Ajuricaba. Perturbada, ela procura o Irmão Carmelita. Dos cínicos conselhos deste, com direito a citação de Santo Agostinho, resulta o único momento de distensão do segundo ato. Inhambu procura, então, o Comandante Português, com a intenção de matá-lo, mas, na luta, este desvia a arma para o corpo da ex-princesa xiriana, agora rainha manau, que tomba morta. Na sequência, Ajuricaba é torturado e colocado inconsciente numa canoa que navega rio abaixo, conduzida pelos soldados. Após nova sessão de tortura, os soldados jogam Ajuricaba ao rio e três entidades míticas o recebem em seus braços. Um soldado anuncia que o rebelde atirou-se n’água por vontade própria. O coro retoma o mesmo motivo da prédica inicial. A peça termina com Teodósio, o carcereiro, despindo-se de suas roupas de branco e pintando-se para a guerra: “– Meu nome é Dieroá, antigo assimilado de nome Teodósio, guerreiro e flagelo dos portugueses.”

O pouco que se sabe sobre Ajuricaba é suficiente para entender seu papel mítico no imaginário amazônico, tão rarefeito de heróis históricos. Filho de Huiuiebéue, abandonou a casa paterna por discordar da aliança do pai com os invasores. De 1723 a 1727 foi o líder dos rebeldes das mais de trinta nações do vale do rio Negro, que não aceitavam a invasão branca. Traduzindo em números, ecoando o Padre João Daniel, Márcio Souza diz queaté 1750 foram descidos à força mais de três milhões de índios” (1994, p. 61). Para efeito de comparação, a população do estado do Amazonas, no censo de 2010, foi estimada pelo IBGE em três e meio milhões de pessoas. E não eram apenas os portugueses os algozes: ingleses, franceses, espanhóis e holandeses também andavam por . Ajuricaba foi acusado formalmente pela coroa de aliar-se aos holandeses. Mas não se tratava de traição, pois não devia vassalagem a rei nenhum, posto que era rei e livre. A verdade mostrou-se bem depois: Ajuricaba jamais se aliou aos holandeses. Tudo fora forjado para que o massacre tivesse foros de legalidade (REIS, 1989, p. 100-102). Aliás, formalmente, Ajuricaba atirou-se ao rio, preferindo a morte aos grilhões. Essa versão, não diminuiu o impacto de seu martírio. Em 1729, um índio chamado Teodósio recomeçou a luta pela libertação do vale do rio Negro (REIS, 1989, p. 99; SOUZA, 1994, p. 63).    

A Paixão de Ajuricaba, estreia de Márcio Souza nos palcos, é sua obra mais trabalhada, do ponto de vista da carpintaria do texto. A linguagem é densa e a influência brechtiana não se disfarça, ao basear a trama nas relações entre as personagens, revelando as contradições de uns e de outros – o que é básico para a ideia do teatro épico (ROUBINE, 2003, p. 152-153). O que para alguns parecerá lentidão é, na verdade, a preparação do clímax, a partir de vários pontos gradativos de tensionamento. A opção por um tom recitativo, aliás, faz parte do distanciamento, bem como os tratamentos utilizados: os chefes guerreiros são reis e suas filhas são princesas. Há toda uma homologia com uma autêntica tragédia clássica, buscando revelar o caminho entre a história e o mito. Quando Ajuricaba declara-se filho de Poronominaré estaria afiliando-se ao mítico herói baré ou simplesmente rejeitando seu verdadeiro pai? Poronominare ou ainda Poromina Minare, a quem Nunes Pereira chama de herói-de-cultura (1980, p. 356-357), é um herói civilizador, mas não da estirpe de Jurupari, que lhe é bem anterior. Seus feitos guardam estreita homologia com histórias de outros heróis amazônicos, como Baíra e Macunaíma, mitos plenos de humanidade. De qualquer forma, o anacronismo é uma liberdade poética do autor, que, como observa Marcos Frederico Krüger, confere ao tuxaua manau “uma ascendência acima da dos mortais comuns, como queria Aristóteles, para quem no trágico realiza-se a imitação de seres superiores” (2003, p. 256). Essa relação com o sagrado não dispensa que o próprio Ajuricaba invoque dois conhecidos nossos, para descrever a degradação provocada pelo invasor: 

Inhambu, são os nossos irmãos trabalhando para o branco. como eles são fustigados e como eles não podem mais caçar nem pescar curimatãs, nem pintar o rosto para um dabacuri. como eles não temem Cainhamé e se apavoram com Jurupari.
 

Falando de si mesmo em terceira pessoa, o confiante Ajuricaba se associa ao mito: 

Com este sim, princesa xiriana,

Jurupari sabe que eles não terão descanso.

E o que Cainhamé ordenar será cumprido,

vertendo vida nesta selva quase devastada. 
 

Embora não caiba neste espaço de análise, registre-se que A Paixão de Ajuricaba cumpre uma outra premissa brechtiana: a de inserir o público/leitor numa discussão que transcende a mera divergência ideológica. Ao prospectar o passado os problemas atuais emergem – não apenas os de 1974, mas também os de 2013.

Projeto "A vida de uma obra" apresenta Cidadão Kane



Orson Welles tinha apenas 25 anos quando dirigiu, em 1941, Cidadão Kane, sem nunca haver tido qualquer experiência anterior com cinema. O filme garantiu para Welles a sua imortalidade: é um dos filmes mais citados nas infinitas listas de “maiores filmes de todos os tempos”. Aliás, nenhuma lista, por menos séria que seja, ousa deixá-lo de fora. Mas Cidadão Kane foi também, pela polêmica provocada, o inferno em vida de Welles, que dirigiria apenas mais uma dúzia de filmes, e apenas um quase da mesma estatura de Kane: A marca da maldade (1958).
(Zemaria Pinto)
 
 

O projeto de extensão “A VIDA DE UMA OBRA:” é uma iniciativa de professores do Programa de Pós-graduação em Letras e Artes da UEA, vinculados igualmente aos cursos de graduação em Letras e Música, em parceria com a Academia Amazonense de Letras.

O objetivo do projeto é promover, no âmbito da sociedade local, a discussão sobre arte e cultura, ao mesmo tempo em que procura contribuir com a educação da sociedade manauara, referente ao aspecto estético e cultural, além de reforçar os laços entre o conhecimento acadêmico, sobretudo produzido pela pós-graduação, e o conhecimento da sociedade em geral.

Quando: dia 11 de dezembro de 2013, às 18h30min

Onde: Academia Amazonense de Letras, rua Ramos Ferreira, 1009, esquina com Tapajós – Centro

Tema: Cidadão Kane

Palestrantes: Zemaria Pinto e Berenice Carvalho
 
Orson Welles, em cena emblemática de Cidadão Kane.
 

Antônio Loureiro lança o terceiro volume de "O Toque do Shofar"

 

A coisa sagrada: o corpo da medicina popular gerando conflito – 1



João Bosco Botelho

 

    "Por nove dias, as setas do deus dizimaram o exército... Filho de Atreu, quero crer que nos cumpre voltar para casa sem termos nada alcançado, no caso de à morte escaparmos, pois os Aqui­vos, além das batalhas, consome‑os a peste. Sus! Consultemos, sem mora, qualquer sacerdote ou profeta, ou quem de sonhos entenda – que os sonhos de Zeus se originam – para dizer‑nos a causa de estar Febo Apolo indignado: se por não termos cumprido algum voto ou, talvez, heca­tombes, ou se lhe apraz, porventura, de nós receber o perfume de pingues cabras e ovelhas, a fim de livrar‑nos da peste.” (Homero,Ilíada, I, 53).

    Esse segmento do texto de Homero retrata com clareza o conflito: a medicina incompetente para curar os pestilentos, restou à população suplicar a ajuda de Zeus. Na análise histórica das metáforas da coisa sagrada, tanto nas práticas sociais das políticas dominantes quanto nas periféricas, é indispensável repensar o conflito de competência entre a medicina e a religião.

    As práticas de curas remetem às incontáveis imagens das metamorfoses da coisa sagrada como parte das expressões e crenças religiosas populares desvinculadas das rígidas estruturas hierárquicas das igrejas. Sob essa perspectiva, é possível entender como e por que os curadores, adivinhos, magnetizadores, feiticeiros e benzedores nunca cessaram de receber os consulentes.

    Por esta razão, o repensar do binômio “curas-coisa sagrada” suscita contínuo interesse das academias que evitam os compromissos monolíticos com a lógica das concepções científicas, porque a cura mágica ou milagrosa, que interliga o suplicante à coisa sagrada, parece tratar-se de credulidade. O processo reprodutor desse fenômeno social passa, necessariamente, pela crença pessoal ou coletiva no poder de curar exercido pelas coisas sagradas. Deste modo, a coisa sagrada é, antes de tudo, aquilo que cura.

    A disputa trançada entre essa medicina popular, amparada na coisa sagrada como instrumento de cura, e a medicina construída nas universidades, raramente vem à tona despida de paixões, ora em defesa, ora atacando violentamente uma ou outra. Como consequência desse embate, a importância social da medicina popular é diluída na polarização de uma luta de poder em torno da cura, que pode ser simbolizada na mesma essência de Apolo e Dionísio, onde a medicina‑universitária se confronta com a medicina-religião.

    As mensagens rupestres, nas paredes das cavernas, quando associadas aos dados da paleopatologia, sugerem que a coisa sagrada e a crença no renascimento estariam presentes antes de a espécie Homo ser dominante.

    Fora outras discussões teóricas ligando a coisa sagrada à religião, é interessante a análise de Croce, que negou a independência da “categoria religião", considerando-a somente subproduto da "categoria moral". Por outro lado, Otto se esforçou para demonstrar a realidade da experiência pessoal com o sagrado como fundamental para qualquer religião e Gramsci desconsi­derou qualquer conceito de religião sem a correspondente relação cul­tural entre o indivíduo e a coisa sagrada. Os estudos gramscianos colocaram a religião no conjunto ideológico ligado à ética e por isso contribuin­do, em certas circunstâncias, para que o homem aceitasse as desigualda­des sociais.

    Desse modo, independente das interpretações teóricas, a coisa sagrada continua compondo o corpo da medicina popular e alimentando conflitos entre a medicina construída nas universidades e a religião.

 

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Fantasy Art - Galeria

 
Alicedie.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Eu e as timidezes 2/3


Letícia Cardoso

 

Situações que envolvam exposições e/ou avaliações sempre me deixam muito nervosa. As mãos suam, a boca seca, as pernas perdem o sentido de direção e na cabeça passam mil coisas ao mesmo tempo. Sem falar que, sem dúvidas, esses tipos de eventos são os que deixam nós, os tímidos, atentos para qualquer coisa.

Um momento de pura timidez e frustração é participar da aula. Quando o tímido decide dar esse dolorido passo, ele também traça um esquema. Desde o início, tudo é difícil, a começar por tentar levantar o braço. Na primeira tentativa, a mão do tímido vai para nuca e fica ali. O professor continua comentando o texto. Na segunda tentativa, a mão para na boca. Na terceira, ele consegue levantá-la e sente todos os ossos do seu braço fazerem o movimento. O tímido espera o que parece ser uma eternidade que o professor lhe olhe, resistindo à ideia de abortar a missão. Finalmente, quando decide tomá-la, seu braço superestendido é enxergado.

O professor dá aquele leve sorriso do tipo “enfim, você participará da minha aula”, e o tímido tenta retribuir o gesto, porém o que consegue é um sorriso sem graça que é uma tentativa muda de dizer “eu não sei porque eu fiz isso, podemos esquecer e  eu posso ficar calada, perfeitamente”. Mas embora seu desespero seja evidente, o professor não percebe nada e lhe dá a palavra. Eis outro desafio: falar. Mil coisas passam pela sua cabeça: o texto que havia decorado, toda a estratégia do que dizer, do que citar, a ordem, tudo parece estar misturado. Soma-se isso com “meu Deus! Todos estão me olhando, minha boca está seca e desde quando há uma bateria de escola de samba no lugar do meu coração?!”. Ou acha então que o coração transformou-se em nó que veio parar na garganta. Isso tudo se passa em assombrosos dois segundos, nada mudou, claro, todos continuam olhando para ele e o professor segue sorrindo.

Nesse momento, a pessoa tímida se dá conta ainda de que conseguiu superpoderes, quer dizer, isso varia de tímido para tímido. Vejamos. Há tímidos que quando expostos adquirem a superaudição e podem ouvir tudo o que está sendo cochichado e o que ainda será. Sim, é algo paranoico, mas acontece. Palavra de tímido! Outro superpoder adquirido é o de achar que tudo está lento, que as palavras soam com o tom de “baleiês” (como no filme Procurando Nemo) e às vezes a lentidão é tamanha que pode fazer as coisas girarem um pouco, é quando o tímido fixa, enfim, o seu olhar no vazio para evitar a náusea. O que é sempre muito estranho para quem está assistindo ao seu discurso.

Você consegue falar, mas de repente ouve um “mais alto” vindo lá do fundo da sala e tem que fazer um esforço sobre-humano para elevar o tom da voz. Como se isso fosse a coisa mais fácil do mundo! Então, à medida que fala, sente o seu rosto queimar por causa de tanta exposição e, antes mesmo de virar um pimentão ou ter uma convulsão, a sua participação termina. Ele relaxa? Não, ainda não. Continua na mesma posição, em evidente tensão, ouvindo agora o que o professor tem a dizer sobre seu comentário.

Na primeira aula de semântica, em um momento de súbita coragem, resolvi dizer à professora que achava que na crônica lida (“Defenestração”, de Luis Fernando Veríssimo) fazia referência à discussão feita anteriormente sobre as convenções sociais e blá blá blá. Há momentos em que você não sabe o que diabos lhe dá na cabeça, mas, de repente, fazemos coisas até então inimagináveis. Para mim, era inconcebível a ideia de participar da aula. Pedir a palavra, expor a minha opinião são passos muito grandes e, geralmente, quase me levam ao chão.

O fato é que, infelizmente, aconteceu o previsto. A professora não entendeu muito bem o meu ponto de vista. Eu, é claro, já tinha me arrependido de tudo no instante em que levantei a mão. Senti meu rosto esquentar, acho que o sangue todo foi para minha cabeça. Quis de verdade dizer que tinha sido um engano, ou pior sair da sala correndo e nunca mais voltar. Porém isso não aconteceu. A verdade é que fiquei tão nervosa quando a atenção voltou-se para mim que acabei atropelando-me nas palavras que tinha ensaiado dizer, por isso pareceu que a minha análise estava incorreta, no entanto não era bem assim.

Por sorte, um colega interveio durante o comentário da professora sobre a minha resposta e ela entendeu o que eu quis dizer. Mas era tarde demais porque eu já tinha me perdido em mil divagações sobre essa estúpida timidez que me faz sentir nervosa até para resumir um capítulo de novela.  Já não importava mais ter acertado ou não. A única coisa que queria naquele momento era deixar de existir ou então começar tudo de um ponto zero, porém dessa vez com mais extroversão e muito menos timidez. Por azar, o que consegui foi uma baita dor de cabeça pelo resto da noite devido ao “grau de exposição” e a angústia de não me fazer entendida. Às vezes, queria evaporar e só voltar a ter forma quando a timidez não me afetasse tanto, entretanto isso é impossível.

 

domingo, 24 de novembro de 2013

Manaus, amor e memória CXXXV


Se alguém souber onde um dia foi essa formosura de paisagem sórdida, por favor, me diga!
É de uma beleza baudelairiana.
Augusto dos Anjos amaria essa paisagem suja da Manaus antiga...
Oh, Manaus antiga, onde estavam os teus poetas sujos?

sábado, 23 de novembro de 2013

Fantasy Art - Galeria


Demoness.
Jason Engle.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Deuses, heróis, bufões – uma dramaturgia amazônica 4/10


Zemaria Pinto


Das “histórias verdadeiras” passamos a uma “história falsa”, A maravilhosa história do sapo Tarô-Bequê (1997a, 153-195), pela qual o próprio Márcio Souza diz ter “uma predileção especial” (1984, p. 42). Tarô-Bequê, encenada pela primeira vez em 1975, encerra um paradoxo na sua própria estrutura: embora em ritmo de comédia, trata-se de uma tragédia, ou, segundo o próprio autor, “uma comédia moral para crianças”, concebida de acordo com a tradição do povo Tucano. A opção pelo tom de comédia confirma a recomendação aristotélica de que estas tratem de “pessoas inferiores; não, porém, com relação a todo vício, mas sim por ser o cômico uma espécie do feio” (1988, p. 23-24). Tarô-Bequê traz animais antropomorfizados como personagens, com exceção de Cainhamé, o Pai do Mato, um ente com poderes sobrenaturais.
Em outra oportunidade, comentando o texto de A maravilhosa história do Sapo Tarô-Bequê, chamei a atenção para a inversão dos postulados europeus, onde bruxas más transformam gente em bicho. Na peça de Márcio Souza, um sapo transforma-se no guerreiro Tarô-Bequê e um cipó é metamorfoseado na Moça Juruti. O final, trágico, repõe a ordem original, quebrando a hegemonia do “final feliz” das fábulas europeias. A aproximação entre as lendas tucanas e conhecidas passagens da mitologia grega – os mitos de Prometeu, no episódio do roubo do fogo, e de Orfeu e Eurídice, na descida à Maloca dos Mortos –, nos remete novamente a Mircea Eliade, ao referir-se às “mitologias primitivas”:
Elas foram transformadas e enriquecidas ao longo dos tempos, sob a influência de outras culturas superiores, ou graças ao gênio criador de certos indivíduos excepcionalmente dotados. (...) Apesar de suas modificações ao longo do tempo, os mitos dos “primitivos” refletem ainda uma condição primordial. Além disso, nas sociedades “primitivas” os mitos estão ainda vivos e fundamentam e justificam todos os comportamentos e atividades humanas. (1986, p. 12)

A fábula de Tarô-Bequê é plena de aventura e suspense. Atendendo a um pedido insistente do sapo, Cainhamé acaba por ceder e transforma-o num guerreiro. Mas um homem solitário não está completo: Cainhamé, então, de um cipó, de tamanho entre o queixo e os pés de Tarô-Bequê, faz surgir a Moça Juruti. Tudo estaria muito bem se Juruti, cansada de comer carne crua, não exigisse do noivo que lhe trouxesse o fogo, guardado pelo Urubu-Rei, caso contrário o casamento não se consumaria. O ex-sapo não resiste ao desafio da amada. Fingindo-se de morto, “uma deliciosa carniça de gente”, Tarô-Bequê é levado pelo vaidoso Urubu-Rei até a casa deste, acima das nuvens, para que sua cozinheira, Dona Mucura, possa com ele preparar um repasto ao patrão. Após cegar o Urubu-Rei com pimenta, Tarô-Bequê apossa-se do fogo e montado no ex-guardião foge de volta para casa, ameaçando queimar-lhe as penas do rabo. Mas a Mucura tem seus contatos e consegue não descobrir tudo sobre Tarô-Bequê como chegar antes à casa onde Juruti esperava ansiosamente pelo noivo.
À maneira da madrasta de Branca de Neve, Dona Mucura se disfarça e inocula em Juruti um conhecido veneno – coca-cola –, desacordando-a e sequestrando-a em seguida. Ao chegar em casa e não encontrando Juruti, Tarô-Bequê pede ajuda a Cainhamé, que, com seus poderes, descobre que a jovem encontra-se prisioneira do Urubu-Rei e da Mucura, na Maloca dos Mortos. Acompanhado de Dona Surucucu, prima de Cainhamé, “descendente da vigésima geração da cobra-trovão que trouxe no ventre os avós-primeiros para a terra”, Tarô-Bequê, com o disfarce de um amigo do Urubu-Rei, penetra na Maloca dos Mortos, com uma restrição explícita: em hipótese alguma a palavranão” poderá ser pronunciada. Depois de muito caxiri, que embebeda não o Urubu-Rei e Dona Mucura, mas também a aliada Surucucu, Tarô-Bequê discute com Juruti sobre se devem ou não levar a cobra junto com eles. Juruti insiste que sim, Tarô-Bequê se nega. Juruti volta a insistir e Tarô-Bequê grita a plenos pulmões a palavra proibida. Como castigo por violar a interdição, Tarô-Bequê retorna à forma de sapo e Juruti se transforma num de tajá.      
As palavras finais de Cainhamé encerram a comédia com um travo de iniludível tristeza:
Pobre Juruti! Pobre Tarô-Bequê!
Nenhum lamento para eles é necessário.
(....) No sapo que poreja, vejam um amante desesperado.
Ele, o sapo, lerdo e pesado, um amante cheio de perseverança.
E nelas, nas folhas dos tajás, a amada não saciada.
O resto é essa poeira que acompanha nas margens do rio
o caminho de nossos desejos. 

Representando a sabedoria ancestral, Cainhamé, diligente protetor da natureza, é o repositório de todas as tradições, melhor dizendo, de todos os conhecimentos de sua gente. A sua linguagem é a única a manter-se sempre em alta tensão poética, deixando claro ao público/leitor a sua ascendência sobre os demais, mocinhos ou vilões. Ao subnominá-lo como Pai do Mato, Márcio Souza toma emprestado um título usualmente empregado para nomear espíritos malignos, como o Curupira, ou monstros, como o Mapinguari. Fazendo uma inevitável analogia com o percurso histórico da Mãe d’Águaque de serpente traiçoeira mudou-se em lânguida ninfa, graças às contaminações que o imaginário popular sofreu ao longo dos séculos –, é muito simpático reconhecer no sábio e ponderado Cainhamé o antes temível Pai do Mato. Sem dúvida, um título de nobreza. 
O lado cômico da história é garantido pelas interferências críticas à “civilização”, com gagues relacionadas a acontecimentos recentes, de domínio da plateia, sempre olhados como movimentos do colonizador no sacro espaço do mito. Assim, os tempos mítico e atual se cruzam e se interpenetram, num movimento articulado, garantindo para este o riso e para aquele a reflexão.
Tarô-Bequê sustenta-se em duas colunas mestras: o roubo do fogo, quando o herói leva a melhor, e a ida à Maloca dos Mortos, onde sua pretensão de virar gente se esvanece. Quanto ao simbolismo do fogoassim como em Jurupari, quando o incêndio da maloca de Naruna representava a purificação, o começo de uma nova era –, aqui ele tem dois significados complementares, essenciais à metamorfose pretendida por Tarô-Bequê:

1 – exprime o seu desejo de conhecimento, poisnão basta moldar um feixe de nervos feito gente para isso ser gente”, como o alertara Cainhamé;

2 – simboliza o desejo sexual reprimido dos noivos, pois é preciso ter o fogo em casa para que o casamento seja levado a termo e se perpetue; por outro lado, a carne assada ou cozida é um índice de civilidade, tanto quanto a instituição do casamento.

Em ambos os casos, o fogo é iluminação, metáfora do conhecimento humano, sempre em mutação. O mito de Prometeu aqui representado ilustra a humana “vontade de intelectualidade” (BACHELARD, 1990, p. 104); isto é, a vontade de saber, de ir além do conhecido, sem temer a barreira imposta por pais, mestres ou governantes.
A descida à Maloca dos Mortos, que evoca de modo direto o mito de Orfeu e Eurídice, é recorrente na literatura universal, desde Homero. A Maloca dos Mortos guarda uma relação direta com o inferno cristão de Dante e com os Infernos visitados por Ulisses e Eneias, na Odisséia e na Eneida, respectivamente. A simbologia é clara: se o sapo conseguisse sair daquele lugar interdito aos humanos carregando o fogo, ele teria merecido sua nova condição de homem, pois Cainhamé o prevenira, logo no início da aventura, que ele não seria “aceito por nenhuma comunidade de homens por não ter nascido de mulher”. O fracasso de Tarô-Bequê é um signo da queda cotidiana do homem, o que não é necessariamente o triunfo do Mal; antes, ele deixa-se vencer por si mesmo, pela sua falta de qualidades, sua incompletude. Demasiado humano.