quarta-feira, 30 de setembro de 2009
terça-feira, 29 de setembro de 2009
Manaus liberta!
Marco Adolfs
Manaus é quase uma feira a céu aberto. É só reparar. Reparem na avenida Eduardo Ribeiro e ruas adjacentes. Como tem gente vendendo de tudo ali. Como se estivessem em uma grande feira ao ar livre. É vendedor de churrasco, de café com leite e até de frutas regionais. E muito mais ainda é vendido nessas nossas ruas públicas que se tornaram privadas. Mas, agora, que Manaus foi escolhida para ser uma das capitais da Copa do Mundo de 2014, acredito que nossos administradores devam proporcionar a ela uma nova aparência.
Estão construindo um novo teatro de espetáculos: o tal estádio de futebol de dimensões arrojadas. Dizem também que teremos, finalmente, o tal metrô de superfície, o VLT (Veículo Leve sobre Trilhos). E dizem ainda que o aeroporto Eduardo Gomes será ampliado, com a rede hoteleira sendo redimensionada.
Mas, além do Teatro Amazonas, o que temos de bonito hoje na cidade? O Largo de São Sebastião, que por sinal já precisa de mais um pouco de melhorias, com a instalação de novos bares e restaurantes, além de iluminação adequada; temos ainda a combalida Ponta Negra e a bucólica Praça Heliodoro Balbi, com seu “palacete”. Ah! Sim..., e o antigo Paço e as ruínas do Mercado Adolpho Lisboa. Fora essas situações, podemos desviar o olhar para o lindo horizonte do rio ao largo.
Tudo isso é ótimo, mas a cidade precisa de um mais acelerado cuidado para se tornar mais “apresentável” aos nossos visitantes que virão com a bola cheia.
Aqui vão algumas sugestões.
Transformem a avenida Eduardo Ribeiro em um grande passeio público, vindo diretamente da Praça do Congresso, remanejando os vendedores ambulantes para outro lugar. Criem um Largo da Matriz, em frente ao Porto e Matriz e façam a Orla Fluvial existir como uma via expressa (para os carros e ônibus, afastados do centro) unindo os bairros de São Raimundo e Educandos, proporcionando assim um campo visual mais aberto em direção ao rio Negro. Finalmente – se sobrar dinheiro –, construam uma estátua gigantesca do nosso herói Ajuricaba, na ilha do Marapatá. Seria a nossa Estátua da Liberdade figurativa. De uma Manaus finalmente liberta.
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O resto é torcer pela seleção brasileira.
segunda-feira, 28 de setembro de 2009
Benchimol e a Amazônia
Como um caleidoscópio a Amazônia tem assumido, ao longo do tempo, diversas formas no imaginário da civilização. A leitura dos textos históricos é reveladora das ideias e visões que foram sendo criadas por viajantes, cientistas e poetas que se aventuraram pela geografia desse vasto e líquido território verde. Embora representem um primeiro esforço de revelação dos mistérios desse mundo enigmático, tais concepções nasceram sob o signo do fascínio e da estranheza. Foi concebida por alguns como a representação do Éden: o paraíso reencontrado. Outros a descreveram como a presentificação do inferno: um meio inóspito e desafiador.
Um dos primeiros estudiosos a perceber os limites e inconsistências desses discursos sobre a Amazônia foi o Barão de Sant’Anna Nery. No prefácio à 1.a edição de seu célebre livro O país das Amazonas, após examinar o trabalho de cientistas e viajantes que o precederam, defende a superação dos equívocos de suas visões e a necessidade de uma atitude menos contemplativa e exterior, e mais operativa e racional sobre a realidade amazônica. Chama a atenção para as possibilidades econômicas da região: “...resta-nos imprimir a resolução de ver e colonizar a mais bela, a mais rica, a mais fértil região do mundo, ‘a terra da borracha, o El-Dourado legendário’, as terras virgens que esperam a semeadura da civilização”.
A produção científica do professor Samuel Benchimol sobre a Amazônia faz parte dessa linhagem de trabalhos e reflexões que tem em Sant’Anna Nery um de seus referenciais. Profundo conhecedor da complexidade do ecossistema amazônico, Benchimol fundamentou suas pesquisas no reconhecimento de que é preciso educação, criatividade, compromisso, espírito empreendedor e rigor metodológico para a viabilização de um projeto de desenvolvimento sustentável para a região.
Zênite ecológico e Nadir econômico-social – Análises e propostas para o desenvolvimento sustentável da Amazônia é um livro-legado de suas teses e preocupações, que se estrutura como uma reflexão sobre os caminhos e descaminhos do progresso tecnológico e, sem alarmismo, propõe uma alternativa de desenvolvimento não só para a Amazônia, mas para a sociedade humana. O livro é afirmativo de sua ruptura com os cerceamentos e a esterilidade do antropocentrismo, que reinou por séculos no pensamento ocidental, ao mesmo tempo em que sustenta uma visão holística-ecológica da existência, concebendo o ser humano não mais como um fim em si mesmo, mas como parte de um todo: a natureza, que deve ter seu equilíbrio preservado, sob pena de comprometer a continuidade da vida e seus ciclos. Reitera a necessidade imperativa de se buscar “um novo modelo de sustentabilidade ecossocial, que incorpore a continuidade e a perenização do processo produtivo, aliando o uso dos recursos humanos sobre os biomas e ecossistemas da atmosfera e biosfera com o poder de sustentabilidade dos recursos naturais, de forma a garantir a solidariedade diacrônica entre as gerações”.
Como os velhos profetas, o professor Samuel Benchimol, ao longo de sua trajetória como pesquisador e mestre de várias gerações, defendeu reiteradamente a necessidade imperativa de se mudar conceitos e elaborar uma nova visão sobre a relação do homem com a natureza, bem como de se trabalhar para construir uma nova perspectiva em termos de desenvolvimento tecnológico para a Amazônia. Pela importância estratégica da região para o País, sobretudo em função das ameaças atuais dos interesses internacionais, é imperativa uma tomada de posição dos administradores públicos, dos planejadores, pesquisadores e formadores de opinião. Por conta da riqueza de seu subsolo, de sua biodiversidade e da água em abundância, a Amazônia passou a fazer parte da agenda internacional quando se discute o futuro do planeta. É mandatório nos qualificarmos para que possamos participar de forma produtiva desse debate e da defesa dos interesses regionais.
Tenório Telles
Como um caleidoscópio a Amazônia tem assumido, ao longo do tempo, diversas formas no imaginário da civilização. A leitura dos textos históricos é reveladora das ideias e visões que foram sendo criadas por viajantes, cientistas e poetas que se aventuraram pela geografia desse vasto e líquido território verde. Embora representem um primeiro esforço de revelação dos mistérios desse mundo enigmático, tais concepções nasceram sob o signo do fascínio e da estranheza. Foi concebida por alguns como a representação do Éden: o paraíso reencontrado. Outros a descreveram como a presentificação do inferno: um meio inóspito e desafiador.
Um dos primeiros estudiosos a perceber os limites e inconsistências desses discursos sobre a Amazônia foi o Barão de Sant’Anna Nery. No prefácio à 1.a edição de seu célebre livro O país das Amazonas, após examinar o trabalho de cientistas e viajantes que o precederam, defende a superação dos equívocos de suas visões e a necessidade de uma atitude menos contemplativa e exterior, e mais operativa e racional sobre a realidade amazônica. Chama a atenção para as possibilidades econômicas da região: “...resta-nos imprimir a resolução de ver e colonizar a mais bela, a mais rica, a mais fértil região do mundo, ‘a terra da borracha, o El-Dourado legendário’, as terras virgens que esperam a semeadura da civilização”.
A produção científica do professor Samuel Benchimol sobre a Amazônia faz parte dessa linhagem de trabalhos e reflexões que tem em Sant’Anna Nery um de seus referenciais. Profundo conhecedor da complexidade do ecossistema amazônico, Benchimol fundamentou suas pesquisas no reconhecimento de que é preciso educação, criatividade, compromisso, espírito empreendedor e rigor metodológico para a viabilização de um projeto de desenvolvimento sustentável para a região.
Zênite ecológico e Nadir econômico-social – Análises e propostas para o desenvolvimento sustentável da Amazônia é um livro-legado de suas teses e preocupações, que se estrutura como uma reflexão sobre os caminhos e descaminhos do progresso tecnológico e, sem alarmismo, propõe uma alternativa de desenvolvimento não só para a Amazônia, mas para a sociedade humana. O livro é afirmativo de sua ruptura com os cerceamentos e a esterilidade do antropocentrismo, que reinou por séculos no pensamento ocidental, ao mesmo tempo em que sustenta uma visão holística-ecológica da existência, concebendo o ser humano não mais como um fim em si mesmo, mas como parte de um todo: a natureza, que deve ter seu equilíbrio preservado, sob pena de comprometer a continuidade da vida e seus ciclos. Reitera a necessidade imperativa de se buscar “um novo modelo de sustentabilidade ecossocial, que incorpore a continuidade e a perenização do processo produtivo, aliando o uso dos recursos humanos sobre os biomas e ecossistemas da atmosfera e biosfera com o poder de sustentabilidade dos recursos naturais, de forma a garantir a solidariedade diacrônica entre as gerações”.
Como os velhos profetas, o professor Samuel Benchimol, ao longo de sua trajetória como pesquisador e mestre de várias gerações, defendeu reiteradamente a necessidade imperativa de se mudar conceitos e elaborar uma nova visão sobre a relação do homem com a natureza, bem como de se trabalhar para construir uma nova perspectiva em termos de desenvolvimento tecnológico para a Amazônia. Pela importância estratégica da região para o País, sobretudo em função das ameaças atuais dos interesses internacionais, é imperativa uma tomada de posição dos administradores públicos, dos planejadores, pesquisadores e formadores de opinião. Por conta da riqueza de seu subsolo, de sua biodiversidade e da água em abundância, a Amazônia passou a fazer parte da agenda internacional quando se discute o futuro do planeta. É mandatório nos qualificarmos para que possamos participar de forma produtiva desse debate e da defesa dos interesses regionais.
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domingo, 27 de setembro de 2009
Tufic: Pacote poético
Rogel Samuel*
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(Rio, 30 de setembro de 1999) Recebo um pacote pelo correio, um pacote amarelo que apalpo e que sinto, há objetos dentro, possivelmente livros: sim, são cinco novos livros de Jorge Tufic, que eu lhe pedi pelo telefone e eu fico me lembrando que, há quarenta e três anos atrás, ele publicava o seu já clássico Varanda de pássaros.
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Como pode Jorge Tufic manter 43 anos ininterruptos de poesia apesar da crise por que passa a produção cultural brasileira e a amazonense em particular? Porque depois daquele grupo do Clube da Madrugada muito pouco produziu a poesia de Manaus.
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Eu adolescente e Tufic já era dono de uma poderosa poesia que se afirmava principalmente nos seus sonetos extraordinariamente inovadores. Na década de 80 nós nos correspondíamos, depois ele se foi para Fortaleza e o perdi de vista. Soube que foi homenageado no Rio de Janeiro, onde moro, mas não o vi porque estava viajando.
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A última vez que o encontrei foi no ano passado, em Manaus, no Galo Carijó, onde gosto de almoçar sempre que estou em Manaus (também deparei ali com o Thiago de Melo, donde se conclui ser aquele bar um ponto da poesia presente).
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Agora, além de seus cinco livros, vieram várias pequenas publicações, entre as quais o belíssimo Agendário de sombras, uma coleção de sonetos dos quais cito, ao acaso:
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Necessito do rio e da paisagem
que me vira partir quando menino.
da visão surpreendida ou desse quanto
pode haver em redor do meu destino.
Eram coisas e seres do meu tempo,
partes de mim que a vida, em seu balanço,
foi deixando passar, nuvem sujeita
aos ventos, matéria sujeita ao ranço,
rubros sóis de verão, colheita breve
de azeitonas e ocasos, também contam.
Soldado entregue ao chumbo dos brinquedos,
ao som, talvez, das águas deste inverno,
quero sentir na pele evanescente
como eu seria agora, antigamente.
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Ao poetas menores como eu, Tufic humilha, com a força da sua Linguagem: mas como pessoa ele tem a gentileza dos mais nobres corações e nos brindou com imerecidas dedicatórias. Dentre sua produção recente, no ano passado ele publicou Sinos de papel, um delicioso livro de haikais que bastaria para o consagrar:
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Paineira caiada
Por uma lua de espuma
Tão cheia de nada.
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Jorge Alaúzo Tufic nasceu no dia 13 de agosto de 1930 e publicou seu primeiro livro aos 25 anos. A Amazônia dele se orgulha.
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sábado, 26 de setembro de 2009
sexta-feira, 25 de setembro de 2009
A Vila
Nunca pensei que aquilo fosse acabar, aqui tudo estava impregnado de eternidade como se o tempo não ousasse nos tocar. Os dias eram lentos e arrastados, uma tarde de não acabar nunca mais. A terra era boa conosco, generosa como toda boa mãe e tudo estava certo.
Ao longo das casas que formavam a vila, o sol arrastava sua luz cansada até a outra margem do rio, trazendo a noite, e todos se quedavam no descansar daquela vida sofrida e boa que era a vida na vila.
Para o mundo a vila não existia; para os homens da vila a vila era o mundo. Além do horizonte tudo era desconhecido e nós vivíamos num tempo sem data.
Ninguém sabe ao certo quando tudo começou. Havia noites difíceis de terminar. Quando seu Euleotério morreu todo mundo ficou se sentindo um pouco órfão. Seu Euleotério era o homem mais velho da vila, talvez por isso ninguém se surpreendeu muito com a morte dele.
Depois os outros foram morrendo também. Primeiro a mulher, depois os filhos e por último os netos, os animais todos, os cães que guardavam o portão, os cavalos, as galinhas, e até as plantas e as árvores ao redor, tudo foi morrendo daquela forma tão triste, que a casa deles parecia tomada de uma presença invisível que aos poucos se espalharia por toda a vila.
Logo as outras famílias foram morrendo também, uma a uma, ninguém sabia ao certo porque as pessoas estavam morrendo assim daquele jeito. Militão, que ainda estava vivo, disse que Deus havia esquecido da gente.
As famílias enterravam seus mortos. O último era enterrado pelos vizinhos que iriam morrer logo em seguida, eles já sabiam. Nem todos puderam ser enterrados: os corpos em putrefação ficaram no meio da vila, as casas vazias, como se esperando seus donos voltarem. Éramos os esquecidos de Deus, eu pensei quando vi os últimos morrerem.
Tudo que foi a vila agora são apenas ruínas, uma clareira no meio da floresta. A vida que era tanta se afasta lentamente e a clareira onde tudo morre só aumenta. A morte veio assim, sem pressa, sem pedir licença e ninguém pôde fazer nada.
Quando Emiliana e Eduardo morreram eu quis morrer logo em seguida. Não sei como pude sobreviver ainda. Um homem que vê todas as pessoas que ama morrerem não aguenta. Pensei em reconstruir a vila, buscar nesta imensidão uma presença humana de gente viva, mas que pode um homem sozinho contra a morte?
Sei que logo em breve morrerei também. O que devia ser um consolo, em vista da minha condição, é um medo terrível esse de saber que vou morrer a qualquer momento; no entanto, eu queria era já estar morto, não posso mais viver assim entre o nada e o nada.
O que eu queria mesmo era ter morrido enquanto todos ainda estavam aqui para eles chorarem por mim, assim como eu chorei por eles, morrer assim de repente, sem esperar nem saber disso, morrer como alguém que vai dormir e não sonha nem acorda mais, tranquilo, descansado dessa vida, sem susto, sem nem saber que havia morrido, porque morrer é isso, é nem saber que se morreu.
O que eu não quero é essa morte anunciada, um homem com prazo de validade, que coisa mais horrível pode haver?
A morte vem destruindo tudo, consumindo tudo, sem pressa, inexorável, como só mesmo a morte o é, ela sobe lentamente pelos meus pés e não há ninguém aqui que me dê a mão, que se compadeça de mim, que chore este momento meu me dando a ilusão de uma vida justificada.
O mundo inteiro ignora que um homem, que sou eu, morre sozinho num canto esquecido, mas mesmo assim, neste aniquilamento vazio e desvalido, o universo sou eu, em expansão até, com estrelas e tudo.
Inácio Oliveira
Nunca pensei que aquilo fosse acabar, aqui tudo estava impregnado de eternidade como se o tempo não ousasse nos tocar. Os dias eram lentos e arrastados, uma tarde de não acabar nunca mais. A terra era boa conosco, generosa como toda boa mãe e tudo estava certo.
Ao longo das casas que formavam a vila, o sol arrastava sua luz cansada até a outra margem do rio, trazendo a noite, e todos se quedavam no descansar daquela vida sofrida e boa que era a vida na vila.
Para o mundo a vila não existia; para os homens da vila a vila era o mundo. Além do horizonte tudo era desconhecido e nós vivíamos num tempo sem data.
Ninguém sabe ao certo quando tudo começou. Havia noites difíceis de terminar. Quando seu Euleotério morreu todo mundo ficou se sentindo um pouco órfão. Seu Euleotério era o homem mais velho da vila, talvez por isso ninguém se surpreendeu muito com a morte dele.
Depois os outros foram morrendo também. Primeiro a mulher, depois os filhos e por último os netos, os animais todos, os cães que guardavam o portão, os cavalos, as galinhas, e até as plantas e as árvores ao redor, tudo foi morrendo daquela forma tão triste, que a casa deles parecia tomada de uma presença invisível que aos poucos se espalharia por toda a vila.
Logo as outras famílias foram morrendo também, uma a uma, ninguém sabia ao certo porque as pessoas estavam morrendo assim daquele jeito. Militão, que ainda estava vivo, disse que Deus havia esquecido da gente.
As famílias enterravam seus mortos. O último era enterrado pelos vizinhos que iriam morrer logo em seguida, eles já sabiam. Nem todos puderam ser enterrados: os corpos em putrefação ficaram no meio da vila, as casas vazias, como se esperando seus donos voltarem. Éramos os esquecidos de Deus, eu pensei quando vi os últimos morrerem.
Tudo que foi a vila agora são apenas ruínas, uma clareira no meio da floresta. A vida que era tanta se afasta lentamente e a clareira onde tudo morre só aumenta. A morte veio assim, sem pressa, sem pedir licença e ninguém pôde fazer nada.
Quando Emiliana e Eduardo morreram eu quis morrer logo em seguida. Não sei como pude sobreviver ainda. Um homem que vê todas as pessoas que ama morrerem não aguenta. Pensei em reconstruir a vila, buscar nesta imensidão uma presença humana de gente viva, mas que pode um homem sozinho contra a morte?
Sei que logo em breve morrerei também. O que devia ser um consolo, em vista da minha condição, é um medo terrível esse de saber que vou morrer a qualquer momento; no entanto, eu queria era já estar morto, não posso mais viver assim entre o nada e o nada.
O que eu queria mesmo era ter morrido enquanto todos ainda estavam aqui para eles chorarem por mim, assim como eu chorei por eles, morrer assim de repente, sem esperar nem saber disso, morrer como alguém que vai dormir e não sonha nem acorda mais, tranquilo, descansado dessa vida, sem susto, sem nem saber que havia morrido, porque morrer é isso, é nem saber que se morreu.
O que eu não quero é essa morte anunciada, um homem com prazo de validade, que coisa mais horrível pode haver?
A morte vem destruindo tudo, consumindo tudo, sem pressa, inexorável, como só mesmo a morte o é, ela sobe lentamente pelos meus pés e não há ninguém aqui que me dê a mão, que se compadeça de mim, que chore este momento meu me dando a ilusão de uma vida justificada.
O mundo inteiro ignora que um homem, que sou eu, morre sozinho num canto esquecido, mas mesmo assim, neste aniquilamento vazio e desvalido, o universo sou eu, em expansão até, com estrelas e tudo.
as formigas
fez com o indicador sete buracos na terra preta do quintal, enterrando em cada um deles uma das formigas escolhidas. durante sete luas, regou as covas das formigas, com uma porção preparada ao longo de vários anos de pesquisa. na última lua, enquanto ele dormia rendido pelo cansaço, as formigas começaram a sair das covas. primeiro, devoraram o jardim, as plantas carnívoras e as cobaias. depois caíram sobre ele, devorando-lhe os pés, as pernas, os intestinos, os rins, os pulmões, o coração, os braços e a cabeça. a única parte do corpo que deixaram intacta foi o cérebro. só aí retornaram às covas, que as abrigariam por mais sete luas.
fez com o indicador sete buracos na terra preta do quintal, enterrando em cada um deles uma das formigas escolhidas. durante sete luas, regou as covas das formigas, com uma porção preparada ao longo de vários anos de pesquisa. na última lua, enquanto ele dormia rendido pelo cansaço, as formigas começaram a sair das covas. primeiro, devoraram o jardim, as plantas carnívoras e as cobaias. depois caíram sobre ele, devorando-lhe os pés, as pernas, os intestinos, os rins, os pulmões, o coração, os braços e a cabeça. a única parte do corpo que deixaram intacta foi o cérebro. só aí retornaram às covas, que as abrigariam por mais sete luas.
(Adrino Aragão)
quinta-feira, 24 de setembro de 2009
Zona Franca de Manaus – Condicionantes do Futuro*
Na busca por uma definição de cenários sobre a Zona Franca de Manaus e de fatores que condicionariam esse futuro, Ronaldo Bomfim e Lissandro Botelho lançam o livro Zona Franca de Manaus – Condicionantes do Futuro, pela Editora Valer, na manhã deste sábado, 26/09, a partir das 10:00h, na Livraria Valer.
O livro surgiu de um projeto elaborado para as entidades empresariais do Amazonas sobre fatores que podem afetar as empresas do Pólo Industrial de Manaus (PIM). Com base nesse estudo, os autores desenvolveram seus argumentos e formataram as idéias que embasaram a obra. Ronaldo Bomfim e Lissandro Botelho empreenderam uma das mais consistentes reflexões sobre o processo de desenvolvimento regional contemporâneo, com ênfase no Pólo Industrial de Manaus.
Com sólida formação teórica e amplo conhecimento dos fundamentos que engendraram a criação da Zona Franca de Manaus, os autores apresentam um painel crítico e desmistificador sobre a realidade dessa experiência econômica. Não o fazem de forma isolada, mas situando-a no contexto histórico Amazônico, ao mesmo tempo em que detalham os fatores que asseguraram a continuidade e a competitividade desse modelo econômico.
Zona Franca de Manaus – Condicionantes do Futuro é um ensaio de leitura obrigatória, não só pelos estudiosos dos processos econômicos, mas também pelos planejadores públicos, legisladores, intelectuais e cidadãos preocupados com o futuro da Amazônia.
As reflexões de Ronaldo Bomfim e Lissandro Botelho são esclarecedoras. Têm um caráter de diagnóstico de uma realidade econômica determinada, ao mesmo tempo em que oferecem subsídios para fazer avançar e aprimorar os processos do modelo analisado.
Os Autores
Ronaldo Bomfim é amazonense, formado em Economia pela UFAM, com M.B.A. em Desenvolvimento Econômico pela Universidade de Vanderbilt, nos EUA. Foi professor da UFAM no curso de Economia. Para Ronaldo, o livro resultou da busca pela qualificação, cada vez mais essencial em nosso mundo contemporâneo. "Precisamos ter um diagnóstico realista, que expresse os problemas que estão vindo pela frente. Fica patente a importância da qualificação como um fator-chave para o verdadeiro desenvolvimento econômico”, afirma.
Lissandro Botelho é formado em Economia pela UFAM, em Administração pela UEA, com mestrado em Planejamento do Desenvolvimento, pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos – NAEA, da Universidade Federal do Pará. Segundo Lissandro, entre as abordagens está a de que o Norte tem uma média educacional baixa. “Por isso, muitas vezes engenheiros de outras partes do País são chamados para trabalhar aqui”, disse.
Na busca por uma definição de cenários sobre a Zona Franca de Manaus e de fatores que condicionariam esse futuro, Ronaldo Bomfim e Lissandro Botelho lançam o livro Zona Franca de Manaus – Condicionantes do Futuro, pela Editora Valer, na manhã deste sábado, 26/09, a partir das 10:00h, na Livraria Valer.
O livro surgiu de um projeto elaborado para as entidades empresariais do Amazonas sobre fatores que podem afetar as empresas do Pólo Industrial de Manaus (PIM). Com base nesse estudo, os autores desenvolveram seus argumentos e formataram as idéias que embasaram a obra. Ronaldo Bomfim e Lissandro Botelho empreenderam uma das mais consistentes reflexões sobre o processo de desenvolvimento regional contemporâneo, com ênfase no Pólo Industrial de Manaus.
Com sólida formação teórica e amplo conhecimento dos fundamentos que engendraram a criação da Zona Franca de Manaus, os autores apresentam um painel crítico e desmistificador sobre a realidade dessa experiência econômica. Não o fazem de forma isolada, mas situando-a no contexto histórico Amazônico, ao mesmo tempo em que detalham os fatores que asseguraram a continuidade e a competitividade desse modelo econômico.
Zona Franca de Manaus – Condicionantes do Futuro é um ensaio de leitura obrigatória, não só pelos estudiosos dos processos econômicos, mas também pelos planejadores públicos, legisladores, intelectuais e cidadãos preocupados com o futuro da Amazônia.
As reflexões de Ronaldo Bomfim e Lissandro Botelho são esclarecedoras. Têm um caráter de diagnóstico de uma realidade econômica determinada, ao mesmo tempo em que oferecem subsídios para fazer avançar e aprimorar os processos do modelo analisado.
Os Autores
Ronaldo Bomfim é amazonense, formado em Economia pela UFAM, com M.B.A. em Desenvolvimento Econômico pela Universidade de Vanderbilt, nos EUA. Foi professor da UFAM no curso de Economia. Para Ronaldo, o livro resultou da busca pela qualificação, cada vez mais essencial em nosso mundo contemporâneo. "Precisamos ter um diagnóstico realista, que expresse os problemas que estão vindo pela frente. Fica patente a importância da qualificação como um fator-chave para o verdadeiro desenvolvimento econômico”, afirma.
Lissandro Botelho é formado em Economia pela UFAM, em Administração pela UEA, com mestrado em Planejamento do Desenvolvimento, pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos – NAEA, da Universidade Federal do Pará. Segundo Lissandro, entre as abordagens está a de que o Norte tem uma média educacional baixa. “Por isso, muitas vezes engenheiros de outras partes do País são chamados para trabalhar aqui”, disse.
*Republicado por conter erros de informação.
Novas tecnologias na medicina
João Bosco Botelho
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Os últimos cinquenta anos marcaram a Medicina pelos extraordinários avanços nas técnicas com o objetivo de melhor compreender a micro e a macroestrutura dos corpos vivos. A maior parte desse instrumental tecnológico está voltada ao aperfeiçoamento das imagens:
1. Das formas e funções dos segmentos corporais obtidos na macroscopia, isto é, vísivel aos olhos desarmados:
· Congeladas num tempo-espaço definido, como as produzidas pelos raio X, ultrassom, tomografia computadorizada, ressonância magnética, isótopos e isóbaros;
· Obtidas na dinâmica viva dos tecidos, em tempo real, por meio das endoscopias.
2. Das formas e das funções dos organismos microscópicos, das células e moléculas, na microestrutura, respectivamente, por meio dos microscopios óticos e microscópios eletrônicos.
Os conjuntos que interligam as imagens à microestrutura e macroestrutura dos corpos produziram as âncoras tecnológicas que mudaram as concepções do diagnóstico, da terapêutica e do prognóstico, por meio de:
· Obtidas na dinâmica viva dos tecidos, em tempo real, por meio das endoscopias.
2. Das formas e das funções dos organismos microscópicos, das células e moléculas, na microestrutura, respectivamente, por meio dos microscopios óticos e microscópios eletrônicos.
Os conjuntos que interligam as imagens à microestrutura e macroestrutura dos corpos produziram as âncoras tecnológicas que mudaram as concepções do diagnóstico, da terapêutica e do prognóstico, por meio de:
1. Terapêutica genética;
2. Órgãos artificiais;
3. Neuropróteses;
4. Inteligência artificial.
Estamos muito longe daquilo que todos querem: alcançar as dimensões da confluência entre a massa e a energia, na estrutura atômica, provavelmente, onde superaremos o paradoxo que atormenta os pesquisadores: em qual dimensão da matéria o normal se transforma em doença (se é que existem o normal e a doença, como os concebemos hoje).
2. Órgãos artificiais;
3. Neuropróteses;
4. Inteligência artificial.
Estamos muito longe daquilo que todos querem: alcançar as dimensões da confluência entre a massa e a energia, na estrutura atômica, provavelmente, onde superaremos o paradoxo que atormenta os pesquisadores: em qual dimensão da matéria o normal se transforma em doença (se é que existem o normal e a doença, como os concebemos hoje).
quarta-feira, 23 de setembro de 2009
terça-feira, 22 de setembro de 2009
Escritores insanos IV
Andando pelo interior do Amazonas a produzir documentários, topei um dia com um senhor de nome João do Forte. Esse senhor tinha entrado no barco que faz a linha Alvarães-Uarini. Como escrevia sem parar, aproximei-me para puxar conversa e descobrir sobre o que escrevia.
– São poemas sobre esta nossa vida de ribeirinho – ele me respondeu. – Já andei por todo esse interior, escrevendo nesses cadernos.
– Pretende publicar? – perguntei.
– Não precisa – explicou. – Após escrever, deixo os cadernos nas bibliotecas das escolas dos municípios por onde passo.
Andando pelo interior do Amazonas a produzir documentários, topei um dia com um senhor de nome João do Forte. Esse senhor tinha entrado no barco que faz a linha Alvarães-Uarini. Como escrevia sem parar, aproximei-me para puxar conversa e descobrir sobre o que escrevia.
– São poemas sobre esta nossa vida de ribeirinho – ele me respondeu. – Já andei por todo esse interior, escrevendo nesses cadernos.
– Pretende publicar? – perguntei.
– Não precisa – explicou. – Após escrever, deixo os cadernos nas bibliotecas das escolas dos municípios por onde passo.
(Marco Adolfs)
domingo, 20 de setembro de 2009
Poesia e poetas do Amazonas – apresentação
O desafio era basicamente este: escrever sobre uma antologia com mais de duzentos anos entre o primeiro e o último poeta. O que haveria de comum entre todos os poetas além do fato de serem antológicos e terem feito, ao menos em certo momento, literatura no Amazonas?, quis saber minha regular cabeça de crítico literário.
Volto à leitura. Folheio o texto ainda não encadernado que me fora entregue pelo Tenório Telles dias antes. E nada. Não sei bem por que, resolvi espalhar pelo chão do quarto as inúmeras folhas soltas. Olho para os nomes, os títulos dos poemas, as datas de nascimento. Como um detetive, estou tentando compor com essas páginas um mosaico de um crime. Que mesmo crime terão cometido todos esses autores e autoras? Ou terão sido vítimas? Se forem mesmo vítimas, muitos – inclusive vários que já partiram – não chegaram a ser mortos, porque, dispostas as páginas no chão, rodeando-me, todos me olhavam vivíssimos e desafiadores como a Esfinge.
Uma moça é quem começa. Dança, violenta e branca, à minha frente. Eu sei que as sereias cantam e assim nos seduzem, mas ela dança, como também, em vez de cantar, dançam em alguns poemas as palavras – afoitas, ofegantes. Uma mulher de 19 anos com seu sangue de sol e sua alma de bruma. Mas não me conta segredo algum. Não duvido, inclusive, que se eu der bobeira ela me leva para o fundo do mar, onde os segredos ainda são mais obscuros.
Ali próximo, em outras páginas, um grupo de cavalheiros observa a cena. Pigarreando ainda alguns pudores, Quintino Cunha me chama a atenção, pois vai declamar seu "Encontro das águas". Estufa o peito e: "Vê bem, Maria, aqui se cruzam...". Há uma fila formada para as seguintes declamações: Álvaro Maia, Américo Antony e Thiago de Mello são os próximos.
Alheias ao jogral estão certas figuras, nas sombras. Está cada qual num canto, e assim parecem querer ficar. Xavier de Carvalho, Theodoro Rodrigues, Antísthenes Pinto, L. Ruas. Mas logo, dessas sombras, nos quatro cantos do meu quarto, avança uma faminta escuridão. E por um instante me parece que vai engolir a claridade nascida na boca dos poetas que louvam a magnitude de florestas e de rios. Mas em seguida atinge a fronteira com a claridade, e nesse ponto faíscam os atritos desse embate.
As faíscas devem ter alterado minha vista, porque agora são muitas figuras que passeiam entre as páginas. Uns, vestidos de terno e gravata, revisam seus poemas; outros os fazem nus. Umas mulheres começam a parir palavras; outras preferem pingá-las delicadamente sobre as folhas de papel, como gotas. Poetas bebem, poetas fumam, poetas riem, poetas choram. No meio dessa confusão, Luiz Bacellar abre uma caixa de fósforos. Mas de lá saem apenas – gloriosos em sua singeleza – palitos. E eu queria outra Lux.
Talvez meu caminho esteja incorreto. As antologias parecem querer agrupar, reunir. Mas estas folhas soltas, espalhadas no chão do meu quarto, dão a impressão do que talvez seja a literatura de qualquer lugar do mundo: diversa. Falamos de escritores amazonenses ou que tenham sua vida marcada por uma passagem nesta terra. No entanto, as marcas podem ser muitas. Sim, talvez as antologias reúnam, mas aqui leio a reunião da variedade. A diferença é o que lhes dá em comum. Os poetas do ciclo da borracha, os do Clube da Madrugada, os que o leitor ainda pode encontrar pelos bares da cidade, os que agora só se encontram nos livros, os da noite, os do dia, os cosmopolitas e os provincianos. E é claro, os inclassificáveis, muitas vezes cambiantes entre um desses tipos e outros – estão todos nessas páginas. Sentir essa diversidade significa entrever a própria diversidade cultural do Amazonas – desde as brenhas do mato de Alcides Werk até as muitas cidades de Aldisio Filgueiras. Ponto para a antologia, que assim pode ajudar a revelar o que já está bem na nossa cara: a pluralidade – e não a unidade – que compõe nossa literatura e nossa cultura. Isso mesmo, não há uma literatura amazonense; há umas.
Acompanhamos, assim, através do complexo discurso literário poético, as variações da própria história do Amazonas: a colonização, a Província, a euforia gomífera, os processos de modernização, as resistências do arcaico, a contemporaneidade. Mas a sutileza da literatura requer dessa leitura histórica um esforço interpretativo, porque em sua esmagadora maioria os poemas não falam diretamente desses processos. No entanto, o lugar media a relação entre os poetas e seu tempo. Da mesma maneira que o tempo interfere na relação entre o poeta e seu lugar. Assim, cada poeta desta antologia é um signo do tempo e do lugar amazonenses.
E os signos não morrem: transmutam-se. Por isso, esses mais de duzentos anos de poesia vão como que se reescrevendo, à medida que lemos o tempo passando nos poemas. E assim, não há morte; há simplesmente reprocessamento da matéria de poesia. Ler, por exemplo, a "teoria" poética de Zemaria Pinto implica reler as formas clássicas dos primeiros poetas no Amazonas. Assim como ler as revisitações formais de Luiz Bacellar significa sincronizar tempo, forma e conteúdos poéticos.
Um engano que cometi ao início desta leitura foi achar que as antologias salvam os escritores, que elas os recuperam do esquecimento dos anos. Não tenho dúvida de que de certa forma isso ocorra – quando foi, por exemplo, a última vez que você leu "Monja", de Theodoro Rodrigues? Mas, ao recuperar traços da obra de cada poeta, as antologias descartam-lhes outros. Ossos de ofício de antologia. Resta esperar que cada escritor, com seu punhado de poemas nas mãos, seduza o leitor para o convite de uma maior intimidade. Como num baile, depois desta dança/leitura, o leitor lembrará de alguns rostos/vozes. E vai querer reencontrá-los.
Allison Leão*
O desafio era basicamente este: escrever sobre uma antologia com mais de duzentos anos entre o primeiro e o último poeta. O que haveria de comum entre todos os poetas além do fato de serem antológicos e terem feito, ao menos em certo momento, literatura no Amazonas?, quis saber minha regular cabeça de crítico literário.
Volto à leitura. Folheio o texto ainda não encadernado que me fora entregue pelo Tenório Telles dias antes. E nada. Não sei bem por que, resolvi espalhar pelo chão do quarto as inúmeras folhas soltas. Olho para os nomes, os títulos dos poemas, as datas de nascimento. Como um detetive, estou tentando compor com essas páginas um mosaico de um crime. Que mesmo crime terão cometido todos esses autores e autoras? Ou terão sido vítimas? Se forem mesmo vítimas, muitos – inclusive vários que já partiram – não chegaram a ser mortos, porque, dispostas as páginas no chão, rodeando-me, todos me olhavam vivíssimos e desafiadores como a Esfinge.
Uma moça é quem começa. Dança, violenta e branca, à minha frente. Eu sei que as sereias cantam e assim nos seduzem, mas ela dança, como também, em vez de cantar, dançam em alguns poemas as palavras – afoitas, ofegantes. Uma mulher de 19 anos com seu sangue de sol e sua alma de bruma. Mas não me conta segredo algum. Não duvido, inclusive, que se eu der bobeira ela me leva para o fundo do mar, onde os segredos ainda são mais obscuros.
Ali próximo, em outras páginas, um grupo de cavalheiros observa a cena. Pigarreando ainda alguns pudores, Quintino Cunha me chama a atenção, pois vai declamar seu "Encontro das águas". Estufa o peito e: "Vê bem, Maria, aqui se cruzam...". Há uma fila formada para as seguintes declamações: Álvaro Maia, Américo Antony e Thiago de Mello são os próximos.
Alheias ao jogral estão certas figuras, nas sombras. Está cada qual num canto, e assim parecem querer ficar. Xavier de Carvalho, Theodoro Rodrigues, Antísthenes Pinto, L. Ruas. Mas logo, dessas sombras, nos quatro cantos do meu quarto, avança uma faminta escuridão. E por um instante me parece que vai engolir a claridade nascida na boca dos poetas que louvam a magnitude de florestas e de rios. Mas em seguida atinge a fronteira com a claridade, e nesse ponto faíscam os atritos desse embate.
As faíscas devem ter alterado minha vista, porque agora são muitas figuras que passeiam entre as páginas. Uns, vestidos de terno e gravata, revisam seus poemas; outros os fazem nus. Umas mulheres começam a parir palavras; outras preferem pingá-las delicadamente sobre as folhas de papel, como gotas. Poetas bebem, poetas fumam, poetas riem, poetas choram. No meio dessa confusão, Luiz Bacellar abre uma caixa de fósforos. Mas de lá saem apenas – gloriosos em sua singeleza – palitos. E eu queria outra Lux.
Talvez meu caminho esteja incorreto. As antologias parecem querer agrupar, reunir. Mas estas folhas soltas, espalhadas no chão do meu quarto, dão a impressão do que talvez seja a literatura de qualquer lugar do mundo: diversa. Falamos de escritores amazonenses ou que tenham sua vida marcada por uma passagem nesta terra. No entanto, as marcas podem ser muitas. Sim, talvez as antologias reúnam, mas aqui leio a reunião da variedade. A diferença é o que lhes dá em comum. Os poetas do ciclo da borracha, os do Clube da Madrugada, os que o leitor ainda pode encontrar pelos bares da cidade, os que agora só se encontram nos livros, os da noite, os do dia, os cosmopolitas e os provincianos. E é claro, os inclassificáveis, muitas vezes cambiantes entre um desses tipos e outros – estão todos nessas páginas. Sentir essa diversidade significa entrever a própria diversidade cultural do Amazonas – desde as brenhas do mato de Alcides Werk até as muitas cidades de Aldisio Filgueiras. Ponto para a antologia, que assim pode ajudar a revelar o que já está bem na nossa cara: a pluralidade – e não a unidade – que compõe nossa literatura e nossa cultura. Isso mesmo, não há uma literatura amazonense; há umas.
Acompanhamos, assim, através do complexo discurso literário poético, as variações da própria história do Amazonas: a colonização, a Província, a euforia gomífera, os processos de modernização, as resistências do arcaico, a contemporaneidade. Mas a sutileza da literatura requer dessa leitura histórica um esforço interpretativo, porque em sua esmagadora maioria os poemas não falam diretamente desses processos. No entanto, o lugar media a relação entre os poetas e seu tempo. Da mesma maneira que o tempo interfere na relação entre o poeta e seu lugar. Assim, cada poeta desta antologia é um signo do tempo e do lugar amazonenses.
E os signos não morrem: transmutam-se. Por isso, esses mais de duzentos anos de poesia vão como que se reescrevendo, à medida que lemos o tempo passando nos poemas. E assim, não há morte; há simplesmente reprocessamento da matéria de poesia. Ler, por exemplo, a "teoria" poética de Zemaria Pinto implica reler as formas clássicas dos primeiros poetas no Amazonas. Assim como ler as revisitações formais de Luiz Bacellar significa sincronizar tempo, forma e conteúdos poéticos.
Um engano que cometi ao início desta leitura foi achar que as antologias salvam os escritores, que elas os recuperam do esquecimento dos anos. Não tenho dúvida de que de certa forma isso ocorra – quando foi, por exemplo, a última vez que você leu "Monja", de Theodoro Rodrigues? Mas, ao recuperar traços da obra de cada poeta, as antologias descartam-lhes outros. Ossos de ofício de antologia. Resta esperar que cada escritor, com seu punhado de poemas nas mãos, seduza o leitor para o convite de uma maior intimidade. Como num baile, depois desta dança/leitura, o leitor lembrará de alguns rostos/vozes. E vai querer reencontrá-los.
*Allison Leão, professor da UEA, tem mestrado em Cultura Amazônica, pela UFAM, e doutorado em Literatura, pela UFMG. Contista, é autor de Jardim de silêncios.
sábado, 19 de setembro de 2009
sexta-feira, 18 de setembro de 2009
Eu não levarei dinheiro pro inferno; lá a moeda é outra!
João Sebastião (poeta nefelibata, filósofo de boteco, profeta do caos), com seu sorriso giocondesco, pagando a conta superfaturada do boteco de terceira, às duas da manhã.
a estrela
no silêncio da sala, o incenso ardia no fogareiro de barro, quando elas chegaram. depois de depositar as oferendas no sacrário, ocuparam o lugar de costume, em pequenos travesseiros de cetim. pela janela, entrou o galo, e riscou na cerâmica azul da sala a estrela de cinco pontas. quando buscavam entender o significado da estranha aparição, uma voz lhes disse que em cada ponta da estrela estava o destino de cada um deles. em seguida, no meio da sala brotou o girassol imenso. súbito a sala começou a girar. até que tudo desapareceu. e cada um deles se viu sozinho, em caminhos opostos.
no silêncio da sala, o incenso ardia no fogareiro de barro, quando elas chegaram. depois de depositar as oferendas no sacrário, ocuparam o lugar de costume, em pequenos travesseiros de cetim. pela janela, entrou o galo, e riscou na cerâmica azul da sala a estrela de cinco pontas. quando buscavam entender o significado da estranha aparição, uma voz lhes disse que em cada ponta da estrela estava o destino de cada um deles. em seguida, no meio da sala brotou o girassol imenso. súbito a sala começou a girar. até que tudo desapareceu. e cada um deles se viu sozinho, em caminhos opostos.
(Adrino Aragão)
quinta-feira, 17 de setembro de 2009
Miguel Servet: a resistência aos dogmas católicos e protestantes
João Bosco Botelho
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A triste lembrança da execução do médico espanhol Miguel Servet, queimado vivo no fogo lento da madeira verde, em Genebra, no dia 27 de outubro de 1553, retrata o trágico resultado da perseguição aos homens e mulheres que resistiram aos dogmas encobertos pelo véu da intolerância dos católicos e protestantes.
A coragem de Servet amedrontou as duas hierarquias. Por essa razão, acabou queimado em imagem pela igreja católica, em Paris, e na fogueira pelos calvinistas.
Além da sempre atual lembrança dessa morte dramática e cruel, o extraordinário médico espanhol continua sendo lembrado como um ator fascinante, inserido nos dramas sociopolíticos do final do medievo e início do renascimento europeu, na veemente liderança contra os abusos eclesiásticos.
Miguel Servet nasceu em 1509, na aldeia espanhola Villanueva de Sigena, tornando-se um homem de fé e ciência. Como cristão devoto, entendia a Bíblia como o livro divino que transcrevia a palavra de Deus, convicto de que a origem da vida estava descrita no Gênese. Nesse sentido, nas dissecções dos cadáveres, incansavelmente, procurava nos pulmões o sopro que faz viver.
Sem achar o sopro da vida, a busca propiciou a mais importante contribuição na anatomia da pequena circulação entre o coração e os pulmões. Com clareza, o médico espanhol descreveu como o sangue caminhava do coração ao pulmão e vice-versa por meio das veias e artérias pulmonares que saiam e entravam nos átrios cardíacos.
Miguel Servet estudou na Universidade de Toulouse. Esse centro de ensino, em 1530, registrou em torno de dez mil alunos e seiscentos professores. Convivendo com os primeiros ares de maior liberdade, na alvorada renascentista, estudou Direito. Nessa ocasião, desafiando a autoridade papal, ao protestar com veemência contra o Código Justiniano, que legislava a pena de morte a todos que negassem a doutrina da Trindade, plantou o próprio calvário de sofrimento.
A partir da leitura atenta da Bíblia, Servet comprovou a absoluta ausência de qualquer referência à Trindade. Ele escreveu no seu livro Sobre os erros da Trindade (De Trinitatis erroribus), publicado em 1531, que a doutrina da Trindade seria um conjunto de sofismas originados no Concílio de Niceia, realizado no ano 325. A Trindade não estava no livro sagrado!
Homem de profunda fé, Servet admitia analogia bíblica entre o espírito e o sopro. Com discurso teológico pleno de fé, escreveu no seu famoso livro Christianismi Restituio as novas concepções que modificaram para sempre o conhecimento da pequena circulação que leva o sangue do coração ao pulmão e o traz de volta, já oxigenado, para ser distribuído por todo o corpo: “O espírito vital se regenera nos pulmões de uma mistura de ar inspirado e de sangue delicado elaborado no ventrículo direito do coração. Sem dúvida, esta comunicação não se faz através da parede do coração, como se acreditou até hoje, e sim, por meio de um grande orifício, o sangue é impulsionado até os pulmões”.
Ao utilizar os próprios estudos anatômicos, apreendidos nas dissecções dos cadáveres, Servet materializou o sopro, como compreensão de espírito, dando vida ao corpo. O médico nunca seria perdoado de ter expressado essa arrogância frente à autoridade eclesiástica, que mantinha a partilha sopro-espírito no exclusivo domínio do sagrado.
O desafio ao dogma aumentou a perseguição. O fim avizinhava-se. As contradições do poder de Roma uniram-se em torno de um objetivo maior: destruir o audacioso médico espanhol. Ao perceber o perigo iminente, fugiu em direção à Suíça, esperançoso da prolatada maior liberdade proposta pelos calvinistas. Triste engano! Ao defender o anabatismo, os calvinistas o encarceraram. No dia 27 de outubro de 1553, Miguel Servet foi queimado vivo no fogo lento da madeira verde, usada para aumentar o sofrimento.
Durante o processo acusatório montado pelos calvinistas, em Genebra, Servet recebeu as graves acusações de dois crimes, ambas passíveis da pena de morte: o antitrinitarismo e o favorecimento do anabatismo. As incriminações foram suficientes para que católicos e protestantes se unissem na destruição do inimigo comum.
Na França, a Igreja confiscou e destruiu a maior parte dos livros do médico espanhol. Os poucos exemplares sobreviventes do Christianismi Restituio, que descreveu as relações anatômicas entre o coração e pulmão, partes essenciais da circulação sanguínea, só foram identificados anos depois de William Harvey ter publicado o livro L’Exercitatto anatomica de motu cordis et sanguinis circulatione (Exercício anatômico sobre o movimento do coração e do sangue nos animais), e recebido das mãos do rei Carlos V os louros e o título de sir.
A brutal perseguição e morte de Miguel Servet, o médico espanhol que resistiu até a morte aos dogmas católicos e protestantes, ainda hoje ampara a reflexão das iniquidades que amparam a intolerância religiosa.
A coragem de Servet amedrontou as duas hierarquias. Por essa razão, acabou queimado em imagem pela igreja católica, em Paris, e na fogueira pelos calvinistas.
Além da sempre atual lembrança dessa morte dramática e cruel, o extraordinário médico espanhol continua sendo lembrado como um ator fascinante, inserido nos dramas sociopolíticos do final do medievo e início do renascimento europeu, na veemente liderança contra os abusos eclesiásticos.
Miguel Servet nasceu em 1509, na aldeia espanhola Villanueva de Sigena, tornando-se um homem de fé e ciência. Como cristão devoto, entendia a Bíblia como o livro divino que transcrevia a palavra de Deus, convicto de que a origem da vida estava descrita no Gênese. Nesse sentido, nas dissecções dos cadáveres, incansavelmente, procurava nos pulmões o sopro que faz viver.
Sem achar o sopro da vida, a busca propiciou a mais importante contribuição na anatomia da pequena circulação entre o coração e os pulmões. Com clareza, o médico espanhol descreveu como o sangue caminhava do coração ao pulmão e vice-versa por meio das veias e artérias pulmonares que saiam e entravam nos átrios cardíacos.
Miguel Servet estudou na Universidade de Toulouse. Esse centro de ensino, em 1530, registrou em torno de dez mil alunos e seiscentos professores. Convivendo com os primeiros ares de maior liberdade, na alvorada renascentista, estudou Direito. Nessa ocasião, desafiando a autoridade papal, ao protestar com veemência contra o Código Justiniano, que legislava a pena de morte a todos que negassem a doutrina da Trindade, plantou o próprio calvário de sofrimento.
A partir da leitura atenta da Bíblia, Servet comprovou a absoluta ausência de qualquer referência à Trindade. Ele escreveu no seu livro Sobre os erros da Trindade (De Trinitatis erroribus), publicado em 1531, que a doutrina da Trindade seria um conjunto de sofismas originados no Concílio de Niceia, realizado no ano 325. A Trindade não estava no livro sagrado!
Homem de profunda fé, Servet admitia analogia bíblica entre o espírito e o sopro. Com discurso teológico pleno de fé, escreveu no seu famoso livro Christianismi Restituio as novas concepções que modificaram para sempre o conhecimento da pequena circulação que leva o sangue do coração ao pulmão e o traz de volta, já oxigenado, para ser distribuído por todo o corpo: “O espírito vital se regenera nos pulmões de uma mistura de ar inspirado e de sangue delicado elaborado no ventrículo direito do coração. Sem dúvida, esta comunicação não se faz através da parede do coração, como se acreditou até hoje, e sim, por meio de um grande orifício, o sangue é impulsionado até os pulmões”.
Ao utilizar os próprios estudos anatômicos, apreendidos nas dissecções dos cadáveres, Servet materializou o sopro, como compreensão de espírito, dando vida ao corpo. O médico nunca seria perdoado de ter expressado essa arrogância frente à autoridade eclesiástica, que mantinha a partilha sopro-espírito no exclusivo domínio do sagrado.
O desafio ao dogma aumentou a perseguição. O fim avizinhava-se. As contradições do poder de Roma uniram-se em torno de um objetivo maior: destruir o audacioso médico espanhol. Ao perceber o perigo iminente, fugiu em direção à Suíça, esperançoso da prolatada maior liberdade proposta pelos calvinistas. Triste engano! Ao defender o anabatismo, os calvinistas o encarceraram. No dia 27 de outubro de 1553, Miguel Servet foi queimado vivo no fogo lento da madeira verde, usada para aumentar o sofrimento.
Durante o processo acusatório montado pelos calvinistas, em Genebra, Servet recebeu as graves acusações de dois crimes, ambas passíveis da pena de morte: o antitrinitarismo e o favorecimento do anabatismo. As incriminações foram suficientes para que católicos e protestantes se unissem na destruição do inimigo comum.
Na França, a Igreja confiscou e destruiu a maior parte dos livros do médico espanhol. Os poucos exemplares sobreviventes do Christianismi Restituio, que descreveu as relações anatômicas entre o coração e pulmão, partes essenciais da circulação sanguínea, só foram identificados anos depois de William Harvey ter publicado o livro L’Exercitatto anatomica de motu cordis et sanguinis circulatione (Exercício anatômico sobre o movimento do coração e do sangue nos animais), e recebido das mãos do rei Carlos V os louros e o título de sir.
A brutal perseguição e morte de Miguel Servet, o médico espanhol que resistiu até a morte aos dogmas católicos e protestantes, ainda hoje ampara a reflexão das iniquidades que amparam a intolerância religiosa.
quarta-feira, 16 de setembro de 2009
As orelhas de Van Gogh
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O autorretrato de Van Gogh publicado nO Fingidor de hoje, comemorando 1 ano de trabalho, é irmão gêmeo do quadro acima. A diferença é só o cachimbo. Sobre ele, no livro coletivo 1000 obras-primas da pintura, observa-se a seguinte curiosidade:
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Como se pode perceber, neste retrato a orelha enfaixada é a direita, embora Van Gogh tivesse decepado a orelha esquerda. Conclui-se, portanto, que o retrato foi pintado diante de um espelho. Em uma carta anterior a este quadro (datada de janeiro de 1889, quando de sua alta hospitalar), Van Gogh escreveu a(o seu irmão) Théo: "Comprei um bom espelho de propósito, para trabalhar nos meus próprios autorretratos, já que não disponho de modelos, porque, se eu conseguir retratar as cores da minha própria cabeça, o que em si já representa um desafio, quem sabe poderei retratar outros homens e mulheres?"
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terça-feira, 15 de setembro de 2009
Escritores insanos III
Em Cuzco, no Peru, existe um escritor que não escreve; só pinta. Ele me explica – entre baforadas de seu cachimbo e lances de tinta acrílica jogada em um quadro – os pormenores dessa sua atitude, repetindo a frase já conhecida de que “uma imagem vale por mil palavras”.
– Esses “livros-quadros” – diz – evitam termos que esperar uma edição que talvez nunca saia. E que, se sair – completou – não diga tudo.
O nome desse escritor que não escreve é Miguel e as paredes de sua casa-ateliê estão repletas de livros.
Em Cuzco, no Peru, existe um escritor que não escreve; só pinta. Ele me explica – entre baforadas de seu cachimbo e lances de tinta acrílica jogada em um quadro – os pormenores dessa sua atitude, repetindo a frase já conhecida de que “uma imagem vale por mil palavras”.
– Esses “livros-quadros” – diz – evitam termos que esperar uma edição que talvez nunca saia. E que, se sair – completou – não diga tudo.
O nome desse escritor que não escreve é Miguel e as paredes de sua casa-ateliê estão repletas de livros.
(Marco Adolfs)
segunda-feira, 14 de setembro de 2009
Sociedade, poder e crime
O Brasil é um milagre. E como um milagre, um dia dará certo. Afinal, um país com condições naturais tão favoráveis, com uma imensa riqueza cultural e um povo que tem alegria e humor, a ponto de carnavalizar as agruras e injustiças de que é vítima, e, ainda por cima, sublimar derrotas, decepções e traições de seus governantes, não pode dar errado. Embora muitos trabalhem para que permaneça no atraso, mergulhado em corrupção e sem perspectiva de futuro.
O fato é que as elites que governam este país há quinhentos anos sempre se preocuparam apenas em manter seus privilégios, impondo, comumente à força, um modelo social que empareda a classe e exclui os pobres, condenando-os a uma existência de penúria e grandes dificuldades para sobreviver. Para dar sustentação a essa ordem social, como foi denunciado pelo cientista político Raymundo Faoro, os donos do poder criaram um sistema jurídico não só para legitimar essa realidade, mas para protegê-los. Essa situação explica o porquê de os poderosos ficarem sempre impunes, protegidos pelo dinheiro, pela influência e por bons advogados.
Essa gente não percebeu que o país mudou. Que a sociedade amadureceu e está mais ciosa de seus direitos, consciente da sua importância e desejosa de cidadania. Embora sejam evidentes essas transformações, as elites políticas se comportam de forma conservadora, mesquinha e arrogante. Seguem achando que, porque detêm o controle político da nação, podem fazer o que bem entendem. Aliás, agem como se a coisa pública fosse um bem particular. Governar para eles é uma ação entre amigos, em que o dinheiro público é o butim a ser repartido entre os interesses e membros dos grupos que vencem a disputa pelo poder.
Essa mecânica foi revelada pelas operações da polícia federal. Seguem, nos diversos estados, o mesmo padrão: grupos de interesses, com a colaboração de agentes públicos, organizam-se para se locupletar com o dinheiro do povo. Aliás, é bom que se diga, que, entre as instituições públicas de combate ao crime, a polícia federal é a que mais tem contribuído para pôr um freio a esse mal que tantos prejuízos tem causado à sociedade brasileira. O que é digno de nota, é que não se ateve a investigar e prender contraventores e bandidos pés-de-chinelo, mas chegou às altas rodas, expondo ao vexame público empresários, políticos, ministros e até magistrados. Tanta ousadia não poderia ser tolerada por muito tempo. Afinal, os donos do poder são intocáveis. Ou pelos menos achavam que eram.
O episódio envolvendo o banqueiro Daniel Dantas, o ministro Gilmar Mendes e o delegado Protógenes Queiroz é uma evidência da parcialidade e espírito de grupo de certos setores das elites que, articulados em todos os poderes, agem para se proteger. O ministro do supremo, fundamentado em interpretação formalista da lei, decide estranhamente a favor de um homem acusado de graves crimes contra a ordem econômica, formação de quadrilha, inclusive espionagem. Como se não bastasse, passou a acusar o delegado Protógenes de ter cometido irregularidades na sua investigação, colocando-o sob suspeição. Tudo foi feito de modo a desviar o foco das atenções: Daniel Dantas está livre e o agente federal foi penalizado e passou a ser tratado como se fosse o criminoso. Não perderam a oportunidade: usaram a situação para pôr em xeque o trabalho da polícia federal e, desse modo, criar mecanismos legais para limitar as suas ações. É assim que os donos do poder agem. Prisão! Só para pobre e para quem não tem influência.
Tenório Telles
O Brasil é um milagre. E como um milagre, um dia dará certo. Afinal, um país com condições naturais tão favoráveis, com uma imensa riqueza cultural e um povo que tem alegria e humor, a ponto de carnavalizar as agruras e injustiças de que é vítima, e, ainda por cima, sublimar derrotas, decepções e traições de seus governantes, não pode dar errado. Embora muitos trabalhem para que permaneça no atraso, mergulhado em corrupção e sem perspectiva de futuro.
O fato é que as elites que governam este país há quinhentos anos sempre se preocuparam apenas em manter seus privilégios, impondo, comumente à força, um modelo social que empareda a classe e exclui os pobres, condenando-os a uma existência de penúria e grandes dificuldades para sobreviver. Para dar sustentação a essa ordem social, como foi denunciado pelo cientista político Raymundo Faoro, os donos do poder criaram um sistema jurídico não só para legitimar essa realidade, mas para protegê-los. Essa situação explica o porquê de os poderosos ficarem sempre impunes, protegidos pelo dinheiro, pela influência e por bons advogados.
Essa gente não percebeu que o país mudou. Que a sociedade amadureceu e está mais ciosa de seus direitos, consciente da sua importância e desejosa de cidadania. Embora sejam evidentes essas transformações, as elites políticas se comportam de forma conservadora, mesquinha e arrogante. Seguem achando que, porque detêm o controle político da nação, podem fazer o que bem entendem. Aliás, agem como se a coisa pública fosse um bem particular. Governar para eles é uma ação entre amigos, em que o dinheiro público é o butim a ser repartido entre os interesses e membros dos grupos que vencem a disputa pelo poder.
Essa mecânica foi revelada pelas operações da polícia federal. Seguem, nos diversos estados, o mesmo padrão: grupos de interesses, com a colaboração de agentes públicos, organizam-se para se locupletar com o dinheiro do povo. Aliás, é bom que se diga, que, entre as instituições públicas de combate ao crime, a polícia federal é a que mais tem contribuído para pôr um freio a esse mal que tantos prejuízos tem causado à sociedade brasileira. O que é digno de nota, é que não se ateve a investigar e prender contraventores e bandidos pés-de-chinelo, mas chegou às altas rodas, expondo ao vexame público empresários, políticos, ministros e até magistrados. Tanta ousadia não poderia ser tolerada por muito tempo. Afinal, os donos do poder são intocáveis. Ou pelos menos achavam que eram.
O episódio envolvendo o banqueiro Daniel Dantas, o ministro Gilmar Mendes e o delegado Protógenes Queiroz é uma evidência da parcialidade e espírito de grupo de certos setores das elites que, articulados em todos os poderes, agem para se proteger. O ministro do supremo, fundamentado em interpretação formalista da lei, decide estranhamente a favor de um homem acusado de graves crimes contra a ordem econômica, formação de quadrilha, inclusive espionagem. Como se não bastasse, passou a acusar o delegado Protógenes de ter cometido irregularidades na sua investigação, colocando-o sob suspeição. Tudo foi feito de modo a desviar o foco das atenções: Daniel Dantas está livre e o agente federal foi penalizado e passou a ser tratado como se fosse o criminoso. Não perderam a oportunidade: usaram a situação para pôr em xeque o trabalho da polícia federal e, desse modo, criar mecanismos legais para limitar as suas ações. É assim que os donos do poder agem. Prisão! Só para pobre e para quem não tem influência.
domingo, 13 de setembro de 2009
Sobre Ficções do Ciclo da Borracha
*Neuza Machado é Doutora em Letras; escreveu O narrador toma a vez, Criação literária: tema e reflexão, Do pensamento contínuo à transcendência formal. É profª da UCB-Rio, e trabalhou, como professora contratada, na UERJ e na UFAM.
Neuza Machado*
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O livro de Lucilene Gomes Lima, Ficções do Ciclo da Borracha, chamou-me a atenção por vários motivos. O primeiro, pelo fato de um dos romances, entre os três que foram analisados pela autora, pertencer ao que costumo nomear (em sala de aula) como romance Pós-Moderno/Pós-Modernista de Segunda Geração (classificação de minha autoria, até prova em contrário). Pelo meu ponto de vista teórico-crítico, as narrativas da segunda metade do século XX aos dias atuais poderão apresentar-se como pós-modernas, uma vez que transmitem os sinais que, segundo os estudiosos da literatura, assim as caracterizam.
A narrativa O Amante das Amazonas, de Rogel Samuel, analisada por Lucilene Lima, sem nenhuma dúvida, apresenta as diversas marcas do tempo histórico de seu Criador (tempo “estilhaçado”, alternância de vozes narrativas, comentários, digressões, diálogos com o leitor etc.), características estas próprias dos romances elaborados já no final do século XX, mesmo apresentando aos leitores um fio narrativo localizado no passado. A “superação da percepção maniqueísta”, que de acordo com Lucilene Lima se colocaria em uma terceira fase na abordagem do tema sobre o “ciclo da borracha”, já seria, a meu ver, uma das características que assinalam as narrativas pós-modernas/pós-modernistas. Rogel Samuel, fazendo a reconstituição do espaço narrado “pelo caminho da memória de seu avô”, como afirma a autora, não só supera a “percepção maniqueísta”, como vai além do relato que se vale da memória, “obrigando” os leitores a presenciar os dramas de seus personagens por meio da narrativa de ficção. Assim, a matéria dramática se faz presente na criação ficcional de Rogel Samuel (atenção: Matéria Dramática ≠ Gênero Dramático), demonstrando que o “ato de bem ver” a realidade, no âmbito da ficção, e quando há realmente criatividade, supera o “ato de bem narrar”, marca das narrativas lineares de anteriores estéticas literárias. Então, afirmo: Rogel Samuel não teve “experiência direta” com o problema do Ciclo Econômico da Borracha, causador de tantas tragédias, mas, como “escritor estudioso da literatura”, acrescido do fato de ser amazonense, neto de rico comerciante da borracha, filho de Alberto Samuel, um homem que conheceu em profundidade aqueles “furos” de água da Grande Floresta e a maior parte dos igarapés do Amazonas, repito, este escritor amazonense do final do século XX (mas, naquele momento, já interagindo com as pré-anunciações do século XXI) soube, singularmente, “ver” a realidade que o cercava e, habilmente, transformá-la em ficção pós-moderna sui generis. A “problemática temporal” associada à “estética particular” de Rogel (apropriando-me aqui das expressões de Lucilene) propiciou a criação de uma narrativa ímpar, que vigorará ainda com maior força no futuro. (Sempre costumo lembrar aos meus alunos que a verdadeira arte, em qualquer de suas feições, terá de romper os limites de seu tempo histórico e de suas ideologias, e O Amante das Amazonas já iniciou esse processo de ascensão ao futuro, elevando-se à categoria de grande obra.).
Entretanto, quero assinalar aqui os outros motivos que me fizeram ler com atenção o livro de Lucilene Lima. O assunto do Ciclo da Borracha sempre despertou a minha atenção. O relato de Ferreira de Castro, em A Selva, narrativa que propiciou o surgimento (antes de Gaibéus, de Alves Redol) do neorrealismo em Portugal, tornou-se presença obrigatória em meus cursos de Literatura Portuguesa. A dissertação de Lucilene apresentou-me novos caminhos de apreensão do universo ficcional de Ferreira de Castro. Passei a relê-lo com outros olhos, reorganizando o meu ponto de vista sobre o assunto. É bem verdade que o problema do Ciclo Econômico da Borracha, nesta narrativa de Ferreira de Castro, foi visto pela ótica do estrangeiro, como diz Lucilene Lima, mas esse “estrangeiro” sofreu em seu próprio corpo e, por que não dizer, na própria alma, as vicissitudes por ele recriadas ficcionalmente. Aquele personagem estrangeiro, tão jovem e já sofrendo nas mãos dos seringalistas como qualquer trabalhador nordestino/brasileiro, tornou-se para sempre (ultrapassando as barreiras de seu tempo e espaço) o alter ego do escritor Ferreira de Castro, ao evolar-se das linhas de sua narrativa a “tendência epigônica”, como Euclides da Cunha, no dizer de Lucilene Lima em sua lúcida escrita.
O terceiro motivo, que me fez ler com atenção a tese de Lucilene Lima, foi o fato de eu mesma ter vivido em Manaus, durante o ano de 1996 (de janeiro a dezembro), como professora de Teoria Literária e Literatura Brasileira, na Universidade Federal do Amazonas. Naquele ano, principiei o meu convívio intelectual com a cultura e a literatura amazonenses e, desde então, as notícias que se referem ao Amazonas e ao seu povo tornaram-se partes de meus interesses intelectuais. A obra de Lucilene Lima, por exemplo, veio ao encontro de minhas indagações sobre a cultura relacionada com o Ciclo Econômico que propiciou uma das fases mais ricas da História Cultural do Brasil. Aquele ano de 1996 marcou-me, e por tal razão, os problemas e/ou os sucessos culturais do Amazonas passaram a ser significativos em meus projetos.
Por último, retomo o tema de O Amante dos Amazonas, assinalando o fato de me considerar “madrinha” desta diferenciada narrativa pós-moderna de Rogel Samuel. O que quero revelar, nestas linhas informais e finais de minha leitura da obra de Lucilene Gomes Lima, é que tive a honra de ser a primeira a ler esta singular obra ficcional. Antes mesmo de sua publicação (1ª edição), por intermédio de um copião de páginas datilografadas, eu já interagia com os diversos episódios que envolvem o narrador Ribamar, a cidade de Manaus, os Numas, Paxiúba, Frei Lothar, a Rua das Flores e todo aquele universo ficcional revelado pelo poderoso imaginário-em-aberto de Rogel Samuel, meu grande Mestre e, para meu particular engrandecimento, cordialíssimo Amigo. Assim, fechando as minhas inferências sobre este bem elaborado estudo da Professora Lucilene, sobre o Ciclo da Borracha no Amazonas e as três narrativas por ela realçadas, posso afirmar que o seu livro logo terá repercussão positiva nas Universidades de Letras do Brasil e do Exterior.
A narrativa O Amante das Amazonas, de Rogel Samuel, analisada por Lucilene Lima, sem nenhuma dúvida, apresenta as diversas marcas do tempo histórico de seu Criador (tempo “estilhaçado”, alternância de vozes narrativas, comentários, digressões, diálogos com o leitor etc.), características estas próprias dos romances elaborados já no final do século XX, mesmo apresentando aos leitores um fio narrativo localizado no passado. A “superação da percepção maniqueísta”, que de acordo com Lucilene Lima se colocaria em uma terceira fase na abordagem do tema sobre o “ciclo da borracha”, já seria, a meu ver, uma das características que assinalam as narrativas pós-modernas/pós-modernistas. Rogel Samuel, fazendo a reconstituição do espaço narrado “pelo caminho da memória de seu avô”, como afirma a autora, não só supera a “percepção maniqueísta”, como vai além do relato que se vale da memória, “obrigando” os leitores a presenciar os dramas de seus personagens por meio da narrativa de ficção. Assim, a matéria dramática se faz presente na criação ficcional de Rogel Samuel (atenção: Matéria Dramática ≠ Gênero Dramático), demonstrando que o “ato de bem ver” a realidade, no âmbito da ficção, e quando há realmente criatividade, supera o “ato de bem narrar”, marca das narrativas lineares de anteriores estéticas literárias. Então, afirmo: Rogel Samuel não teve “experiência direta” com o problema do Ciclo Econômico da Borracha, causador de tantas tragédias, mas, como “escritor estudioso da literatura”, acrescido do fato de ser amazonense, neto de rico comerciante da borracha, filho de Alberto Samuel, um homem que conheceu em profundidade aqueles “furos” de água da Grande Floresta e a maior parte dos igarapés do Amazonas, repito, este escritor amazonense do final do século XX (mas, naquele momento, já interagindo com as pré-anunciações do século XXI) soube, singularmente, “ver” a realidade que o cercava e, habilmente, transformá-la em ficção pós-moderna sui generis. A “problemática temporal” associada à “estética particular” de Rogel (apropriando-me aqui das expressões de Lucilene) propiciou a criação de uma narrativa ímpar, que vigorará ainda com maior força no futuro. (Sempre costumo lembrar aos meus alunos que a verdadeira arte, em qualquer de suas feições, terá de romper os limites de seu tempo histórico e de suas ideologias, e O Amante das Amazonas já iniciou esse processo de ascensão ao futuro, elevando-se à categoria de grande obra.).
Entretanto, quero assinalar aqui os outros motivos que me fizeram ler com atenção o livro de Lucilene Lima. O assunto do Ciclo da Borracha sempre despertou a minha atenção. O relato de Ferreira de Castro, em A Selva, narrativa que propiciou o surgimento (antes de Gaibéus, de Alves Redol) do neorrealismo em Portugal, tornou-se presença obrigatória em meus cursos de Literatura Portuguesa. A dissertação de Lucilene apresentou-me novos caminhos de apreensão do universo ficcional de Ferreira de Castro. Passei a relê-lo com outros olhos, reorganizando o meu ponto de vista sobre o assunto. É bem verdade que o problema do Ciclo Econômico da Borracha, nesta narrativa de Ferreira de Castro, foi visto pela ótica do estrangeiro, como diz Lucilene Lima, mas esse “estrangeiro” sofreu em seu próprio corpo e, por que não dizer, na própria alma, as vicissitudes por ele recriadas ficcionalmente. Aquele personagem estrangeiro, tão jovem e já sofrendo nas mãos dos seringalistas como qualquer trabalhador nordestino/brasileiro, tornou-se para sempre (ultrapassando as barreiras de seu tempo e espaço) o alter ego do escritor Ferreira de Castro, ao evolar-se das linhas de sua narrativa a “tendência epigônica”, como Euclides da Cunha, no dizer de Lucilene Lima em sua lúcida escrita.
O terceiro motivo, que me fez ler com atenção a tese de Lucilene Lima, foi o fato de eu mesma ter vivido em Manaus, durante o ano de 1996 (de janeiro a dezembro), como professora de Teoria Literária e Literatura Brasileira, na Universidade Federal do Amazonas. Naquele ano, principiei o meu convívio intelectual com a cultura e a literatura amazonenses e, desde então, as notícias que se referem ao Amazonas e ao seu povo tornaram-se partes de meus interesses intelectuais. A obra de Lucilene Lima, por exemplo, veio ao encontro de minhas indagações sobre a cultura relacionada com o Ciclo Econômico que propiciou uma das fases mais ricas da História Cultural do Brasil. Aquele ano de 1996 marcou-me, e por tal razão, os problemas e/ou os sucessos culturais do Amazonas passaram a ser significativos em meus projetos.
Por último, retomo o tema de O Amante dos Amazonas, assinalando o fato de me considerar “madrinha” desta diferenciada narrativa pós-moderna de Rogel Samuel. O que quero revelar, nestas linhas informais e finais de minha leitura da obra de Lucilene Gomes Lima, é que tive a honra de ser a primeira a ler esta singular obra ficcional. Antes mesmo de sua publicação (1ª edição), por intermédio de um copião de páginas datilografadas, eu já interagia com os diversos episódios que envolvem o narrador Ribamar, a cidade de Manaus, os Numas, Paxiúba, Frei Lothar, a Rua das Flores e todo aquele universo ficcional revelado pelo poderoso imaginário-em-aberto de Rogel Samuel, meu grande Mestre e, para meu particular engrandecimento, cordialíssimo Amigo. Assim, fechando as minhas inferências sobre este bem elaborado estudo da Professora Lucilene, sobre o Ciclo da Borracha no Amazonas e as três narrativas por ela realçadas, posso afirmar que o seu livro logo terá repercussão positiva nas Universidades de Letras do Brasil e do Exterior.
*Neuza Machado é Doutora em Letras; escreveu O narrador toma a vez, Criação literária: tema e reflexão, Do pensamento contínuo à transcendência formal. É profª da UCB-Rio, e trabalhou, como professora contratada, na UERJ e na UFAM.
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Publicado originalmente no blog de Rogel Samuel.
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sábado, 12 de setembro de 2009
sexta-feira, 11 de setembro de 2009
Um desabafo
Há dias venho pensando no processo artístico.
Não sei o que acontece com os artistas em geral, que vivem entre a cruz da realidade e a espada da ignorância dos homens. Ainda mais neste país.
Não quero me posicionar no papel de vítima, mas penso assim devido a ver, constantemente, meus companheiros tendo que mendigar tempo e espaço para as suas obras. Vendendo, muitas vezes, sua alma ao diabo fáustico, que hoje vive em todos os meandros da cultura.
Penso assim, pois os vejo ter que se humilhar àqueles que têm focinho de carneiro bondoso e patas de lobo predador.
Fico mais triste ainda sabendo que sempre temos que nos sujeitar a esses mágicos da enganação e medíocres de coração. Uns sujeitinhos que, geralmente ou se encontram em suas mesas de trabalho atulhadas de papéis sonantes ou estão na próxima esquina, no exercício de suas políticas pessoais.
Para finalizar, percebo que estamos então, nós que fazemos qualquer tipo de arte, sempre entregues às tramas de um destino que nos impele para uma solidão forçada de mendicante e um sofrimento criativo que tolhe os nossos sonhos.
Mas, mesmo assim, vamos em frente, criando e acreditando no possível e no impossível.
Marco Adolfs
Há dias venho pensando no processo artístico.
Não sei o que acontece com os artistas em geral, que vivem entre a cruz da realidade e a espada da ignorância dos homens. Ainda mais neste país.
Não quero me posicionar no papel de vítima, mas penso assim devido a ver, constantemente, meus companheiros tendo que mendigar tempo e espaço para as suas obras. Vendendo, muitas vezes, sua alma ao diabo fáustico, que hoje vive em todos os meandros da cultura.
Penso assim, pois os vejo ter que se humilhar àqueles que têm focinho de carneiro bondoso e patas de lobo predador.
Fico mais triste ainda sabendo que sempre temos que nos sujeitar a esses mágicos da enganação e medíocres de coração. Uns sujeitinhos que, geralmente ou se encontram em suas mesas de trabalho atulhadas de papéis sonantes ou estão na próxima esquina, no exercício de suas políticas pessoais.
Para finalizar, percebo que estamos então, nós que fazemos qualquer tipo de arte, sempre entregues às tramas de um destino que nos impele para uma solidão forçada de mendicante e um sofrimento criativo que tolhe os nossos sonhos.
Mas, mesmo assim, vamos em frente, criando e acreditando no possível e no impossível.
parábola
afastou o cálice, a toalha branca de morim sorveu o vinho da mesa. a mulher xingou a repetição do gesto muito antigo do marido. o pão, de muitos dias, não pôde ser repartido. o cão magro lambeu os pés do dono, e saiu sem esperança. do céu escuro desceu a estrela azul, e mergulhou no mar. foi quando a pedra encantada surgiu, e os peixes se multiplicaram.
afastou o cálice, a toalha branca de morim sorveu o vinho da mesa. a mulher xingou a repetição do gesto muito antigo do marido. o pão, de muitos dias, não pôde ser repartido. o cão magro lambeu os pés do dono, e saiu sem esperança. do céu escuro desceu a estrela azul, e mergulhou no mar. foi quando a pedra encantada surgiu, e os peixes se multiplicaram.
(Adrino Aragão)
quinta-feira, 10 de setembro de 2009
Fundamentos da cultura brasileira – 3ª edição
O AutorCleber Sanches nasceu no Rio de Janeiro em 1962 e, desde 1989, radicou-se em Manaus. É roteirista, radialista e membro do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro e da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais. Sanches tem no teatro e no cinema o sentido de sua vida como artista. Além de criador, destaca-se como diretor e produtor de diversos trabalhos, como a minissérie Amazonas, a lenda e O Auto do Boi-Bumbá. Como escritor, tem diversos livros publicados: Momento literário (1985); Trajetória negra (1986); Ecossistema (1988); Garimpo (1991); Momentos esparsos (1993); Beco do inferno (1994); Fundamentos da cultura brasileira (1999). Entre os diversos trabalhos realizados no teatro e na televisão, merecem destaque: O mendigo (1986); A prisão (1986); O casamento (1986); Trajetória negra (1988); Beco do inferno (1989); Uma difícil tarefa (1992); Bar baré (1993-1994); Amazonas, a lenda (1999); O Auto do Boi-Bumbá (2001) e Cortina de vidro (2001).
No próximo sábado, 12 de setembro, às 10h00, na Livraria Valer, será lançada a 3ª edição do livro Fundamentos da Cultura Brasileira, de Cleber Sanches, livro que suscita uma série de questionamentos sobre a formação e desenvolvimento do processo cultural brasileiro. Trata-se de um esboço em que o autor descreve as relações do homem com a natureza e sua transformação – culminando no surgimento do mundo cultural.
O livro é um roteiro de leitura sobre os aspectos conceituais e temáticos que fundamentam os estudos sobre as manifestações características das diversas regiões do país. Apresenta um panorama histórico do contato e integração entre as diversas etnias que formaram a sociedade brasileira. A obra surgiu da experiência docente do autor, que, depois de alguns anos ministrando aulas de cultura brasileira, e sempre sendo cobrado pelos alunos sobre os livros a serem adotados para a matéria, concluía que não havia um livro que tratasse do assunto com a sequência desejada.
Sanches apresenta um painel das principais manifestações culturais do país – destacando as obras e os autores mais representativos na literatura, no teatro, na música, nas artes plásticas e na dança. Ressalta a importância do folclore e registra as festas, rituais e ritmos mais significativos da cultura brasileira. Destaca ainda a influência dos meios de comunicação de massa sobre o comportamento e a consciência dos atores sociais. Ao tratar da formação espiritual do povo brasileiro, o autor enfoca o papel pedagógico da Igreja Católica, em especial o trabalho desenvolvido pelos jesuítas junto aos povos nativos que habitavam o território conquistado pelos portugueses.
O trabalho é uma introdução aos temas culturais que fundaram nosso processo histórico, tentando preencher uma lacuna ao induzir o leitor, estudante ou não, à reflexão e ao debate sobre quem somos nós verdadeiramente.
O livro é um roteiro de leitura sobre os aspectos conceituais e temáticos que fundamentam os estudos sobre as manifestações características das diversas regiões do país. Apresenta um panorama histórico do contato e integração entre as diversas etnias que formaram a sociedade brasileira. A obra surgiu da experiência docente do autor, que, depois de alguns anos ministrando aulas de cultura brasileira, e sempre sendo cobrado pelos alunos sobre os livros a serem adotados para a matéria, concluía que não havia um livro que tratasse do assunto com a sequência desejada.
Sanches apresenta um painel das principais manifestações culturais do país – destacando as obras e os autores mais representativos na literatura, no teatro, na música, nas artes plásticas e na dança. Ressalta a importância do folclore e registra as festas, rituais e ritmos mais significativos da cultura brasileira. Destaca ainda a influência dos meios de comunicação de massa sobre o comportamento e a consciência dos atores sociais. Ao tratar da formação espiritual do povo brasileiro, o autor enfoca o papel pedagógico da Igreja Católica, em especial o trabalho desenvolvido pelos jesuítas junto aos povos nativos que habitavam o território conquistado pelos portugueses.
O trabalho é uma introdução aos temas culturais que fundaram nosso processo histórico, tentando preencher uma lacuna ao induzir o leitor, estudante ou não, à reflexão e ao debate sobre quem somos nós verdadeiramente.
O AutorCleber Sanches nasceu no Rio de Janeiro em 1962 e, desde 1989, radicou-se em Manaus. É roteirista, radialista e membro do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro e da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais. Sanches tem no teatro e no cinema o sentido de sua vida como artista. Além de criador, destaca-se como diretor e produtor de diversos trabalhos, como a minissérie Amazonas, a lenda e O Auto do Boi-Bumbá. Como escritor, tem diversos livros publicados: Momento literário (1985); Trajetória negra (1986); Ecossistema (1988); Garimpo (1991); Momentos esparsos (1993); Beco do inferno (1994); Fundamentos da cultura brasileira (1999). Entre os diversos trabalhos realizados no teatro e na televisão, merecem destaque: O mendigo (1986); A prisão (1986); O casamento (1986); Trajetória negra (1988); Beco do inferno (1989); Uma difícil tarefa (1992); Bar baré (1993-1994); Amazonas, a lenda (1999); O Auto do Boi-Bumbá (2001) e Cortina de vidro (2001).
Doença e saúde na Bíblia: entre regras de higiene e milagres
Deuteronômio 32, 39: E agora, vede bem: eu, sou eu, e fora de mim não há outro Deus! Sou eu que mato e faço viver. Sou eu que firo e torno a curar (e da minha mão ninguém se livra).
Levítico 13, 1-3: Iahweh falou a Moisés e a Aarão e disse: Se se formar sobre a pele de um homem um tumor, um dartro ou uma mancha, pode tratar-se de um caso de lepra da pele. Será conduzido a Aarão, o sacerdote, ou a um dos sacerdotes seus filhos. O sacerdote examinará a enfermidade sobre a pele. Se no lugar enfermo o pêlo se tornou branco e a enfermidade se tornou mais profunda na epiderme, é caso de lepra; depois da observação o sacerdote o declarará impuro.
Mateus 10, 1: Chamou os doze discípulos e deu-lhes autoridade de expulsar os espíritos imundos e de curar toda a sorte de males e enfermidades.
Marcos 16, 17-18: Estes são os sinais que acompanharão aos que tiverem crido: em meu nome expulsarão demônios, falarão em novas línguas, pegarão em serpentes, e se beberem algum veneno mortífero, nada sofrerão; imporão as mãos sobre os enfermos, e estes ficarão curados.
O Antigo Testamento (AT), afora do significado religioso, também pode ser considerado como um conjunto de regras para o controle social do povo hebreu, nos primórdios da sua estruturação sócio-política, quando estava marcadamente influenciado pelas culturas egípcias e mesopotâmicas.
A necessidade de estabelecer as normas da organização social levou os hebreus a amalgamar a tradição oral à Lei, que deveria ser cumprida por todos porque seria inspirada na irradiação da memória onipotente e justa em si mesma de Deus. A obediência à Lei fazia com que os homens mortais se aproximassem de Deus imortal (Dt 32, 39).
O amparo inquebrantável dessa relação religiosa consolidou, no AT, um dos mais eficazes conjuntos de regras de saúde pública de todos os tempos, em grande parte, responsável pela sobrevivência do povo de Israel (Lv 13, 1-3).
Com a destruição de Jerusalém no ano 70, seguiram-se as compilações da tradição oral acumulada, como alternativa de manter viva a Lei. O Talmude reuniu esclarecimentos e ampliações dos ensinamentos bíblicos de natureza jurídica, teológica, filosófica, ética, histórica e médica.
A Medicina contida no AT foi sobreposta pela da tradição oral, transcrita no Talmude, entre os anos 100 a.C. e 1500. Os registros interpretativos foram conduzidos pelos sábios e rabinos, durante o período da tradição oral. As preciosas informações dos cuidados pessoais e coletivos sobre higiene, alimentação e médicas transcritas no Talmude, receberam forte influência das Medicinas grega, babilônica e persa. Dessa forma, os documentos rabínicos repetiram algumas premissas daquelas sociedades, como a crença no mau-olhado e a ajuda dos amuletos para curar certas doenças.
No AT, a tentativa de materializar a doença é percebida a partir do seu sentido em oposição à saúde, sendo esta representada pelo bem e aquela, pelo mal. Dessa forma, tornou-se viável oferecer sentido histórico-teológico, capaz de formar no pensamento coletivo a divisão nítida entre a saúde, como sinônimo do bem, luz, justiça, limpeza e bondade, e a doença, significando maldade, escuridão, injustiça e sujeira.
O monoteísmo em curso retirou o poder de curar e fazer adoecer dos vários deuses mesopotâmicos e realocou essas capacidades somente no Deus de Israel. Assim, o Deus de Israel incorporou outros poderes, não só sobre a vida e a morte, mas também na saúde e na doença. É a partir dessa análise, presente em várias passagens do AT, que o aparecimento e a cura das enfermidades restaram reduzidos ao poder de um único Deus. Nessa fase, a nova escatologia inserida na teogonia e teofania monoteísta já estava em curso, firmando impressionante ruptura com o politeísmo dominante em todo o passado humano.
A saúde e a doença passaram também a representar o poder de Deus sobre os homens, oferecidas, respectivamente, como prêmio ou castigo pela obediência à sua Lei. Esse entendimento escatológico explicava com coerência o aparecimento das enfermidades nos pecadores, mas não nos obedientes e tementes à Lei.
Por meio dessa regra binária de prêmio-castigo, também ficava confuso caracterizar a hierarquização da falta cometida e justificar como seriam distribuídas as manifestações da ira divina, para punir os pecadores, como a lepra, a loucura e a cegueira, que os excluíam do convívio social.
Os estudos exegéticos mostram que esse vazio, para justificar as doenças nos tementes à Lei, permaneceu no monoteísmo até o período pós-exílico. A solução do impasse ocorreu com o acréscimo da figura do antideus, como criatura inteligente, incorpórea, ligada ao mal e capaz de favorecer o aparecimento das doenças como demonstração de poder para enfrentar a Deus.
É certo que a associação simbólica da doença ao pecado no sentido de mau, escuro e dor, estava presente na escatologia do politeísmo, antes do monoteísmo. Não é impossível que os teóricos do judaísmo, nos primeiros tempos, tenham buscado na teofania e teogonia politeísta, durante o cativeiro egípcio e babilônico, essa solução que superou as expectativas para explicar as doenças e o sofrimento nos obedientes e tementes a Deus.
Vários documentos, nos papiros egípcios e nas tábuas de escrita cuneiforme, da Mesopotâmia, que tratam do assunto, deixam bem clara a associação doença-pecado. Porém, é no monoteísmo judaico que a doença é aceita como manifestação contrária à intencionalidade de um Deus bom.
Sendo Deus perfeito na sua essência e criador de todas as coisas, também seria para curar as doenças, como forma de representação de poder junto aos homens. Nada poderia ser demonstrativo de maior poder do que aumentar o tempo de vida dos homens, porque quanto mais vivessem, menos mortais se tornariam. Se a doença era a causa determinante da morte e deixava clara a inevitabilidade do fim da vida, só poderia representar a ação maléfica do antideus, também como forma de demonstrar o poder contrário ao de Deus.
A polarização da doença como mal e da saúde como bem materializou a mítica luta entre o bem e o mal, visto que, somente pela força bondosa de Deus, os humanos poderiam vencer o antideus e superar as doenças para viver mais.
Para superar os entraves na comunicação entre os obedientes à Lei e a Deus, as passagens bíblicas adicionaram os sacerdotes, como agentes intermediários, também autorizados a curar.
O simbolismo da saúde e da doença, como consciência da materialidade do corpo ligada à obediência à Lei, foi tão forte que alcançou as promessas escatológicas dos profetas. Algumas delas definem que, no fim dos tempos, não haverá enfermos nem sofrimentos e lágrimas.
Em parte, a historicidade escatológica do AT favoreceu a separação do judaísmo do catolicismo. Enquanto os judeus continuam esperando o Messias, os católicos consideram a ressurreição de Cristo como a prova da identidade como Filho de Deus, a vitória da vida sobre a morte e a promessa da vida eterna.
O Novo Testamento (NT) reproduziu muitos parâmetros do AT sobre a manifestação das enfermidades e dos curadores. Nesses pontos, uma das diferenças marcantes entre o AT e o NT reside na fé de que Jesus Cristo, o filho de Deus tornado homem, curou e ressuscitou os mortos. Nos registros dos apóstolos, Jesus Cristo encontrou e curou muitos doentes, tendo compreendido as doenças de modo semelhante aos profetas do AT e o sofrimento ligado ao pecado.
As passagens do NT sobre as curas milagrosas assumiram grande importância na catequese de Jesus Cristo. Esse aspecto catequético do cristianismo se reproduziu de modo espetacular na formação da Igreja dos primeiros tempos e nos séculos seguintes, presente nas incontáveis representações na arte e literatura.
No NT, as doenças também são justificadas pela equação pecado-castigo, onde a ação do antideus sobre a saúde dos homens é a maior determinante para o aparecimento das enfermidades e a expulsão dele do corpo representa o perdão dos pecados e a consequente cura. Desse modo, no conjunto neotestamentário, saúde e a doença continuaram resultantes da luta entre o bem e o mal, respectivamente simbolizando Deus e o antideus.
A representação da doença no NT também assumiu a forma de uma consciência corpórea no pecador, cujo peso das faltas cometidas contra a Lei macula a obra da Criação perfeita em si mesma. A cura dos cegos, leprosos, paralíticos e loucos legitima o magistério de Jesus como Filho de Deus e confirma as promessas dos profetas do AT.
O poder de Jesus para curar os doentes foi transmitido aos apóstolos como integrante da evangelização, em Mt 10, 1 e Mc 16, 17-18. Essas passagens dos apóstolos Mateus e Marcos, representando importantes pilares da catequese cristã, também estratificam algumas diferenças no trato da saúde e da doença na Bíblia: enquanto o AT mostra um Deus mais rigoroso, até intolerante, no cumprimento da Lei, e muitas recomendações higiênico-dietéticas, relacionadas às necessidades da época, o NT ligou-se mais ao enfoque salvífico pessoal.
João Bosco Botelho
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Milagre da perna amputada, por São Cosme e São Damião, século XVII.
Deuteronômio 32, 39: E agora, vede bem: eu, sou eu, e fora de mim não há outro Deus! Sou eu que mato e faço viver. Sou eu que firo e torno a curar (e da minha mão ninguém se livra).
Levítico 13, 1-3: Iahweh falou a Moisés e a Aarão e disse: Se se formar sobre a pele de um homem um tumor, um dartro ou uma mancha, pode tratar-se de um caso de lepra da pele. Será conduzido a Aarão, o sacerdote, ou a um dos sacerdotes seus filhos. O sacerdote examinará a enfermidade sobre a pele. Se no lugar enfermo o pêlo se tornou branco e a enfermidade se tornou mais profunda na epiderme, é caso de lepra; depois da observação o sacerdote o declarará impuro.
Mateus 10, 1: Chamou os doze discípulos e deu-lhes autoridade de expulsar os espíritos imundos e de curar toda a sorte de males e enfermidades.
Marcos 16, 17-18: Estes são os sinais que acompanharão aos que tiverem crido: em meu nome expulsarão demônios, falarão em novas línguas, pegarão em serpentes, e se beberem algum veneno mortífero, nada sofrerão; imporão as mãos sobre os enfermos, e estes ficarão curados.
O Antigo Testamento (AT), afora do significado religioso, também pode ser considerado como um conjunto de regras para o controle social do povo hebreu, nos primórdios da sua estruturação sócio-política, quando estava marcadamente influenciado pelas culturas egípcias e mesopotâmicas.
A necessidade de estabelecer as normas da organização social levou os hebreus a amalgamar a tradição oral à Lei, que deveria ser cumprida por todos porque seria inspirada na irradiação da memória onipotente e justa em si mesma de Deus. A obediência à Lei fazia com que os homens mortais se aproximassem de Deus imortal (Dt 32, 39).
O amparo inquebrantável dessa relação religiosa consolidou, no AT, um dos mais eficazes conjuntos de regras de saúde pública de todos os tempos, em grande parte, responsável pela sobrevivência do povo de Israel (Lv 13, 1-3).
Com a destruição de Jerusalém no ano 70, seguiram-se as compilações da tradição oral acumulada, como alternativa de manter viva a Lei. O Talmude reuniu esclarecimentos e ampliações dos ensinamentos bíblicos de natureza jurídica, teológica, filosófica, ética, histórica e médica.
A Medicina contida no AT foi sobreposta pela da tradição oral, transcrita no Talmude, entre os anos 100 a.C. e 1500. Os registros interpretativos foram conduzidos pelos sábios e rabinos, durante o período da tradição oral. As preciosas informações dos cuidados pessoais e coletivos sobre higiene, alimentação e médicas transcritas no Talmude, receberam forte influência das Medicinas grega, babilônica e persa. Dessa forma, os documentos rabínicos repetiram algumas premissas daquelas sociedades, como a crença no mau-olhado e a ajuda dos amuletos para curar certas doenças.
No AT, a tentativa de materializar a doença é percebida a partir do seu sentido em oposição à saúde, sendo esta representada pelo bem e aquela, pelo mal. Dessa forma, tornou-se viável oferecer sentido histórico-teológico, capaz de formar no pensamento coletivo a divisão nítida entre a saúde, como sinônimo do bem, luz, justiça, limpeza e bondade, e a doença, significando maldade, escuridão, injustiça e sujeira.
O monoteísmo em curso retirou o poder de curar e fazer adoecer dos vários deuses mesopotâmicos e realocou essas capacidades somente no Deus de Israel. Assim, o Deus de Israel incorporou outros poderes, não só sobre a vida e a morte, mas também na saúde e na doença. É a partir dessa análise, presente em várias passagens do AT, que o aparecimento e a cura das enfermidades restaram reduzidos ao poder de um único Deus. Nessa fase, a nova escatologia inserida na teogonia e teofania monoteísta já estava em curso, firmando impressionante ruptura com o politeísmo dominante em todo o passado humano.
A saúde e a doença passaram também a representar o poder de Deus sobre os homens, oferecidas, respectivamente, como prêmio ou castigo pela obediência à sua Lei. Esse entendimento escatológico explicava com coerência o aparecimento das enfermidades nos pecadores, mas não nos obedientes e tementes à Lei.
Por meio dessa regra binária de prêmio-castigo, também ficava confuso caracterizar a hierarquização da falta cometida e justificar como seriam distribuídas as manifestações da ira divina, para punir os pecadores, como a lepra, a loucura e a cegueira, que os excluíam do convívio social.
Os estudos exegéticos mostram que esse vazio, para justificar as doenças nos tementes à Lei, permaneceu no monoteísmo até o período pós-exílico. A solução do impasse ocorreu com o acréscimo da figura do antideus, como criatura inteligente, incorpórea, ligada ao mal e capaz de favorecer o aparecimento das doenças como demonstração de poder para enfrentar a Deus.
É certo que a associação simbólica da doença ao pecado no sentido de mau, escuro e dor, estava presente na escatologia do politeísmo, antes do monoteísmo. Não é impossível que os teóricos do judaísmo, nos primeiros tempos, tenham buscado na teofania e teogonia politeísta, durante o cativeiro egípcio e babilônico, essa solução que superou as expectativas para explicar as doenças e o sofrimento nos obedientes e tementes a Deus.
Vários documentos, nos papiros egípcios e nas tábuas de escrita cuneiforme, da Mesopotâmia, que tratam do assunto, deixam bem clara a associação doença-pecado. Porém, é no monoteísmo judaico que a doença é aceita como manifestação contrária à intencionalidade de um Deus bom.
Sendo Deus perfeito na sua essência e criador de todas as coisas, também seria para curar as doenças, como forma de representação de poder junto aos homens. Nada poderia ser demonstrativo de maior poder do que aumentar o tempo de vida dos homens, porque quanto mais vivessem, menos mortais se tornariam. Se a doença era a causa determinante da morte e deixava clara a inevitabilidade do fim da vida, só poderia representar a ação maléfica do antideus, também como forma de demonstrar o poder contrário ao de Deus.
A polarização da doença como mal e da saúde como bem materializou a mítica luta entre o bem e o mal, visto que, somente pela força bondosa de Deus, os humanos poderiam vencer o antideus e superar as doenças para viver mais.
Para superar os entraves na comunicação entre os obedientes à Lei e a Deus, as passagens bíblicas adicionaram os sacerdotes, como agentes intermediários, também autorizados a curar.
O simbolismo da saúde e da doença, como consciência da materialidade do corpo ligada à obediência à Lei, foi tão forte que alcançou as promessas escatológicas dos profetas. Algumas delas definem que, no fim dos tempos, não haverá enfermos nem sofrimentos e lágrimas.
Em parte, a historicidade escatológica do AT favoreceu a separação do judaísmo do catolicismo. Enquanto os judeus continuam esperando o Messias, os católicos consideram a ressurreição de Cristo como a prova da identidade como Filho de Deus, a vitória da vida sobre a morte e a promessa da vida eterna.
O Novo Testamento (NT) reproduziu muitos parâmetros do AT sobre a manifestação das enfermidades e dos curadores. Nesses pontos, uma das diferenças marcantes entre o AT e o NT reside na fé de que Jesus Cristo, o filho de Deus tornado homem, curou e ressuscitou os mortos. Nos registros dos apóstolos, Jesus Cristo encontrou e curou muitos doentes, tendo compreendido as doenças de modo semelhante aos profetas do AT e o sofrimento ligado ao pecado.
As passagens do NT sobre as curas milagrosas assumiram grande importância na catequese de Jesus Cristo. Esse aspecto catequético do cristianismo se reproduziu de modo espetacular na formação da Igreja dos primeiros tempos e nos séculos seguintes, presente nas incontáveis representações na arte e literatura.
No NT, as doenças também são justificadas pela equação pecado-castigo, onde a ação do antideus sobre a saúde dos homens é a maior determinante para o aparecimento das enfermidades e a expulsão dele do corpo representa o perdão dos pecados e a consequente cura. Desse modo, no conjunto neotestamentário, saúde e a doença continuaram resultantes da luta entre o bem e o mal, respectivamente simbolizando Deus e o antideus.
A representação da doença no NT também assumiu a forma de uma consciência corpórea no pecador, cujo peso das faltas cometidas contra a Lei macula a obra da Criação perfeita em si mesma. A cura dos cegos, leprosos, paralíticos e loucos legitima o magistério de Jesus como Filho de Deus e confirma as promessas dos profetas do AT.
O poder de Jesus para curar os doentes foi transmitido aos apóstolos como integrante da evangelização, em Mt 10, 1 e Mc 16, 17-18. Essas passagens dos apóstolos Mateus e Marcos, representando importantes pilares da catequese cristã, também estratificam algumas diferenças no trato da saúde e da doença na Bíblia: enquanto o AT mostra um Deus mais rigoroso, até intolerante, no cumprimento da Lei, e muitas recomendações higiênico-dietéticas, relacionadas às necessidades da época, o NT ligou-se mais ao enfoque salvífico pessoal.
quarta-feira, 9 de setembro de 2009
Convite
A Cátedra Amazonense de Estudos Literários, grupo de pesquisas certificado pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), convida a comunidade universitária do Amazonas para a abertura dos trabalhos acadêmicos do período 2009.2, com palestra a ser proferida pelo Professor Otávio Rios, docente de Literatura Portuguesa desta Universidade e Doutorando em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, que proferirá a fala
“Faça-se em mim segundo a tua palavra”
ou erotismo e experiência religiosa num conto de Jorge de Sena
Universidade do Estado do Amazonas - ENS
Av. Djalma Batista, 2470, ao lado do Amazonas Shopping
Sexta-feira, 11/09/09, às 10h
Informações: cael.uea@gmail.com
Entrada franca
terça-feira, 8 de setembro de 2009
Escritores insanos II
Em Portugal, na cidade de Tomar – lugar dos cavaleiros templários –, encontrei um escritor catalão bebendo em um pub. Reclamava do seu algoz, o coordenador editorial de sua editora.
– Meu coordenador editorial, o Ramon – começou a explicar –, é como um cachorro faminto que morde uma literatura de venda rápida para que lhe inunde a caixa registradora com muito dinheiro. – Como remissão – observou o escritor catalão –, publica meus livros de vez em quando. Como alguém pode viver de literatura pensando só em dinheiro? – terminou, tomando um gole de vinho.
Em Portugal, na cidade de Tomar – lugar dos cavaleiros templários –, encontrei um escritor catalão bebendo em um pub. Reclamava do seu algoz, o coordenador editorial de sua editora.
– Meu coordenador editorial, o Ramon – começou a explicar –, é como um cachorro faminto que morde uma literatura de venda rápida para que lhe inunde a caixa registradora com muito dinheiro. – Como remissão – observou o escritor catalão –, publica meus livros de vez em quando. Como alguém pode viver de literatura pensando só em dinheiro? – terminou, tomando um gole de vinho.
(Marco Adolfs)
segunda-feira, 7 de setembro de 2009
Livraria Valer representa a região Norte na 19ª Convenção Nacional de Livrarias
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A Associação Nacional de Livrarias (ANL) realiza de 7 a 9 de setembro a 19ª Convenção Nacional de Livrarias, no Hotel Othon Palace, na cidade do Rio de Janeiro.
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Com o tema Livraria: inovando para enfrentar os novos tempos, o evento traz vários debates atuais e de grande importância, não apenas para o segmento livreiro, mas para toda a cadeia do livro. Temas como "Panorama das livrarias em todo o país", "Políticas públicas do livro" e "Leis de defesa das livrarias", serão debatidos durante o evento.
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Para o professor Tenório Telles, que representará a região Norte no evento, a Convenção ajudará as livrarias a unir forças em defesa do mercado do livro, já que os temas das mesas de debates foram elaborados para contemplar nacionalmente o setor livreiro. O presidente da ANL, Vítor Tavares, destaca a importância de um cadastro único e atualizado para a difusão e acesso ao livreiro via canal livrarias e a necessidade de inovar para enfrentar os novos tempos, as tecnologias e suas influências no mercado varejista do livro.
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Livrarias participantes:
Região Sul: Daniel Mayer – representante da Livraria Livros e Livros, de Florianópolis;
Região Centro-Oeste: João Nunes – representante da Livraria Adeptos, de Cuiabá;
Região Norte: Tenório Telles – representante da Livraria Valer, de Manaus;
Região Nordeste: Mileide Flores – representante da Livraria Feira do Livro, de Fortaleza;
Região Sudeste: Antônio Carlos Carvalho – representante da Livraria Galileu, do Rio de Janeiro.
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Confira a programação completa do evento no site: http://www.anl.org.br/19convencao.html
Benchimol e os judeus na Amazônia
A história da civilização tem sido a expressão da luta, do sacrifício e realizações de povos e, em especial, de seres humanos que, pela força do caráter e dos valores que cultivaram, fizeram a diferença na trajetória da humanidade. O povo judeu é um exemplo desse vigor, perseverança e capacidade de superação. Por isso foi capaz de sobreviver aos banimentos, violências e tragédias que lhe marcaram o percurso.
O acontecimento mais expressivo da história desse povo no último século, que lhe assegurou o direito à existência como pátria independente, foi a criação do Estado de Israel, em 1948. Marco do retorno das legiões de deserdados para a terra-mãe, metáfora da luta de Moisés para chegar a Canaã. Um ano após a restauração do Estado de Israel, realizou-se em Manaus um evento comemorativo ao primeiro aniversário de Eretz Israel. O discurso de saudação coube a um jovem que, anos mais tarde, viria a ser um dos orgulhos de sua gente e um dos intelectuais mais importantes da Amazônia. Na condição de presidente do Grêmio Cultural e Recreativo Sion, Samuel Benchimol proferiu uma comovente oração celebrando seu povo.
As palavras proferidas naquele longínquo 15 de maio de 1949 já denunciavam o talento e a força intelectual de mestre Benchimol. Depreende-se da leitura do texto, a intensidade, a emoção e a clarividência expressas em cada frase. Demonstrava profundo conhecimento do significado histórico daquele momento: “É um Estado assim que renasceu para acolher homens, mulheres, velhos e crianças inocentes, vazios de estômago, mas cheios de fé, vazios de conforto, mas cheios de esperança, sem passaporte na mão, a não ser a velha Bíblia de Moisés. A velha Bíblia que os conservou unidos nestes dois milênios, que os fez afinal regressar à velha Sion...”
Sessenta anos se passaram. O professor Benchimol já não está entre nós, mas permanece vivo na memória de seus familiares, amigos e, especialmente, de seus alunos. Hoje, a comunidade judaica amazonense está em festa para celebrar seis décadas de restauração da pátria dos filhos de Abraão. Um dos acontecimentos que marcam esse evento é o lançamento da terceira edição do livro Eretz Amazônia – os judeus na Amazônia, uma das obras mais importantes do pensamento regional e um tributo de Benchimol à memória das famílias judaicas que se estabeleceram na pátria das águas. Eretz Amazônia é um livro profundamente humano, estruturado como um vitral evocativo da saga dos judeus que, depois de séculos de perseguições na península Ibérica e Marrocos, estabelecem-se na Amazônia, a nova Terra da Promissão.
Eretz Amazônia é um livro especial: feito de vida, sonhos, sofrimentos e esperança. Retrata a saga dos judeus nas terras amazônicas – a nova terra da promissão de milhares de homens e mulheres que vieram para a Amazônia, onde reconstruíram suas vidas e contribuíram com seus talentos para o desenvolvimento regional. Com essa obra, como ocorreu em 1949, o professor Samuel Benchimol está vivo nas comemorações aos 60 anos de restauração do Estado de Israel – pátria dos filhos de Abraão, renascida para acolher os expatriados, os desterrados e os sonhadores que lutaram para realizar em nosso tempo o sonho de Moisés – de uma terra acolhedora e livre. A Amazônia é a Eretz dos judeus que aqui se enraizaram e se fizeram caboclos.
Tenório Telles
A história da civilização tem sido a expressão da luta, do sacrifício e realizações de povos e, em especial, de seres humanos que, pela força do caráter e dos valores que cultivaram, fizeram a diferença na trajetória da humanidade. O povo judeu é um exemplo desse vigor, perseverança e capacidade de superação. Por isso foi capaz de sobreviver aos banimentos, violências e tragédias que lhe marcaram o percurso.
O acontecimento mais expressivo da história desse povo no último século, que lhe assegurou o direito à existência como pátria independente, foi a criação do Estado de Israel, em 1948. Marco do retorno das legiões de deserdados para a terra-mãe, metáfora da luta de Moisés para chegar a Canaã. Um ano após a restauração do Estado de Israel, realizou-se em Manaus um evento comemorativo ao primeiro aniversário de Eretz Israel. O discurso de saudação coube a um jovem que, anos mais tarde, viria a ser um dos orgulhos de sua gente e um dos intelectuais mais importantes da Amazônia. Na condição de presidente do Grêmio Cultural e Recreativo Sion, Samuel Benchimol proferiu uma comovente oração celebrando seu povo.
As palavras proferidas naquele longínquo 15 de maio de 1949 já denunciavam o talento e a força intelectual de mestre Benchimol. Depreende-se da leitura do texto, a intensidade, a emoção e a clarividência expressas em cada frase. Demonstrava profundo conhecimento do significado histórico daquele momento: “É um Estado assim que renasceu para acolher homens, mulheres, velhos e crianças inocentes, vazios de estômago, mas cheios de fé, vazios de conforto, mas cheios de esperança, sem passaporte na mão, a não ser a velha Bíblia de Moisés. A velha Bíblia que os conservou unidos nestes dois milênios, que os fez afinal regressar à velha Sion...”
Sessenta anos se passaram. O professor Benchimol já não está entre nós, mas permanece vivo na memória de seus familiares, amigos e, especialmente, de seus alunos. Hoje, a comunidade judaica amazonense está em festa para celebrar seis décadas de restauração da pátria dos filhos de Abraão. Um dos acontecimentos que marcam esse evento é o lançamento da terceira edição do livro Eretz Amazônia – os judeus na Amazônia, uma das obras mais importantes do pensamento regional e um tributo de Benchimol à memória das famílias judaicas que se estabeleceram na pátria das águas. Eretz Amazônia é um livro profundamente humano, estruturado como um vitral evocativo da saga dos judeus que, depois de séculos de perseguições na península Ibérica e Marrocos, estabelecem-se na Amazônia, a nova Terra da Promissão.
Eretz Amazônia é um livro especial: feito de vida, sonhos, sofrimentos e esperança. Retrata a saga dos judeus nas terras amazônicas – a nova terra da promissão de milhares de homens e mulheres que vieram para a Amazônia, onde reconstruíram suas vidas e contribuíram com seus talentos para o desenvolvimento regional. Com essa obra, como ocorreu em 1949, o professor Samuel Benchimol está vivo nas comemorações aos 60 anos de restauração do Estado de Israel – pátria dos filhos de Abraão, renascida para acolher os expatriados, os desterrados e os sonhadores que lutaram para realizar em nosso tempo o sonho de Moisés – de uma terra acolhedora e livre. A Amazônia é a Eretz dos judeus que aqui se enraizaram e se fizeram caboclos.
domingo, 6 de setembro de 2009
Tenório Telles – romântico, sim, mas à moda antiga
A primeira notícia que se tem sobre Tenório Telles é que ele não chorou naquela madrugada do dia 02 de setembro de 1963. Passou toda a infância e parte da adolescência silenciando só o essencial, a guardar energia para, adulto, falar com a fluidez e a sonoridade de um tigre borgeano. Mas D. Celina conta que mais de uma vez o ouviu chorando na barriga, atributo e prerrogativa de profetas.
Depois, veio a revolução, sonho que se esvaneceu quando lhe deram um revólver para se defender dos porcos capitalistas. Tenório entendia que sua posição era no ataque, por isso vestiu a nº 9 canarinho – logo ele, que não distingue entre um lateral-direito e um ponta-esquerda –, pulou a cerca do primeiro jardim baldio que encontrou e colheu todas as flores silvestres disponíveis. Tinham um colorido esmaecido, e não eram belas nem cheirosas, eram apenas flores. Desde então, ele tem se dedicado a atirá-las aos passantes incautos – não em emboscadas guerrilheiras, mas à luz do dia e das estrelas.
Nascido à beira de um lago quase sem nome, Tenório não dispensa a paz dos engarrafamentos e dos shoppings centers. Prefere a missa aos domingos, quando é impossível entrar nas igrejas. Amou poucas mulheres, mas é amado por muitas – todas elas leitoras implacáveis –, algumas das quais aqui presentes... Não se sente responsável pelo que cativa, senão teria milhares de responsabilidades a mais – chamadas Rosas, Dálias, Margaridas e outras flores. O Aristides, ao contrário do que todos pensam, não é seu filho – é seu irmão mais novo, amigão de fé, camarada.
Extremamente tímido, Tenório busca refúgio no centro do palco, sob a luz dos refletores, que insistem em focar sobre ele. Dorme pouco – mas, se o dia tivesse 48 horas, dormiria menos ainda, buscando maximizar o mínimo tempo disponível. Diurno, prefere a solidão da noite para criar, regando avencas, begônias e gardênias nos jardins suspensos dos seus sonhos.
Tem muitos amigos. Tantos que, de cada um deles, sabe de cor, além dos telefones celulares e convencionais, o título de eleitor, o RG, o CPF e a inscrição no PIS/PASEP. Cansado dos escândalos políticos que pululam como pipocas selvagens em seu tropical país, passou a dar especial atenção aos cães, aos quais dedica o tempo antes reservado à leitura de jornais. Mas seus melhores amigos são mesmo os livros, especialmente porque não ladram e nem precisam ser levados a passear.
Os primeiros poemas surgiram com as primeiras palavras que ele escreveu ou falou. Os últimos poemas ele os há de dividir conosco, com a mesma ternura com que divide os mais diáfanos raios de sol e as águas cotidianas do seu imenso Amazonas. Quando escreveu A Derrota do Mito, Tenório estava grávido – ávido de esperança e de transformações. Por isso aquele tom sombrio, que é o seu jeito de nos mostrar a beleza da luz. Mas Tenório é um autor incomum, porque é um autor de autores: alguns ele inventa; outros existem por si mesmos, mas não seriam ninguém sem ele. Eu, por exemplo. A obra do editor Tenório Telles paga com troco milionário o tributo de sua aventura na Terra.
Mas, não-satisfeito, ele, um especialista em florilégios, quase um floromaníaco, analisa e psicanalisa a polifrorífera literatura brasileira, com uma destreza de corar de inveja a Freud, Jung, Lacan e outros floricoroados. Comove-me o retrato de Machado de Assis: por 30, às vezes, 40 minutos – depende do volume da plateia – ele discorre sobre o menino preto, pobre e doentio que se transformou no maior escritor brasileiro de sempre. Machado, vaidoso como era, se orgulharia da performance de Tenório e agradeceria com um leve meneio de cabeça, falseando a quase incontida emoção.
Emoção que Tenório não se preocupa em reprimir. Seja ouvindo a Nona com a sinfônica de Berlim ou a voz de pássaro liberto de Maria Lúcia Godoy, entoando a Bachiana Nº 5 nos altos do El Perikiton, entre petiscos de ovas de jaraqui, dúzias de sardinhas fritas e doses desmedidas de guaraná Baré. Lembranças de uma juventude recordada com ternura, mas sem saudades. Lembranças de Tereza Katsuko e Valadares, colunas-mestras da sua formação, forjada na mais austera disciplina e na mais absoluta loucura. Lembranças dos dramas que ficaram para trás e que o tempo tornou comédias bufas. Lembranças do amigo Paulo Graça, que em algum lugar do éter se diverte com nossa efêmera condição de frágeis homens.
Tenório Telles tem o dom e tom exato da palavra e com elas combate, sem palavras-meias, a barbárie, a estupidez e a ignorância. Para ele, a medianidade e a mediocridade se confundem num alvoroço medieval: é contra o banal e o vulgar que ele se insurge. E de suas mãos e de sua boca brotam palavras de fogo, que incendeiam a inconsciência dos fiéis. Militante da Utopia, ele acredita que somente sonhando sonhos impossíveis a humanidade pode avançar além do sonhado pelo Mahatma Gandhi, por Martin Luther King ou pelo Dalai Lama, que sonharam ou sonham o mesmo sonho do Cristo, que os homens se encarregaram de deturpar e de com eles acumular riquezas pessoais. Como na velha canção, ele acredita que sonho que se sonha junto – de olhos abertos, ouvidos atentos e um poema em cada mão – é a realidade possível de ser construída. Está ciente de que a cada dois passos à frente será dado um passo atrás; mas sabe também que o abismo não é o limite, pois aprendeu a voar.
Alguém já falou da sua figura romântica. Ora, o romantismo é a vertigem – o grito pela liberdade de criação: caos, anarquia, aventura, desequilíbrio, escuridão. A vertigem é o não. Mago, profeta, predestinado, o romântico sob a vertigem tem êxtases místicos que lhe descortinam o suprarreal e o infinito. Tenório Telles é um romântico, sim, mas um romântico à moda antiga, visceralmente lúcido, dos que acreditam que o mundo pode ser mudado e que a literatura, transformando indivíduos, contribui para transformar o mundo; dos que pensam que os valores éticos e morais são mais importantes que os não-valores transitórios e pusilânimes que norteiam a cultura da vantagem e da negociata; dos que crêem, enfim, que o paraíso não está em outra dimensão e nem é físico, mas está na mente e no espírito de cada mulher e de cada homem.
Este é o retrato 3x4 de um amigo 100%. Assim falando, entretanto, vocês não têm nem ideia de sua estatura e, muito menos ainda, de sua profundidade. Para mostrá-lo em sua inteireza, precisaria dos traços de um Van Gogh ou de um Edward Munch – ou, quem sabe, da câmera de um Chaplin ou das palavras de um Drummond. Diante desse impasse, continuem tentando descobri-lo por inteiro, como eu o faço há quase 30 anos...
Zemaria Pinto*
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Na paisagem, da esquerda para a direita, entre outros: Marcos Frederico, Zemaria Pinto, Celdo Braga, Antônio Pereira e, atrás do microfone, Jaime Pereira.
A primeira notícia que se tem sobre Tenório Telles é que ele não chorou naquela madrugada do dia 02 de setembro de 1963. Passou toda a infância e parte da adolescência silenciando só o essencial, a guardar energia para, adulto, falar com a fluidez e a sonoridade de um tigre borgeano. Mas D. Celina conta que mais de uma vez o ouviu chorando na barriga, atributo e prerrogativa de profetas.
Depois, veio a revolução, sonho que se esvaneceu quando lhe deram um revólver para se defender dos porcos capitalistas. Tenório entendia que sua posição era no ataque, por isso vestiu a nº 9 canarinho – logo ele, que não distingue entre um lateral-direito e um ponta-esquerda –, pulou a cerca do primeiro jardim baldio que encontrou e colheu todas as flores silvestres disponíveis. Tinham um colorido esmaecido, e não eram belas nem cheirosas, eram apenas flores. Desde então, ele tem se dedicado a atirá-las aos passantes incautos – não em emboscadas guerrilheiras, mas à luz do dia e das estrelas.
Nascido à beira de um lago quase sem nome, Tenório não dispensa a paz dos engarrafamentos e dos shoppings centers. Prefere a missa aos domingos, quando é impossível entrar nas igrejas. Amou poucas mulheres, mas é amado por muitas – todas elas leitoras implacáveis –, algumas das quais aqui presentes... Não se sente responsável pelo que cativa, senão teria milhares de responsabilidades a mais – chamadas Rosas, Dálias, Margaridas e outras flores. O Aristides, ao contrário do que todos pensam, não é seu filho – é seu irmão mais novo, amigão de fé, camarada.
Extremamente tímido, Tenório busca refúgio no centro do palco, sob a luz dos refletores, que insistem em focar sobre ele. Dorme pouco – mas, se o dia tivesse 48 horas, dormiria menos ainda, buscando maximizar o mínimo tempo disponível. Diurno, prefere a solidão da noite para criar, regando avencas, begônias e gardênias nos jardins suspensos dos seus sonhos.
Tem muitos amigos. Tantos que, de cada um deles, sabe de cor, além dos telefones celulares e convencionais, o título de eleitor, o RG, o CPF e a inscrição no PIS/PASEP. Cansado dos escândalos políticos que pululam como pipocas selvagens em seu tropical país, passou a dar especial atenção aos cães, aos quais dedica o tempo antes reservado à leitura de jornais. Mas seus melhores amigos são mesmo os livros, especialmente porque não ladram e nem precisam ser levados a passear.
Os primeiros poemas surgiram com as primeiras palavras que ele escreveu ou falou. Os últimos poemas ele os há de dividir conosco, com a mesma ternura com que divide os mais diáfanos raios de sol e as águas cotidianas do seu imenso Amazonas. Quando escreveu A Derrota do Mito, Tenório estava grávido – ávido de esperança e de transformações. Por isso aquele tom sombrio, que é o seu jeito de nos mostrar a beleza da luz. Mas Tenório é um autor incomum, porque é um autor de autores: alguns ele inventa; outros existem por si mesmos, mas não seriam ninguém sem ele. Eu, por exemplo. A obra do editor Tenório Telles paga com troco milionário o tributo de sua aventura na Terra.
Mas, não-satisfeito, ele, um especialista em florilégios, quase um floromaníaco, analisa e psicanalisa a polifrorífera literatura brasileira, com uma destreza de corar de inveja a Freud, Jung, Lacan e outros floricoroados. Comove-me o retrato de Machado de Assis: por 30, às vezes, 40 minutos – depende do volume da plateia – ele discorre sobre o menino preto, pobre e doentio que se transformou no maior escritor brasileiro de sempre. Machado, vaidoso como era, se orgulharia da performance de Tenório e agradeceria com um leve meneio de cabeça, falseando a quase incontida emoção.
Emoção que Tenório não se preocupa em reprimir. Seja ouvindo a Nona com a sinfônica de Berlim ou a voz de pássaro liberto de Maria Lúcia Godoy, entoando a Bachiana Nº 5 nos altos do El Perikiton, entre petiscos de ovas de jaraqui, dúzias de sardinhas fritas e doses desmedidas de guaraná Baré. Lembranças de uma juventude recordada com ternura, mas sem saudades. Lembranças de Tereza Katsuko e Valadares, colunas-mestras da sua formação, forjada na mais austera disciplina e na mais absoluta loucura. Lembranças dos dramas que ficaram para trás e que o tempo tornou comédias bufas. Lembranças do amigo Paulo Graça, que em algum lugar do éter se diverte com nossa efêmera condição de frágeis homens.
Tenório Telles tem o dom e tom exato da palavra e com elas combate, sem palavras-meias, a barbárie, a estupidez e a ignorância. Para ele, a medianidade e a mediocridade se confundem num alvoroço medieval: é contra o banal e o vulgar que ele se insurge. E de suas mãos e de sua boca brotam palavras de fogo, que incendeiam a inconsciência dos fiéis. Militante da Utopia, ele acredita que somente sonhando sonhos impossíveis a humanidade pode avançar além do sonhado pelo Mahatma Gandhi, por Martin Luther King ou pelo Dalai Lama, que sonharam ou sonham o mesmo sonho do Cristo, que os homens se encarregaram de deturpar e de com eles acumular riquezas pessoais. Como na velha canção, ele acredita que sonho que se sonha junto – de olhos abertos, ouvidos atentos e um poema em cada mão – é a realidade possível de ser construída. Está ciente de que a cada dois passos à frente será dado um passo atrás; mas sabe também que o abismo não é o limite, pois aprendeu a voar.
Alguém já falou da sua figura romântica. Ora, o romantismo é a vertigem – o grito pela liberdade de criação: caos, anarquia, aventura, desequilíbrio, escuridão. A vertigem é o não. Mago, profeta, predestinado, o romântico sob a vertigem tem êxtases místicos que lhe descortinam o suprarreal e o infinito. Tenório Telles é um romântico, sim, mas um romântico à moda antiga, visceralmente lúcido, dos que acreditam que o mundo pode ser mudado e que a literatura, transformando indivíduos, contribui para transformar o mundo; dos que pensam que os valores éticos e morais são mais importantes que os não-valores transitórios e pusilânimes que norteiam a cultura da vantagem e da negociata; dos que crêem, enfim, que o paraíso não está em outra dimensão e nem é físico, mas está na mente e no espírito de cada mulher e de cada homem.
Este é o retrato 3x4 de um amigo 100%. Assim falando, entretanto, vocês não têm nem ideia de sua estatura e, muito menos ainda, de sua profundidade. Para mostrá-lo em sua inteireza, precisaria dos traços de um Van Gogh ou de um Edward Munch – ou, quem sabe, da câmera de um Chaplin ou das palavras de um Drummond. Diante desse impasse, continuem tentando descobri-lo por inteiro, como eu o faço há quase 30 anos...
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*Lido pelo autor, por ocasião da festa pelos 46 anos do homenageado, na última Quarta Literária, dia 02 de setembro.
sábado, 5 de setembro de 2009
sexta-feira, 4 de setembro de 2009
filho
tens as vestes esfarrapadas, meu filho, teus caminhos são tortuosos. teus pés estão feridos e o corpo lanhado de espinhos. te perdeste na procura do caminho onde poucos estiveram. o cavaleiro da estrada quis punir-te; foste poupado.
vem, meu filho. vou cobrir a nudez de teu corpo cansado. do cordeiro e do leão fiei tuas vestes. e nas três varas de bambu sustentarás teu corpo. até que a espiga haja crescido viçosa, e teus filhos estejam alimentados.
(Adrino Aragão)
quinta-feira, 3 de setembro de 2009
A medicina sob a guarda da iatrofísica
A diferença entre a medicina-oficial, a reconhecida pelo Estado, da praticada pelos curadores das religiões (medicina-divina) e a dos conhecedores dos saberes historicamente acumulados (medicina-empírica), reside no fato de a primeira estar assentada em processos teóricos temporários, substituídos ou reconstruídos na dinâmica do movimento técnico-científico, em torno da busca incessante da materialidade da doença, legitimando o tratamento e o prognóstico.
Um desses processos teóricos — a iatrofísica —, a partir do século 16, teve profunda influência na medicina-oficial. Um pilar dessa mudança pode ser compreendido nas palavras de Galileu Galilei (1564-1642): “Aquilo que acontece no concreto, acontece no mesmo modo no abstrato, os cálculos e raciocínios feitos com números abstratos devem corresponder aos cálculos feitos com moedas de ouro e prata. Os erros não estão no concreto ou no abstrato, na geometria ou na física, mas no calculador que não sabe calcular”. A afirmação retratou muito bem o pensamento dominante da época: o progresso da ciência estava nas mãos dos homens.
Inexoravelmente, o novo conceito do corpo como máquina substituiria os humores hipocráticos e os temperamentos galênicos. Mensurou-se a máquina humana em níveis nunca antes imaginados. O corpo desvendado pela anatomia renascentista teve as partes comparadas ao fole, filtro, tesoura e prensa.
Estava aberto outro caminho na compreensão dos mistérios do corpo.
O médico Santório (1561-1636), um dos precursores que aplicou nos diagnósticos das doenças as novas mensurações, em especial, a temperatura corpórea, após medir a quantidade de urina e fezes e comparar com o peso do alimento ingerido, concluiu que o corpo deveria eliminar por outras vias parte do que era ingerido. Denominou esta perda de “perspiração invisível”, que depois de dois séculos, seria conhecida como metabolismo basal. As argutas observações foram publicadas, em 1614, no livro De Statica Medicina, reproduzido em várias edições e línguas, onde descreveu com incrível clareza a idéia de que o corpo humano assemelhava-se à uma máquina.
Assim, sob o crivo da iatrofísica, todos os fenômenos biológicos foram reduzidos a simples reprodução dos fenômenos físicos. Os iatrofísicos não sentiram dificuldade para comparar os pulmões ao fole; os dentes, à tesoura; o estômago, à garrafa e o rim, ao filtro; porém, não estabeleceram relação coerente entre as partes.
O mais importante representante dos iatrofísicos foi Marcelo Malpighi (1626-1696), aluno de Santório. O magistral Malpighi, ao usar as lentes de aumento para ver o invisível aos olhos desarmados, introduziu o pensamento micrológico na busca da materialidade das doenças:
“O aparelho é fixado num círculo, móvel na base; para ver tudo é preciso girá-lo; num só golpe de olhos, pode-se ver apenas uma pequena parte do conjunto. Para observar objetos muito grandes é preciso poder distanciar e aproximar as lentes e isso é possível graças à mobilidade do aparelho sob os seus pés. deve ser usado com um ar sereno e límpido, sendo melhor utilizável ao sol, para que o objeto seja bem iluminado. Contemplei inúmeros animais pequenos com a admiração infinita: Entre eles, a pulga é horrível, o mosquito e a traça, os mais belos, e foi com grande contentamento que vi como fazem a mosca e outros pequenos animais para caminhar...”.
Hoje, a genialidade de Marcelo Malpighi continuamente presente: as ações de saúde, objetivando materializar a doença são alicerçadas no diagnóstico microscópico, entre as infecções e os tumores. A maior preocupação do homem do século 21, em relação à sobrevivência, é saber se é portador, está com infecção ou com tumor. Este fato é facilmente comprovado pelas grandes campanhas mundiais de esclarecimento de que é possível evitar o câncer, as infecções e a AIDS. Em todos estes casos, o diagnóstico é obtido por meio da microestrutura.
O médico italiano soube identificar e aproveitar algumas variáveis importantes. Além do estímulo coletivo de resistir aos dogmas da Igreja, que contagiou a Europa renascentista, os primeiros estudos da óptica foram fundamentais para que pudesse ser montado o microscópio.
A utilização das lascas de cristais para o aumento do objeto é muito antiga. As primeiras lentes apareceram no século XIV. Na Catedral de Charters, na França, no vitral no lado ocidental, um artesão está trabalhando com óculos. Acredita-se que seja a mais antiga representação do uso de lente de aumento de modo semelhante ao de hoje.
O rápido conjunto das novas observações consequentes ao uso do microscópio gerou muitas sociedades científicas, onde eram discutidas as descobertas da microestrutura do corpo humano e dos micróbios. Entre as aplicações imediatas a de maior destaque foi a identificação do ácaro, como o agente causador da sarna. Essa doença da pele, conhecida desde os tempos bíblicos, estava incluída entre as oito moléstias aceitas como contagiosas, mas até então sem etiologia reconhecida. A identificação do ácaro foi a primeira prova de que o micróbio poderia ser a causa de uma doença.
O modo como os médicos seiscentistas relacionavam-se com os doentes passou a ser criticado. A frieza do conceito mecanicista de vida simplificava as funções vitais ao nível de simples acontecimentos mecânicos. Os médicos contentavam-se com a descrição dos sintomas... a distância. Foram esquecidos os mais elementares valores da relação médico-paciente e aparelhos interpostos entre o médico e o doente.
O auge da crítica à medicina mecanicista, sob a estrutura teórica da iatrofísica, atingiu maior consistência com as publicações de Thomas Sydenham (1624-1689), que defendeu de modo explícito, até o final da vida: ponto fundamental da Medicina é a presença do médico à cabeceira do doente, utilizando os recursos que pudessem auxiliar na cura. Existem muitas atualidades na proposta de Sydenham. Hoje, o médico tende a se afastar do doente e enfatizar os recursos tecnológicos disponíveis. Essa atitude impede a compreensão do componente social no aparecimento e desaparecimento das doenças.
O exagerado tecnicismo em muitos currículos médicos é um dos suportes dessa prática distanciada do doente: os estudantes são mais treinados para diagnosticar as raras doenças cardíacas utilizando sofisticados aparelhos do que identificar as carências nutricionais do subdesenvolvimento; realizar a cesariana controlada pelo ultrassom do que o parto normal, que exige muitas horas de observação e acompanhamento ao lado da gestante.
As críticas à exclusividade da iatrofísica, amparando os processos teóricos da Medicina, no século XVII por Sydenham, continuam atuais e contribuindo para que o médico deva sempre estar à cabeceira do doente, antes da utilização da tecnologia.
Malpighi trouxe a doença do macrocosmo do corpo para a microestrutura do micróbio e renorteou a Medicina. Ilustração do pulmão da rã com a trama vascular e vesicular também encontrada no humano.
João Bosco Botelho
A diferença entre a medicina-oficial, a reconhecida pelo Estado, da praticada pelos curadores das religiões (medicina-divina) e a dos conhecedores dos saberes historicamente acumulados (medicina-empírica), reside no fato de a primeira estar assentada em processos teóricos temporários, substituídos ou reconstruídos na dinâmica do movimento técnico-científico, em torno da busca incessante da materialidade da doença, legitimando o tratamento e o prognóstico.
Um desses processos teóricos — a iatrofísica —, a partir do século 16, teve profunda influência na medicina-oficial. Um pilar dessa mudança pode ser compreendido nas palavras de Galileu Galilei (1564-1642): “Aquilo que acontece no concreto, acontece no mesmo modo no abstrato, os cálculos e raciocínios feitos com números abstratos devem corresponder aos cálculos feitos com moedas de ouro e prata. Os erros não estão no concreto ou no abstrato, na geometria ou na física, mas no calculador que não sabe calcular”. A afirmação retratou muito bem o pensamento dominante da época: o progresso da ciência estava nas mãos dos homens.
Inexoravelmente, o novo conceito do corpo como máquina substituiria os humores hipocráticos e os temperamentos galênicos. Mensurou-se a máquina humana em níveis nunca antes imaginados. O corpo desvendado pela anatomia renascentista teve as partes comparadas ao fole, filtro, tesoura e prensa.
Estava aberto outro caminho na compreensão dos mistérios do corpo.
O médico Santório (1561-1636), um dos precursores que aplicou nos diagnósticos das doenças as novas mensurações, em especial, a temperatura corpórea, após medir a quantidade de urina e fezes e comparar com o peso do alimento ingerido, concluiu que o corpo deveria eliminar por outras vias parte do que era ingerido. Denominou esta perda de “perspiração invisível”, que depois de dois séculos, seria conhecida como metabolismo basal. As argutas observações foram publicadas, em 1614, no livro De Statica Medicina, reproduzido em várias edições e línguas, onde descreveu com incrível clareza a idéia de que o corpo humano assemelhava-se à uma máquina.
Assim, sob o crivo da iatrofísica, todos os fenômenos biológicos foram reduzidos a simples reprodução dos fenômenos físicos. Os iatrofísicos não sentiram dificuldade para comparar os pulmões ao fole; os dentes, à tesoura; o estômago, à garrafa e o rim, ao filtro; porém, não estabeleceram relação coerente entre as partes.
O mais importante representante dos iatrofísicos foi Marcelo Malpighi (1626-1696), aluno de Santório. O magistral Malpighi, ao usar as lentes de aumento para ver o invisível aos olhos desarmados, introduziu o pensamento micrológico na busca da materialidade das doenças:
“O aparelho é fixado num círculo, móvel na base; para ver tudo é preciso girá-lo; num só golpe de olhos, pode-se ver apenas uma pequena parte do conjunto. Para observar objetos muito grandes é preciso poder distanciar e aproximar as lentes e isso é possível graças à mobilidade do aparelho sob os seus pés. deve ser usado com um ar sereno e límpido, sendo melhor utilizável ao sol, para que o objeto seja bem iluminado. Contemplei inúmeros animais pequenos com a admiração infinita: Entre eles, a pulga é horrível, o mosquito e a traça, os mais belos, e foi com grande contentamento que vi como fazem a mosca e outros pequenos animais para caminhar...”.
Hoje, a genialidade de Marcelo Malpighi continuamente presente: as ações de saúde, objetivando materializar a doença são alicerçadas no diagnóstico microscópico, entre as infecções e os tumores. A maior preocupação do homem do século 21, em relação à sobrevivência, é saber se é portador, está com infecção ou com tumor. Este fato é facilmente comprovado pelas grandes campanhas mundiais de esclarecimento de que é possível evitar o câncer, as infecções e a AIDS. Em todos estes casos, o diagnóstico é obtido por meio da microestrutura.
O médico italiano soube identificar e aproveitar algumas variáveis importantes. Além do estímulo coletivo de resistir aos dogmas da Igreja, que contagiou a Europa renascentista, os primeiros estudos da óptica foram fundamentais para que pudesse ser montado o microscópio.
A utilização das lascas de cristais para o aumento do objeto é muito antiga. As primeiras lentes apareceram no século XIV. Na Catedral de Charters, na França, no vitral no lado ocidental, um artesão está trabalhando com óculos. Acredita-se que seja a mais antiga representação do uso de lente de aumento de modo semelhante ao de hoje.
O rápido conjunto das novas observações consequentes ao uso do microscópio gerou muitas sociedades científicas, onde eram discutidas as descobertas da microestrutura do corpo humano e dos micróbios. Entre as aplicações imediatas a de maior destaque foi a identificação do ácaro, como o agente causador da sarna. Essa doença da pele, conhecida desde os tempos bíblicos, estava incluída entre as oito moléstias aceitas como contagiosas, mas até então sem etiologia reconhecida. A identificação do ácaro foi a primeira prova de que o micróbio poderia ser a causa de uma doença.
O modo como os médicos seiscentistas relacionavam-se com os doentes passou a ser criticado. A frieza do conceito mecanicista de vida simplificava as funções vitais ao nível de simples acontecimentos mecânicos. Os médicos contentavam-se com a descrição dos sintomas... a distância. Foram esquecidos os mais elementares valores da relação médico-paciente e aparelhos interpostos entre o médico e o doente.
O auge da crítica à medicina mecanicista, sob a estrutura teórica da iatrofísica, atingiu maior consistência com as publicações de Thomas Sydenham (1624-1689), que defendeu de modo explícito, até o final da vida: ponto fundamental da Medicina é a presença do médico à cabeceira do doente, utilizando os recursos que pudessem auxiliar na cura. Existem muitas atualidades na proposta de Sydenham. Hoje, o médico tende a se afastar do doente e enfatizar os recursos tecnológicos disponíveis. Essa atitude impede a compreensão do componente social no aparecimento e desaparecimento das doenças.
O exagerado tecnicismo em muitos currículos médicos é um dos suportes dessa prática distanciada do doente: os estudantes são mais treinados para diagnosticar as raras doenças cardíacas utilizando sofisticados aparelhos do que identificar as carências nutricionais do subdesenvolvimento; realizar a cesariana controlada pelo ultrassom do que o parto normal, que exige muitas horas de observação e acompanhamento ao lado da gestante.
As críticas à exclusividade da iatrofísica, amparando os processos teóricos da Medicina, no século XVII por Sydenham, continuam atuais e contribuindo para que o médico deva sempre estar à cabeceira do doente, antes da utilização da tecnologia.
Malpighi trouxe a doença do macrocosmo do corpo para a microestrutura do micróbio e renorteou a Medicina. Ilustração do pulmão da rã com a trama vascular e vesicular também encontrada no humano.
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