Zemaria Pinto
Das “histórias verdadeiras” passamos a uma “história falsa”,
A maravilhosa história do sapo Tarô-Bequê (SOUZA, 1997, 153-195), pela qual o próprio Márcio Souza diz ter “uma predileção especial” (SOUZA, 1984, p. 42).
Tarô-Bequê, encenada pela primeira vez em 1975, encerra um paradoxo na sua própria estrutura: embora em ritmo de comédia, trata-se de uma tragédia, ou, segundo o próprio autor, “uma comédia moral para crianças”, concebida de acordo com a tradição do povo Tucano. A opção pelo tom de comédia confirma a recomendação aristotélica de que estas tratem de “pessoas inferiores; não, porém, com relação a todo vício, mas sim por ser o cômico uma espécie do feio” (ARISTÓTELES,1988, p. 23-24).
Tarô-Bequê traz animais antropomorfizados como personagens, com exceção de Cainhamé, o Pai do Mato, um ente com poderes sobrenaturais.
Em outra oportunidade, comentando o texto de
A maravilhosa história do Sapo Tarô-Bequê, chamei a atenção para a inversão dos postulados europeus, onde bruxas más transformam gente em bicho. Na peça de Márcio Souza, um sapo transforma-se no guerreiro Tarô-Bequê e um cipó é metamorfoseado na Moça Juruti. O final, trágico, repõe a ordem original, quebrando a hegemonia do “final feliz” das fábulas europeias. A aproximação entre as lendas tucanas e conhecidas passagens da mitologia grega – os mitos de Prometeu, no episódio do roubo do fogo, e de Orfeu e Eurídice, na descida à Maloca dos Mortos –, nos remete novamente a Mircea Eliade, ao referir-se às “mitologias primitivas”:
Elas foram transformadas e enriquecidas ao longo dos tempos, sob a influência de outras culturas superiores, ou graças ao gênio criador de certos indivíduos excepcionalmente dotados. (...) Apesar de suas modificações ao longo do tempo, os mitos dos “primitivos” refletem ainda uma condição primordial. Além disso, nas sociedades “primitivas” os mitos estão ainda vivos e fundamentam e justificam todos os comportamentos e atividades humanas.
(ELIADE, 1986, p. 12)
A fábula de
Tarô-Bequê é plena de aventura e suspense. Atendendo a um pedido insistente do sapo, Cainhamé acaba por ceder e transforma-o num guerreiro. Mas um homem solitário não está completo: Cainhamé, então, de um cipó, de tamanho entre o queixo e os pés de Tarô-Bequê, faz surgir a Moça Juruti. Tudo estaria muito bem se Juruti, cansada de comer carne crua, não exigisse do noivo que lhe trouxesse o fogo, guardado pelo Urubu-Rei, caso contrário o casamento não se consumaria. O ex-sapo não resiste ao desafio da amada. Fingindo-se de morto, “uma deliciosa carniça de gente”, Tarô-Bequê é levado pelo vaidoso Urubu-Rei até a casa deste, acima das nuvens, para que sua cozinheira, Dona Mucura, possa com ele preparar um repasto ao patrão. Após cegar o Urubu-Rei com pimenta, Tarô-Bequê apossa-se do fogo e montado no ex-guardião foge de volta para casa, ameaçando queimar-lhe as penas do rabo. Mas a Mucura tem seus contatos e consegue não só descobrir tudo sobre Tarô-Bequê como chegar antes à casa onde Juruti esperava ansiosamente pelo noivo.
À maneira da madrasta de Branca de Neve, Dona Mucura se disfarça e inocula em Juruti um conhecido veneno – coca-cola –, desacordando-a e sequestrando-a em seguida. Ao chegar em casa e não encontrando Juruti, Tarô-Bequê pede ajuda a Cainhamé, que, com seus poderes, descobre que a jovem encontra-se prisioneira do Urubu-Rei e da Mucura, na Maloca dos Mortos. Acompanhado de Dona Surucucu, prima de Cainhamé, “descendente da vigésima geração da cobra-trovão que trouxe no ventre os avós-primeiros para a terra”, Tarô-Bequê, com o disfarce de um amigo do Urubu-Rei, penetra na Maloca dos Mortos, com uma restrição explícita: em hipótese alguma a palavra “não” poderá ser pronunciada. Depois de muito caxiri, que embebeda não só o Urubu-Rei e Dona Mucura, mas também a aliada Surucucu, Tarô-Bequê discute com Juruti sobre se devem ou não levar a cobra junto com eles. Juruti insiste que sim, Tarô-Bequê se nega. Juruti volta a insistir e Tarô-Bequê grita a plenos pulmões a palavra proibida. Como castigo por violar a interdição, Tarô-Bequê retorna à forma de sapo e Juruti se transforma num pé de tajá.
As palavras finais de Cainhamé encerram a comédia com um travo de iniludível tristeza:
– Pobre Juruti! Pobre Tarô-Bequê!
Nenhum lamento para eles é necessário.
(....) No sapo que poreja, vejam um amante desesperado.
Ele, o sapo, lerdo e pesado, um amante cheio de perseverança.
E nelas, nas folhas dos tajás, a amada não saciada.
O resto é essa poeira que acompanha nas margens do rio
o caminho de nossos desejos.
Representando a sabedoria ancestral, Cainhamé, diligente protetor da natureza, é o repositório de todas as tradições, melhor dizendo, de todos os conhecimentos de sua gente. A sua linguagem é a única a manter-se sempre em alta tensão poética, deixando claro ao público/leitor a sua ascendência sobre os demais, mocinhos ou vilões. Ao subnominá-lo como Pai do Mato, Márcio Souza toma emprestado um título usualmente empregado para nomear espíritos malignos, como o Curupira, ou monstros, como o Mapinguari. Fazendo uma inevitável analogia com o percurso histórico da Mãe d’Água – que de serpente traiçoeira mudou-se em lânguida ninfa, graças às contaminações que o imaginário popular sofreu ao longo dos séculos –, é muito simpático reconhecer no sábio e ponderado Cainhamé o antes temível Pai do Mato. Sem dúvida, um título de nobreza.
O lado cômico da história é garantido pelas interferências críticas à “civilização”, com gagues relacionadas a acontecimentos recentes, de domínio da plateia, sempre olhados como movimentos do colonizador no sacro espaço do mito. Assim, os tempos mítico e atual se cruzam e se interpenetram, num movimento articulado, garantindo para este o riso e para aquele a reflexão.
Tarô-Bequê sustenta-se em duas colunas mestras: o roubo do fogo, quando o herói leva a melhor, e a ida à Maloca dos Mortos, onde sua pretensão de virar gente se esvanece. Quanto ao simbolismo do fogo – assim como em
Jurupari, quando o incêndio da maloca de Naruna representava a purificação, o começo de uma nova era –, aqui ele tem dois significados complementares, essenciais à metamorfose pretendida por Tarô-Bequê:
1 – exprime o seu desejo de conhecimento, pois “não basta moldar um feixe de nervos feito gente para isso ser gente”, como já o alertara Cainhamé;
2 – simboliza o desejo sexual reprimido dos noivos, pois é preciso ter o fogo em casa para que o casamento seja levado a termo e se perpetue; por outro lado, a carne assada ou cozida é um índice de civilidade, tanto quanto a instituição do casamento.
Em ambos os casos, o fogo é iluminação, metáfora do conhecimento humano, sempre em mutação. O mito de Prometeu aqui representado ilustra a humana “vontade de intelectualidade” (BACHELARD, 1990, p. 104); isto é, a vontade de saber, de ir além do conhecido, sem temer a barreira imposta por pais, mestres ou governantes.
A descida à Maloca dos Mortos, que evoca de modo direto o mito de Orfeu e Eurídice, é recorrente na literatura universal, desde Homero. A Maloca dos Mortos guarda uma relação direta com o inferno cristão de Dante e com os Infernos visitados por Ulisses e Eneias, na
Odisseia e na
Eneida, respectivamente. A simbologia é clara: se o sapo conseguisse sair daquele lugar interdito aos humanos carregando o fogo, ele teria merecido sua nova condição de homem, pois Cainhamé o prevenira, logo no início da aventura, que ele não seria “aceito por nenhuma comunidade de homens por não ter nascido de mulher”. O fracasso de Tarô-Bequê é um signo da queda cotidiana do homem, o que não é necessariamente o triunfo do Mal; antes, ele deixa-se vencer por si mesmo, pela sua falta de qualidades, sua incompletude. Demasiado humano.