Amigos do Fingidor

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

A casa do Poeta

Leyla Leong


Jardim Yolanda , rua B, Q 2, casa 2, bairro Parque Dez de Novembro, Manaus, Amazonas.

Num final de rua, próximo a uma curva, altos pés de bambu escondem a parede. Um portão de ferro vazado em pequenos quadrados interrompe o verde.

Entrando, à direita, o consultório da psicanalista Eugênia Turenko, mulher do poeta Anibal Beça. Entrei naquele consultório uma única vez. De cara senti a força da presença de Eugênia dominando o ambiente. “Uma rainha, pensei, em seu castelo”.

A meia-luz foi aos poucos revelando cores e objetos. Em determinado momento abaixei o olhar e me emocionei: Eugênia havia posto em destaque, em uma mesinha, caixinhas de cerâmica feitas por mim. “Foi o Nibito que me deu de presente”.

A casa se projeta para baixo, de forma que ao nível da rua ficava o consultório e um pequeno hall onde os pacientes esperavam para ser atendidos. A pedido de Eugênia preparei um pequeno canteiro feito com lírios da paz em vasos sobre pedras. Descendo, uma rampa leva a dois amplos espaços.

Num deles, grandes chaises-longues amarelas, uma mesa com tampo de vidro e cadeiras de ferro e vime. As paredes estão cobertas inteiramente por grandes telas, entre as quais a mais impressionante de todas, de Van Pereira, em tons dramáticos de amarelos e marrons.

Dali divisa-se a piscina onde o vento balança o trapézio usado para as sessões de hidroginástica de Eugênia. Um pátio de pedras leva ao jardim por onde ela guiava os amigos para exibir orquídeas, bromélias e árvores frutíferas.

Aos sábados pela manhã, quando a visitava, ela me levava para passear no jardim e me contava as novidades das plantas. Algumas haviam morrido, outras estavam floridas, outras precisavam de poda, outras estavam cheias de frutos... dizia, acelerando a cadeira de rodas com o Cedê ou a Filuca olhando tudo de dentro de uma cestinha.

Ao lado da primeira sala, o espaço prossegue em abertura até a sala de jantar, onde uma mesa se oferecia para até oito amigos sentarem. De uma das cabeceiras Eugênia me ensinou a fazer o autêntico strogonoff, com direito a degustação. Sobre aquela mesa comi carneiro, porco e até um arrozinho simples com cenoura que ela mandou fazer na hora, porque eu estava doente.

Os cachorrinhos ficavam ao lado da mesa, à espera dos pedacinhos de comida que ela lhes dava no seu próprio garfo. A primeira vez que vi aquilo me atrevi a fazer um comentário. Eugênia fingiu-se ofendida e me veio com esta: “se duvidar eles são mais sadios do que muita gente!”...

Encostada à parede, uma cristaleira exibe peças avulsas de louças e porcelanas trazidas da Croácia para o trópico úmido na bagagem da elegante e enigmática Dona Ana (mãe da Eugênia), lembrava a doce infância e os antigos tempos.

A sala dá para um pátio a céu aberto, revestido de tijolos aparentes intercalados de orquídeas, bromélias e hera. Ali se reuniam os amigos à espera do jantar e depois dele, esticando conversas. Esse pátio me lembra os réveillons do casal, para os quais tinha um convite “permanente”.

Vi chover, fazer sol e anoitecer naquele pátio. Num desses dias ela me convidou para escrevermos um livro juntas. “Uma história para crianças, propôs, inspirada em algumas lendas russas”.

Um corredor leva à parte íntima da casa, com escala no gabinete de Anibal, onde os livros tomam conta do espaço desordenadamente. Sentado diante do computador onde passava a maior parte do dia, não parecia difícil localizar qualquer obra à qual estivesse se referindo no momento. Era só dar um empurrãozinho na cadeira, fazer uma pequena torção e pronto, o livro estava na mão para mostrar a você.

Nas paredes, fotos, caricaturas e quadros faziam companhia ao poeta nas suas longas horas de criação. Não se tratava de quadros meramente decorativos nem havia propriamente uma programação visual. Era algo que transcendia a estética; puro sentimento, pois todos faziam referência a amigos, momentos, lugares próximos ao coração do poeta.

Naquele pequeno universo pleno de ideias, livros, frases, bilhetes, dicionários e papéis movia-se o grande corpo do poeta e a sua imaginação, a desaguar poemas, livros inteiros, estrofes, artigos, e-mails, telefonemas, músicas......

Certo dia, ali no escritório, Anibal me contou que a cantora que iria interpretar uma música sua no Fecani não tinha uma roupa apropriada para a ocasião. No dia seguinte apareci na casa dele levando o meu pretinho de grife para dar mais brilho à interpretação da moça. A menina fez bonito, a música foi vencedora e eu nunca mais vi o meu vestido.

No dia em que o Serafim o convidou para ser presidente do Conselho Municipal de Cultura ele me ligou, suponho que do seu escritório. Estava muito feliz, falou dos seus planos e me convidou para trabalhar com ele. Por algumas dessas “razões” políticas que ninguém entende, a minha nomeação nunca saiu, mas participei de todas as suas vitórias.

Perto dali, o dormitório do casal podia transformar-se em sala de visitas, dependendo da intimidade e do momento.

Quando a Eugênia fraturou algumas costelas, por exemplo, o quarto virou sala de muitas conversas. Deitados com ela na cama Cedê e Filuca ouviam tudo calados. Em uma das minhas visitas Eugênia abriu uma caixinha de onde tirou o seu colar de âmbar. “Veio da Rússia!”, comemorou. Pequenas coisas! Pequenas lembranças de dois grandes amigos.



terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Amar os livros


Pedro Lucas Lindoso


Há com certeza uma academia de letras em cada unidade da federação. Inclusive no Distrito Federal. No Rio de Janeiro, onde fica a sede da Academia Brasileira de Letras, existe ainda a Academia Fluminense e outra em Niterói. 

Além das prestigiadas academias estaduais, existem Brasil afora associações, grêmios e clubes literários. Alguns desses clubes e associações se autodenominam também de academias. Isso parece incomodar. Mormente alguns escritores que pertencem àquelas pioneiras e legítimas academias estaduais.

O Distrito Federal é uma unidade da federação onde não há municípios. Existem cidades satélites como a próspera Taguatinga. Alguns membros da Academia Brasiliense de Letras não viram com bons olhos a criação da Academia Taguatinguense de Letras. Eu penso que seria ótimo se cada município brasileiro tivesse, além da prefeitura, da Igreja e da Câmara Municipal, a sua Academia de Letras.

Outra polêmica grande é quem está qualificado para entrar nas academias. Moacyr Andrade foi um grande artista plástico e um festejado membro da Academia Amazonense. É certo que publicou livros. Mas sua grande contribuição para nossa cultura foi nas suas maravilhosas telas. Fernanda Montenegro, ícone da cultura nacional, foi eleita, merecidamente, para a Academia Brasileira de Letras. Escreveu um livro. Mas certamente será eternamente lembrada pelos seus filmes, novelas e peças de teatro.

Em Manaus temos vários clubes literários. Há intelectuais que acham que essas associações agasalham alguns sem a necessária qualificação para serem escritores. Nem todos os membros do Clube da Madrugada se destacaram como grandes escritores. Alguns, entretanto, se tornaram bastante conhecidos no Brasil e exterior.

Clubes e associações literárias sempre existiram. Jefferson Péres, em seu livro Evocação de Manaus – como eu a vi ou sonhei, nos fala do Clube da Madrugada. E lembra que existiu a República Livre do Pina, a Colmeia, que deu origem ao PTB, e muitas outras. Menciona ainda a Sociedade Castro Alves. Relata que no Grémio Álvares de Azevedo houve uma briga com dissidência. Alencar e Silva, José Cidade e Roberto Jansen saíram para fundar a Sociedade Amazonense de Estudos Literários – SAEL. Nenhuma dessas sobreviveu.

Pouco importa se são associações, grêmios, sociedades, clubes ou miniacademias, como os definiu Jefferson Péres. Para fazer parte, estude, frequente, participe, escreva e publique. O mais importante é amar os livros e a literatura.


domingo, 1 de dezembro de 2024

Manaus, amor e memória DCXCIX

José Maciel, Moacir Andrade, L. Ruas e (na extrema direita) Elson Farias
ladeiam jovens componentes do Clube da Madrugada.



 

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

A poesia é necessária?

 

Para Fernando Pessoa

Guimarães de Paula (1932-1996)


Foste vários poetas

mas eles sempre foram tu, Fernando:

Ricardo – o clássico,

o libertário Campos,

o Caeiro bucólico e

outros mais que nos amplos

paraísos da tua criação

nos mantêm te amando,

ó grande poeta irmão,

pois, chorando ou sorrindo

(quer de verdade ou fingindo),

não sabemos se és tu ou os outros

que neste poema estás ou estão!



terça-feira, 26 de novembro de 2024

Hoje eu quero hoje

 Pedro Lucas Lindoso

 

Preciso falar sobre o hoje. O aqui e agora.  Porque o passado já é história. O passado é imexível. O que passou passou.

Ficar remoendo tristezas do passado. Para que? Tristezas não pagam dívidas. Numa acalorada discussão, um dos desafetos intimidou o outro ameaçando-o revelar seu passado. Quanta covardia. O passado de cada um é personalíssimo. Há que ser respeitado e preservado.

Os sábios nos aconselham a não remoer fatos pretéritos que possam trazer dor e ressentimentos. Em Inglês se diz: “let bygones be bygones”. Em tradução livre, equivale a águas passadas não movem moinhos.

Também não quero me ater ao futuro. O que será o amanhã? A música nos desafia a responder. O que está por vir. As possibilidades. Planos. Sonhos. Mas tudo são incertezas.

Sabemos que o passado influencia o presente. O presente molda o futuro. O futuro é construído sobre o passado e o presente.

Refletir sobre esses conceitos pode nos ajudar a aprender com erros e acertos e valorizar o momento presente. Porque o futuro não existe e a Deus pertence.

O hoje. Esse sim é o que importa. As coisas presentes. O tempo presente. O presente, o momento atual. É onde estamos agora. É o ponto de intersecção entre o passado e o futuro.

Quero louvar a instantaneidade. Quero ater-me ao que está acontecendo agora. Quero a realidade. O que posso ver, ouvir e sentir agora.

Preciso apreciar este momento. Preciso viver intensamente. Preciso também ser grato. Perdoar. Valorizar o que tenho.

Quero que o hoje me oportunize para mudar, para crescer e superar obstáculos.

Quero o hoje para inspiração. Para criar. Inovar e fazer poesias e crônicas.

Parafraseando Dolores Duran. Hoje eu quero rosas. Quero as rosas mais lindas. Rosas que exalam perfumes. Para enfeitar e perfumar o hoje. O meu hoje. O hoje dos meus amores. Da minha família. Dos amigos.

 

domingo, 24 de novembro de 2024

FLIM – Festival Literário de Manaus: Entre rios e palavras

 








Manaus, amor e memória DCXCVIII


Teatro Amazonas, no final do século 19.

 

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

A poesia é necessária?

O poeta veste-se

Luiz Bacellar (1928-2012)


Com seu paletó de brumas

e suas calças de pedra,

vai o poeta.


E sobre a cambraia fina

da camisa de neblina,

o arco-íris em gravata

vai atado em nó singelo.


(Um plátano, sobre a prata

da água tranquila do lago,

se debruça só por vê-lo).


Ele leva sobre os ombros

a cachoeira do lago

(cachecol à moda russa)

levemente debruada

de um fino raio de sol.


Vai o poeta

a caminhar pelas serras.


(pelos montes friorentos

mal se espreguiça a manhã)


com seu pullover cinzento

(feito com lã das colinas)


com seus sapatos de musgo

(camurça verde dos muros)


com seu chapéu de abas largas

(grande cumulus escuro).


Mas algo ainda lhe falta

para a elegância completa:


súbito para, se curva,

num gesto sóbrio e perfeito,


um breve floco de nuvens

colhe e prende na lapela.

 


terça-feira, 19 de novembro de 2024

A justiça inglesa


Pedro Lucas Lindoso


          O triste evento ocorrido em 2015 na cidade de Mariana, foi, sem dúvida, o maior desastre ambiental ocorrido no Brasil. Destruiu a biodiversidade de áreas de preservação e a vegetação da Mata Atlântica.  

          A tragédia resultou na morte de pessoas e afetou diversos municípios e reservas indígenas. O Rio Doce ficou extremamente poluído. A fauna e a flora da região foram brutalmente impactadas.

          Os processos na justiça brasileira se arrastam desde 2015. Então, as vítimas entraram com um processo perante a justiça inglesa. A ação é uma das maiores do mundo. O judiciário inglês iria julgar uma indenização aos municípios e pessoas afetadas pelo rompimento da barragem, avaliada em R$ 267 bilhões. O principal argumento da ação na Inglaterra é que esse tipo de questão não costuma ser resolvido no Brasil.

          O STF – Supremo Tribunal Federal, temendo que o judiciário inglês resolvesse a questão, impondo um grande vexame à nossa justiça, ajudou a encetar o acordo. O presidente da Corte, ministro Barroso, reconheceu que o Brasil tem um histórico de desastres ambientais mal resolvidos. Na sua opinião, caso a ação na Inglaterra chegasse a uma conclusão antes do judiciário brasileiro, seria um atestado da incapacidade da justiça do Brasil.

          O fato e que finalmente as vítimas serão indenizadas.  Graças à justiça da Inglaterra. Meu avô Phelippe Daou e dois irmãos emigraram do Líbano para o Brasil no início do século passado. A única irmã deles, chamada Amine, como minha mãe, emigrou com o marido para a Nova Zelândia. 

          Tia Amine e o marido Francis optaram por um país de colonização inglesa. Achavam que a justiça dos ingleses era melhor. Nova Zelândia é um país de primeiro mundo. O judiciário lá é baseado na justiça da Inglaterra. Tia Amine e o marido tinham razão. As vítimas de Mariana também. Loas à eficiente justiça inglesa.


domingo, 17 de novembro de 2024

Manaus, amor e memória DCXCVII


Membros e simpatizantes do Clube da Madrugada, reunidos ao pé do mulateiro.
O CM foi fundado na madrugada de 22/11/1954.

 

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

A poesia é necessária?

Poemas

Jorge Tufic (1930-2018)

           

                       I                                                                    

Amo arrumar palavras. Porque sei

que há traças percorrendo

em rios os papéis.


Coisa difícil é dar. Difícil

como saber se damos quando damos

ou tiramos quando tiramos.


Mas as traças são cegas.

Cega a vontade de morrer

mais cega a de escrever.


Palavras são sangue, mesmo

as que gravadas sem propósito.

E ninguém mais do que as traças

sabe disso.


                      II

Ouvi um chamado distante,

sem voz. Em seguida a surpresa

de assistir à queda de um ovo

pintado com as cores do arco-íris.


– Algum anjo brincalhão

Querendo tirar barrigada.


Depois outro ovo e mais outro,

tantos, de tantas cores,

que ao chegar em meu quarto

estava transfigurado. Decerto

não atendi ao chamado da poesia... 


                   III

O poeta vai pela rua.

Ninguém está vendo o poeta

porque o poeta é transparente.


O poeta atravessa a ponte

o poeta desfolha a rosa

o poeta contempla o mar.


Ninguém está vendo o poeta.

Mas duvido que ninguém sinta

a sua presença abstrata.


 


terça-feira, 12 de novembro de 2024

Malu conhece Libras

Pedro Lucas Lindoso

 

A minha netinha Maria Luísa, a quem chamamos carinhosamente de Malu, é muito inteligente e observadora. Além de ser bonita e simpática, é claro. Malu e sua irmã Maria Helena estavam assistindo a uma apresentação teatral na Feira do Livro do SESC.

No lado esquerdo do palco, vestida de preto, havia uma intérprete de Libras. Malu quis saber se aquela moça fazia parte da peça. Explicou-se que há crianças e adultos que não ouvem. São pessoas com deficiência auditiva. Os surdos. Eles precisam e têm o direito de entender o teatro. Daí a necessidade e a obrigação de ter os intérpretes de Libras nesses eventos.

Malu então ficou sabendo que Libras significa Língua Brasileira de Sinais. Trata-se de um idioma gestual-visual. Muito importante para a comunicação entre pessoas com deficiência auditiva. Explicamos que a Libras é fundamental para a inclusão de pessoas surdas.

Malu achou que deviam explicar para as crianças na escola o que é Libras. E que deveriam ensinar Libras para mais pessoas. Demos os parabéns para Malu. Se mais pessoas soubessem Libras ficaria mais fácil a inclusão dessas crianças nas escolas. E também ajudaria muito a comunicação dos surdos, proporcionando maior interação deles com a sociedade.

Malu ficou muito curiosa em saber como era essa língua. Explicamos que Libras é composta por um alfabeto e gramática próprios. Os sinais são formados pela combinação da forma e do movimento das mãos, expressões faciais e outros movimentos corporais.

Malu perguntou se poderia ser tradutora de Libras. Claro que sim. Um professor de Libras nos explicou que tradução e interpretação são diferentes.

A tradução se dá quando o tradutor tem acesso ao áudio, vídeo ou texto previamente e assim os traduz. Já na interpretação o processo é simultâneo. A interpretação é feita “ao vivo”, como no evento em que a Malu aprendeu sobre Libras. Lembrou-se que há essas interpretações na TV e em muitos outros locais.

Malu aprendeu ainda que existe o Braille. A língua específica dos deficientes visuais.

 Malu insistiu que as professoras deveriam ensinar essas línguas para os alunos. Ajudaria a inclusão dessas pessoas nas escolas e a sua interação na sociedade.

As professoras podiam dizer pelo menos que elas existem e nos mostrar como funcionam. Parabéns, Malu. Ótima ideia.


domingo, 10 de novembro de 2024

Manaus, amor e memória DCXCVI

 

Estudantes na praça de Fátima, em reforma.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

A poesia é necessária?

 

O chão do mundo

Thiago de Mello (1926-2022)

 

Rumo nenhum persigo. É quando sigo

as vias do mais trôpego sonhar

ou de fundos e rijos pensamentos,

chego sempre a mim mesmo; o clamor áspero

que me atraiçoa o límpido silêncio,

após ressoar em vão pelas paredes

da gasta e surda concha do infinito,

retorna, feito mágoa, à minha boca.

Não sei dar-me o que busco, se o não tenho.

 

A erva do tempo cresce, suavemente,

não tarda e o chão do mundo me devora.

Por isso quando em mim se faz mais noite,

minha face despida de seus medos

em sua própria treva se contempla,

onde lhe esplende a rude finitude.

 

Em meu ser, resignado, permaneço,

pois se tento fugir-me, eis que me vem

à boca o travo frio do negrume

que existe além de mim, e que me espera.

 


terça-feira, 5 de novembro de 2024

Celebrando a morte


Pedro Lucas Lindoso

 

O México é um país onde a celebração da morte é motivo de festa. Muita comida e bebida. Música e ruas enfeitadas. A festividade do Dia de Los Muertos é presidida pela caveira Catrina, a Dama da Morte.

O México, como país católico, celebra o Dia de Finados no 2 de novembro. Como nós, aqui no Brasil. Pais vizinho dos Estados Unidos, eles também celebram o Halloween.

Aqui não misturamos as coisas. Mas no México a semana toda é dedicada aos mortos. Entre festividades e celebrações, os mexicanos emendam tudo. Halloween com Finados.

Para nós aqui, no Brasil, Halloween e Dia de Finados são coisas distintas.  Celebrado no dia 31 de outubro, o Halloween tem suas raízes em uma festividade celta que marcava o fim da colheita e a transição para o inverno.  Enquanto aqui, no hemisfério Sul, é primavera, na Europa e nos Estados Unidos é outono.

Os celtas acreditavam que no dia 31 de outubro, o véu entre o mundo dos vivos e dos mortos se tornava mais fino, permitindo que os espíritos dos falecidos visitassem o mundo dos vivos.

 Hoje, o Halloween é amplamente comemorado em muitos países, especialmente nos Estados Unidos, onde as tradições incluem fantasias assustadoras, decoração de abóboras e festas à fantasia. E crianças visitam as casas em busca de guloseimas.

Já no dia 2 de novembro, o Dia de Finados, temos uma comemoração religiosa, especialmente popular em países de tradição católica, como o Brasil e vários outros.  Este dia é dedicado à memória dos entes queridos que já faleceram. Famílias visitam cemitérios, limpam e decoram túmulos com flores, e fazem orações pelos que partiram. É um momento de reflexão, saudade e reverência à vida dos que já se foram.

Enquanto o Halloween celebra o aspecto lúdico da morte, o Dia de Finados é um momento solene de lembrança e homenagem. Ambas as celebrações lidam com a morte, mas nenhuma tão festiva e peculiar como no México. Por lá, as tradições do Dia dos Mortos incorporam elementos festivos e coloridos, unindo as características de ambas as festividades. Nessa semana os mexicanos se esbaldam em festas, comidas e bebidas, celebrando seus mortos. Como dizia minha mãe: “cruz credo!”

 

domingo, 3 de novembro de 2024

Manaus, amor e memória DCXCV

Visão panorâmica do Centro de Manaus, 
com o Teatro Amazonas ao fundo.

 

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

A poesia é necessária?

O rio Amazonas

Elson Farias


Rio, lavras tua gula,

comedor de terra e espuma,

trazes os teus peixes todos,

sol ardente sobre lâmina.

 

Manhã clara consumada,

hereditária da chuva,

água tranquila na cuia

do verão que te saúda.

 

Noite nova sobre as árvores,

sombras nos ombros da lua,

os duendes antigos vivos,

mulher deitada na grama.

 

Não és um rio caduco,

mas uma fera atiçada.

Contra a fome te concentras

como o fixo olhar da garça.   

  

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Servidores para bem servir

Pedro Lucas Lindoso

 

Dia 28 se outubro se comemora o dia do servidor público.  Antigamente, no Brasil, se chamava de funcionário público aos que se dedicavam ao ofício de trabalhar pelo e para o estado, o município e a união. O termo ainda é bastante usado. Era como os servidores eram chamados sob a égide da Lei n° 1.711/1952 que teve vigência até 1990.  Com o advento    o da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que revogou aquele antigo estatuto, a data comemorativa foi mantida. Data que foi instituída em 28 de outubro de 1939, durante o governo de Getúlio Vargas.

Nos Estados Unidos, os cidadãos americanos têm o costume de sempre agradecer aqueles que servem ao seu país. E que os servem por tabela, é claro. Principalmente, os que atuam na defesa, segurança e outros serviços perigosos ou insalubres. Não temos esse hábito. Possivelmente porque nossas elites sempre acharam dispensável agradecer aqueles que os servem. Desde os escravos até os barnabés.

Chamávamos de barnabé. Aqueles politicamente incorretos ainda os chamam assim. O servidor público mais humilde e hierarquicamente inferior. É pejorativo. Em inglês, não há o equivalente. Também não há equivalente em francês ou outras línguas. Exceto o nome bíblico. São Barnabé ou Barnaby. A origem do termo está no carnaval de 1948. Uma marchinha onde se precisava rimar com a letra E de extranumerário. Daí surgiu o barnabé. Eternizada na voz de Emilinha Borba, a marchinha dizia: Quadro extranumerário/Ganha só o necessário/Pro cigarro e pro café/ Quando acaba seu dinheiro/Sempre apela pro bicheiro/Pega o grupo do carneiro/Já desfaz do Jacaré/ O dinheiro adiantado/ Todo mês é descontado/Vive sempre pendurado/Não sai desse tereré./ Todo mundo fala fala/Do salário do operário/ Ninguém lembra o solitário/ Funcionário Barnabé/ Ai Ai Barnabé/Ai Ai funcionário letra É./ Ai Ai Barnabé/ Todo mundo anda de bonde/Só você é que anda a pé....

A maioria dos barnabés de hoje são terceirizados.  Por empresas e cooperativas. Na França a terceirização é proibida. Chama-se de merchandage. No Reino Unido, a Família Real se considera a serviço do povo Inglês. São então servidores!

Desejo a todos os brasileiros que assim  o desejarem,  possam fazer um bom concurso e se tornarem servidores bem remunerados. Para bem servir. Feliz ponto facultativo aos servidores. Aliás um bom e merecido feriadão.

 

domingo, 27 de outubro de 2024

Manaus, amor e memória DCXCIV

 

Rua ligando o bairro de Santo Antônio a São Jorge. Década de 1960.

sábado, 26 de outubro de 2024

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

A poesia é necessária?

 

Estudo I

Alcides Werk (1934-2003)

 

Este o lugar em que me entrego. Eu, que

sempre fui cuidadoso com meu sangue,

aqui vejo-o embeber-se em solo estéril

– sacrifício vazio a um deus extinto.

 

Gosto de frequentar esta taberna,

onde me sirvo do meu próprio vinho,

nem perguntam quem sou. Meu companheiro,

que antes cantava e me aplaudia, agora

 

embuçado em silêncio me observa

como se eu lhe devesse algum milagre.

Na meia-luz da tasca entra uma lua

 

que inventa novas sombras nas paredes.

Dos meus olhos de espanto e de tristeza

vai caindo um poema sobre a mesa.



terça-feira, 22 de outubro de 2024

Manaus, com respeito e carinho

Pedro Lucas Lindoso

 

No próximo dia 24 de outubro estaremos comemorando mais um aniversário de nossa querida Manaus.

Sempre que a data se aproxima eu me lembro de minha saudosa mãe. Eu a visitava quando fazia escalas em Brasília. Num certo outubro disse-lhe que Manaus estaria fazendo trezentos e tantos anos no dia 24. Ela, espantada, me disse:

– Mas eu me lembro do centenário da cidade! Foi no ano em que me casei!

De fato, meus pais, José e Amine Lindoso, se casaram em oito de dezembro de 1948. Na Igreja de Nazaré. Pouco mais de cinquenta metros de onde minha mãe morava.

Ela não estava totalmente errada. Em 24 de outubro de 1848 Manaus juntamente com Santarém, no Pará, eram elevadas à categoria de cidade. O nome dado ao local foi Cidade da Barra do Rio Negro. Ainda éramos Grão Pará. Mas, logo em 1850 o Amazonas tornou-se província.  Novos tempos. Novas percepções. Naquela mesma década a cidade passou a se chamar Manáos. Reforma ortográfica já no século 20 que transformou páos e náos em paus e naus. E Manáos virou Manaus.

É certo que há vários milênios já se comia jaraqui por aqui. É certo também que   na segunda metade do século 17 os colonizadores chegaram na terra dos Manaus e dos Barés.

Minha mãe também não estava errada. Naquele ano de 1948 quando ela se casou comemorou-se cem anos do decreto que elevou Manaus da categoria de vila à categoria de cidade.

Assim, conservou-se o 24 de outubro. Já o ano da fundação, ocorrida na segunda metade dos anos 1600 foi consenso entre historiadores e “experts” que o melhor ano seria 1669.

O importante é celebrar nosso amor pela cidade. No meu saudosismo, queria uma Manaus com mais paralelepípedos e menos asfalto. Mais árvores e menos igarapés poluídos.

Sou de uma época em que os embates políticos se davam em comícios.  Palcos eram armados nas ruas e praças. Mais importante do que as farpas, difamações e vitupérios mútuos, era uma boa oratória. O falar bem era decisivo. Tínhamos eleições mais respeitosas. Manaus mais civilizada. Manaus com mais respeito e carinho. A cidade precisa desse presente de aniversário. Respeito e carinho.


domingo, 20 de outubro de 2024

Manaus, amor e memória DCXCIII


Montagem da cúpula do Teatro Amazonas.

 

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

A poesia é necessária?

 

Paisagem aquática

Almir Diniz (1929-2021)

 

Imaginei-me poeta

quando me vi remar sonhos

na igarité das ideias

singrando o líquido dorso

dos lagos de minha infância:

– o do Rei e o Marajá –

bordados de canarana

e lendas de cobra-grande

e ilhas de matupá

de bubuia contra o vento

nas asas do meu momento.

 

De passagem, as oiranas

povoadas de ciganas

compunham a valsa da vida

no dolente baticum

dos remos tangendo notas

nas falcas do casco leve

feito de louro-gamela,

fendendo o doce mistério

da ternura adolescente,

na corrente e nos sonidos

dos paranás dos meus idos.

 

No remanso e no rebojo

o meu remo garimpava

salpicos de melodia

vertendo brilhos difusos

que iam tingir de prata

os fornos esmeraldinos

da deusa vitória-régia

repletos de jaçanãs,

falenas, socós, intãs,

de aruás e de magia

a semear poesia.

 

A viagem dos cardumes,

demandando corredeiras,

em fúria reprodutiva

desabrochava em minha alma

uns pendões de melodia

permeando de perfumes

as flores da inspiração

nos domínios da ilusão,

nos teclados da estesia.

Dos frisos das piracemas

nasciam belos poemas.

 

Imaginei-me um esteta,

pintor nativo, um aedo,

quando vinha a primavera,

ouvindo do passaredo

suaves canções nativas

de japiins, sabiás,

canários e curiós,

rouxinóis, uirapurus

saudando manhãs de luz,

a alma de sons vestida,

os olhos tecendo a vida.

 

O sol vindo desatava

clarões de rara beleza

tingindo de luz nenúfares,

sensitiva, mururés,

e os curvos pendões dourados

de arroz-brabo e canarana

atraindo a passarada

ao repasto matinal.

Então o vento lançava

chuva de grãos saciando

a piracema passando.