Amigos do Fingidor

quinta-feira, 31 de julho de 2025

A poesia é necessária?

 

Tudo, menos tu, Cronos, morrer pode

 

Alexei Bueno

 

Tudo, menos tu, Cronos, morrer pode.

Mesmo os deuses à morte estão sujeitos.

Mesmo o Fado, que até a eles subjuga,

Não se interpõe a ti. 

 

Só tu reinas, e findos ainda um dia

Os deuses, e os mortais, e os mundos todos,

E o olímpico monte em pó tornado,

Tu, eterno, seguirias. 

 

Pois, mais que os nossos olhos que te vissem,

Num vácuo até de ti, sem quem a olhasse,

Tua gota a cair continuaria,

Sem gota, ou queda, ou nada.

 

terça-feira, 29 de julho de 2025

“Gönnen” não tem tradução

 Pedro Lucas Lindoso

 

A palavra “gönnen”, do alemão, significa “o contrário de invejar”. Ficar contente pelo outro. Alegrar-se com a conquista do outro. Não temos essa palavra no português.

O boto cor-de-rosa e o jacaré do rabo cotó é um livro infantil de minha autoria. O jacaré, de moto próprio, fica de rabo cotó em consequência de sua inveja. Questionado o porquê do Brasil não ter Prémio Nobel, um dos jurados explicou que os candidatos são prejudicados por falta de apoio dos brasileiros. Seríamos nós um povo invejoso?

Há quem diga que é doloroso fazer sucesso no Brasil. A inveja e o ciúme são sentimentos básicos bem explorados tanto por Shakespeare quanto pelo nosso grande Machado de Assis.

Não ter inveja. Alegrar-se com a conquista do outro. Uma virtude rara. Existe isso? Na sociedade em que vivemos, a inveja às vezes parece ser uma companheira constante, silenciosa, quase inevitável. Ela se insinua na esquina do sucesso alheio, na felicidade que parece brilhar mais forte do que a nossa. É difícil imaginar alguém completamente livre desse sentimento, tão humano, tão natural, quase uma sombra que acompanha nossos passos.

Porém, há quem, mesmo diante do brilho do outro, consiga sorrir de verdade. Essas pessoas são verdadeiramente raras. Uma virtude quase impossível. Ter alegria pela conquista do próximo.

Acredito que não ter inveja não significa negar o próprio desejo de alcançar algo, mas sim reconhecer que a felicidade alheia não diminui a nossa, pelo contrário, ela a amplia. Quando nos alegramos com o sucesso do outro, estamos celebrando a possibilidade de que todos possam ser felizes.

Essa virtude, infelizmente, parece escassa. Talvez porque a sociedade nos ensine a competir, a olhar o outro com olhos de cobrança, de comparação. Nos ensinam desde criança, que devemos nos esforçar para ser o melhor. Ouvi muito dos mais velhos: ”escolha qualquer profissão. Mas seja o melhor”. É difícil considerar que a verdadeira força está em apoiar, em reconhecer o esforço do outro, em sentir-se feliz por ele, como se fosse uma extensão de nossa própria alegria.

Então, será que existe essa virtude? Talvez. Talvez ela seja um exercício de humildade e generosidade. Uma prática rara. Mas possivelmente capaz de transformar relações.

Porque, no fundo, não é fácil deixar a inveja de lado. Mas vale a pena. Não apenas pelo bem que faz ao outro, mas pelo bem que faz a nós mesmos. Uma alma leve e livre do peso da inveja. Enfim, não ser invejoso muita gente consegue, mas ser um “gönnener”, alegrar-se pela vitória alheia, é raro. No Brasil não temos nem palavra para isso.

 

domingo, 27 de julho de 2025

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Artistas Plásticos do Amazonas, por Sérgio Cardoso 2/9

 

Óscar Ramos.
Clique na figura para obter acesso ao YouTube.


quinta-feira, 24 de julho de 2025

A poesia é necessária?

 

Antígona

Cláudio Fonseca

 

A D. Hermes da Fonseca

 

As grevas se iluminam ao sol do meio-dia.

Rubros, saem da névoa os corpos retalhados,

lâminas quebradas gotejando trevas

sob o olhar de tédio dos cavalos.

 

Fúrias que se ocultam em rosto vário

deixam nesta hora o plano imenso.

Quando, nos punhais, serão gravados

nossos nomes, nossa hora, em silêncio?

 

No átrio, em silêncio, um vulto chega.

A mortalha em farrapos sobe ao vento. Esse encarne

do Amor (que nos corpos apodrece) chora

a carne em solidão – o negro templo.

 

Abre a multidão, caída, sob o férreo sol

da estação de Tebas. A brutal cidade

hoje uma chaga aberta

numa entorpecida América selvagem.

 

Como um cão divino, transparente e grave,

passa a grande sombra sobre o fio das facas.

Não purificou, o Tempo, a sua arca

de agonias, de miséria e sangue.

 

O meio-dia tange a lágrima de bronze

sobre bondes e pedreiros e peões cansados

e garis suados. Pai, é teu cadáver

que Antígona levanta em seus braços.



quarta-feira, 23 de julho de 2025

terça-feira, 22 de julho de 2025

O genial Curupira na COP30

 Pedro Lucas Lindoso

 

Quando menino tive medo do Curupira. Hoje ele um herói para mim. Esse simpático e controvertido ser mitológico, habitante da floresta amazônica,  protege as plantas e os animais dos caçadores. Para evitar caça ou derrubada de árvores de forma predatória, o Curupira faz as pessoas se perderem na mata.

Ele tem os pés invertidos. Sempre confundiu os caçadores e predadores. Hoje é o terror de pessoas que usam motosserras para desmatamentos ilegais.

Quando soubemos que o Curupira foi escolhido como mascote da COP30, com seus cabelos de fogo e os pés voltados para trás, tive a certeza que vai representar mais do que uma figura lendária: ele é símbolo da proteção, da resistência e do respeito à natureza.

Na nossa cultura, o Curupira é aquele que defende as árvores, os animais e os rios. Ele não fala, mas seu silêncio é um grito de alerta.

O Curupira representa um chamado à consciência de todos os povos, de que a floresta, nossa fonte de vida, precisa de vigilância e amor. Afinal, qual o melhor símbolo para uma conferência que visa salvar o clima do que um protetor que vive na essência da Amazônia.

Ao escolher o Curupira, a organização do evento mostra que quer um resgate da nossa identidade e uma homenagem aos nossos heróis invisíveis. É uma esperança de que a luta não seja apenas de cientistas e políticos, mas de todos nós, que carregamos a floresta em nossas raízes.

Se o Curupira pudesse falar, talvez dissesse: “Não deixe que minha casa se perca. Proteja o verde, preserve a vida.” E, neste momento, ele não é mais apenas uma lenda, mas um símbolo vivo de resistência e esperança. Que sua figura inspire ações concretas, que a sua coragem nos lembre que, juntos, podemos virar o jogo e garantir um futuro mais justo e sustentável para as próximas gerações.

Porque, no fundo, o que o Curupira nos ensina é que proteger a natureza é proteger a nós mesmos. É manter viva a esperança de um planeta equilibrado, de florestas preservadas e de vidas respeitadas. E, na COP30, essa mensagem ecoa forte e clara, como os passos voltados para trás do guardião, que nos chama à atenção para aquilo que realmente importa: nossa casa comum, a Terra.

Que o Curupira, símbolo da resistência e da esperança, nos inspire preservar o que há de mais precioso: a vida em toda sua diversidade e beleza. A ideia de escolher o Curupira como mascote é genial. Como genial é o próprio Curupira.

Para saber mais sobre o Curupira, clique aqui.

 

domingo, 20 de julho de 2025

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Artistas Plásticos do Amazonas, por Sérgio Cardoso 1/9


Moacir Andrade.
Clique na figura para obter acesso ao YouTube.



Observação: o objetivo desta postagem é divulgar a arte amazonense e o trabalho do cineasta Sérgio Cardoso, ele também notável artista plástico.
Num total de nove filmes, que serão postados por nove sextas-feiras, adianto que ficarão lacunas que deverão ser futuramente preenchidas.  
 


quinta-feira, 17 de julho de 2025

A poesia é necessária?

                    Geração 70

Taiguara (1945-1996)

 


Nós estamos inventando a vida

como se antes nada existisse,

porque nascemos hoje do nada,

porque nascemos hoje pro amor.

 

Nós estamos descobrindo os corpos

como a manhã descobre as imagens.

como o amor descobre a verdade,

como a canção descobre uma flor.

 

Nós queremos desvendar a tempo

esse mistério azul de oxigênio,

esse desejo imenso de sexo,

essa fusão de angústias iguais.

 

E nós vamos resistir sem medo

à solidão de um tempo de guerras

e nossos sonhos loucos e livres

vão descobrir e celebrar a paz!

 

terça-feira, 15 de julho de 2025

Valeu, Fluminense!

 Pedro Lucas Lindoso

 

Sou torcedor do Fluminense. Mas desde o início da Copa de times torci por todos os times brasileiros. Principalmente, pelo FLU é claro.  Esperava que nas quartas de final desse campeonato todos os brasileiros fossem   torcer pelo meu time. Afinal era o único time brasileiro que restava.

Penso que seria uma forma de torcer pelo Brasil. Foi um convite aos brasileiros para carregar uma bandeira invisível, uma esperança coletiva que conectaria o torcedor às raízes do futebol brasileiro. Agora não importa mais o resultado. Perdemos o jogo. O que importa é o sentimento de que torcer pelo Fluminense, naquele momento, significou algo maior. Torcer pelo Fluminense no 8 de julho de 2025 foi torcer pelo Brasil. Simples assim.

O futebol, assim como a vida, é feito de altos e baixos, de vitórias e derrotas, de lágrimas e sorrisos. E o torcedor, não só do Fluminense, mas os torcedores de todos os times do Brasil, são apaixonados. Uma paixão vibrante.

Quando o Fluminense entrou em campo, o coração do torcedor pulou forte. Um pênalti que nos favorecia. Acabou não marcado. Um juiz francês. C’est la vie. E aí vem a questão do "secar". Secar o time adversário, combater o rival com estratégias que muitas vezes beiram a antipatia, o ridículo.  Naquele momento em que o FLU representava o futebol do Brasil.  “Secar” pode ser apenas uma demonstração de insegurança, de falta de empatia. Assim, ao invés de valorizar o que o futebol tem de mais belo: a paixão, a história, o respeito. Torce pateticamente contra.

Independentemente do que aconteceu naquela semifinal da Copa de Times, valeu fluzão. João Pedro, nosso algoz, foi cria da casa. Porque, no fundo, o futebol é isso: uma narrativa de esperança que nos faz acreditar que sempre haverá outros jogos. Logo vai chegar um novo sonho a conquistar.

Afinal, como negar a beleza de um clube, que já viveu momentos gloriosos e, mesmo nas horas difíceis, mantém-se firme, como um símbolo de esperança. E que dizer do seu torcedor? Aquele que, mesmo diante de adversidades, não abandona a esperança, que canta nas arquibancadas, que vibra com cada gol.

Portanto, que todos os brasileiros possam entender: aqueles que apoiaram o Fluminense naquele final de copa foi uma forma de amar o Brasil. De celebrar nossas cores, nossas tradições, nossa paixão. E que, ao invés de secar, possamos torcer com alegria, com respeito e com orgulho. Porque, no final das contas, o verdadeiro espírito patriótico está em valorizar aquilo que nos une — o amor pelo futebol, pela nossa Cultura e pelo nosso país. Ficamos na semifinal. Mas, valeu, Fluminense!

 

domingo, 13 de julho de 2025

Manaus, amor e memória DCCXXXI

 

Usina Manáos Tramways & Lighting.


sexta-feira, 11 de julho de 2025

Trinta fábulas cruéis: Os que andam com os mortos

 

Ricardo Kaate Lima*

 

A literatura amazônica nunca esteve em tão bom momento. Há uma variedade de autores e autoras praticando poesia, contos e romances a partir de perspectivas amplas e seguindo variadas tradições: o realismo social, a literatura marginal, a fantasia especulativa e tantas outras. Temos uma literatura que existe e resiste a despeito de ser ignorada pelos grandes centros, pelas grandes editoras ou pelos grandes prêmios.

O livro Os que andam com os mortos: fábulas cruéis e outras estórias más (Editora Valer, 2024), de autoria do escritor e crítico literário amazonense Zemaria Pinto, é um belo exemplar de boa literatura produzida no Norte. Também pudera, temos um autor já consagrado no Amazonas, autor de mais de vinte livros entre poesia, crítica literária, teatro e contos.

É uma coletânea de histórias curtas que mostra um autor maduro, dono de um estilo limpo e seguro. Não há frase ou palavra fora do lugar. Tudo se encaixa num todo coeso. Zemaria nos apresenta trinta histórias que narram facetas perversas da humanidade ou momentos dramáticos da existência humana. Minhas favoritas são: “Do circo como espaço de tragédias” narra a história trágica de um anão que trabalha em um circo; “Entrevista com um patriota” apresenta as palavras de um ex-militar e torturador da ditadura salazarista que justifica seus atos odiosos contra opositores do regime. “A paixão de Antônio Mocinha”, dedicado ao saudoso Arthur Engrácio, é uma bela fábula amazônica de triste final; já em “Foi Boto, sinhá”, Zemaria revisita a lenda do Boto.

Caso o leitor esteja à procura de fábulas, histórias sombrias e relatos perversos que fogem do lugar-comum do que é publicado nas grandes editoras ou do que é enviado em forma de enlatados pela indústria cultural para o Brasil, Os que andam com os mortos é uma boa opção.

Então, leitor amigo, aperte as mãos desses monstros oferecidos por Zemaria Pinto e deixe-se levar pelos meandros da escuridão da alma humana.

 

*Doutor em Ciências Sociais (UNESP), autor de O Fim de Todas as Coisas (2021) e de A Lança de Anhangá (CACHALOTE, 2024).

 

 

quinta-feira, 10 de julho de 2025

A poesia é necessária?

 

Repetir-se

Régis Bonvicino (1955-2025)

 

repetir-se

em putrefatas que nada

nem um ser oco e aparente

 

repetir-se

em ausência, não em nada,

de carnes suaves em lábios

 

coxas, cabelos que se

emaranham em desejo

não

 

como a noite

bocejo diante do ereto

um narciso escombro cego

 

repete-se:

branco sob pontos negros.

 


terça-feira, 8 de julho de 2025

Sim ou não como defesa

Pedro Lucas Lindoso

 

Minha esposa reclama quando, às vezes, respondo de forma ambígua. Digo não quando quero concordar com algo.

No português, parece que preferimos o não ao sim. Não é uma questão de negatividade, mas de uma forma de expressão que carrega nuances de resistência, de cuidado ou de simples preferência. Quando alguém nos pergunta se queremos algo, muitas vezes, a resposta é quase automática: “Não, obrigado”, “Não quero”, “Não posso”.  Quando é algo que queremos muito, dizemos logo: claro, com certeza. Quero!

Será que o uso frequente do “não” revela alguma resistência?  Não sei. Parece-me uma característica do falante do português no mundo todo.    o “sim” pode soar como uma afirmação rápida, uma abertura sem muitas explicações.  O “não” é uma escolha mais pensada, mais consciente. É uma forma de proteger o espaço, de estabelecer limites, de mostrar que há algo que não se deseja ou não se pode. Será isso uma característica machista que incomoda minha mulher?

Respondemos com o verbo, é verdade, mas também com o sentimento que o acompanha. Não é só uma palavra, é uma posição. Por exemplo: – Quer casar comigo? A maioria responde: – Quero! Raramente se responde com um insosso sim.

E aí, surge a questão: será que essa preferência pelo "não" reflete uma cultura de resistência, de reserva, de cautela? Ou será que, na essência, é uma maneira de dizer “quero pensar”, “preciso de mais tempo”, “não estou pronto”?

No nosso dia a dia, o “não” é uma palavra poderosa. Pode fechar portas, mas também pode abrir espaço para o que realmente importa. Porque, no fundo, dizer “não” também é uma forma de dizer “sim” — sim àquilo que realmente desejamos, às nossas prioridades, ao que acreditamos ser melhor para nós.

No português, aprendemos a dizer “não” com frequência, como uma expressão de cuidado, resistência ou preferência. No inglês, a coisa é um pouco diferente. Aqui, muitas vezes, evita-se o “yes” — que pode parecer uma afirmação rápida demais — e usa-se o auxiliar “I do” para reforçar uma resposta, uma afirmação com mais ênfase ou precisão.

Por exemplo, ao responder a uma pergunta negativa, em inglês, podemos dizer “I do not” ou “I do” para afirmar ou negar com mais firmeza. Essa prática mostra uma preferência por respostas claras, com um suporte gramatical que reforça a intenção.

E, assim como no português, o “não” é uma resposta carregada de significados. No inglês, o “I do” ou a sua ausência também carregam uma nuance. Evitar o “yes” muitas vezes é uma estratégia para não parecer demasiado afirmativo, para manter uma certa delicadeza ou até mesmo para não se comprometer de forma precipitada.

Em qualquer língua – Português, Inglês, Francês, Espanhol ou Mandarim –, os idiomas mostram que a forma de responder revela quem somos, como pensamos e como nos posicionamos.  No fim das contas, a comunicação é uma ponte que construímos com cuidado e intenção.

E assim seguimos. Falando a “última flor do Lácio, inculta e bela”, como disse Olavo Bilac.  Respondemos com o verbo, com o coração, muitas vezes com o não. Porque, no português, o não é uma forma de negar, claro. Pode também afirmar ou uma maneira de resistir, de refletir ou se defender. Ora pois, pois.

 

domingo, 6 de julho de 2025

quinta-feira, 3 de julho de 2025

A poesia é necessária?

 

01

Jamerson Eduardo Reis

 

 

essa penumbra está em si mesma

escurimesmada

antesmontada

de pé no espaço entre os morros

entre o rio

 

essa penumbra está em si mesma

vestida em elmo-equino

suja de vento

de pé no espaço entre os morros

entre o rio

 

essa penumbra está em si mesma

esperando a si mesma

está antes das tempestades

de pé no espaço entre os morros

entre o rio



terça-feira, 1 de julho de 2025

A fé que fluiu no Encontro das Águas

 Pedro Lucas Lindoso


Em junho de 1980, há 45 anos, Manaus se preparava para um dos momentos mais emblemáticos de sua história: a visita do Papa João Paulo II. O clima na cidade era de expectativa e reverência. A procissão de São Pedro, anualmente celebrada no dia 29 de junho, foi adiada para julho.  O governador do Amazonas, José Lindoso, católico fervoroso, e o prefeito de Manaus, José Fernandes, evangélico, uniram-se em um gesto de respeito e acolhimento. Ambos prepararam a cidade, com a significativa colaboração do Vice-governador, Dr. Paulo Nery, para a chegada do Papa a Manaus.

Na procissão, a baía do Rio Negro se transformou em um mar de barcos, todos com um único destino: o Encontro das Águas, onde as correntes de dois rios se entrelaçam em um abraço simbólico. O Papa, em uma das três fragatas da Marinha, navegava lentamente pelo Rio Negro, cercado por autoridades e fiéis. As pessoas acenavam dos barcos com fervor e alegria. No barco em que me encontrava, com familiares, incluindo minha querida irmã Liliana, então noviça salesiana; naquele dia pude testemunhar a sua fé junto com outras companheiras dedicadas à missão preconizada por Dom Bosco.  A cena era de uma beleza indescritível: a silhueta do Papa contra o céu amazônico, as águas refletindo a luz do sol, e as vozes em uníssono entoando cânticos de louvor.

É preciso que se destaque um gesto de respeito e ética. O prefeito José Fernandes, ao receber um terço de presente do Papa, decidiu que aquele símbolo de fé deveria ser oferecido a quem realmente mereceria. Com um coração generoso, ele entregou o terço a uma senhora católica, pobre e anônima, que representava a simplicidade e a devoção do povo. Esse ato, reforça a ideia de que a fé não se mede por títulos ou posições, mas pela capacidade de respeitar e entender a fé do outro.

A missa campal na Bola da Suframa, testemunhava um amazónico céu azul. O povo, num respeitoso e contrito silêncio, se unia em oração. As palavras do Papa reverberavam nas almas, e a conexão entre os presentes se tornava palpável. A fé, como as águas do rio Negro, fluía livre e poderosa, unindo todos em um só espírito. Aquela manhã mágica não era apenas uma celebração religiosa; era um testemunho da força da comunidade, da esperança e da beleza que reside na diversidade, na alegria do povo amazonense.

Assim, o Encontro das Águas não era apenas um fenômeno natural, mas um símbolo da união de diferentes crenças e culturas, refletindo a riqueza da Amazônia e a profundidade da fé que habita em cada coração. E enquanto a fragata do Papa se afastava, a cidade de Manaus sabia que aquele dia ficaria gravado para sempre na memória coletiva, como um momento em que a fé e a beleza se entrelaçaram nas águas do Rio Negro.

As novas gerações precisam saber da fé que fluiu naquele dia. A bênção papal, dada no meio do nosso Encontro das Águas, reverbera até hoje nessa cidade que um dia se chamou Lugar da Barra de São José do Rio Negro.