Amigos do Fingidor

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A miragem elaborada – 17

Zemaria Pinto

O homem noturno, a busca da luz

 
IV


A noite irreversível e sem fim abate-se sobre o poeta e não apenas o cobre. Doma-o. Internaliza-o. A noite é ele. A poesia se espraia pelo tempo sem retorno e se alonga em ocasos que se repetem de forma tão igual que parecem um só: o ocaso da longa noite que o poeta viveu vagando pelo médio Amazonas.

                    Eis-me aqui nesta ausência de mim mesmo

Este verso, do “Soneto VII”, reúne em suas dez mágicas sílabas toda a força da poesia que explode em angústia e dor. De igual modo o “Soneto VI” refere-se à

                          ronda inútil
                    por além dos limites do meu nada

Como se o distanciamento dos acontecimentos nacionais o isolasse ainda mais do mundo físico ao seu redor – assumindo definitivamente a “condição de ilha” a que se refere o poema “Aos meus irmãos solitários”. Da mesma forma, os “Sonetos V” e “VII” perseguem essa imagem do ser ensombrecido – o homem noturno – e vazio. Neste, há algo de loucura dominando o poeta:

                    Silêncio. Sinto apenas o silêncio
                    em mim.

                    Busco-me, a medo, e vejo pelos cantos
                    vozes vazias, sons de antigamente,
                    projetos inconclusos, teias, nada
                    e tua linda presença estilhaçada.

Mas é no “Soneto I” que ele resiste da melhor forma – escrevendo:

                    Na meia luz da tasca entra uma lua
                    que inventa novas sombras nas paredes.
                    Dos meus olhos de espanto e de tristeza
                    vai caindo um poema sobre a mesa.

Nos doze sonetos de “Estudos”, a noite é presença constante e desafiadora. Sua simbologia é sempre negativa, nefasta. Mesmo quando a luz do sol se apresenta, tímida, é para iluminar a face da morte que a noite encobre - como no “Soneto III”:

                              Era noite, e nessa noite as sombras
                    tinham gestos de angústia em nossas almas.


                              as horas mortas
                    trouxeram lentamente a madrugada.


                    Das janelas e portas entreabertas
                    a luz veio auscultar nossa tristeza,
                    e viu a palidez do rosto dele
                    hirto, completamente alheio a tudo.

O entardecer como valor negativo está presente no “Soneto IV”, reafirmando a simbologia contida em “Noturno”, “Jacaré” e “Jaburu”:

                    Cumpro este instante amargo.

                                                                             amargo
                    instante só de ocasos construído.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

A cirurgia como arte

João Bosco Botelho



A cirurgia, no passar dos milênios, continua mantendo a mesma característica básica — a arte trabalhada no próprio homem — onde a luta contra a dor e a morte é o pilar sustentador do início, do meio e do fim.

É possível comparar a cirurgia com a pintura ou qualquer outra expressão da arte humana. Quando o cirurgião consegue retirar o câncer da tireóide ou o da laringe ulcerada, desenvolve um conjunto de gestos que é indissolúvel da arte e da habilidade manual. A sensação da obra terminada em uma cirurgia não é diferente da sentida pelo pintor ao terminar seu quadro ou a do compositor ao ouvir a sua criação.

Foram os gregos que reconheceram a importância da cirurgia para a Medicina. Os livros escritos na escola de Cós, na Grécia antiga, em torno do IV século a.C., atribuídos a Hipócrates, contêm volumosa referência à prática cirúrgica desenvolvida por médicos especialistas.

Com o avanço conquistador dos romanos e a organização militar desse povo, começaram a aparecer os grandes hospitais militares, construídos nas principais cidades do império, para receber os soldados feridos em combate. Nessa fase, a cirurgia alcançou grande desenvolvimento, principalmente no tratamento das feridas traumáticas de guerra. É dessa época que os estudos de Herófilo (340 - ? d. C.) e de Eresistrato (330 - ? d.C.) identificaram a tireóide, a próstata, o estômago, o duodeno, o sistema nervoso, além de diferenciar o tendão do nervo.

A partir da ascensão do cristianismo, no Império Romano, a partir de Constantino, no século IV, a Medicina começou a absorver na sua prática o sentido de caridade e perdeu grande parte das conquistas em torno da técnica. A Medicina passou a ser compreendida como sacerdócio, em comparação com a ação médica milagrosa desenvolvida por Jesus Cristo, que operava milagres na cura dos cegos, paralíticos e leprosos. O Concílio de Tours (1163) proclamou a bula “Ecclesia Abohorret a Sanguine” (A Igreja abomina o sangue). Foi nessa condição que a cirurgia atravessou dez séculos, sendo exercida, neste período, pelos cirurgiões-barbeiros que amputavam, lancetavam, tiravam dentes, drenavam os abcessos, cortavam cabelo e barba.

A cirurgia foi incorporada, definitivamente, como especialidade médica a partir de 1436, quando os cirurgiões foram aceitos como alunos graduados da Faculdade de Medicina de Paris. Começou, timidamente, com supervisão da igreja, o movimento cultural de retorno ao homem como o centro da forma viva. O Renascimento que chegava e com ele a nova busca do conhecimento do corpo.

Com a utilização da anestesia geral, a partir de 1846, e da antissepsia, em 1867, finalmente, o cirurgião pôde debruçar-se por mais tempo nos objetos da sua arte – o homem e a mulher – e reunir esforços para empurrar os limites da dor e da vida.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Fantasy Art – Galeria

Boris Vallejo.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Nem te conto dos meus poemas

 
 
 
 
 
 
 
 
O lançamento do livro de Rayder Coelho será no próximo dia 30, às 18h30, nos altos da livraria Valer – Rua Ramos Ferreira, 1115. O evento terá a participação de membros do CLAM, da Sociedade da Marmota e do Grupo Methafora, com recitais variados.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Conteúdo e visão geral da poesia de Américo Antony

Jorge Tufic



“Cromos Amazônicos” é o mais denso, talvez, de todos os livros inéditos de Américo Antony, somente comparável ao seu irmão mais próximo intitulado “Crisóis”, seguido de perto pelo “Grinaldas Selvagens”, “Canções Perdidas e outras dispersas” “A Alma do Silêncio”, entre vários ainda não classificados para uma titulagem definitiva.

Polariza este livro o já nosso familiar acento melancólico do poeta que se busca encontrar, após anos de ausência, com o berço nativo de seus legítimos antepassados e uma profunda nostalgia, possivelmente cósmica, diante de um mundo lacerado pelos equívocos da História.

Confirma-se, no entanto, que ninguém soube, como ele, Américo Antony, desvendar as queixas do verde, os mínimos segredos telúricos da selva desconhecida, ainda hoje, por quantos se aventuram no empenho de conquistá-la. A metáfora do poeta, contudo, transcendentaliza-se, mas nunca se hermetiza. Ou quando se hermetiza, ainda mais clara se torna. Pode-se até dizer que o seu vocabulário afetivo se concentra, quase sempre, em torno de núcleos temáticos na aparência repetitivos; mas isto é ilusório: seu estilo e sua linguagem emanam da simplicidade que rejeita o supérfluo, colando-se deste modo singular ao fluxo natural de sua dicção predileta.

Américo Antony, embora dono de vasto léxico regionalista, não refoge à tradição poética: cita os deuses das mitologias grega e romana, em sinal mais que evidente de que os tempos primeiros de Jurupari cederam, ou cedem, às pressões externas; e que o futuro já deverá ser pensado como um novo sol que está vindo em contrapartida daquele que nos fugira.

A obra inédita de Américo Antony é bastante volumosa, perfazendo um total de 600 ou mais poemas, devidamente selecionada, ou seja, dando-se por temporariamente “excluído” um volume de páginas ainda não classificadas e tituladas, com inúmeros sonetos d’occasion, mais o “Dardos de Fogo” e a confusa miscelânea de poemas e sonetos a que o poeta não chegara a dar os devidos títulos de sátiras e epigramas, uma espécie de variante que discrepa sobremodo da verdadeira saga poética do autor.

Poeta solitário, contando apenas com poucos amigos, dentre eles alguns jovens que seriam, anos depois, fundadores do Clube da Madrugada, Américo Antony, talvez por este motivo, tudo fazia para conservar seus escritos marcados pela gratidão do artista aos raros, porém fiéis, admiradores que em nenhum momento de sua vida deixaram de acompanhá-lo, rendendo-lhe os merecidos tributos.

Daí nossa alegria em descobrir, já desbotados pelo bolor das intempéries, velhos papéis manuscritos pelo mestre; num destes, ainda intacto, uma epígrafe de Alencar e Silva retirada de um artigo sob o título “Clarões da Selva”, com data de março de 1953, no qual o poeta de “Território Noturno” fala sobre a poesia de Américo; e, como parte do livro “Canções Dispersas”, emerge um soneto dedicado a Jorge Tufic, a quem caberia, em 1987, como presidente do Conselho Estadual de Cultura, a iniciativa de publicar seu longo poema amazônico “Conory”.

Prosseguindo na reunião da obra dispersa do famoso “Ermitão da rua Japurá” daí resultara a formação de mais dois tomos da obra antonyana, além das já referidas “Cromos Amazônicos”, “Crisóis” e “Grinaldas Selvagens”. São eles: “Alma do silêncio”, “Dardos de fogo” e a confusa miscelânea de poemas e sonetos a que o poeta não chegara a dar os devidos títulos gerais.

Em “A alma do silêncio”, o poeta como que apura e intensifica a sua ojeriza pelo terrorismo sociopático da urbe moderna ou modernosa; contrapõe-se a ela assumindo uma atitude de suprema indiferença aos valores mundanos em favor do eu espiritual que só se revela ao contato dos elementos primários, como a água e a pedra das cachoeiras, a flor e o cântico soturno das aves nascidas da luz e do mistério que alimenta as raízes do sonho. O mundo do poeta já não é mais o mesmo. Torna-se incompreendido.

Em “Crisóis”, tanto quanto nos “Cromos Amazônicos”, o poeta sente-se à vontade em dar expansão ao estro temático que o liga às nascentes perpétuas do amor telúrico e da fábula racionalista. Mais neste, porém, do que naquele, o vate amazônico “pensa” tanto quanto se inclina e se rende aos encantos da natureza.

Em “Grinaldas Selvagens”, com surpreendentes “aquarelas” como este soneto que ele intitula “O sorriso da montanha”, o símbolo da flor já contrasta com os primeiros movimentos articulados à destruição das florestas. Sintomático o uso do plural quando a floresta, a biota, é una pelo simples fato de constituir-se um todo, mas que, obviamente, formado por segmentos, ou seguimentos orgânicos, partes, enfim, da totalidade, sem cujas partes nada representa. Daí, florestas. Saber, sabença, conhecimento lúcido de pajé. O soneto deste livro sob o título “Contra a destruição da floresta” é um grito, como há outros no texto, cuja mensagem atualiza, pari passu, qualquer oportuníssima vontade para rever e para reler Américo Antony à luz das estrofes que se fizeram (e ainda se fazem) nas várias moradas de Jurupari.

Enfim, tudo neste opus corre por conta de uma incurável paixão pelos motivos da mata amazônica, de um, quem sabe, enigmático deslumbramento estético pelo todo que se junta às partes e das partes que celebram a totalidade inexaurível do próprio mito.

A primeira incursão pela obra de Américo Antony se dera por iniciativa do Conselho Estadual de Cultura, com base na Resolução s/n, DE 1975, que resultara neste ensaio de Jorge Tufic – “Américo Antony – O último cisne” (aqui reproduzido sob o título de “Conteúdo e visão geral da poesia de Américo Antony” – publicado na edição n.º 04, ano I, em julho de 1978, do LIVRORNAL (o livro em jornal).

Fazer o inventário e levantamento do acervo, quer inédito ou édito deste grande poeta amazônico, seria essa, com certeza, a preocupação do colegiado, por mais árduo e tardio que fosse o resgate de mais de 600 manuscritos de sonetos e poemas aleatoriamente reunidos em caixas de papelão, pastas e cadernos deixados por ele.

A inclusão do estudo feito por mim, espécie também de relatório apresentado ao Conselho Estadual de Cultura, tem, portanto, a finalidade maior, 1.º de informar sobre as dificuldades encontradas no decurso da pesquisa destes valiosos documentos, e 2.º acolher o referido trabalho que tem forma mais de relatório da comissão designada pelo CEC, do que propriamente de ensaio crítico sobre a poesia de Américo Antony.

domingo, 26 de dezembro de 2010

O rei não está nu, está de fralda! Valei-me Qorpo Santo!

Jorge Bandeira


O Rei geriátrico é posto em cena na peça Hoje sou um: e amanhã outro, pela Cia Vitória Régia, regida por Nonato Tavares, na sequência de uma trilogia programada para este singular e inclassificável autor do teatro brasileiro: Qorpo Santo. O ciclo fecha-se, segundo nos indicam, com As Relações Naturais. Vamos à peça: O regime político aos frangalhos, um reinado louco que está perdido nas próprias burocracias que engendrou, mas trata-se de uma farsa barroca, onde o encenador prioriza o que de melhor encontra-se em Qorpo Santo, o brincar na cena, a liberdade sem limites no criar as mais prosaícas circunstâncias que fazem da trama uma delícia de se acompanhar, feito súditos da insanidade. E a brincadeira não nos deixou nestes 40 minutos em que pontificou este rei, da mesma linhagem que fez surgir, tempos depois, obviamente por pura coincidência, o Ubu Rei de um certo Alfred Jarry.

A inserção dos elementos “regionais”: o boi, a toada, os políticos locais, nada escapou dos éditos e decretos lunáticos do barroco rei, que ostenta como forma ultrapassada, a linguagem quinhentista. Isso nos meados do século XIX,, quando o romantismo que envolvia a realeza no Brasil já estava sucumbindo às trapaças republicanas, ou seja, o Rei já está velho, caduco e as fraldas devem ser colocadas nele para que a merda real não escorra pelo palácio, para que o poder republicano não entre com sua higienização e peça a cabeça do Rei, como aconteceu na Revolução Francesa. Coisas do poder, uns estão equilibrados nele, enquanto outros tentam entrar e se locupletar dele, de qualquer forma ou meio. Maquiavélico rei, mas que trama apenas em sua incapacidade de ser são, lúcido.

A montagem de Nonato Tavares é de uma elegância em detalhes, como é de praxe em suas obras. A roupa como estética do barroco acompanha o zeloso trabalho de Koia Refkalefsky (que também é a Rainha), sendo importante destacar que esse barroco funciona com poucas variações cromáticas, onde o vermelho e o negro são as mais evidentes no palco, o que facilita a iluminação, com precisas alternâncias de focos e de refletores e suas tonalidades.

O quinhentismo linguístico foi uma opção de garantir o registro da época de Qorpo Santo, e a cavalaria galopa de forma absurda, e lembra os cavaleiros medievais do Monty Python no “em busca do cálice sagrado”. As referências a Alfred Jarry e ao clássico personagem do Ubu Rei são notórias, e que coroa de Rei é aquela, de efeito cênico deslumbrante, não dá para imaginar mais aquele Rei sem a sua estonteante coroa. A pomposidade do figurino, a maquiagem, tudo foi calculado com zelo máximo pela produção e pelo encenador.

A loucura pelo poder atravessa etapas históricas e prossegue por toda civilização, antiga e futura, e entre a tênue linha entre sanidade e loucura, encontra-se o poder, os mandatários, semiloucos num mundo que teima a se tornar curado, uma tarefa vã, de terrível constatação. Qorpo Santo já alertava em seus textos sobre essas questões paradoxais, existenciais e políticas. Vivemos a insanidade de nossos refluxos de lucidez. A música na medida certa, sem arroubos desnecessários, faz da sonoplastia ao vivo desta obra de 40 minutos um espetáculo meticuloso, não barulhento, que chega aos ouvidos de forma suave, mas contundente.

As damas que acompanham a Rainha são invólucros de uma desfaçatez, dançarinas provocantes de um boi-bumbá de “Paristins”, por isso que o Rei passeia em seu boulevard de Versailles. Para relaxar, para se esquecer... Os Soldados, com seus figurinos à sadomasoquismo, lembram os centuriões na versão moderna das dominatrix. Os decretos absurdos pululam de um palácio feito colônia de loucos, onde o ministro tenta, em vão, subverter uma ordem; claro que não consegue, pois o caos domina sempre o ambiente, mesmo nos momentos de aparente controle físico e emocional do Rei, mesmo nos seus destemperos de personalidade e na sua senilidade.

Um dado curioso e que remete aos aparatos da nobreza no Brasil: nos tempos do império realmente havia uma equipe que tratava da higiene do Rei, e alguns tronos tinham um fundo falso, espécie de vaso sanitário, para quando o Rei participasse de uma longa reunião não precisasse interrompê-la, evacuando ali mesmo no “trono-vaso”. Um escravo, então, recolhia a merda real e a levava no penico real para a rua real. Era dessa forma mesmo. A Atualidade em Qorpo Santo é incontestável, e por mais que seja uma precipitação e até mesmo preciosismo patriótico vinculá-lo às vanguardas teatrais que o sucederam, é notória sua capacidade de inovar nas letras e na dramaturgia feitas naquele momento histórico, nos meados do século XIX.

Um teatro límpido e objetivo, de uma trupe que funciona perfeitamente bem no que se propõe a colocar em cena, e mesmo que algumas falas tenham se “atropelado” ou que engasgaram na voz da Rainha, tudo isso é irrelevante, pois a perda de voz da Rainha também representa, no meu ensejo de observador não implacável, a própria fraqueza do poder real. A cenografia econômica de Nonato Tavares, um bobo musical e um trovador que são este duo da sala real, tudo se encaixa na proposta de cena. Uma cena, aliás, que de tão simples levou o público a aplaudir o “voo da cavalaria”, num movimento tão simples, mas que transmitia uma maneira de brincar e de sonhar, tal qual uma Cavalgada das Valquírias num palco onde esse mesmo público fez esforços pendulares com a cabeça e pescoço, este, o único problema a ser resolvido, evitar este incômodo ao espectador, pois o mesmo plano de cadeira no palco do Teatro Amazonas impossibilita visão total das cenas. Mas isso não chega nem a coçar, pois o riso aparece e depois a gente trata do torcicolo. E viva o Rei!

Manaus, 10 de outubro de 2010

sábado, 25 de dezembro de 2010

Fantasy Art – Galeria

Heaven and hell.
Jim Warren.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

A miragem elaborada – 16

Zemaria Pinto


O homem noturno, a busca da luz


III


Na poética de Alcides Werk, o embate noite X dia tem as mesmas dimensões da luta água X terra. Nesta, a água poderosa e destruidora tem por função essencial a fertilização da terra, proporcionando um renovado ciclo vital. Naquele, a noite com suas sombras, sua negatividade intrínseca, conduz ao dia e à consequente e fácil metáfora da esperança no futuro, mas ainda não está aqui o lugar-comum.

A noite, como a vê o poeta, é – sobretudo – um manto protetor da natureza. Essa positividade é realçada no poema “Pescaria”:

                    O sol se põe

                    O croc-croc de mil pescadas
                    saúda a noite nas profundezas


                    Ergue-se o canto da natureza,
                    aves noturnas pelas beiradas


                    Ágeis morcegos, catando insetos


                    Noite fechada, findou-se o dia.


                    E a clara lua, por trás da mata,
                    inventa sombras nas águas mansas
                    me excita os sonhos de pescador.

A noite cúmplice, aliada do homem – convivência natural e pacífica. No poema “Tracajá”, a positividade de elementos comumente negativos é levada ao extremo na descrição da desova das tracajás. Nuvens de chuva, raios na noite, protegendo a vida:

                    Cúmulos-nimbos
                    no céu noturno
                    detonam raios
                    e cai a chuva
                    banhando a praia,
                    levando rastros,
                    lavando odores.

Mas é na chegada da noite, que se percebem elementos negativos na poética de Alcides Werk. Se a noite em si é prenúncio de um novo dia, o anoitecer encerra a destruição do dia que o antecede. No poema “Jacaré”, após lamentar o desaparecimento do pescador por quase uma semana, o narrador vê, na chegada da noite, o fim da esperança de mais um dia que se vai:

                    E eu, testemunha da ausência,
                    no fim de tarde sombrio
                    lanço perguntas ao rio:
                    por onde Dico andara?

Mas é no conciso “Maguari” que o poeta exprime à perfeição essa angústia:

                    Há, nesses teus longos silêncios
                    de fim de tarde
                    à beira do lago,
                    sob o regresso alegre das araras,
                    um ponderável prenúncio de luto.

Da mesma forma, no poema-desabafo “Aos meus irmãos solitários”, é a imagem da noite chegando que leva o poeta à plena consciência de sua condição:

                    Agora,
                    que a noite desceu irreversivelmente sobre minha alma,
                    e nela fez sua morada permanente


                    pagarei vossa hospitalidade
                    com a presença constante da minha alma
                    na noite dos vossos dias

Está claro que a noite anunciadora da aurora é matéria de sonho.

Acuado pela realidade cotidiana, o símbolo noturno recrudesce, até atingir sua condição mais elementar de negatividade. Essa condição, entretanto, realça o labor poético, a carpintaria ora grave ora apaixonada dos sonetos reunidos em Trilha Dágua sob o subtítulo “Estudos”.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

“Feliz natal e um próspero ano novo”

David Almeida


Todos nós sabemos, sentimos, que final de ano (Natal e o Ano Novo) comove o mais duro coração de pedra. Tem gente que passa o ano todo fazendo maldade, dando patada, coice, rasteira, canga-pé, rabo-de-arraia, passando por cima das pessoas – atropelando mesmo –, outros roubando na maior cara-de-pau o povo, para no final do ano ficar que nem manteiga derretida dizendo: “feliz natal e um próspero ano novo”, distribuindo até uns ranchinhos. “Né não?”

Os políticos – com exceções, claro – aproveitam esses momentos de extrema sensibilidade para trocar solidariedade e amor fraterno por alguns votinhos, em prol da eleição vindoura. Meia noite na missa do galo é difícil não encontrá-los, emocionados, rezando aos pés do altar, sob o olhar de um Cristo de pedra. Mas, ao mesmo tempo, acenando aos fiéis que vão entrando, como quem diz: “olha, eu estou aqui rezando por nós, não se esqueçam de votar em mim na próxima eleição”. Amém!

Tudo isso gente, porque no dia 25 de dezembro comemora-se o nascimento de Jesus Cristo, “o cara da parada”, que, segundo os seus seguidores, nasceu na maior pobreza em uma manjedoura, cercado de animais que habitavam o lugar, tendo como pai, o poderoso criador do céu, da terra e do mar, DEUS! Louvado seja!

Jesus, o filho amado de Deus, veio para salvar os pecadores, mostrar o caminho do amor, para as galeras de todas as cores, crenças, raças, fight e bois-bumbás. Porém, mesmo pregando o amor, o mataram por ódio; todavia, como o amor não morre, ele ressuscitou ao terceiro dia. Tá pra ti? Até aí tudo bem, nada que desabone a conduta do grande ilustre, mensageiro do amor. O problema é que tem uns espertinhos que usam suas palavras para enganar o seu semelhante, fazendo da sua imagem um produto, há 2010 anos.

Há pouco tempo surgiu um político, lá pras as bandas da corte, com arruda na orelha e tudo, para afastar os maus espíritos; CPIs, impeachment etc., que até separou um montão de dinheiro, “vindo não sei de onde”, para comprar panetone e distribuir para os mais necessitados. Sem dúvida é um gesto lindo, emocionante, pra deixar no chinelo qualquer Madre Tereza de Calcutá. Outros se transformam em Papai Noel, e saem pelas ruas dando pinta do bom velhinho: rou, rou, rou, rou. Ei, psiu! A tendência agora, para os natais vindouros é fé na arruda, perdão, no Arruda, e mão no panetone. No País onde as falcatruas se acabavam em pizza agora rumam, rimam e riem ao sabor de panetone. É vero!

O que esperar do ano novo? Oh, glória senhor! Só muita vontade de vê-lo nascer por trás das copas das árvores clareando as manhãs de esperança, em alegres dias de verão, desse planeta ainda azul. Puro sonho! Porque nada vai mudar. Os políticos são os mesmos, as leis são as mesmas, e, consequentemente, as injustiças serão as mesmas... Tudo vai continuar como era antes, mesmo. “Tá ligado?”

Gente, não é pessimismo, porque é real, é palpável, é público e notório. Claro, que sonhar não custa nada, e vislumbrarmos acordar no dia primeiro de janeiro de 2011, com o “apagão” da fome, da miséria, da violência, da corrupção... Só políticos “ficha limpa”, vestidos de honestidade falando de suas tribunas, sobre a paz e o desaparecimento para sempre da hipocrisia no coração dos homens. É “reeeealmente” um sonho! Pura utopia! Porque, ao colocar os pés no chão da realidade da vida, os pesadelos estão aí, a olho nu, povoando cada esquina, cada centímetro de chão onde o seu olhar alcançar.

Dependendo de onde, quem, como e porque alguém te deseja um Feliz Natal e um próspero Ano Novo, a medida correta é passar primeiro um antivírus, se for por e-mail, e nem abra. Se for presença física, observe se a figura tem cara de pau ensebada com óleo de peroba. Se tiver, faça ouvido de mercador e corra pra debaixo duma cachoeira, ou tome um banho com dez quilos de sal grosso duas vezes por dia. Se não, você está complicado.

Eu fico preocupado quando se junta natal, ano novo, política e religião. Pode ser uma emboscada! Isso torna o povo mais vulnerável à ação dos oportunistas. “Qui tão assim, ó: só na mutuca”.

Medicina e astrologia

João Bosco Botelho



O encantamento pela astrologia, como prática de adivinhação, consolidou-se nos primeiros núcleos urbanos, em torno de cinco mil anos. Não há como separar a astrologia das antigas crenças e ideias religiosas. Os vestígios dessa intrincada dependência podem ser rastreados em alguns registros de escrita cuneiforme. O sinal gráfico, nessa linguagem, correspondente ao divino, elemento incomensurável e todo-poderoso do passado e do futuro, é o mesmo que designa a palavra estrela. Os deuses babilônicos Schamasch, Sin e Ischtar, eram os guardiões do céu sob a forma do Sol, da Lua e do planeta Vênus, os três astros mais destacados do firmamento.

Muitas expressões atuais estão repletas de significado astrológico. O prefixo latino “menstruus”, que originou a palavra menstruação, está ligado ao processo repetitivo de vinte e oito dias do mês lunar.

Para estarem mais próximos dos astros – representação física dos deuses –, os homens instalaram os templos nas montanhas mais altas: os chineses, no Himalaia; os japoneses, na Fuji; os gregos, no Olimpo e os hebreus, no Sinai. Onde não existia montanha, os povos construíram montes artificiais. Os mais antigos exemplos, os zigurates, na Mesopotâmia, com o topo dedicado à morada e culto dos deuses.

No Império de Augusto, em Roma, foi adotada a semana planetária de sete dias. De acordo com a crença no poder dos astros, cada dia era dedicado a um planeta, ao Sol e à Lua.

Com a gradativa cristianização, os primeiros teóricos iniciaram forte resistência contra o culto do Sol, identificado com o deus egípcio Mitra. O intento era desfazer a possível associação alegórica entre a adoração solar com a de Jesus Cristo. A preocupação está clara no Evangelho de São Paulo, repreendendo os Gálatas (Gl 4,8-10) que continuavam adorando as mesmas divindades do politeísmo para identificar os dias e os meses.

Em pleno século XVII, a certeza coletiva de que os planetas determinavam o rumo da vida era de tamanha solidez que a estatística de mortalidade da cidade de Londres, no ano de 1632, registrou treze mortes por “planet” ou pela influência do planeta.

A medicina astrológica, como no passado, continua sendo utilizada pelos adivinhos, atuando como curadores, para diminuir a insegurança em relação ao futuro desconhecido e à morte temida.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Fantasy Art – Galeria

Pearl’s movement.
Michael Satarov.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Valer lança coleção “Clássicos da Literatura Brasileira”

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Um livro denominado clássico é aceito como tal ao ser considerado exemplar. Frequentemente, os clássicos são lembrados como aqueles livros que tivemos de ler por imposição escolar, por obrigação do pré-vestibular, ou por determinação acadêmica.

Reler os clássicos da literatura não precisa mais ser um desafio desagradável. A Editora Valer lançará no dia 22 de dezembro, às 10h, na Livraria Valer (Av. Ramos Ferreira, 1195 – Centro) a coleção “Clássicos da Literatura Brasileira”, com 40 títulos reeditados, atualizados de acordo com a nova ortografia. Entre as obras estão “A Escrava Isaura”, Bernardo Guimarães; “A Cidade e as Serras”, de Eça de Queirós; A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo; “Caramuru”, de Santa Rita Durão; “Eu”, de Augusto dos Anjos; bem como antologias de poesia e conto de diversos autores. Os preços variam de R$ 6,90 a R$ 9,90.

Como acontece todos os anos, A Livraria Valer realiza sua tradicional promoção de aniversário. Desde sábado, dia 18 de dezembro, até quarta-feira, dia 22, todo o seu acervo, composto de mais de 15 mil títulos, estará à venda, com descontos de até 90%. Fruto de seu compromisso com o incentivo à leitura, a Livraria Valer pretende com a campanha oportunizar o acesso das pessoas ao livro. A promoção é, ao mesmo tempo, um presente para os clientes que terão oportunidade de comprar livros para presentear os amigos e familiares nas festas natalinas. Os livros estarão à disposição de todos, com preços acessíveis. O lançamento da coleção “Clássicos da Literatura Brasileira” faz parte da programação de aniversário de 20 anos da Livraria valer

Evento: Lançamento da série “Clássicos da Literatura Brasileira”
Quantidade de Títulos: 40
Editora: Valer
Data: 22 de dezembro de 2010
Horário: 10h
Promoção: Livraria Valer
Local: Av. Ramos Ferreira, 1195 – Centro
Contatos: Valer: (92) 3635-1245


CLÁSSICOS DA LITERATURA BRASILEIRA EDITADOS PELA VALER

Item                  Título

1 A Cidade e as Serras – Eça de Queirós

2 A Escrava Isaura – Bernardo Guimarães

3 A Moreninha – Joaquim Manuel de Macedo

4 A Normalista – Adolfo Caminha

5 Antologia da Poesia Barroca Brasileira – Org.: Tenório Telles

6 Antologia de Contos – Contos Brasileiros Contemporâneos - Org. Julieta de Godoy Ladeira

7 Antologia do Conto do Amazonas – Marcos Frederico Krüger

8 Antologia do Novo Conto Amazonense – Arthur Engrácio

9 Broqueis – Cruz e Sousa

10 Canaã – Graça Aranha

11 Caramuru – Santa Rita Durão

12 Cartas Chilenas – Tomás Antônio Gonzaga

13 Contos – Machado de Assis

14 Contos Gauchescos – Simões Lopes Neto

15 Diálogos sobre a Conversão dos Gentios – Manuel da Nóbrega

16 Duas viagens ao Brasil – Hans Staden

17 Espumas Flutuantes – Castro Alves

18 Eu – Augusto dos Anjos

19 Glaura – Silva Alvarenga

20 Guesa Errante – Sousândrade

21 I-Juca-Pirama & Os Timbiras – Gonçalves Dias

22 Juca Mulato – Menotti del Picchia

23 Lírica – Camões

24 Memórias de um Sargento de Milícias – Manuel Antônio de Almeida

25 Meridionais – Alberto de Oliveira

26 Noite na Taverna – Álvares de Azevedo

27 O Ateneu – Raul Pompéia

28 O Auto de São Lourenço – José de Anchieta

29 O Juiz de Paz na Roça, O Noviço, Quem Casa Quer Casa – Martins Pena

30 O Missionário – Inglês de Sousa

31 O Palhaço e a Rosa – Francisco Vasconcelos

32 O Uraguai – Basílio da Gama

33 Obras poéticas – Cláudio Manuel da Costa

34 Pelo Solimões – Quintino Cunha

35 Poemas – Gregório de Matos

36 Prosopopéia – Bento Teixeira

37 Sonetos – Bocage

38 Via Lactea – Olavo Bilac

39 Poesia e poetas do Parnasianismo, Simbolismo... - Org. Tenório Telles e Marcos Frederico Krüger

40 Viagens na Minha Terra – Almeida Garret

A fragmentação das torres – 10

Marco Adolfs


Vovó Lucinda esquece a vida


“Agora nublou... Nublou?... É isso mesmo?... Sei lá? O Cristo não apareceu... Que foi que houve com ele?”... Repetir, repetir. Repetir sempre as mesmas frases e palavras como um recurso necessário à sobrevivência da memória e do corpo envelhecido. Vestígios do que foi outrora visto e escutado. Um esforço enorme, lembrar as frases e as fisionomias aparentes daquela gente ao redor. E as pessoas que já morreram aparecendo do nada. Como tramas de um novelo. Havia ladrões roubando tudo. Roubando o tempo e o espaço, inclusive. O que acontecera com aqueles prédios? Como trazer a vida de outrora para o agora. Mas esquecia. Esquecia, sim. Esquecia o dito há poucos instantes. Fantasmas que iam e vinham. Enfraquecido e sem controle, na verdade. As ligações cada vez mais sem força. Idiota. Quantas vezes ela não chamou os outros de idiota. Julgou; condenou. Condenou o erro dos outros. O deslize infantil dos outros. E agora estava ali, na mão dos outros. Impotente; sem dente; sem garras; sem presente. O nada; o vazio. Esperando. E tentando lembrar o que gostaria de saber. E relembrando o que gostaria de esquecer. Contava histórias e mais histórias com os restos de lembranças que flutuavam em sua cabeça. Lembranças como se fossem ilhas luminosas; onde, o seu desespero de sentir-se náufraga, se agarrava para sobreviver. E então circulava pela casa como um zumbi da existência. Falando com as paredes brancas. Inventando histórias sem pé nem cabeça. Como ela mesma se sentia então. Sem pés nem cabeça. Escondendo pílulas e restos de comida nos bolsos. Dormindo na espera da morte que insistia em não chegar. Uma morte que brincava de esconder-se pelos antros escuros de sua mente elástica. Solta no ar. Mas era bom brincar com todos os que lhe seguravam as ancas e lhe limpavam as fezes. Mas de vez em quando seus restos de consciência, fragmentos da memória, clamavam então pelos rostos do seu passado. Aos que já haviam morrido. Fulano! Fulano de tal! Morreu? Aí, era muito ruim. Quando alguém dizia que “fulano de tal” havia morrido. E aquele momento de sonhos e delírios então aparecia. E passava a chorar sem mais nem menos. Chorar a morte de quem ainda não morrera. Pensando na vida de quem sequer existia. Esses eram os seus fantasmas. Criados do nada. Então dormia para descansar enquanto o Cristo da montanha não aparecia para lhe salvar.

F I M

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

domingo, 19 de dezembro de 2010

Roda gigante num parque de desilusões

Jorge Bandeira


O monólogo A dama da noite, dirigido por Paulo Altallegre, com Arnaldo Barreto, é uma narrativa teatral a partir do famoso conto do escritor Caio Fernando Abreu. Dama da Noite, originalmente, faz parte do livro de contos Os dragões não conhecem o paraíso, publicado em 1988. O conto repercute as tendências dos anos 80, incluindo a questão sexual naqueles momentos iniciais da propagação do vírus da AIDS.

A incompletude do amor é claro na encenação, onde as tentativas de busca ao prazer são sempre e interrompidas, numa vertente de solidão que conduz o personagem nos 50 minutos de espetáculo a questionar sua angustiante situação, interpelando o boy imaginário, causando momentos patéticos de sua situação, entre o desespero e a angústia. A atuação de Arnaldo Barreto começa em um ritmo claudicante, mas logo vai ganhando ares de conquista no espectador, pois sua atuação concentra momentos de humor e sarcasmo, e sua personagem vai se revestindo da fortaleza necessária a um texto de extremo zelo estilístico, de um mestre do conto, Caio Fernando Abreu.

É um monólogo da solidão, dos que são feitos vampiros que percorrem as noites em busca de corpos e que se banham de sangue contaminado. Uma das características da verve de Caio Abreu, inserindo seus personagens num universo de causas perdidas, que são ensaios e tentativas que sempre serão frustradas nesta busca pelo amor e pelo prazer. É feito um coito que não se completa, um tantra mental que faz o corpo desfalecer pela falta do contato real, de sensações muito particulares ao mundo do homoerotismo.

Caio Fernando Abreu é um escritor dos classificados como derrotados e perseguidos, mas que curiosamente tem uma grande aceitação nos mais heterogêneos leitores, fruto sem dúvida alguma de seu gênio como escritor que não se basta por um rótulo, é excelente literatura que fala por si mesma, não precisa de bandeiras que se levantem para sua defesa. Seu magnânimo estilo é a sua defesa.

Dama da Noite é um monólogo feito com apuro, com intuição estética, e é claro seu aparato homoerótico, onde a Dama posta em cena é na verdade uma drag, nesta abordagem como um performista que encena um personagem. Daí o simbólico da exclusão, de pessoa que ficou “fora da roda”, da vida normal, da normalidade, dos condicionantes sociais, de uma exclusão que se faz até na finalização do prazer, onde seu gozo é uma pálida sombra de uma satisfação sexual. É esse espaço de urbanidade onde vive a Dama da Noite que é revestido de um perigo assustador, a insegurança aos comportamentos ditos “desviantes” pela sociedade conservadora fazem da Dama uma vítima em potencial da AIDS, seria mesmo a própria Dama uma espécie de personificação da AIDS.

A opção do diretor Paulo Altallegre foi ter esta dicotomia no palco, ora fazendo de sua Dama uma companheira para o boy imaginário, ora fazendo a plateia ser seu interlocutor imediato. O Belo Indiferente, de Jean Cocteau, é uma referência que logo aparece, nesse tipo de monólogo onde o invisível boy é alçado ao patamar de coadjuvante que jamais aparece, sendo elemento de sonho e delírio da Dama.

A tensão de cena é permanente, recurso sensório conduzido por uma Iluminação em penumbra, que algumas das vezes deixa o semblante do ator refém dessa escuridão, lembrando que a personagem é caracterizada pela escuridão até pelo nome, Dama da Noite. É uma drag-vampira, que se anuncia logo de cara como ser do elemento crepuscular. Crepuscular que necessita copular, que precisa de sangue de homens, que tem ânsia de prazer.

O ambiente de cabaré e music-hall é típico dos anos 80, e as inserções musicais elencadas pela encenação percorrem estilos díspares, de uma banda como o Tom Tom Club, formado por integrantes do Talking Heads, passando pela passional e visceral canção de Jacques Brel Ne me quitte pas, na voz bela de Maysa e Maria Bethânia, estilos diversos, que criam as atmosferas necessárias nos momentos de comoção da personagem.

Uma personagem que está aprisionada a um tempo de reminiscências nostálgicas, é uma múmia que anda pela noite, que tem um boy, um garoto novo, que é tratado com ironia pela Dama, um menino bonito, mas que não gosta de ler, somente assiste televisão, joga videogames, navega na internet e tem comunidades no orkut. Usa, inclusive, as pulseiras do sexo que foram proibidas em muitas escolas. Esses achados de atualização do texto de Caio é um mérito da encenação, que insere elementos contemporâneos com muita propriedade, não descaracterizando a obra de Caio.

A triangulação Boy invísivel/Dama/Plateia foi a responsável pelo controle da audiência, um público que acompanhou com atenção a triste história da Dama da Noite, suas forças e fraquezas. Logo no hall do Teatro Amazonas o público é recebido pelos anunciantes da “Roda Gigante”, da esfera opaca da vida e da morte, e Caio Fernando Abreu nos brinda com uma das mais belas visões poéticas sobre a ceifadeira, a Morte que acometerá a todos. A Entrada com dois travestis e uma prostituta recepcionando o público preparam para uma volta na roda gigante da solidão, um figurino com cores vibrantes, e um ator com um “feeling” e “timing” adequados para conduzir o sentimento do público aos giros intermináveis dessa roda gigante da existência dos excluídos.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Fantasy Art – Galeria

Chris Achilleos.

Livraria Valer – 20 anos de História

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A Livraria Valer comemorará seus 20 anos de história com mais uma promoção de livros. Como acontece todos os anos, realizará, a partir de sábado, dia 18 de dezembro, a partir das 8 horas, sua já tradicional promoção de aniversário. Todo o seu acervo, composto de mais de 15 mil livros, estará à venda, com descontos de até 90%. A PROMOÇÃO SE ESTENDERÁ pelos dias 18, 19, 20, 21 e 22 de dezembro.

Fruto de seu compromisso com o incentivo à leitura, a Livraria Valer pretende com a campanha oportunizar o acesso das pessoas ao livro. A promoção é, ao mesmo tempo, um presente para os clientes que terão oportunidade de comprar livros para presentear os amigos e familiares nas festas natalinas.

Os livros estarão à disposição de todos, com preços acessíveis. Alguns títulos importantes serão vendidos a preços simbólicos:

· “Fogo morto”, de José Lins do Rego, de R$ 39,00 por R$ 14,00;
· “O símbolo perdido”, de Dan Brown, de R$ 40,00 por R$ 16,00;
· “Uma breve história do mundo”, de Geoffrey Blainey, de R$ 40,00 por R$ 18,00;
· “O caçador de pipas”, de Khaled Hosseini, de R$ 27,00 por R$ 14,00;
· “Galvez, imperador do Acre”, de Márcio Souza, de R$ 37,90 por R$ 11,00;
· “Dois irmãos”, de Milton Hatoum, de R$ 47,00 por R$ 15,00;
· “Amanhecer”, de Stephenie Meyer, de R$ 49,90 por R$ 29,00;
· “Se eu fechar os olhos agora”, de Edney Silvestre, de R$ 34,90 por 9,90;
· “A cidade ilhada”, de Milton Hatoum, de R$ 31,00 por R$ 9,90.

Será uma boa oportunidade para adquirir as obras de autores regionais, que serão vendidas com desconto especiais:

· “As mil e uma noites”, de Márcio Souza, por R$ 5,00
· “Semibreves & exercícios de harmonia”, de Elson Farias, por R$ 5,00
· “A floresta vê o homem”, de Thiago de Mello, por R$ 5,00
· “Francisca – a utopia da liberdade”, de Sylvia Aranha, por R$ 5,00
· “Pássaro de cinza”, de Farias de Carvalho, por R$ 5,00
· “Reflexões de um sempre aprendiz”, de Edson Paiva, por R$ 5,00
· “A derrota do mito”, de Tenório Telles, por R$ 5,00
· “João Barbosa Rodrigues”, de Leyla Leong, por R$ 9,90
· “A engenharia do texto”, de Odenildo Sena, por R$ 9,90
· “O texto nu”, de Zemaria Pinto, por R$ 9,90
· “Poesia e poetas do Parnasianismo, Simbolismo...”, de Marcos Frederico, por R$ 9,90

Entre outros autores conhecidos do público que terão seus livros à venda: Thiago de Mello, Elson Farias, Luiz Bacellar, Aldisio Filgueiras, Neide Gondin, Tenório Telles, Márcio Souza, Zemaria Pinto, Jorge Tufic, Alencar e Silva, Wilson Nogueira, Renan Freitas Pinto, etc.

Para quem desejar adquirir obras de grandes autores da literatura universal, diversos títulos em inglês, da Editora PINGUIM BOOK, serão vendidos com preços abaixo de R$ 10,00:

· William Shakespeare;
· Charles Dickens;
· Jane Austen;
· Homero;
· Dante;
· Vitor Hugo;
· Flaubert;
· Cervantes.

As crianças receberão um presente de natal antecipado: todos os livros do departamento infantil terão descontos especiais. Os títulos da Coleção “Florescer da Leitura” estarão acessíveis aos leitores mirins – com preço de R$ 15,00 por apenas R$ 5,00:

· “O som das letras”, de Elson Farias;
· “Travessuras de urubus”, de Elson Farias;
· “Sonhos de Cuirão”, de Neuton Correia;
· “Formosa – a sementinha voadora”, de Wilson Nogueira;
· “As frutas do meu quintal”, de Ana Peixoto;
· “Os sapos do meu quintal”, de Ana Peixoto;

Dezenas de best-sellers e os últimos lançamentos do mercado editorial estarão em promoção com descontos de 50%:

· “Mentes brilhantes”, Augusto Cury
· “Quem pensa enriquece”, Geoffrey Blainey
· “A hospedeira”, Stephenie Meyer
· “1822”, Laurentino Gomes
· “Elite da tropa”, Luís Eduardo Soares
· “Depois da escuridão”, Sidney Sheldon
· “Queda de gigantes”, Ken Follett
· “1808”, de Laurentino Gomes

Ninguém vai alegar que não compra livro por causa do preço. E com a aproximação do natal é uma boa oportunidade para fazer do livro um presente inteligente. Serão cinco dias de festa para os amantes do livro. A promoção se encerra no dia 22 (quarta-feira), às 18 horas.

Livraria Valer –  Rua Ramos Ferreira, 1195 – Centro – Manaus – (092) 3633-6565

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

A miragem elaborada – 15

Zemaria Pinto

O homem noturno, a busca da luz

II



Esse tecer infindo constitui-se milagre na proposição que o poeta faz em “À noite”:

                    Mas preservarei a flor.

                    Construirei muralhas,
                    e o tempo e o vento não a destruirão.
                    Quando as tempestades vierem,
                    me aproximarei e a defenderei,
                    para que possa devolvê-la ainda flor
                    à manha.

Não importam os ditadores, não interessa o tempo que lhes reserva o poder, o homem saberá preservar a si até que venha a manhã.

Este poema traduz toda a importância atribuída à noite na obra de Alcides Werk. A noite como caminho inevitável para a luz:

                    Meu coração não se erguerá contra ti,
                    porque és simples,
                    e não conheces o mal que fazes,
                    quando levas a luz.

No poema “À irmã sem amor”, o tema é retomado:

                    a antiga semente do amor
                    foi lançada no coração dos homens.
                    Ela é irmã da manhã


                    Germina no silêncio da noite,
                    mas ao amanhecer será árvore
                    e será fruto.

O amor, a fraternidade, a igualdade entre os homens. Mas o poeta não deixa de alertar contra qualquer possibilidade de radicalismos, avisando que

                    os sinais,
                    tu os conhecerás nos pássaros

No poema “Da espera”, ele renova o aviso:

                    Direi aos pássaros que esperem,
                    enquanto perdurar a ronda dos morcegos.

Esses três poemas constituem a reflexão do poeta sobre o momento político. Sem a dor estampada em “Da noite do rio” ou a quase-alegria de “Canção”:

                    Sou leve, não tenho nada
                    (nem mesmo o medo da morte).

Há a calma, a serenidade de quem sabe o que quer.

                    Há uma grande alegria na espera.

Ele diz em “À irmã sem amor”, para arrematar, na festa dos pássaros, que

                         o labor de tuas mãos limpas
                    será aceito
                    no grande banquete de amor que se prepara
                    para saudar a manhã.

Banquete que se renova a cada aurora na vida do homem amazônico. Como em “Facheação”, o dia clareando:

                    preciso remar ligeiro,
                    que o povo tá me esperando
                    com a peixada pro ajuri.

Ou em “Peixe-boi”, após o sucesso na pesca:

                    Voltar para casa
                    cheio de alegria
                    no romper do dia

A chegada do dia relacionada com a festa da volta para casa: o fim do exílio, a retomada da liberdade, o tempo novo que se anuncia. No poema “Êxodo”, o coroamento dessa ideia:

                    Quero voltar pro meu lago,
                    quero enganar a mentira,
                    assar um peixe na praia
                    e saudar o sol nascente,
                    fazer uns versos pro dia
                    mas nos teus braços, Jupira.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Arnaldo Garcez em exposição

Dia do médico: permanente luta contra a dor e a morte

João Bosco Botelho


A humanidade sempre conviveu com a certeza da doença e da morte. A inteligência humana conseguiu elaborar, no espaço sagrado, ideias para justificar a inexorabilidade da agonia do frio, da fome, da doença e da morte. A partir de uma fase, cujo início é impossível de precisar, predominou aquela que projetava a ambicionada felicidade na imaginável vida depois da morte. A epopeia edificada na busca dessa imortalidade representou um dos principais fatores para o aparecimento dos agentes da cura, da benzedeira ao médico, e a materialização da Medicina como especialidade social.

Curar é uma palavra mágica porque interliga o sagrado com o profano. O ato de curar traz na sua essência o poder ou a sensação de vencer o maior de todos os obstáculos da vida: a morte.

Este é o ponto básico da principal resistência humana: vencer a morte inevitável!

O fato está claro na mitologia grega. A data atual de comemoração do dia do médico — 18 de outubro — corresponde à época em que era celebrada a festa do filho de Apolo, Asclépio, o deus da Medicina grega. O estudo da representação social de Asclépio no panteão grego é capaz de identificar um ponto comum na relação entre os mundos sagrado e profano: a insubordinação humana à ordem divina quanto à mortalidade dos homens.

O poder da divindade, artisticamente construído, mantendo a primazia sobre a morte, foi revigorado pela gradativa consolidação do cristianismo como religião dominante. O calendário cristão manteve o dia 18 de outubro como o registro festivo para marcar o nascimento de Lucas, o evangelista médico.

A serpente de Asclépio se enrolou na cruz cristã e formou um dos mais belos sincretismos religiosos da história. A primeira, símbolo da imortalidade embaixo da terra, e a cruz como a representação do inatingível acima da terra, fecham o ciclo mítico pendular entre o desconhecido situado acima da cabeça e abaixo dos pés do homem.

Entretanto, quando o medo da morte nos alcança ou àqueles que nos são amados, e os recursos da Medicina são insuficientes para preservar-lhes a vida, como na Grécia antiga, em que os doentes suplicavam pelo milagre de Asclépio, o Ocidente cristianizado se volta à bondosa imagem de Jesus Cristo, capaz de curar muito além dos recursos médicos oferecidos.

Ainda estamos angustiantemente longe de compreender os mistérios da vida. Contudo, não é sem razão nem simples coincidência que os médicos comemoram, muitos sem saberem porquê, o dia 18 de outubro como marco da resistência à morte inevitável.

Ilustração: Jesus cura um doente, de autor desconhecido.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Fantasy Art – Galeria

Brita Seifert.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Livraria Valer faz promoção anual

São 50 mil exemplares e 16 mil títulos, com descontos que variam de 50% a 90%.
O evento tradicional acontece de 18 a 22 de dezembro, das 8h às 18h.

Tramas de Penélope

A fragmentação das torres – 9

Marco Adolfs

Tio Otávio acima do Atlântico



O comandante acabou de nos avisar que estamos sobrevoando a ilha do Sal. Agora começo a pensar no futuro imediato, com otimismo. Haveria alguma coisa em mim de um cavaleiro que persegue o vento?, pensei, enquanto olhava a rota do avião pelo monitor da minha poltrona. Talvez um louco voador, domador de moinhos? Quem saberia dizer, senão eu próprio? Quando o avião decolou rumo a Portugal eu recitava baixinho aqueles versos, que diziam: “...navegar é preciso, viver não é preciso...”. Sempre me chateou muito o fato de que alguém pudesse reclamar da vida, ter preconceitos ou rancores. Quando explodiu o golpe militar de 64, após aquelas manifestações todas, mamãe ficara a favor e papai, contra. Havia reclamos por toda parte, perecendo que o amor entre todos estava partido e a alegria era triste. Eu não sabia muito bem o que significava tudo aquilo. Lembro apenas de alguns militares postados nas esquinas de algumas ruas e daquele barulho trôpego dos cascos dos cavalos passeando perto da Central do Brasil. Meu pai tinha nos levado, a mim e ao meu irmão, à Central do Brasil com o intuito de nos proporcionar a nossa primeira viagem de trem. Lembro também que pediu um filé com fritas delicioso, antes de embarcarmos com destino a Macaé. Seria apenas uma hora, mais ou menos de viagem, até Macaé. Ida e volta. Quando voltamos, o centro do Rio já não era mais o mesmo e aqueles cavalos pareciam feras arremetidas contra os passantes. Lembro de papai nos puxando pelo braço de forma violenta. “Vamos sair daqui para pegar o carro”. Havia muita gente correndo para tudo que era lado, era o que eu percebia. E aqueles cavalos bufando. Eu tentava não escorregar, sob os puxões que meu pai me dava. Via aqueles prédios da avenida como se estivessem a ponto de cair sobre mim. Foi quando então atingimos uma ruela e o barulho ensurdecedor foi amainando, que eu me senti aliviado de todo o medo. Enxuguei o suor do meu rosto, enquanto olhava para a cara enfezada que papai fazia, também vermelho de suor. “Milicos miseráveis!” Por um momento eu não entendi o que significava a palavra milico, com papai se referindo aos militares. “Pensam que vão ficar no poder!”

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O segredo do pagode chinês

Pedro Lindoso



Quando a vi no hall de entrada do Teatro Amazonas, não tive dúvidas. Era Antônia, a eterna Miss Borba. Estava entre turistas franceses, vindos para o Festival de Ópera. Antônia nasceu no dia 13 de junho, dia de Santo Antônio de Borba. O mesmo Santo Antônio de Lisboa, de Pádua e de todos os devotos brasileiros e portugueses. Assim, Antônia só poderia se chamar Antônia. Filha de uma cabocla de Borba, município amazonense às margens do Rio Madeira, e de um empresário descendente de libaneses. O pai de Antônia era casado e durante muitos anos iludiu sua mãe com promessas de desquitar-se para com ela se casar. Nunca cumpriu a promessa. Mas sempre deu para mãe e filha toda assistência financeira e afetiva. Aos doze anos, Antônia ficou órfã de mãe. O pai veio buscá-la. De beleza ímpar, desde cedo recebeu educação primorosa e portava-se como verdadeira princesa, como se transportada das Arábias para a Amazônia. O pai decidiu mandá-la para o Rio de Janeiro. Antônia foi interna no Colégio Bennet. Tradicional e centenário, o Bennet é das mais respeitadas instituições educacionais do Rio. Retornou a Manaus aos 18 anos completos. Fluente em inglês, francês e com curso técnico em secretariado, logo lhe foi oferecido um emprego no Palácio Rio Negro, sede do governo do Amazonas. No seu primeiro dia no Palácio, o assessor direto do governador estava às voltas com um projeto inusitado: apoiar o concurso de Miss Amazonas. O Estado do Amazonas deveria eleger a miss Brasil. E mais, o governador queria a participação de garotas do interior. Como Antônia havia nascido em Borba, de imediato foi escalada para representar o município. Foi assim que Antônia ficou conhecida como a eterna Miss Borba. Eleita Miss Amazonas, classificou-se em terceiro lugar no Miss Brasil. Viajou o país e o mundo. Naquela época, os concursos de miss eram prestigiados e concorridos. A miss era uma celebridade. E como tal, Antonia retorna a Manaus. Um baile acontecia no Palácio Rio Negro. Antônia vestia um conjunto em seda chinesa. Estava deslumbrante. Nos salões do Palácio, toda a sociedade manauara em noite de festa, gala e esplendor amazônico. A orquestra tocava The Platters – Only you, quando Roberto, o assessor do governador, recém-desquitado, tirou Antônia para dançar. O rapaz insistia: Preciso falar com você. Urgente. Vamos ao segundo andar do Palácio. Após subir as escadas, vá para o segundo salão à esquerda. Aguardo você lá. Ao entrar no salão, Antônia ficou fascinada por uma linda mobília em estilo oriental. Uma espécie de aparador com prateleiras entalhadas em estilo chinês. A bela mobília tinha simplesmente o formato de um interessante pagode chinês. Aliás, o móvel é chamado, apropriadamente, de pagode chinês. Compõem o conjunto duas cadeiras de balanço, também em estilo oriental. Antônia nunca me disse o que houve naquela noite entre ela e Roberto. Dileto amigo, Roberto faleceu num famoso desastre de avião, chegando à Paris, onde se casaria com Antônia. Voltemos ao hall do teatro. Naquela noite, o Festival Amazonas de Ópera apresentava “Samson et Dalila" de Camille Saint-Saens. O Festival homenageava a França, com seleção de óperas composta de peças francesas. O festival recebe muitos turistas europeus, especialmente franceses e alemães. Ver uma bela ópera e ainda conhecer a Amazônia é sempre um apelo irresistível. Mas a presença de Madame Antônia Carradot, anônima, no hall do Teatro Amazonas, era algo que precisava ser esclarecido. Porque não se comunicara comigo era um mistério. Fui a Paris providenciar o traslado das cinzas de Roberto. Uma tragédia. Dei-lhe todo o carinho, toda a atenção merecida. Sempre muito simpática comigo. Nunca entendi seu silêncio. Antônia recebeu todo o carinho e atenção possível naquele nefasto evento. E agora, retornando anonimamente a Manaus, eu tinha que falar com ela. Me aproximei, sutilmente. Ela me reconheceu e sorriu. Pediu encarecidamente que não contasse a ninguém que estava ali. Só queria um favor meu. Ir ao Palácio Rio Negro, rever o pagode chinês. Perguntou-me se conhecia alguém no governo que pudesse facilitar a visita. Disse-lhe que não precisava. O Palácio agora era um centro cultural aberto ao público. Poderia levá-la na manhã seguinte, antes de sua partida para o aeroporto, de volta à França. Perguntou-me se a intrigante mobília ainda estava no palácio. Disse-lhe que sim, não havendo motivo para não estar lá. Ela sorriu e argumentou que poderia estar numa residência qualquer de um bairro chique. Afinal, saques a bens públicos aconteceram em Manaus, em várias épocas. Aquele hall do teatro mesmo, dizem que havia esculturas e peças de mobília que não estão mais lá. Eu lhe garanti que o pagode chinês estava no Palácio. No dia seguinte, busquei Madame Antonia Carradot no hotel e fomos direto ao Palácio Rio Negro. Subiu lentamente as escadas. Foi direto à sala onde estava o pagode chinês. Perguntou se podia sentar em uma das cadeiras. Em princípio é proibido, estávamos num museu. Mas os anjos e demônios que guardam esse Palácio permitiriam que ela se sentasse. Estávamos sós. Antonia sentou-se na cadeira de balanço, olhou para o móvel, pensativa. Duas lágrimas fortes rolaram. Jamais esquecerei aquela cena. Não quis ver mais nada. Saímos do Palácio. Chovia como sempre chove na Amazônia. Antonia entrou no carro. Levei-a ao aeroporto. No caminho, contou-me que estava viúva do francês com quem se casara. Sua única filha era médica, formada pela Sorbonne. Tinha quatro netos. Parece que querem repovoar a França. Todos esses detalhes eram interessantes, mas ela não me contou e eu não tive coragem de perguntar que segredos, que juras de amor entre ela e Roberto, que mistérios teria aquele lindo móvel – o pagode chinês –, o que teria aquilo por testemunha? Antônia retornou discretamente para Paris, levando consigo esse segredo tropical, que, com certeza será debulhado muitas vezes, às margens do Senna. Au revoir, Antonia Carradot.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Nudez e performance em Regina José Galindo

Jorge Bandeira


O uso da Internet com propósitos elevados de pesquisa me possibilita falar dessa grande artista guatemalteca, nascida em 1974, que tem demonstrado de forma incontestável ser uma das mais atuantes artistas da arte da performance em nossos dias. Galindo já recebeu alguns prêmios em virtude de suas intervenções artísticas, entre os quais o Leão de Ouro na Bienal de Veneza de 2005. Nesta série de artigos irei me deter em seus trabalhos especificamente sobre o eixo “nudez em performance”, com as intervenções de Regina José Galindo em estado de nudez total e analisarei esses trabalhos à luz dos conceitos historicamente trabalhados pelos pesquisadores naturistas, seus vínculos com o corpo nu, as possibilidades de uma união entre arte e nudez, envolvendo considerações de diversas ordens – sociais, culturais, estéticas, históricas e filosóficas.

Impressiona a diversidade e quantidade de suas performances, e Regina Galindo também é poeta, de uma poesia econômica, direta e concisa. Suas obras possuem uma calculada precisão, e a artista deve fazer uso de um rigoroso roteiro analítico para que seus propósitos de performer alcancem da melhor maneira o público-alvo. Seu corpo nu é usado como um símbolo claro, onde a artista imprime doses de extrema coragem e naturalidade ao mostrar-se nua em público, nas situações mais inquietantes que um artista pode sofrer.

O poder dessas imagens naturais não deixa nenhum espectador incólume, no sentido de um dano sensorial, de seus sentidos, sobre a obra de Regina Galindo. Seu trabalho é insuportavelmente sincero, e nos abraça com todas as forças de um corpo em estado emergencial, que precisa nos dizer algo, caso contrário irá sucumbir neste mundo de “acomodações” e “anestesia” sobre as questões urgentes da vida em sociedade. Galindo é uma artista contemporânea, com preocupações de ordens mundiais, globais. Mesmo quando realiza sua performance no plano mais político de um tema, seus ecos poéticos se deslocam para vários países e situações. Seu trabalho, neste aspecto, é universal, e a linguagem de seu corpo nu é compreensível em qualquer lugar e situação.

Momento da performance “Recorte Por La Linea”, de Regina José Galindo, onde o renomado cirurgião venezuelano, Dr. Billy Spence, marcava o corpo nu da artista para uma “provável” intervenção, de forma a criar o “corpo perfeito”, segundo os padrões da estética corporal existentes nos dias de hoje.





Um artista performático encara todas as situações que são perpetradas ao seu corpo de forma natural. Até porque ele(a) tem o domínio da situação, e nisso há uma linha de registro de alerta para o inusitado, o que pode decorrer das situações especialmente nas ruas, nas praças públicas, nos lugares onde a performance mais se agiganta, nos centros urbanos, nas passarelas, pontes, enfim, onde a multidão, o povo, costuma percorrer livremente em seu cotidiano. Cabe, ao artista performático, criar uma situação de “perturbação” do ambiente, causar umaa atmosfera de “suspensão” desse cotidiano, e nisso Regina José Galindo é de uma capacidade e inventividade extraordinárias!


Regina José Galindo na performance Piel (pele). Neste trabalho de 2001 a artista depilou todos os pelos de seu corpo, inclusive as sobrancelhas (restaram apenas os cílios!), e em seguida caminhou completamente nua pelas ruas de Veneza.



Neste impactante trabalho temos a artista como andarilho, nua, somente vestida com sua pele, sem artifícios, demonstrando em sua andança naturista o desejo de continuar, indo e sonhando, alheia aos comentários em sua volta, aos olhares de desaprovação, de escárnio, de piedade, de gracejos e taxações de transeuntes que a têm como tresloucada, exibicionista e imoral. A artista encontra-se ao mesmo tempo forte e fraca, pois a situação inusitada a conduz firme até o fim de seu trajeto.

O ato inicial da performance foi raspar todos os cabelos do corpo, depilando-os completamente. Disso tudo resultou numa outra mulher, num outro ser humano (que em sua “pureza e estranheza” alguns vislumbraram como um extraterrestre que perdeu o seu OVNI e que caminhava pelo Planeta Terra em busca do improvável!).

O poder da imagem dessa nudez é indiscutível: o poder da pele que se descortina agora aos usuários das roupas e grifes. Quem seria mais estranho? Quem seria mais verdadeiro? Quem sofre mais imposições? São essas as chaves de inquietação que a brilhante artista carrega através de seus poderosos atos simbólicos, tudo através da performance.

Recorte Por La Linea, 2005. Venezuela.
Uma artista que se coloca nua, disponibilizando seu corpo integralmente para a reflexão dos padrões da estética corporal neste mundo de uma busca desenfreada pelo “belo”, custe o que custar. O cirurgião marca integralmente o corpo de Regina, é ele o que interfere nesse processo, no que está despencando, o que cai com o peso da idade, dos anos, da alimentação, um corpo nu, somente isso, e pronto para o abate nos hospitais onde as mulheres (e também os homens!) buscam essa “perfeição”, esse melhoramento substancial, nesse corpo que não pode ser mais, à luz dessa ótica, como perfeito, mesmo que seja uma criação divina.

Linhas e geometrias que lembram as tatuagens dos índios, prenúncios de retirada de gordura e sangue desse corpo a ser mutilado, retalhado. Eis a mensagem da artista, somos vítimas de uma condição que nos impõe regras de bem viver, o mundo das cirurgias plásticas, dos elementos rejuvenescedores, das dietas milagrosas, das academias intermináveis, somos esse corpo que não vive mais sem essas interferências.

A performance de Regina Galindo traz à tona essas questões, e ela sabe, como mulher, que o sofrimento feminino deve muito às apelações da moda e do consumo, onde um corpo é só mais um tipo de alegoria de um utópico devaneio, e de onde a felicidade agora é servida pelos meios de comunicação e pela guerra chamada de mercado de trabalho, onde ter um corpo “apresentável” é regra impiedosa.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Noel faz 100 anos

Zemaria Pinto

Noel Rosa (11/12/1910 – 04/05/1937).
Foto colorizada: autor desconhecido.

Noel, por Lucas Leibholz.

Da séria série Lapidares:

Noel Rosa pode ser ou não o mais psicólogo, o mais poético, o mais harmonioso, o mais romântico, o mais realista, o mais ritmado etc.; indiscutivelmente, ele é apenas o maior compositor brasileiro! (Paulo Mendes Campos)*

Noel, por ele mesmo.

De saúde frágil desde criança o queixo deformado e a face paralisada foram causados pelo mau uso do fórceps, quando nasceu , Noel compôs de forma insana: morto aos 26 anos, deixou mais de 250 composições.
Nestes tempos politica e ridiculamente corretos, Noel seria censurado. Vejam (e tentem cantar) Gago apaixonado, de 1930, quando o moleque tinha apenas 20 anos: 

Mu... mu... mulher
Em mim fi... fizeste um estrago
Eu de nervoso esto... tou fi... ficando gago
Não po... posso
Com a cru... cru... crueldade
Da saudade,
Que... que ma... mal... maldade
Vi... vivo sem afa... fa... fago

Tem pe... pena
Deste mo... mo... moribundo
Que... que já virou
Va... va... ga... gabundo
Só... só... só...
Por ter so... so... fri... frido
Tu... tu... tu... tu... tu... tu...
Tu tens um co... co... coração fingido!

O teu co... coração
Me entregaste
E de... po... pois de mim
To.. to... ma... maste
Tu... tua falsi... si... sidade
É pro... pro... profunda
Tu... tu... tu... tu... tu... tu... 
Tu vais fi... fi... ficar corcunda!

Gravado por Moreira da Silva, João Nogueira, João Bosco, o engraçadinho Evandro Mesquita e o chato Ivan Lins, entre outros, o Gago é uma oportunidade rara para o cantor improvisar a divisão rítmica da canção.

Para quem nunca ouviu falar de Noel, a melhor introdução é o CD da série Songbook, de 1991, produzido por Almir Chediak (acho que encontrável só em sebos), com 22 pérolas, interpretadas por Tom Jobim, Chico Buarque, Nelson Gonçalves, Leila Pinheiro, Caetano, Gil, Gal, Bethânia, Luiz Melodia, Macalé, Djavan, Rafael Rabello, Cassiano, Francis Hime, Carlos Lyra, J. Nogueira, J. Bosco, M. Moreira, N. Matogrosso, R. Menescal e E. Dusek.

E o livro, insuperável, Noel Rosa, uma biografia, de João Máximo e Carlos Didier.

(*) In: Noel Rosa, uma biografia.