Zemaria Pinto
Não há
clichê mais adequado que “monumental” para classificar o trabalho de Mary
Gabriel nas mais de 950 páginas de Amor e Capital. O subtítulo dado pela
autora sintetiza o seu esforço: Karl e Jenny Marx e o nascimento de uma
revolução. O casal e a revolução são, de fato, o centro da narrativa. A
tradução trai esse sentido, generalizando-o: A saga familiar de Karl Marx e
a história de uma revolução. Ao subtrair o nome de Jenny, o tradutor
minimiza o seu papel, da mesma forma como, ao trocar “nascimento” por
“história”, ele subverte o sentido do texto de Mary Gabriel: sem arroubos, ela
conta a gênese da revolução pensada por Marx, uma história que está longe de
terminar.
O livro
cobre exatos 80 anos, de 1831 até 1911. A vida íntima do casal Marx é uma
sucessão de tragédias – desde a perda de quatro filhos e quatro netos, ainda
crianças, até o suicídio de duas das três filhas sobreviventes. Mas, a maior de
todas as tragédias é a crônica falta de recursos da família, amparada pelo
amigo Friedrich Engels, que tem um papel fundamental na construção da obra de
Marx, não só como parceiro e revisor, mas, principalmente, como patrocinador do
amigo.
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Na foto da capa, o casal Marx. |
Amor e Capital pode ser lido como um romance – ora
tributário de Balzac ora de Zola –, com histórias de amor e desencontros, adultérios
e traições, brigas e reconciliações, mentiras e calúnias (nomes antigos para fake
news), além de toques de comédia, para distender o clima trágico que ameaça
o tempo todo a antecipação de entrechos paralelos. Vejamos as principais
personagens, a família Marx, núcleo da narrativa, de onde Engels era parte
indissociável.
Johanna
Bertha Julie Jenny von Westphalen Marx (Jenny,
1814-1881) vinha de uma família de nobres prussianos. O barão Von Westphalen,
seu pai, um liberal, foi professor de Karl, que era amigo de um irmão mais novo
de Jenny, Edgar. Essa amizade aproximou o futuro casal, apesar da diferença de
idade: Jenny era quatro anos mais velha. Secretamente, ficaram noivos em 1836,
mas o casamento só aconteceria sete anos mais tarde, após Karl concluir o
doutorado e acenar com alguma estabilidade financeira, que nunca se concretizaria.
Jenny passou por muitas atribulações ao lado de Marx, mas manteve-se firme até
o fim. A frase a seguir pode parecer machista, mas é verdadeira: o papel de
Jenny Marx – como esposa, mãe e administradora da vida familiar – foi
fundamental para que o trabalho do marido fosse levado a cabo e se tornasse um
marco do pensamento na filosofia, na economia, na política e nos estudos
sociais.
Karl Heinrich Marx (Mohr, 1818-1883) descendia de uma linhagem de
pensadores judeus, cuja autoridade em religião se estendia à política, segundo
a autora. Seu pai, entretanto, advogado, converteu-se ao cristianismo luterano.
O apelido doméstico que o acompanharia a vida inteira – Mohr, Mouro – foi
adquirido em Berlim, onde fora estudar, como referência ao cabelo negro e à
pele escurecida. Mary Gabriel não o poupa: “O primeiro ano de Marx na
universidade foi mergulhado no álcool.” Mas, não apenas o primeiro ano. Marx é
mostrado com todos os seus defeitos: desorganizado, dispersivo, mulherengo.
Mas, como pontos positivos, pai e avô amoroso e, paradoxalmente, marido
dedicado. Aliás, surpresa das surpresas, aos 18 anos ele convenceu Jenny a
tornar-se sua noiva – ela que já passara por um noivado frustrado – com três
volumes de poemas, guardados por Jenny e publicados, como curiosidade
literária, somente após a morte de ambos. Mas, a maior virtude de Karl era a
sua capacidade de transitar em várias matérias, para atingir o seu objetivo maior:
construir uma teoria do capitalismo industrial, que, com sua previsível
implosão, conduziria o proletariado ao poder.
Nascidos
ambos em Trier – Tréveris, em Português –, a mais antiga cidade alemã, fundada,
segundo a lenda, pelo próprio Octavio Augusto, no século 1 a.C., o casal, escapando
à censura e à polícia política, viveu em Paris e Bruxelas antes de se fixar em
Londres. As casas dos três países onde moraram se tornaram uma espécie de
consulado socialista, onde todas as tendências de refugiados encontravam
abrigo. Marx não foi apenas um teórico: apesar de sua inabilidade política,
esteve sempre à frente dos movimentos sociais, especialmente na França e na Inglaterra,
entre os anos 1840 e 1870. Não à toa,
era chamado pelos seus detratores de “Doutor Terrorista Vermelho”.
Jenny
Caroline Marx Longuet (Jennychen, 1844-1883), a filha mais velha do casal Marx,
foi casada com Charles Longuet, jornalista revolucionário francês. Trabalhou
para o pai como secretária, atuando também como jornalista, especialmente na
defesa da liberação de presos políticos irlandeses de prisões inglesas. Morreu
muito jovem, de câncer, deixando três filhos, criados pelas irmãs.
Jenny
Laura Marx Lafargue (Laura, 1845-1911), segunda filha do casal Marx, foi
tradutora dos livros do pai e de Engels. Casou-se com Paul Lafargue, de origem franco-cubana,
ativista, introdutor do marxismo na França e na Espanha. Tiveram três filhos, todos
falecidos em tenra idade. Em 1911, num aparente pacto, ambos se suicidaram. No
funeral, um orador destacou-se: “Lutem. Lutem sempre. Até chegar naquilo que
foi antevisto por estes mortos – a vitória do proletariado.” Era um
revolucionário russo no exílio, Vladimir Ilyich Ulianov, que assombraria o
mundo seis anos depois com o codinome Lênin.
Jenny
Julia Eleanor Marx (Tussy, 1855-1988), a caçula do casal Marx, era a mais
inquieta das três: tendo trabalhado como secretária e tradutora do pai, ansiava
por independência financeira. Trabalhou como atriz, traduziu Flaubert e Ibsen,
atuou como jornalista e ativista. Suicidou-se, ao descobrir que seu companheiro
Edward Aveling, que era dramaturgo, casara-se com uma atriz mais jovem. Não
teve filhos. Sobre as filhas, Marx declarou em certa ocasião que Jennychen era
a mais parecida com ele; mas, Tussy era ele.
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Da esquerda para a direita: Jennychen, Tussy e Laura, sob a guarda do Mouro e do General, em 1864. |
Friedrich
Engels (General, 1820-1895). O apelido doméstico foi atribuído pela adolescente
Jennychen, por ocasião da guerra franco-prussiana, que deu origem ao império
alemão, em 1870-1871, sobre a qual Engels escreveu cerca de sessenta artigos,
que circularam por toda a Europa, alcançando até os Estados Unidos.
É lugar
comum dizer que sem Engels não haveria marxismo. Talvez, nem Marx. Eles se
conheceram em 1844, e nem a morte os separou. Segundo Mary Gabriel,
Intelectualmente, ambos eram brilhantes, incisivos,
visionários e criativos (mas também elitistas, beligerantes, impacientes e
conspiratórios). Como amigos, eram desbocados, grosseiros e adolescentes.
Adoravam fumar (Engels, cachimbo; Marx, charuto), beber até de madrugada
(Engels, bons vinhos e cervejas; Marx, qualquer coisa disponível), bisbilhotar
(especialmente sobre as tendências sexuais de seus conhecidos) e gargalhar
muito alto (geralmente à custa dos inimigos, e no caso de Marx, até lhe
correrem lágrimas pela face).
Unia-os
ainda a história, a filosofia e a economia. Ambos acreditavam que o capitalismo
não se sustentaria, pois era arquitetado sobre um terreno alagadiço, ou, como
dizemos hoje, bolhas econômicas que geram crises mundiais a cada estouro. Ambos
acreditavam que a classe operária, por ser maioria, um dia tomaria o poder. Ambos
acreditavam que o futuro da humanidade era o comunismo. Só um aspecto os
diferenciava: Engels, vindo de uma família rica, era um rico empresário da
indústria têxtil; Marx, doutor em filosofia, vivia de parcos recursos como
jornalista político, sem nenhuma garantia de ter o que comer no dia seguinte. Engels
foi o provedor da família, enquanto viveu, socorrendo o amigo em permanente
estado de necessidade – e, depois, as duas filhas sobreviventes. Mas, Engels
dizia que não fazia isso gratuitamente: ele tinha consciência de que a obra que
Marx estava construindo valeria mais que tudo o que gastava. E ele estava
certo.
Escreveram
vários livros juntos e os livros-solos eram revisados criticamente pelo outro.
Mas, o principal deles, O Capital, o livro que “mudou a consciência do
mundo”, no dizer de Bernard Shaw, só teve um tomo publicado em vida por Marx
(1867). O segundo e o terceiro foram “editados” por Engels, a partir de
anotações deixadas pelo caótico Marx. Há ainda um quarto tomo, que Engels não
teve tempo de finalizar, entregando-o à edição de um terceiro, o jornalista e
economista Karl Kautsky.
Um
episódio emblemático entre os dois foi a paternidade do filho de Helene Demuth
(Lenchen, 1820-1890), empregada dos Marx. Engels assumiu e a criança foi entregue
para uma família de um subúrbio londrino, que a criou (provavelmente,
subsidiada pelo suposto pai), tendo Lenchen permanecido com os Marx. Após a
morte do casal, entretanto, a verdade veio à tona: o menino, Frederick Demuth
(Freddy, 1851-1929), que se tornara um ativista e seguidor da doutrina
comunista, era filho de Karl Marx.
Das
Kapital é uma obra
coletiva. Além de Marx, que o escreveu, e Engels, que o revisou e editou, teve
a participação fundamental de Jenny, a esposa, mas também de Jennychen, Laura e
Tussy, as filhas. E não podemos nos esquecer de Lenchen, sempre calada e
presente. Cada uma dessas mulheres deu sua contribuição, sua cota de
sacrifício, para que a obra de toda uma vida se tornasse um livro transformador
– e atual, mais de 150 depois – e não apenas uma interpretação para uso intelectual
ou histórico. A revolução – política, social e econômica – era seu único
objetivo.
O
Capital aponta, no
berço de nascimento do capitalismo moderno, suas falhas e seu declínio, porque
assentado nas mesmas bases dos sistemas econômicos que o antecederam: os ricos
explorando os pobres. O livre mercado, de que os economistas liberais tanto se
jactavam, era apenas um mercado controlado pelos ricos, em benefício deles
mesmos, os ricos. E assim continua. Por esse ângulo, a luta de classes é
transparente e seu acirramento é necessário. Marx ecoava Hegel, para quem a
história humana é a história de seus conflitos. Para Engels, se o contemporâneo
Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da natureza orgânica, “Marx descobriu
a lei do desenvolvimento da história humana.” A revolução proposta por Marx tem
uma premissa fundamental: nenhum homem tem o direito de explorar outro homem. E
porque as relações entre as pessoas são basicamente materiais, de fundo econômico,
a força motriz da revolução se resume em uma palavra: pão.
Marx
sabia do que falava:
Deve haver algo de podre no cerne de um sistema social
que aumenta sua riqueza sem diminuir sua miséria.
E foi
investigando as causas dessa distorção que Marx descreveu a ascensão e a queda
do capitalismo – da “economia global” às bolhas causadas pelo consumo desenfreado
a impor necessidades artificiais que o trabalhador assalariado não pode suprir,
porque ele não passa de mão de obra escravizada pelo salário de fome, e
duplamente escravizada pelo crédito, indispensável para o consumo que retroalimenta
a Hidra de Lerna de nosso tempo.
A
revolução seria lenta: redução da carga horária e um salário capaz de manter o
trabalhador de pé, alimentando também sua família, seriam apenas os primeiros
passos. Para Marx, a “utopia comunista”, como ironizavam seus adversários, só
seria alcançada após os trabalhadores adquirirem o direito a se alimentarem com
dignidade. Era preciso comer para depois sonhar.
Mas, o
livro máximo do socialismo não pode ser visto como uma suma dogmática, baseada
em preceitos imutáveis. É preciso analisá-lo dentro de seu contexto histórico. Expressões
como “ditadura do proletariado”, por exemplo, serviram como justificativa para
a repressão política e policial, desde sempre. Em 1895, poucos meses antes de
sua morte, o dedicado Engels deu sua última contribuição ao amadurecimento do
marxismo, na Introdução à uma nova edição de um dos textos mais populares de
Marx, As lutas de classes na França,
relembrando a campanha épica do movimento de 1848-1849, quando os dois amigos
estiveram na vanguarda dos acontecimentos. Engels, fazendo uma autocrítica do
movimento no que lhe dizia respeito, escreve a respeito de uma “nova arma
poderosa” à disposição do proletariado: o sufrágio universal. E sem abrir mão
do “direito à revolução”, ele pondera que a mudança da conjuntura pede a
adaptação das formas de luta: “[O sufrágio universal] é um instrumento mais
aborrecido e lento para a promoção da revolução, mas é dez vezes mais seguro; e
sobretudo indica com precisão o dia em que se deve empunhar armas pela
revolução.” Àquela época o voto era apenas masculino. Nestes mais de 120 anos
que nos separam da reflexão de Engels, muita coisa mudou – e mudou a favor da
classe pela qual Marx e Engels dedicaram todas as suas forças.
Jenny e
Karl Marx morreram sem ver o alcance da obra que realizaram. Mas, o sacrifício
da família e do amigo Engels não foi em vão: O Capital transformou o
mundo, mudando a maneira de pensar da humanidade. Isso já foi uma revolução,
mas o capitalismo continua forte, opressor, asfixiante. Embora invisível –
especialmente, para quem não quer ver –, a luta de classes continua viva e
necessária, e o voto é a principal arma para promover a transformação.