Amigos do Fingidor

quinta-feira, 30 de junho de 2022

A poesia é necessária?

 

Alma e ritmo da raça

Bruno de Menezes (1893-1963)

 

A luz morde a pele de sombra e os cabelos

lustrosos quebrados da cor sem razão.

E os seios pitingas, o ventre em rebojo,

as ancas que vão num remanso rolando

no tombo do banjo.

 

A luz tatuou a nudez de baunilha

do corpo que cheira a resinas selvagens.

Botou-lhe entre os beiços de polpa mangabas

um quarto de lua mordido sorrindo.

 

No rosto crioulo dois sóis de jarina

brilhando nos olhos.

E o sumo baboso espumoso, meloso, da fruta leitosa rachada de boa!

 

A carne transpira... E o almíscar da raça

É o cheiro “malino” que sai da mulata.

O banjo faz solo no fim do banzeiro:

– lundus choradinhos batuques maxixes.

 

E os braços se agitam, se afligem batendo,

As coxas se apertam se alargam se roçam

Os pés criam asas voando pousando.

É o Congo Luanda

Angola Moçambique

É o sangue zumbi

tentação do português.

 

As mãos vão palpando o balanço dos quartos

subindo pra nuca com os dedos fremindo,

rolando o compasso no fim da cadência.

 

Não é candomblé não é “Santa Bárbara”,

nem banzo banzado bom carimbo bolinoso;

– bailado benguela de gente sem nome

que agora machuca as “sinhora” e os “sinhô”.

Rolando ela faz o melexo de tudo

no tal peneirado de carnes macias...

 

Todinha canela em polvilho cheiroso,

folha seca de fumo enrolado no sol,

sua boca rescende a acidez que amortece.

Seu corpo que é todo que nem pão d’Angola

deve ter gostosuras de morte pedida

depois de dançar...

 

E o branco sentido xodó pela preta,

aguentando a mareta gemendo no fungo,

bem quer e não pode mas vai de teimoso

se acabar no rebolo da bamba africana...

 

A luz morde a pele de sombra e os cabelos

lustrosos quebrados da cor sem razão.

Também se fartou de cheirar cumaru

nos bicos dos peitos da preta inhambu.

 

E o banjo endoidece tinindo nas cordas

tantãs retesados.

O corpo viscoso se estorce nas pontas

dos pés maxixeiros.

 

A luz vai sumindo... E o banjo nos lembra

dos filhos do engenho, da escrava, da Isaura,

tão dungo no dengo

que é dom desta raça catuba no samba.

 

E fica rolando no espaço escurinho

O cheiro aromoso, o sumo baboso,

da fruta leitosa rachada de boa!

 

 

terça-feira, 28 de junho de 2022

Cheiro, barulho e silêncio na floresta

Pedro Lucas Lindoso


Bruno e Dom sabiam que o cheiro na mata é totalmente diferente do cheiro das cidades. Tinham a percepção de que a grandeza e imponência das árvores eram responsáveis pelo verde refrescante das folhas. O ar das matas é de uma atmosfera que acolhe cheiros diversos em seus mistérios e exuberância.

Cheiros de patchuli e priprioca.  Mucuracaá, japana e manjerona. Sem falar no famoso manjericão. Usado por caboclas em banhos durante as festas de São João. E ainda temos os cheiros de pataqueira e cumaru, dentre muitos outros. Bruno e Dom lutavam para que esses cheiros não se transformem em fuligem e cheiro de queimado.

Há ainda uma planta misteriosa, as aiyãs, cujo cheiro é repelente de fantasmas. Podem funcionar para afastar memórias e lidar com a dor das perdas. Essas plantas podem ter muita eficácia neste momento. Não só pela pandemia. Houve a morte de Bruno e Dom. Tão preocupados na proteção das florestas e dos povos indígenas.

E o barulho da floresta? As matas escondem sons pouco conhecidos. Bruno e Dom sabiam que a floresta não se cala nunca. Os barulhos podem vir da água. Podem vir de uma calma chuva e ser completamente relaxante. Temos ainda os sons aquáticos de rios e igarapés. Há o barulho emitido pelos pássaros. Sons cativantes que podem ser ouvidos de longas distâncias. Os insetos, os bichos em geral produzem sons. 

É verdade que tudo tem som e que a floresta não se cala nunca. Mas, paradoxalmente, há o silêncio. Principalmente nos igapós. Onde a vegetação é baixa. Onde há arbustos, cipós e musgos. Além de bromélias e begônias. E há o silêncio. Quem nos fala dele é outro conhecedor da floresta, o poeta Thiago de Mello: “vem escutar os cânticos noturnos / no mágico silêncio do igapó / coberto por estrelas de esmeralda”.

Quem sente esse silêncio mágico que se escuta nos igapós, com certeza é capaz de ouvir estrelas. E pode também se embriagar com os cheiros da floresta e se deleitar com seus barulhos. Parafraseando as virtudes teologais, a floresta tem que permanecer com cheiro, barulho e silêncio. Mas o maior destes é o silêncio.

No silêncio se contempla a natureza. O silêncio é criativo. No silêncio tudo pode existir. No silêncio pode até haver barulho. No silêncio pode se sentir cheiros e ouvir a natureza.

Silenciaram Bruno e Dom.

 

   

domingo, 26 de junho de 2022

Manaus, amor e memória DLXXIII

Rua Lobo D'Almada.

 

sexta-feira, 24 de junho de 2022

“Amor e Capital”: a vida íntima da Revolução

 Zemaria Pinto


Não há clichê mais adequado que “monumental” para classificar o trabalho de Mary Gabriel nas mais de 950 páginas de Amor e Capital. O subtítulo dado pela autora sintetiza o seu esforço: Karl e Jenny Marx e o nascimento de uma revolução. O casal e a revolução são, de fato, o centro da narrativa. A tradução trai esse sentido, generalizando-o: A saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução. Ao subtrair o nome de Jenny, o tradutor minimiza o seu papel, da mesma forma como, ao trocar “nascimento” por “história”, ele subverte o sentido do texto de Mary Gabriel: sem arroubos, ela conta a gênese da revolução pensada por Marx, uma história que está longe de terminar.

O livro cobre exatos 80 anos, de 1831 até 1911. A vida íntima do casal Marx é uma sucessão de tragédias – desde a perda de quatro filhos e quatro netos, ainda crianças, até o suicídio de duas das três filhas sobreviventes. Mas, a maior de todas as tragédias é a crônica falta de recursos da família, amparada pelo amigo Friedrich Engels, que tem um papel fundamental na construção da obra de Marx, não só como parceiro e revisor, mas, principalmente, como patrocinador do amigo.

Na foto da capa, o casal Marx.

Amor e Capital[1] pode ser lido como um romance – ora tributário de Balzac ora de Zola –, com histórias de amor e desencontros, adultérios e traições, brigas e reconciliações, mentiras e calúnias (nomes antigos para fake news), além de toques de comédia, para distender o clima trágico que ameaça o tempo todo a antecipação de entrechos paralelos. Vejamos as principais personagens, a família Marx, núcleo da narrativa, de onde Engels era parte indissociável. 

Johanna Bertha Julie Jenny von Westphalen Marx (Jenny, 1814-1881) vinha de uma família de nobres prussianos. O barão Von Westphalen, seu pai, um liberal, foi professor de Karl, que era amigo de um irmão mais novo de Jenny, Edgar. Essa amizade aproximou o futuro casal, apesar da diferença de idade: Jenny era quatro anos mais velha. Secretamente, ficaram noivos em 1836, mas o casamento só aconteceria sete anos mais tarde, após Karl concluir o doutorado e acenar com alguma estabilidade financeira, que nunca se concretizaria. Jenny passou por muitas atribulações ao lado de Marx, mas manteve-se firme até o fim. A frase a seguir pode parecer machista, mas é verdadeira: o papel de Jenny Marx – como esposa, mãe e administradora da vida familiar – foi fundamental para que o trabalho do marido fosse levado a cabo e se tornasse um marco do pensamento na filosofia, na economia, na política e nos estudos sociais.   

Karl Heinrich Marx (Mohr, 1818-1883) descendia de uma linhagem de pensadores judeus, cuja autoridade em religião se estendia à política, segundo a autora. Seu pai, entretanto, advogado, converteu-se ao cristianismo luterano. O apelido doméstico que o acompanharia a vida inteira – Mohr, Mouro – foi adquirido em Berlim, onde fora estudar, como referência ao cabelo negro e à pele escurecida. Mary Gabriel não o poupa: “O primeiro ano de Marx na universidade foi mergulhado no álcool.” Mas, não apenas o primeiro ano. Marx é mostrado com todos os seus defeitos: desorganizado, dispersivo, mulherengo. Mas, como pontos positivos, pai e avô amoroso e, paradoxalmente, marido dedicado. Aliás, surpresa das surpresas, aos 18 anos ele convenceu Jenny a tornar-se sua noiva – ela que já passara por um noivado frustrado – com três volumes de poemas, guardados por Jenny e publicados, como curiosidade literária, somente após a morte de ambos. Mas, a maior virtude de Karl era a sua capacidade de transitar em várias matérias, para atingir o seu objetivo maior: construir uma teoria do capitalismo industrial, que, com sua previsível implosão, conduziria o proletariado ao poder.

Nascidos ambos em Trier – Tréveris, em Português –, a mais antiga cidade alemã, fundada, segundo a lenda, pelo próprio Octavio Augusto, no século 1 a.C., o casal, escapando à censura e à polícia política, viveu em Paris e Bruxelas antes de se fixar em Londres. As casas dos três países onde moraram se tornaram uma espécie de consulado socialista, onde todas as tendências de refugiados encontravam abrigo. Marx não foi apenas um teórico: apesar de sua inabilidade política, esteve sempre à frente dos movimentos sociais, especialmente na França e na Inglaterra, entre os anos 1840 e 1870.  Não à toa, era chamado pelos seus detratores de “Doutor Terrorista Vermelho”.

Jenny Caroline Marx Longuet (Jennychen, 1844-1883), a filha mais velha do casal Marx, foi casada com Charles Longuet, jornalista revolucionário francês. Trabalhou para o pai como secretária, atuando também como jornalista, especialmente na defesa da liberação de presos políticos irlandeses de prisões inglesas. Morreu muito jovem, de câncer, deixando três filhos, criados pelas irmãs.

Jenny Laura Marx Lafargue (Laura, 1845-1911), segunda filha do casal Marx, foi tradutora dos livros do pai e de Engels. Casou-se com Paul Lafargue, de origem franco-cubana, ativista, introdutor do marxismo na França e na Espanha. Tiveram três filhos, todos falecidos em tenra idade. Em 1911, num aparente pacto, ambos se suicidaram. No funeral, um orador destacou-se: “Lutem. Lutem sempre. Até chegar naquilo que foi antevisto por estes mortos – a vitória do proletariado.” Era um revolucionário russo no exílio, Vladimir Ilyich Ulianov, que assombraria o mundo seis anos depois com o codinome Lênin.

Jenny Julia Eleanor Marx (Tussy, 1855-1988), a caçula do casal Marx, era a mais inquieta das três: tendo trabalhado como secretária e tradutora do pai, ansiava por independência financeira. Trabalhou como atriz, traduziu Flaubert e Ibsen, atuou como jornalista e ativista. Suicidou-se, ao descobrir que seu companheiro Edward Aveling, que era dramaturgo, casara-se com uma atriz mais jovem. Não teve filhos. Sobre as filhas, Marx declarou em certa ocasião que Jennychen era a mais parecida com ele; mas, Tussy era ele.

Da esquerda para a direita: Jennychen, Tussy e Laura,
sob a guarda do Mouro e do General, em 1864.

Friedrich Engels (General, 1820-1895). O apelido doméstico foi atribuído pela adolescente Jennychen, por ocasião da guerra franco-prussiana, que deu origem ao império alemão, em 1870-1871, sobre a qual Engels escreveu cerca de sessenta artigos, que circularam por toda a Europa, alcançando até os Estados Unidos.

É lugar comum dizer que sem Engels não haveria marxismo. Talvez, nem Marx. Eles se conheceram em 1844, e nem a morte os separou. Segundo Mary Gabriel,

Intelectualmente, ambos eram brilhantes, incisivos, visionários e criativos (mas também elitistas, beligerantes, impacientes e conspiratórios). Como amigos, eram desbocados, grosseiros e adolescentes. Adoravam fumar (Engels, cachimbo; Marx, charuto), beber até de madrugada (Engels, bons vinhos e cervejas; Marx, qualquer coisa disponível), bisbilhotar (especialmente sobre as tendências sexuais de seus conhecidos) e gargalhar muito alto (geralmente à custa dos inimigos, e no caso de Marx, até lhe correrem lágrimas pela face).

Unia-os ainda a história, a filosofia e a economia. Ambos acreditavam que o capitalismo não se sustentaria, pois era arquitetado sobre um terreno alagadiço, ou, como dizemos hoje, bolhas econômicas que geram crises mundiais a cada estouro. Ambos acreditavam que a classe operária, por ser maioria, um dia tomaria o poder. Ambos acreditavam que o futuro da humanidade era o comunismo. Só um aspecto os diferenciava: Engels, vindo de uma família rica, era um rico empresário da indústria têxtil; Marx, doutor em filosofia, vivia de parcos recursos como jornalista político, sem nenhuma garantia de ter o que comer no dia seguinte. Engels foi o provedor da família, enquanto viveu, socorrendo o amigo em permanente estado de necessidade – e, depois, as duas filhas sobreviventes. Mas, Engels dizia que não fazia isso gratuitamente: ele tinha consciência de que a obra que Marx estava construindo valeria mais que tudo o que gastava. E ele estava certo.

Escreveram vários livros juntos e os livros-solos eram revisados criticamente pelo outro. Mas, o principal deles, O Capital, o livro que “mudou a consciência do mundo”, no dizer de Bernard Shaw, só teve um tomo publicado em vida por Marx (1867). O segundo e o terceiro foram “editados” por Engels, a partir de anotações deixadas pelo caótico Marx. Há ainda um quarto tomo, que Engels não teve tempo de finalizar, entregando-o à edição de um terceiro, o jornalista e economista Karl Kautsky.

Um episódio emblemático entre os dois foi a paternidade do filho de Helene Demuth (Lenchen, 1820-1890), empregada dos Marx. Engels assumiu e a criança foi entregue para uma família de um subúrbio londrino, que a criou (provavelmente, subsidiada pelo suposto pai), tendo Lenchen permanecido com os Marx. Após a morte do casal, entretanto, a verdade veio à tona: o menino, Frederick Demuth (Freddy, 1851-1929), que se tornara um ativista e seguidor da doutrina comunista, era filho de Karl Marx.

Das Kapital é uma obra coletiva. Além de Marx, que o escreveu, e Engels, que o revisou e editou, teve a participação fundamental de Jenny, a esposa, mas também de Jennychen, Laura e Tussy, as filhas. E não podemos nos esquecer de Lenchen, sempre calada e presente. Cada uma dessas mulheres deu sua contribuição, sua cota de sacrifício, para que a obra de toda uma vida se tornasse um livro transformador – e atual, mais de 150 depois – e não apenas uma interpretação para uso intelectual ou histórico. A revolução – política, social e econômica – era seu único objetivo.

O Capital aponta, no berço de nascimento do capitalismo moderno, suas falhas e seu declínio, porque assentado nas mesmas bases dos sistemas econômicos que o antecederam: os ricos explorando os pobres. O livre mercado, de que os economistas liberais tanto se jactavam, era apenas um mercado controlado pelos ricos, em benefício deles mesmos, os ricos. E assim continua. Por esse ângulo, a luta de classes é transparente e seu acirramento é necessário. Marx ecoava Hegel, para quem a história humana é a história de seus conflitos. Para Engels, se o contemporâneo Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da natureza orgânica, “Marx descobriu a lei do desenvolvimento da história humana.” A revolução proposta por Marx tem uma premissa fundamental: nenhum homem tem o direito de explorar outro homem. E porque as relações entre as pessoas são basicamente materiais, de fundo econômico, a força motriz da revolução se resume em uma palavra: pão.   

Marx sabia do que falava:

Deve haver algo de podre no cerne de um sistema social que aumenta sua riqueza sem diminuir sua miséria.

E foi investigando as causas dessa distorção que Marx descreveu a ascensão e a queda do capitalismo – da “economia global” às bolhas causadas pelo consumo desenfreado a impor necessidades artificiais que o trabalhador assalariado não pode suprir, porque ele não passa de mão de obra escravizada pelo salário de fome, e duplamente escravizada pelo crédito, indispensável para o consumo que retroalimenta a Hidra de Lerna de nosso tempo.

A revolução seria lenta: redução da carga horária e um salário capaz de manter o trabalhador de pé, alimentando também sua família, seriam apenas os primeiros passos. Para Marx, a “utopia comunista”, como ironizavam seus adversários, só seria alcançada após os trabalhadores adquirirem o direito a se alimentarem com dignidade. Era preciso comer para depois sonhar.

Mas, o livro máximo do socialismo não pode ser visto como uma suma dogmática, baseada em preceitos imutáveis. É preciso analisá-lo dentro de seu contexto histórico. Expressões como “ditadura do proletariado”, por exemplo, serviram como justificativa para a repressão política e policial, desde sempre. Em 1895, poucos meses antes de sua morte, o dedicado Engels deu sua última contribuição ao amadurecimento do marxismo, na Introdução à uma nova edição de um dos textos mais populares de Marx, As lutas de classes na França, relembrando a campanha épica do movimento de 1848-1849, quando os dois amigos estiveram na vanguarda dos acontecimentos. Engels, fazendo uma autocrítica do movimento no que lhe dizia respeito, escreve a respeito de uma “nova arma poderosa” à disposição do proletariado: o sufrágio universal. E sem abrir mão do “direito à revolução”, ele pondera que a mudança da conjuntura pede a adaptação das formas de luta: “[O sufrágio universal] é um instrumento mais aborrecido e lento para a promoção da revolução, mas é dez vezes mais seguro; e sobretudo indica com precisão o dia em que se deve empunhar armas pela revolução.” Àquela época o voto era apenas masculino. Nestes mais de 120 anos que nos separam da reflexão de Engels, muita coisa mudou – e mudou a favor da classe pela qual Marx e Engels dedicaram todas as suas forças.

 

Jenny e Karl Marx morreram sem ver o alcance da obra que realizaram. Mas, o sacrifício da família e do amigo Engels não foi em vão: O Capital transformou o mundo, mudando a maneira de pensar da humanidade. Isso já foi uma revolução, mas o capitalismo continua forte, opressor, asfixiante. Embora invisível – especialmente, para quem não quer ver –, a luta de classes continua viva e necessária, e o voto é a principal arma para promover a transformação.




[1] GABRIEL, Mary. Amor e Capital: a saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução. Tradução: Alexandre Barbosa de Souza. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. 958 p.


quinta-feira, 23 de junho de 2022

A poesia é necessária?

 

Visão 1961

Roberto Piva (1937-2010)

 

as mentes ficaram sonhando penduradas nos esqueletos de fósforo

invocando as coxas do primeiro amor brilhando como uma flor de saliva

o frio dos lábios verdes deixou uma marca azul-clara debaixo do pálido

maxilar ainda desesperadamente fechado sobre o seu mágico vazio

marchas nômades através da vida noturna fazendo desaparecer o perfume

das velas e dos violinos que brota dos túmulos sob as nuvens de chuva

fagulha de lua partida precipitava nos becos frenéticos onde

cafetinas magras ajoelhadas no tapete tocando o trombone de vidro

da Loucura repartiam lascas de hóstias invisíveis

a náusea circulava nas galerias entre borboletas adiposas

e lábios de menina febril colados na vitrina onde almas coloridas

tinham 10% de desconto enquanto costureiros arrancavam os ovários

dos manequins

minhas alucinações pendiam fora da alma protegida por caixas de matéria

plástica eriçando o pelo através das ruas iluminadas e nos arrabaldes

de lábios apodrecidos

na solidão de um comboio de maconha Mário de Andrade surge como um

Lótus colando sua boca no meu ouvido fitando as estrelas e o céu

que renascem nas caminhadas

noite profunda de cinemas iluminados e lâmpada azul da alma desarticulando

aos trambolhões pelas esquinas onde conheci os estranhos

visionários da Beleza

já é quinta-feira na avenida Rio Branco onde um enxame de Harpias

vacilava com cabelos presos nos luminosos e minha imaginação

gritava no perpétuo impulso dos corpos encerrados pela

Noite

 os banqueiros mandam aos comissários lindas caixas azuis de excrementos

secos enquanto um milhão de anjos em cólera gritam nas assembleias

de cinza OH cidade de lábios tristes e trêmulos onde encontrar

asilo na tua face?

no espaço de uma Tarde os moluscos engoliram suas mãos

em sua vida de Camomila nas vielas onde meninos dão o cu

e jogam malha e os papagaios morrem de Tédio nas cozinhas

engorduradas

a Bolsa de Valores e os Fonógrafos pintaram seus lábios com urtigas

sob o chapéu de prata do ditador Tacanho e o ferro e a borracha

verteram monstros inconcebíveis

ao sudoeste do teu sonho uma dúzia de anjos de pijama urinam com

transporte e em silêncio nos telefones nas portas nos capachos

das Catedrais sem Deus

imensos telegramas moribundos trocam entre si abraços e condolências

pendurando nos cabides de vento das maternidades um batalhão

de novos idiotas

os professores são máquinas de fezes conquistadas pelo Tempo invocando

em jejum de Vida as trombetas de fogo do Apocalipse

afã irrisório de ossadas inchadas pela chuva e bomba H árvore

branca coberta de anjos e loucos adiando seus frutos

até o século futuro

meus êxtases não admitindo mais o calor das mãos e o brilho

platônico dos postes da rua Aurora comichando nas omoplatas

irreais do meu Delírio

arte culinária ensinada nos apopléticos vagões da Seriedade por

quinze mil perdidas almas sem rosto destrinçando barrigas

adolescentes numa Apoteose de intestinos

porres acabando lentamente nas alamedas de mendigos perdidos esperando

a sangria diurna de olhos findos e neblina enrolada na voz

exaurida na distância

cus de granito destruídos com estardalhaço nos subúrbios demoníacos pelo

cometa sem fé meditando beatamente nos púlpitos agonizantes

minhas tristezas quilometradas ir pela sensível persiana semiaberta da

Pureza Estagnada e gargarejo de amêndoas emocionante nas palavras

cruzadas no olhar

as névoas enganadoras das maravilhas consumidas sobre o arco-íris

de Orfeu amortalhado despejavam um milhão de crianças atrás das

portas sofrendo

nos espelhos meninas desarticuladas pelos mitos recém-nascidos vagabundeavam

acompanhadas pelas pombas a serem fuziladas pelo veneno

da noite no coração seco do amor solar

meu pequeno Dostoiévski no último corrimão do ciclone de almofadas

furadas derrama sua cabeça e sua barba como um enxoval noturno

estende até o Mar

no exílio onde padeço angústia os muros invadem minha memória

atirada no Abismo e meus olhos meus manuscritos meus amores

pulam no Caos



terça-feira, 21 de junho de 2022

Prefácio a “As Pedras do Rosário”, de Francisco Gomes da Silva

 Pedro Lucas Lindoso

 

O historiador Francisco Gomes da Silva nos brinda com esse primor de livro – As Pedras do Rosário. Depois de quase duas dezenas de livros publicados, o Autor se apresenta com uma “inspiração teologal”. Elson Farias, ilustre renomado poeta de Itacoatiara, em seu livro As náiades e a mãe-d’água, nos lembra que Max Carphentier “trabalha uma poesia de inspiração teologal”.

Essa “inspiração teologal” de que fala Elson Farias é, em nosso sentir, a mesma inspiração divinal que inspirou Francisco Gomes ao escrever As Pedras do Rosário. Inspiração teologal sublime e voltada para a exaltação de Maria, a Mãe de Deus e nossa Mãe.

Maria que já se manifestou de diversas maneiras para consolar, acalmar e acalentar a humanidade. E sempre nos aconselha a rezar o terço. Se apresentou aos pastores meninos de Fátima, a Bernadete em Lourdes, em forma de adoração à sua imagem em Aparecida e em Belém do Pará.

No México, se transformou numa nativa grávida, ao aparecer em Guadalupe ao jovem mexicano Diego. E no livro de Francisco Gomes, logo no início, temos a breve narrativa da Deusa dos índios Iruri. Como a Virgem de Guadalupe, a Deusa índia também veio grávida do céu. Guadalupe se tornou padroeira de toda a América latina. A mãe dos Iruri com certeza é a mesma nossa Mãe. Mãe do Criador. Mãe de Deus. Ela se transforma, se transmuta para melhor se fazer entender, para auxiliar os homens em seus desejos e angústias.

O Rosário, a reza do terço, é a maneira mais prática, mais eficaz de se conectar com nossa Mãe. E com o Divino Pai Eterno. Como bem nos diz Francisco Gomes:

“Simbolicamente, o Rosário é a rede que pesca almas para Deus, com a intercessão da Virgem Maria”.

Francisco Gomes nos informa que a vocação de rezar o Rosário veio para Itacoatiara e região pelos jesuítas, ainda no século XVII.

A riqueza da obra de Francisco Gomes extrapola o aspecto teologal de que falamos e adentra no aspecto histórico e considerações do mundo profano. E nos lembra quão marcante e às vezes altamente dramáticas que foram as conquistas dos europeus:

“Durante os séculos XV e XVI, os europeus lançaram-se nos três oceanos com os objetivos de descobrir uma nova rota marítima para as Índias e encontrar novas terras. A expansão no exterior levou ao surgimento dos impérios de Portugal e Espanha, que lideraram as grandes descobertas estendendo seus domínios à África, à Ásia e às Américas”.

Como bem ensina Francisco Gomes, na conquista das Américas, a Igreja esteve presente inclusive endossando interesses comuns dos governos colonizadores. Obviamente, este expansionismo europeu teve por base a teologia cristã.

E aí vem, em minha opinião, o ápice da obra, que é a importância do Santo Rosário para consolidação do Cristianismo na Amazônia e em Itacoatiara. E assim nos fala:

“O Santo Rosário sempre se revelou forte no mundo inteiro, é tradicional na Amazônia e se sobressai muito no Município de Itacoatiara. É uma oração mariana muito recomendada pela Igreja Católica ao longo dos séculos”.

O Autor nos informa que a devoção do povo itacoatiarense a Nossa Senhora do Rosário vem de 1683, ano em que foi fundado no rio Madeira o núcleo originário desta cidade. Gomes, acertadamente afirma que:

“Além do Culto a Jesus, o Catolicismo incentivava o Culto à Virgem Maria e aos santos. A Igreja sempre venerou Maria como sua Mãe, e há uma razão lógica: ela é a Mãe de Jesus, Cabeça da Igreja”.

A obra de Francisco Gomes da Silva é riquíssima em informações históricas. Mas sempre há lugar para o Divino por intermédio da adoração da Santa Mãe de Deus e seus milagres. É assim ao relatar episódio ocorrido em 1791. A pequenina igreja foi devorada por um misterioso incêndio – sendo a imagem da Padroeira milagrosamente salva.

Durante toda a leitura do livro, o leitor vai tomar conhecimento dos mais importantes fatos históricos ocorridos primeiro na Província do Grão Pará e Maranhão. Posteriormente, no Grão Pará e Alto Rio Negro. Além de importantes considerações sobre o período Pombalino. Entretanto, Francisco Gomes, de maneira magistral, consegue sempre lembrar ao leitor a figura divinal de Maria, Mãe de Deus.

Por fim, tanto o autor como os leitores, percebemos que Nossa Senhora vela por todos e cada um de nós, como Mãe e com uma grande ternura, misericórdia e amor, e sempre nos incentiva a sentir seu olhar amável. Quem nos garante isso é o nosso atual Pontífice, Papa Francisco.

Parabéns ao historiador Francisco Gomes da Silva por sua obra que nos enriquece, tanto no aspecto teologal, na figura de Nossa Senhora do Rosário, como no aspecto histórico, com toda a gama de informações sobre a Amazônia.

Manaus, maio de 2022.



domingo, 19 de junho de 2022

Manaus, amor e memória DLXXII

 

Cruzamento da Sete de Setembro com Eduardo Ribeiro.

quinta-feira, 16 de junho de 2022

A poesia é necessária?

 

O morcego

Augusto dos Anjos (1884-1914)

 

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.

Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:

Na bruta ardência orgânica da sede,

Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

 

“Vou mandar levantar outra parede...”

– Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho

E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,

Circularmente sobre a minha rede!

 

Pego de um pau. Esforços faço. Chego

A tocá-lo. Minh’alma se concentra.

Que ventre produziu tão feio parto?!

 

A Consciência Humana é este morcego!

Por mais que a gente faça, à noite, ele entra

Imperceptivelmente em nosso quarto!



terça-feira, 14 de junho de 2022

Carta a um jovem escritor

Pedro Lucas Lindoso

 

Meu caro jovem. Li seu texto e seus poemas. Você me diz que tem escrúpulos em publicá-los. Evita até mesmo divulgá-los nas redes sociais. E ainda me conta que leu Machado de Assis, Eça de Queirós e Fernando Pessoa. Além de Bandeira e Carlos Drummond. E que o que escreve não deve ter valor algum.

A primeira coisa que devo dizer é que você não deve se comparar a ninguém. Haverá sempre muitos poetas vivos ou mortos melhores que você.  Mas, acredite, existem milhares cujos textos não chegam aos pés dos seus.

Não se subestime. Ponha a cabeça para fora e enfrente o mundo, as pessoas, as críticas, as invejas, o desdém e o boicote. Faz parte da vida. A inveja, o ciúme, as disputas são inerentes ao ser humano. Todo mundo fala de todo mundo. Só não fala de alguém aquele que morre. Mas não escapa de ser o assunto.  Principalmente no velório dele.

Os músicos tem à sua disposição 7 notas musicais. Chopin, Bach, Beethoven, Caetano, Gil, Milton Nascimento, Roberto Carlos e os Beatles fizeram maravilhas com base nessas sete notinhas. Na dança, os bailarinos do Bolshoi e as garotas do Faustão fazem arte movendo seus próprios corpos.

Quanto aos pintores eles tem somente três cores: as cores primárias, que são o vermelho, amarelo e azul. Elas recebem esse nome porque são consideradas cores puras, ou seja, existem sem a necessidade de misturar outras cores. Quantos quadros maravilhosos foram feitos com base nelas!

Aos escultores estão disponíveis o gesso, pedra, madeira, resinas sintéticas, aço, ferro e mármore. E desses materiais fazem e fizeram maravilhas na arte de esculpir.

E quem faz Literatura? Ouvi dizer que existem atualmente mais de 7.000 idiomas. É verdade que apenas 23 cobrem mais da metade da população mundial. E tem gente produzindo textos nessas línguas todo dia e toda hora. E as pessoas que o fazem não tem nenhum escrúpulo em divulgar, compartilhar e espalhar seus escritos a torto e a direito, principalmente via internet.

Os seus textos e poemas são cativantes. Você se expressa ficcionalmente. Ou seja, se apresenta como artista das Letras. Não como uns e outros que escrevem com ódio, espalhando mentiras e aleivosias pelas redes sociais.

O Google diz que o dicionário Houaiss lista 400 mil palavras. Se consideramos as palavras técnicas e científicas, devem existir cerca de 600 mil palavras na língua portuguesa. Faça bom proveito desse enorme manancial de vocábulos. Você leva jeito. Não tenha escrúpulos em fazer Arte. O mundo está carente da Música, da Dança, da Pintura e principalmente da boa Literatura. Escreva sempre e sem medo. Um forte abraço.

  

 

domingo, 12 de junho de 2022

Manaus, amor e memória DLXXI

 

Bonde, na segunda ponte romana, em direção ao Centro.
Ao fundo, semiencoberto pelo bonde, o Palácio Rio Negro.

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Bossa Nova para o nosso tempo

 Zemaria Pinto

 

Quando Umberto Eco colocou um MacGuffin para desviar a atenção dos assassinatos em O nome da rosa, não poderia ter imaginado melhor: um texto de Aristóteles sobre a comédia e, por extensão, sobre o riso. Infelizmente, era apenas um MacGuffin. Apesar de presente desde os mais remotos textos conhecidos, o cômico sempre foi tido, ao lado do feio, como inferior, subalterno. Mas, Sófocles e Eurípides, Dante e Rabelais, Cervantes e Shakespeare nunca deixaram de harmonizar com sabedoria o feio e o belo, o cômico e o trágico como constituintes de uma beleza una. No dezenove, os românticos, Victor Hugo na vanguarda, defenderam a premissa de que é da união do grotesco com o sublime que se engendra o moderno. Não à toa, Quasímodo e Rigoletto, dois grotescos exemplares, nasceram do sopro de Hugo.

Baudelaire e Augusto dos Anjos são exemplos extremos de poesia que lança mão do grotesco para atingir a alma do leitor, lá onde os olhos não alcançam. E que se dane o belo! Os “ismos” que surgiram na virada do dezenove para o vinte tornaram o belo ridículo – acadêmico! Virou maldição. E viva o grotesco, o deformado! E viva o feio!

O cômico vinha na carona dessa tendência, especialmente por conta do cinema, que revelaria toda a tragicidade do cômico – Chaplin, Buster Keaton e Harold Lloyd à frente. 

A leitora, o leitor devem estar se perguntando: e a Bossa Nova?

Pois na música popular brasileira não aconteceu diferente: a música de humor é uma categoria ainda enjeitada, a despeito de uma verdadeira legião de cultores do gênero, que vai de Noel Rosa a Roberto Carlos, Pixinguinha a Chico Buarque, Adoniran Barbosa a Zeca Baleiro, passando por Moreira da Silva, Billy Blanco, Juca Chaves, Raul Seixas, Rita Lee e Mamonas Assassinas. Aliás, este é um tema a ser desenvolvido: “De Donga a Nicolas Jr, o humor na emepebê”.

Assim como a literatura e as artes plásticas – incluindo as charges, o cartum e a caricatura –, a música cômica pode ser arte, para além dos preconceitos: crônicas (quantos sambas são feitos como crônicas de situações?), paráfrases e paródias. Ou invenções fora de série, como é o caso de Bossa’n’humor, que transborda conexões por todo lado, numa autêntica autoafirmação de vitalidade, nesta geleia geral que é a – com o perdão da má palavra – pós-modernidade!      


Bossa’n’humor é o primeiro álbum solo de Carlos Castelo, escritor múltiplo e compositor idem, remanescente do Língua de Trapo, que – ao lado do Premeditando o Breque – formou na linha mais avançada da Vanguarda Paulistana, nos anos 1970/1980. Para quem nunca ouviu falar dos dois grupos, a leitura dos nomes é suficiente para explicar o gênero que ambos adotavam – cada um do seu modo particular.

O álbum tem doze faixas – será que estou usando a terminologia adequada, nestes tempos de absoluta virtualidade? –, o que pode ser interpretado como uma paródia do número de faixas dos LPs antigos. Bobagem minha. Mas, a capa, sim: Carlos parodia a carantonha de Joãozinho, no episódio “vaia de bêbado não vale”, em 1999, que Tom Zé tão bem interpretou, em defesa do (nosso) ídolo. “Viva Vaia”, como diria o “velhinho concreto”.

  Bossa’n’humor dialoga com João Gilberto, Tom Jobim e Astrud Gilberto – raízes da Bossa Nova – mas, também com Adoniran Barbosa, Tom Zé, Vinicius de Moraes, entre outros.

Logo na primeira faixa, um inusitado e feliz casamento entre a bossa nova de Carlos Castelo e Tony Pituco (seu parceiro em dez faixas) e a poesia de Décio Pignatari: a clássica “Beba Coca-Cola” (1957), onde uma superposição de vozes dá uma nova dinâmica ao poema, revitalizando o discurso concreto.


“Bossampa” explora as diferenças entre as cidades: Rio de Janeiro, solar e multicor; São Paulo, neurótica e dominada pelo cinza. Mas, se “bossa nova em São Paulo é um desvio”, é sempre possível cantar, ecoando Tom Zé: “São São São Paulo”.

Interpretação dividida com Carlos Careqa, “Psicossamba” brinca com a neurose de “Bossampa” e faz um inventário, de Freud a Lacan, de diagnósticos possíveis para explicar um “amor tão maluco”: “transferência”, “sincronicidade”, “questão de encaixe” e por aí vai.

“Benê” é um delicado diálogo com o mestre Adoniran Barbosa, de “Pode apagar o fogo, Mané”. Em Adoniran, Inês sai para comprar pavio pro lampião e deixa um bilhete para o marido com o texto do título. Em Carlos Castelo, a mulher fala para o marido: “acabou o gás, Benê, desse jeito eu não aguento”. E o solícito Benê sai atrás de comprar gás... Estava armado o desencontro.   

Em “Breque do Guioza”, de Tony Pituco e Rogério Santos, Castelo divide o vocal com o parceiro Pituco. É uma ponte entre a Liberdade, bairro japonês no centro de São Paulo, e o Japão, onde mora Pituco. Uma “bossa massa”.   

Com o auxílio luxuoso de André Abujamra, “Bossa Sucks” emula o sucesso do gênero fora do Brasil, a partir de uma paródia do refrão clássico de João Gilbero: “bim bom bim bim bom...” E assim como o baião de João era só isso, a “bossa sucks” de Castelo joga com os clichês de uma bossa nova para americano ouvir. 

A Bossa Nova cristalizou uma ideia de movimento alienado da realidade brasileira. Apesar da euforia desenvolvimentista de JK, o Brasil da Bossa Nova sofria os mesmos problemas de hoje, com desemprego, fome, violência urbana e tragédias naturais evitáveis. Mas, em nenhum momento, as canções refletem isso. O resultado é que a onda que se ergueu após a Bossa Nova foi a da música de protesto, com a participação de muitos bossanovistas, como Nara Leão, Sérgio Ricardo e Carlos Lyra.   

É nessa ferida que “Posto 6” põe o dedo. Começa que a referência geográfica sai de São Paulo e vai de mala e cuia, como dizemos por aqui, para Copacabana – embora   o arranjo remeta a “Garota de Ipanema”. É como se Tom Jobim e Newton Mendonça fizessem uma canção nova, hoje: um novo “Desafinado”. Nada de amor, sorriso e flor, beijinhos e carinhos, barquinho ou banquinho. O desafio é encarar “um festival de balas perdidas”. O refrão de Joãozinho retorna, simulando rajadas: “bim bom bom bim bom bom...” Contraindicado a fãs intolerantes.

“Por que túmulo do samba?” A imprecação de Vinicius – inesquecível graças à citação de Caetano, em “Sampa” – ganha aqui uma justificativa. Após a exposição de um dia na vida de um trabalhador, o que resta a ele, senão... fazer hora-extra? Conclusão anti-adoniraniana: “me diga, meu bamba, a que hora nóis vai fazê samba?”

O Expressionismo é a síntese daquilo que os nazistas consideravam “arte degenerada”. Desde meados do dezenove, o “belo puro” passara a ser considerado ultrapassado: a arte deveria conciliar os extremos entre o grotesco e o sublime. (Acho que já falamos disso hoje...) É sobre isso que trata a faixa “Expressionismo”, em que se exalta a beleza feminina a partir de suas particularidades... feias: o períneo, as sardas, os dedões, os culotes, os joanetes, as orelhas.    

Talvez pela presença emblemática de Vânia Bastos e sua voz personalíssima, “cochichando as palavras no ouvidinho” – provavelmente, para o Benê, lá da quarta faixa –, “Hã?” é a canção mais elaborada, letra e melodia em perfeita harmonia, sem perder a graça da situação: como o marido não a escuta, ela ameaça fugir com o vizinho – o gás estava no fim. Joãozinho cantaria.

“Todo mundo é carioca”, interpretado em parceria com o paulista Paulo Caruso, o irmão do Chico, brinca com o jeito de ser do carioca, inclusive o modo de falar. Carioca Zona Sul, claro.

Parceria entre Carlos Castelo (quando ainda se assinava Melo) e Cassiano Roda, “Concheta” é um clássico do Língua de Trapo. Dialogando com o “Samba Italiano”, do onipresente Adoniran, é cantado num italiano macarrônico, o que potencializa o efeito cômico.

 

Há dois anos, Leila Pinheiro, Rodrigo Santos e o mago Menescal gravaram um álbum – Faz parte do meu show: Cazuza em Bossa – em que recuperam a Bossa Nova pulsante do compositor desaparecido em pleno amadurecimento. Até agora, era o que havia de mais “diferente”, além do repertório clássico – incluindo a gravação de João para “Me chama”, de Lobão. Bossa’n’humor pode ser vista como uma homenagem bem-humorada à Bossa Nova, nos seus mais de 60 anos, mas também como uma revisão crítica do gênero, atualizando-a para o nosso tempo. Quem ouvir verá.    


 

PS: Bossa’n’humor pode ser ouvido integralmente no Spotify e nos melhores music streaming services do ramo.